quarta-feira, 5 de março de 2014

Um cheiro de cinzas no ar

28/02/2014 - Saul Leblon - Carta Maior

Arquivo
Fica difícil afastar a percepção de que o carnaval conservador saltou para a dispersão sem passar pela apoteose. O cheiro de cinzas no ar é inconfundível.

Como parte interessada, a mídia jamais reconhecerá no fato o seu alcance: mas talvez o Brasil tenha assistido nesta 5ª feira [27 fev] a uma das mais duras derrotas já sofridas pelo conservadorismo desde a redemocratização.

Quem perdeu não foi a ética, a lisura na coisa pública ou a justiça, como querem os derrotados.

A resistência conservadora a uma reforma política, que ao menos dificultasse o financiamento privado das campanhas eleitorais, evidencia que a pauta subjacente ao julgamento da AP 470 tem pouco a ver com o manual das virtudes alardeadas.

O que estava em jogo era ferir de morte o campo progressista

Não apenas os seus protagonistas e lideranças.

Mas sobretudo, uma agenda de resiliência histórica infatigável, com a qual eles seriam identificados.

Ela foi golpeada impiedosamente em 54 e renasceu com um único tiro; foi golpeada em 1960 e renasceu em 1962; foi golpeada em 1964, renasceu em 1988; foi golpeada em 1989, renasceu em 2003; foi golpeada em 2005 e renasceu em 2006, em 2010...

O  que se pretendia desta vez, repita-se, não era exemplar cabeças coroadas do petismo, mas um propósito algo difuso, e todavia persistente, de colocar a luta pelo desenvolvimento como uma responsabilidade intransferível da democracia e do Estado brasileiro.

A derrota conservadora é superlativa nesse sentido, a exemplo dos recursos por ela mobilizados - sabidamente nada modestos.

Seu dispositivo midiático lidera a lista dos mais esfarrapados egressos da refrega histórica.

Se os bonitos manuais de redação valessem, o  desfecho da AP 470  obrigaria a mídia ‘isenta’ a regurgitar as florestas inteiras de celulose que consumiu com o objetivo de espetar no PT o epíteto eleitoral de ‘quadrilha’.

Demandaria uma lavagem de autocrítica.

Que ela não fará.

Tampouco reconhecerá que ao derrubar a acusação de quadrilha, os juízes que julgam com base nos autos desautorizariam implicitamente o uso indevido da teoria do domínio do fato, que amarrou toda uma narrativa largamente desprovida de provas.

Se não houve quadrilha, fica claro o propósito político prévio de emoldurar a cabeça do ex-ministro José Dirceu no centro de uma bandeja eleitoral, cuja guarnição incluiria nomes ilustres do PT, arrolados ou não na AP 470.

O banquete longamente preparado será degustado de qualquer forma agora.

Mas fica difícil afastar a percepção de que o carnaval conservador saltou direto da concentração para a dispersão sem passar pela apoteose.

Aqui e ali, haverá quem arrote peru nos camarotes e colunas da indignação seletiva.

O cheiro de cinzas, porém, é inconfundível e contaminará por muito tempo o ambiente político e econômico do conservadorismo.

O  que se pretendia, repita-se, não era apenas criminalizar fulano ou sicrano, mas a tentativa em curso de enfraquecer o enredo que os mercados impuseram ao país de forma estrita e abrangente no ciclo tucano dos anos 90.

Inclua-se aí a captura do Estado para sintonizar o país à modernidade de um capitalismo ancorado na subordinação irrestrita da economia, e na rendição incondicional da sociedade, à supremacia das finanças desreguladas.

O Brasil está longe de ter subvertido essa lógica. Mas não por acaso, a cada três palavras que a ortodoxia pronuncia hoje, uma é para condenar as ameaças e tentativas de avanços nessa direção.

O jogral é conhecido: “tudo o que não é mercado é populismo; tudo o que não é mercado é corrupção; tudo o que não é mercado é inflacionário, é ineficiência, atraso e gastança”.

O eco desse martelete percorreu cada sessão do mais longo julgamento da história brasileira.

Assim como ele, a condenação da política pelas togas coléricas reverberava a contrapartida de um anátema econômico de igual veemência,  insistentemente lembrado pelos analistas e consultores: “o Brasil não sabe crescer, o Brasil não vai crescer, o Brasil não pode crescer - a menos que retome e conclua  as ‘reformas’”.

O eufemismo cifrado designa o assalto aos direitos trabalhistas; o desmonte das políticas sociais; a deflagração de um novo ciclo de privatizações e a renúncia irrestrita a políticas e tarifas de indução ao crescimento.

Não é possível equilibrar-se na posição vertical em cima de um palanque abraçado a essa agenda, que a operosa Casa das Garças turbina para Aécio - ou Campos, tanto faz.

Daí o empenho meticuloso dos punhais midiáticos em escalpelar os réus da AP 470.

Que legitimidade poderia ter um projeto alternativo de desenvolvimento identificado com uma  ‘quadrilha’ infiltrada no Estado brasileiro?

Foi essa indução que saiu seriamente chamuscada da sessão do STF na tarde desta 5ª feira. [27 fev]

Os interesses econômicos e financeiros que a desfrutariam continuam vivos.

Que o diga a taxa de juros devolvida esta semana ao degrau de 10,75%, de onde a Presidenta Dilma a recebeu e do qual tentou rebaixá-la, sob fogo cerrado da república rentista e do seu jornalismo especializado.

Sem desarmar a bomba de sucção financeira essas tentativas tropeçarão ciclicamente em si mesmas.

Os quase 6% que o Estado brasileiro destina ao rentismo anualmente, na forma de juros da dívida pública, dificultam sobremaneira desarmar o círculo vicioso do endividamento, do qual eles são causa e decorrência. 

É o labirinto do agiota: juro sobre juro leva a mais juro. E mais alto.

Dessa encruzilhada se esboça a disputa entre dois projetos distintos de desenvolvimento.

A colisão entre as duas dinâmicas fica mais evidente quando a taxa de crescimento declina ou ocorrem mudanças de ciclo na economia mundial, estreitando adicionalmente a margem de manobra do Estado e das contas externas.

É o que a América Latina, ou quase toda ela, experimenta  nesse momento.

A campanha eleitoral deste ano prestaria inestimável serviço ao discernimento da sociedade se desnudasse esse conflito objetivo, subjacente à guerra travada diante dos holofotes no julgamento da AP 470.

O conservadorismo foi derrotado. Mas não perdeu seus arsenais.

Eles só serão desarmados pela força e o consentimento reunidos das grandes mobilizações democráticas. 

As eleições de outubro poderiam funcionar como essa grande praça da apoteose.
A ver.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/Um-cheiro-de-cinzas-no-ar/30369

terça-feira, 4 de março de 2014

Governo Maduro neutraliza golpistas

28/02/2014 - Juan Manuel Karg (*)
- via comunicação por e-mail da Alba Movimentos
- Tradução: blog Escrevinhador

O governo da Venezuela parece ter retomado com força a iniciativa política, após a onda de protestos da oposição conservadora na última quinzena.

Convocou todas os setores sociais em uma conferência da paz nacional. Só faltou na reunião a oposição conservadora.

O governo recorreu também aos países do Mercosul, que reconheceu a democracia no país. Por sua vez, também anunciou a próxima reunião da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) para tentar construir uma posição comum contra as tentativas de desestabilização.

Qual é a estratégia da oposição conservadora para este novo cenário? Pesquisas mostram a rejeição da maioria dos venezuelanos aos protestos violentos, que nos últimos dias tem perdido peso.

A reunião convocada pelo Nicolás Maduro [foto], em Miraflores, última quarta-feira [26 fev], sob o nome de Conferência Nacional da Paz, era uma novidade política retumbante no cotidiano vertiginoso na Venezuela neste conturbado fevereiro. 

Representantes de movimentos sociais e políticos, religioso, empresarial e intelectual participaram da conferência. Apenas ficou ausente a Unidade Democrática.

O amplo consenso alcançado na reunião sobre a necessidade de ”pacificar” a situação política do país mostra um antagonismo claro para o ciclo de protestos de rua que têm sido desenvolvido contra o governo nas últimas duas semanas.

A oposição política, para evitar que fosse tirada uma foto com Maduro, acabou optando por não participar de uma conferência que fez uma análise verdadeiramente abrangente, mostrando sua mesquinhez e sectarismo.

Assim, não deixou que ouvissem a sua opinião,  que não a sua voz para o país. Foi o que fez, por exemplo, a Fedecamaras , que teve que admitir à nação que tinha cometido vários “erros” no passado.

Enquanto acontecia a conferência, em Caracas, o chanceler Elias Jaua [foto] começou, a partir de definição de políticas do governo Maduro, a fazer uma excursão ambiciosa nos países do Mercosul.

Em 24 horas, visitou a Bolívia , Paraguai , Argentina, Uruguai e Brasil. Jaua ofereceu aos países do continente ”informação em primeira mão” sobre os últimos acontecimentos.

Na conferência de imprensa realizada em Buenos Aires, ele detalhou o caráter pacífico de seu país, dizendo que “a Venezuela nunca fez uma guerra com outro país. Somos um país de pessoas de paz”.

A intenção do Jaua dar detalhes do que aconteceu, fazendo um contraponto às informações fornecidas pelos principais meios de comunicação internacionais, que, de acordo com a sua opinião, buscam ”demonizar” o governo venezuelano.

Assim, ele informou que das 14 mortes em eventos infelizes, apenas em três estavam envolvidos policiais. Esse funcionários agiram, segundo ele, fora as ordens dadas e foram afastados de seus postos e presos, sendo investigado pelo Ministério Público.

Depois de fazer esse esclarecimento, ele disse que “a nossa revolução é de uma natureza democrática e pacífica” e agradeceu o apoio do governo de Cristina Fernández Kirchner [foto].

No Uruguai, Jaua caracterizou a Unasul como “mais eficaz” e com um funcionamento mais democrático do que a OEA (Organização dos Estados Americanos).

Os dados dão razão ao ministro: em 2008 e 2010, houve duas tentativas de desestabilização na Bolívia e no Equador, que foram contidas pela Unasul. 

Assim, a Venezuela anunciou uma nova reunião da Unasul para discutir a questão.

Por sua vez, a oposição conservadora venezuelana parece aumentar sua divisão interna.

Após a prisão de Leopoldo López [foto], que é investigado pelas suas responsabilidades nos acontecimentos de 12 de fevereiro, Henrique Capriles [foto abaixo] tenta recuperar espaço, especialmente por meio de aparições na mídia.

No entanto, Capriles tem evitado convites para participar com Maduro de reuniões para a construção da paz. 

A sua ausência foi expressa tanto na Conferência Nacional para a Paz como no Conselho Federal de Governo, com a participação dos outros 22 governadores, incluindo Henri Falcón, outro líder da oposição e governador do estado de Lara.

Finalmente, temos conhecido nos últimos dias algumas pesquisas sobre os protestos.

Sem dúvida, se verifica um desgaste dos bloqueios violentos de setores da oposição conservadora.

A sondagem privada da Serviços da Consultoria Internacional quantifica 83% de rejeição da continuidade desses protestos.

É evidente que, à medida em que essas ações se tornaram método de protesto, houve uma rejeição por parte da oposição conservadora como um “atalho”.

Aparentemente, a decisão de retomar fortemente a iniciativa política, tanto nacional e internacionalmente, do governo venezuelano fez grande parte da ”classe política” perdida, vendo um refluxo das suas ações.

As articulações no âmbito da Conferência Nacional para a Paz e uma rápida reunião da Unasul são fundamentais para neutralizar os ânimos dos setores mais violentos e colocar por terra, definitivamente, mais essa tentativa de desestabilização da história da Revolução Bolivariana.

(*) Juan Manuel Karg é professor licenciado em Ciência Política da Universidade de Buenos Aires e pesquisador do Centro Cultural da Cooperação.

Fonte:
http://www.rodrigovianna.com.br/geral/governo-maduro-neutraliza-golpistas.html

segunda-feira, 3 de março de 2014

A luta é com palavras..., como sempre foi

21/02/2014 - Ucrânia e Venezuela: lutar com palavras
- por Rodrigo Vianna - Escrevinhador

Lutar com palavras é a luta mais vã. No entanto lutamos, mal rompe a manhã.” (Drummond)

Não se trata de poesia. Mas de política.

A edição da “Folha” desta sexta-feira [21 fev] é mais uma demonstração de que a batalha nas ruas de Kiev ou Caracas não é feita só de coquetéis molotov, bombas e fuzis.

A batalha se dá na mídia, na TV, na internet, nas páginas envelhecidas dos jornais. São Paulo, Caracas, Kiev, Moscou e Washington. A batalha é uma só.

Reparemos bem.

Ao lado, temos a primeira página do jornal conservador paulistano – o mesmo que apoiou o golpe de 64 e emprestou seus carros para transporte de presos durante a ditadura militar.

Na capa da “Folha”, ucranianos escalam uma montanha de entulho no centro de Kiev, e a legenda avisa:

Manifestantes antigoverno usam pneus e entulho para montar barricadas…”

Logo abaixo, uma chamada sobre reintegração de posse em São Paulo:

Em SP, invasores destroem imóveis do Minha Casa”. Numa página interna, o jornal informa que esse “invasores resistiram e, até a noite, praticavam atos de vandalismo”. (página C-1)

Ucranianos não praticam “vandalismo”. São tratados de forma heroica.

Ainda que se saiba que parte dos manifestantes em Kiev tem um discurso racista, próximo do nazismo [foto].

Brasileiros são “vândalos”. Ucranianos são “manifestantes”.

Mas sigamos adiante.

Nas páginas internas, a “Folha” traz vários textos do enviado especial a Kiev. 

Num deles, o repórter mostra uma pequena fábrica para produção de coquetéis Molotov, dentro do Metrô de Kiev.

O cidadão que produz as bombas é descrito assim: 

Sem afiliação a partidos ou uma proposta ideológica clara, o cidadão diz ter sido atraído pela praça e pelas manifestações a partir da ideia de que é necessário mudar o sistema político na Ucrânia.” 

Mudar o sistema político. Hum. Não fica claro se o cidadão quer uma ditadura.

A Ucrânia não é uma democracia? O governo não foi eleito pela maioria? 

Hum… “Sem afiliação a partidos” – essa parece ser a chave para legitimar tudo nos dias que correm. A CIA, os EUA, a CNN, a Folha não tem filiação a partidos. Não. Nem o nobre manifestante de Kiev.

Ao lado da reportagem sobre os molotov, um texto opinativo assinado por Igor Gielow (sobrenome “eslavo”, muito bom! Isso dá credibilidade ao comentário). [foto]

Basicamente, Gielow diz que a crise na Ucrânia é “reflexo da estratégia de Putin para a região”.

Ele não está errado. Pena que esqueça de contar uma parte da história.

O importante não é o que eu publico, mas o que deixo de publicar”, dizia Roberto Marinho.

Gielow e a “Folha” ensinam: Putin [foto abaixo] é um líder malvado, que pretende manter na Ucrânia “a esfera de poder dos tempos imperiais e soviéticos”.

Aprendam: só a Rússia tem interesses imperiais na Ucrânia.

Do outro lado, há cidadãos sem afiliação partidária, lutando contra um insano governo pró-Moscou.

Os EUA e a Europa não têm interesses na Ucrânia. Só Putin. A culpa é dos russos.

Na “Folha” luta-se com as palavras muito antes da manhã começar. Luta-se com as palavras em Kiev, em São Paulo, Moscou. Washington fica invisível. E toda a estratégia passa por aí.

O poder imperial só existe por parte da Rússia. Washington não tem qualquer projeto imperial: nem na Ucrânia, nem na Síria, nem tampouco na América Latina…

Falando nisso, a cobertura sobre a Venezuela é também grandiosa no diário da família Frias.

Declarações de Maduro aparecem entre aspas. Velho truque jornalistico para desqualificar, colocar no gueto da suspeição, qualquer fala dos chavistas.

Segundo a Folha, o governo de Maduro afirma que o movimento (golpista? Isso a Folha não diz) é uma armação de “forças de ultradireita da Venezuela e de Miami”.

No texto original a expressão está assim, entre aspas. Por que? Para dar a impressão de que Maduro é um lunático, e que não há forças de ultradireita lutando nas ruas. Não. Há só “estudantes” e “manifestantes” (e agora sou eu que coloco entre aspas).

A legenda da foto ao lado (também publicada pelo jornal conservador paulistano) diz:

Estudantes queimam lixo em atos contra Nicolás Maduro”. 

Primeiro, como se sabe que o sujeito é um “estudante”

Depois, reparem que queimar lixo na Venezuela é “ato contra Maduro“. 

Queimar prédios em desapropriação, em São Paulo, vira “vandalismo”.

Em Caracas não há “vândalos”.

Ao lado da foto, um texto assinado por repórter (que está em São Paulo!!!) narra roubo de equipamento da CNN em Caracas: “o ataque à CNN se assemelha a inúmeros relatos de motociclistas intimidando manifestantes, com tolerância e até respaldo das forças de segurança do governo”.

O roubo ocorreu em manifestação da oposição. Mas o roubo certamente é coisa dos chavistas. Claro.

Nem é preciso ir até Caracas pra saber (registro a bem da verdade factual que o repórter - a quem conheço, ótima pessoa – foi correspondente em Caracas).

No mesmo texto (assinado, de São Paulo) os grupos que defendem o governo são chamados de “milícias”. Ok.

Já estive em Caracas cinco ou seis vezes. E há grupos chavistas que se assemelham mesmo a milícias. Mas do lado da oposição há o que? Não há milícias? A turma de Leopoldo, que deu golpe em 2002, é formada por cidadãos inocentes. E só.

Quem lê a “Folha” aprende que, em Caracas, há de um lado “milícias chavistas”. De outro, só “estudantes” e “manifestantes”. 

 Não há neutralidade no uso das palavras. Nunca houve. Nunca haverá.

E quanto mais agudas as crises, mais isso fica claro. Há escolhas. A “Folha” faz as suas. A CNN, a Telesur, a VTV – ou esse blogueiro. A diferença é que uns assumem que têm lado. Outros fingem que estão “a serviço do Brasil”.  

Lutemos, com as palavras. Não há saída. O outro lado luta todos os dias, todas horas.

“Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate” (Drummond)

Fonte:
http://www.rodrigovianna.com.br/vasto-mundo/ucrania-e-venezuela-lutar-com-palavras.html

Nota:
A inserção de imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

domingo, 2 de março de 2014

Carnaval na Criméia

28/02/2014 - Pepe Escobar - Asia Times Online
– The Roving Eye - “Carnival in Crimea”
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu - Redecastorphoto

Mapa político da Ucrânia e principais cidades e fronteiras - ao sul, a península da Crimeia

O tempo não espera por ninguém, mas, parece, esperará pela Crimeia.

O presidente do Parlamento da Crimeia, Vladimir Konstantinov, confirmou que haverá um referendo, que decidirá sobre maior autonomia em relação à Ucrânia, dia 25 de maio.

Até lá, a Crimeia permanecerá tão quente e fumegante quanto o carnaval no Rio – porque na Crimeia tudo tem a ver, sempre, com Sebastopol, o porto de atracação da Frota Russa do Mar Negro.

Se a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é um touro, esse é o pano vermelho mãe de todos os panos vermelhos.

Ainda que você esteja tentando afogar todas as suas mágoas no nirvana movido a álcool e pulando para suar todos os seus problemas no carnaval no Rio – ou em Nova Orleans, ou Veneza, ou Trinidad e Tobago – mesmo assim seu cérebro registrou que o sonho mais molhado dos sonhos molhados da OTAN é instalar um governo fantoche do ocidente na Ucrânia, para despachar de lá, de sua base em Sebastopol, a marinha russa.

O arrendamento negociado do porto é vigente até 2042. Já há rumores e ameaças de que o arrendamento será cancelado.

Mapa da Crimeia com suas cidades principais e a vizinhança da Rússia

A península da Crimeia é habitada por maioria absoluta de falantes de russo. Pouquíssimos ucranianos vivem ali. Em 1954, o ucraniano Nikita Krushchev – aquele, o que bateu o sapato na mesa, na Assembleia Geral da ONU [1] – precisou só de 15 minutos para dar a Crimeia de presente à Ucrânia (então, parte da União Soviética). Na Rússia, a Crimeia é vista como russa. Nada mudará esse fato.

Ainda não estamos diante de uma nova Guerra da Crimeia – ainda não. Só um pouco. O sonho molhado da OTAN é uma coisa; outra coisa, muito diferente, é fazê-lo acontecer: tipo pôr fim para sempre à rotina de a frota russa deixar Sebastopol pelo Mar Negro, pelo Bósforo, e assim chegar a Tartus, o porto mediterrâneo da Síria. Assim sendo, sim, sim, trata-se tanto de Crimeia, quanto de Síria.

Mapa Étnico linguístico-cultural da Ucrânia atual

A nova revolução ucraniana cor de laranja, de tangerina, de Campari, de Aperol Spritz ou de Tequila Sunrise parece, até aqui, ser resposta às preces da OTAN. Mas ainda há estrada longa e sinuosa a percorrer, antes de a OTAN conseguir reencenar os anos 1850s e produzir o remix da Guerra da Crimeia original.

No futuro à vista e previsível, seremos afogados num mar branco de platitudes. Como o El Supremo do Pentágono, Chuck Hagel [caricatura], “avisando” a Rússia que fique longe do torvelinho, enquanto ministros da Defesa da OTAN lançam toda a pilha indispensável de declarações, em nenhuma das quais se lê “garantindo integral apoio” à nova liderança, e paus mandados da imprensa-empresa universal repetem sem parar que não se trata de Nova Guerra Fria, para tranquilizar a população. [2]

Dancem conforme a minha estratégia, otários

Onde está HL Mencken, quando se precisa dele? Ninguém jamais perdeu dinheiro subestimando a capacidade de mentir do sistema Pentágono/OTAN/CIA/Departamento de Estado dos EUA. 

Especialmente agora, quando a política para a Ucrânia do governo Obama parece ter sido subalugada à turma da neoconservadora Victoria "Foda-se a União EuropeiaNuland, casada com Robert Kagan, neoconservador queridinho de Dábliu Bush.

Como Immanuel Wallerstein já observou, Nuland, Kagan e a gangue neoconservadora estão tão aterrorizados ante a possibilidade de a Rússia dominar” quanto ante o surgimento de uma aliança geoestratégica que pode emergir lentamente, e bastante possível, entre a Alemanha (com a França como parceiro júnior) e a Rússia. 

Significaria o coração da União Europeia constituindo um contrapoder, de oposição ao abalado e oscilante poder norte-americano.

E, como atual encarnação do abalado poder norte-americano, o governo Obama é, sim, um fenômeno. 

Agora, estão perdidos no pântano que eles próprios inventaram, do tal “pivô”. Que pivô vem primeiro? Aquele na direção da China? Mas, nesse caso, temos de pivotear-nos, antes, para o Irã – para pôr fim à ação dispersiva, lá, no Oriente Médio. Ou quem sabe...? Talvez não.

Ouçam essa, a melhor, do secretário de Estado John Kerry [foto fantasia abaixo], sobre o Irã:

"Tomamos a iniciativa e lideramos o esforço para tentar ver se antes de irmos à guerra realmente poderia haver uma solução pacífica."

Quer dizer então que já não se trata de acordo nuclear a ser alcançado, talvez, em 2014. Nada disso. Agora se trata de “antes de irmos à guerra”. Trata-se de bombardear um possível acordo, para que o Império possa bombardear mais um país – outra vez. Ou, talvez, não passa de sonho molhado fornecido pelos patrões dos fantoches Likudniks.

O grande Michael Hudson especulou que um “xadrez multidimensional” poderia estar “guiando os movimentos dos EUA na Ucrânia”

Nada disso. Está mais para “se não podemos nos pivotear para a China – ainda – e se a pivotagem para o Irã vai falhar (porque desejamos que falhe), podemos nos pivotear para algum outro lugar...” 

Oh yes, tem aquele maldito país que nos impediu de bombardear a Síria; chamado “Rússia”. E tudo isso sobre o comando ilustrado de Victoria Foda-se a União Europeia” Nuland. Onde está um neo-Aristófanes, para escrever a história dessas comédias?

E ninguém jamais esqueça a imprensa-empresa. A CNN já começou a “Amanpourear” [ref. a Christiane Amanpour [foto]; equivale aos verbos “Jaborizar (derivado de Jabor)” ou “Waackear (der. de Waack)”, em português do Brasil (NTs)] sobre o Acordo de Budapeste – e só fazem repetir que a Rússia tem de ficar fora da Ucrânia.

Visivelmente, uma horda de produtores, todos com “índices” de audiência desabados, sequer se deram o trabalho de ler o Acordo de Budapeste, o qual, como o professor Francis Boyle da Universidade de Illinois lembrou "determina, isso sim, que EUA, Rússia, Ucrânia e Grã-Bretanha têm de reunir-se imediatamente, para “consulta” conjunta – e que a reunião tem de ser feita no nível de ministros de Relações Exteriores, pelo menos”.

Assim sendo, então... Quem paga as contas?

O novo primeiro-ministro da Ucrânia, Arseniy Yatsenyuk, é – e o que mais seria?! – um tecnocrata reformador”, expressão em código para “fantoche do ocidente”. [3]

Ucrânia está convertida em caso perdido (rebentado). A moeda caiu 20% desde o início de 2014. Milhões de desempregados europeus sabem que a União Europeia não tem dinheiro para resgatar o país (talvez os ucranianos devam pedir algumas dicas ao ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi).

Em termos do Oleogasodutostão, a Ucrânia é apêndice da Rússia; o gás que transita pela Ucrânia para mercados europeus é gás russo. E a indústria ucraniana depende do mercado russo.

Examinemos mais de perto os bolsos dos novos “revolucionários” cor de Aperol Spritz. Todos os meses, a conta de gás natural importado da Rússia fica em torno de US$ 1 bilhão. Em janeiro, o país teve de despender também US$ 1,1 bilhão para pagar dívidas. As reservas em moeda estrangeira caíram, de US$ 20,4 bilhões, para US$ 17,8 bilhões. A Ucrânia tem de pagar, como 
pagamento mínimo da dívida, nada menos de $17 bilhões  em 2014. E tiveram até de cancelar um lançamento de $2 bilhões de eurobonds, semana passada.

Francamente: o presidente Vladimir Putin – codinome “Vlad, A Marreta” – deve estar rindo feito o gato de Cheshire [4] [imagem].

Pode simplesmente cancelar o significativo desconto de 33% no preço do gás natural importado, que deu a Kiev, no final do ano passado. 

Rumores insistentes já dizem –desesperançados – que os revolucionários da revolução cor de Aperol Spritz não terão dinheiro para pagar aposentadorias e salários dos funcionários públicos.

Em junho, vence uma dívida monstro, em mãos de vários credores (no total, cerca de US$ 1 bilhão). Depois disso, a coisa é mais sinistra, desolada e escura que o norte da Sibéria no inverno.

A oferta dos EUA, de $1 bilhão, é piada. E tudo isso, depois que a estratégia de “Foda-se a União Europeia” de Victoria Nuland torpedeou um governo ucraniano de transição – transição, por falar dela, negociada pela União Europeia – que teria mantido os russos a bordo, e o dinheiro deles.

Sem a Rússia, a Ucrânia dependerá totalmente do ocidente para pagar as próprias contas, para nem falar de tentar evitar o calote de todas as dívidas. O total alcança vertiginosos $30 bilhões, até o final de 2014.

Diferente do Egito, a Ucrânia não pode telefonar para a Casa de Saud e pedir cataratas de petrodólares. Aquele empréstimo de US$ 15 bilhões que a Rússia ofereceu recentemente chegaria em boa hora – mas Moscou tem de receber algo em troca.

A ideia de que Vladimir Putin [imagem por Maurício Porto] ordenará ataque militar contra a Ucrânia explica-se pelo quociente subzoológico de inteligência da imprensa-empresa nos EUA.

Vlad, A Marreta” só precisa assistir ao circo – o ocidente batendo cabeça para ver se arranja aqueles bilhões a serem desperdiçados num caso perdido (rebentado).

Ou ao Fundo Monetário Internacional e aquela conversa sinistra de mais um monstruoso “ajuste estrutural” para mandar a população da Ucrânia de volta ao Paleolítico, de vez.

A Crimeia pode até encenar seu próprio carnaval adiado, votando não só para ter mais autonomia, mas, também, para livrar-se do tal caso perdido (rebentado). Nesse caso, Putin receberá a Crimeia de presente, grátis – à moda Krushchev. Não é mau negócio.

E tudo graças àquela oh! tão estratééégica pivoteação contra a Rússia, com o “Foda-se a União Europeia”.
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Notas de rodapé
- Khrushchev e o sapato 
[1] A foto da primeira página do New York Times do dia 12/10/1960 mostrava Khrushchev com um sapato na mão e a manchete “Rússia novamente ameaça o mundo. Dessa vez, com o sapato do líder”. 
Mas, pouco depois, pessoas presentes à Assembleia Geral da ONU que se realizara na véspera corrigiram a notícia e a manchete: Khrushchev não batera com o sapato no púlpito principal, mas na própria mesa; e não para ameaçar alguém, apenas para chamar a atenção.

Sergei Khrushchev conta
Quando Nikita Sergeevich entrou no salão, estava cercado de jornalistas; um deles pisou no seu calcanhar e arrancou-lhe o sapato. Khrushchev, bastante gordo, não quis expor-se ao ridículo de procurar o próprio sapato e calçá-lo ali, em pé, à vista das câmeras. Andou então diretamente para sua mesa e sentou-se; o sapato, embrulhado num guardanapo, foi trazido por alguém e posto sobre a mesa.
Naquele momento, um delegado filipino disse que a União Soviética havia engolido’ a Europa Oriental, “privando-a de seus direitos civis e políticos”. A frase causou tumulto e protestos na sala. Um delegado romeno saltou em pé e pôs-se a gritar contra o diplomata filipino. Nesse ponto, Khrushchev quis intervir na discussão, mas o delegado irlandês, que presidia a discussão, não o viu. Khrushchev acenou com uma mão, depois com a outra. Sem resultado, ele pegou o sapato que ainda estava sobre a mesa e o agitou no ar. Ainda sem resultado, ele bateu o sapato, com força, na mesa. O irlandês afinal olhou na direção dele e o viu

[2] 26/2/2014, Daily Telegraph em: “US and Britain say Ucrânia is not a battleground between East and West”.

[3] 27/2/2014, Voice of America, em: “Biden: U.S. Supports Ucrânia's New Government” 

[4] Cheshire Cat com a banda Blinck 182 com letra mostrada no vídeo (em inglês) a seguir:


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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.

Livros:
− Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007. 
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/02/pepe-escobar-carnaval-na-crimeia.html

sábado, 1 de março de 2014

Manaus sem Copa verde

24.02.14 - Sem Copa verde - Por Elaíze Farias
- extraído do site Agência Pública

Vendida como a capital da floresta, Manaus acumula decepções com as obras - que já mataram três operários - sem retorno para os moradores; e pode decepcionar os visitantes com as marcas da degradação urbana e da desigualdade social
  
A arena de futebol custou aos cofres públicos mais de R$ 600 milhões e ninguém sabe o que será dela depois; a reforma do porto consumiu R$ 71 milhões de recursos federais (via DNIT) e teve o processo de licitação contestado – as obras foram há pouco retomadas mas ainda não se sabe o 
porto estará pronto antes da Copa. As obras do aeroporto internacional Eduardo Gomes soterraram um curso d’água e desmataram um área protegida da capital amazonense. Os centros de treinamento – dois – não têm data para abertura.

Fiscalização do Ministério Público do Trabalho na Arena

Quando Manaus foi escolhida para sediar quatro jogos da Copa, a decisão foi saudada pela imprensa local e por políticos e um clima de euforia reinou na cidade. Uma lista de projetos que fariam parte “do legado da Copa” entrou nas agendas de discussão dos gestores públicos e passou a pautar reportagens e debates: obras de mobilidade urbana, incremento da rede 
hoteleira, revitalização de áreas degradadas, melhorias no transporte público. Até mesmo um projeto de geração de energia solar, que seria instalado no entorno da Arena da Amazônia, foi previsto no pacote.

A maioria dos projetos foi abandonada ao longo do caminho e a população não esqueceu. 

Pressionados agora a dar uma resposta à sociedade, os gestores públicos se empenham em anunciar como “legado” intervenções de menor porte, planejadas a toque de caixa, na área de segurança pública, do trânsito urbano.

O desapontamento com o (não) legado da Copa vem acompanhado pelo desalento trazido pela morte de três operários ao longo da construção da Arena da Amazônia: foram duas mortes em 2013 e uma nesse início de fevereiro de 2014. Uma quarta morte, embora não associada diretamente a 
acidente de trabalho, também trouxe comoção ao canteiro de obras – um trabalhador morreu vítima de infarto – e marcou Manaus com a cidade-sede da Copa com o maior número de acidentes fatais durante os preparativos para o megaevento. A construtora Andrade Gutierrez – uma das mais beneficiadas pelas obras da Copa no país – é alvo de uma ação por dano moral coletivo e, em 7 de fevereiro deste ano, o Ministério Público do Trabalho pediu prioridade no julgamento dessa ação contra a responsável pela obra, no valor de R$ 20 milhões.

MOMENTO “POSITIVO”
Nem mesmo o gestor da Copa – como é informalmente conhecido o cargo de coordenador da Unidade Gestora do Projeto Copa em Manaus (UGP Copa), criado pelo governo do Amazonas –  Miguel Capobiango, cita mais as prometidas obras de mobilidade e revitalização urbana ao falar do legado da Copa. “O principal legado que a Copa vai deixar para Manaus é a visibilidade”, ele diz. “E ela trará turistas. Então, é preciso tentar dentro do projeto da Copa fazer com que este momento de visibilidade se torne um momento positivo”, incentiva.

Não vai ser fácil mostrar um cenário tão “positivo” para os visitantes. Embora detenha o sexto PIB do país, segundo o IBGE de 2010, sobretudo por abrigar o Polo Industrial de Manaus (PIM), a cidade se destaca por sua elevada desigualdade social. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH) vem melhorando, hoje é de 0,737 (o máximo é 1), mas o Índice Gini, usado para medir a concentração de renda, indica que a desigualdade em Manaus vem crescendo: passou de 0,56 em 1991 para 0,61 em 2010 (numericamente, 0 significa total igualdade e o 1, completa desigualdade).

Eliane Nascimento que vive com sua família em um barco no Igarapé de Educandos
(Foto: Elaíze Farias)

Prometeram um legado, mas isso não passou de discurso. Está muito claro quem está ganhando com a Copa em Manaus: as construtoras, os organizadores, os dirigentes do Estado e a própria Fifa. Esses são os que vão lucrar com as grandes somas investidas. Enquanto isso, as mazelas da cidade estão expostas”, afirma Hamilton Leão, presidente do Instituto Amazônico de Cidadania (IACi), uma das organizações de Manaus mais atuantes na cobrança dos gastos públicos na cidade.

Fazem tantas propagandas sobre a cidade que não correspondem à realidade. Se quiserem fazer um raio-X da cidade não perguntem ao empreiteiro, ao empresário, ao homem público. Vá a um bairro da periferia e consulte o cidadão comum e veja  como é o dia-a-dia dele e pergunte se a Copa está trazendo algum benefício para ele”, completa.

APOSTA DE RISCO NO TURISMO
A aposta no crescimento do turismo é um risco: Manaus tem uma rede de hotelaria pequena para o aumento projetado durante e depois da Copa. A Unidade Gestora da Copa estima que 18 mil turistas visitarão Manaus no período da Copa, enquanto Capobiango diz que Manaus tem 14 mil leitos em hotéis convencionais. Há os chamados “3 mil leitos alternativos”, instalados em motéis, locações temporárias em residências e até em embarcações localizadas na orla de Manaus.

O governo do Amazonas reservou um montante de R$ 10 milhões para divulgar o turismo pré-Copa em ações voltadas para workshops de educação para operadores e jornalistas de turismo, nacionais e internacionais, dando ênfase aos oito países da Copa e às 11 cidades sedes do Brasil”, segundo declarações da titular da Amazonastur, Orenir Braga. As ações incluem também anúncios publicitários em revistas de bordo de companhias aéreas e revistas especialistas” e participação do órgão em feiras de turismo no exterior e no Brasil, que deverão começar em março, segundo o cronograma da Amazonastur.

COPA VERDE
Localizada no centro do maior Estado da Amazônia, a capital do Amazonas, que conserva 90% de cobertura florestal, foi escolhida como cidade-sede em 2009 mesmo sem ter nenhum time de expressão no futebol brasileiro. A surpreendente vitória contra a outra forte candidata, Belém (PA), com maior tradição no esporte, pode ser atribuída a uma boa campanha de marketing: Manaus vendeu a marca “Copa Verde” – a “capital da floresta amazônica”.

Mas a realidade urbana é bem diferente da imagem projetada. Manaus é uma cidade com arborização mínima (com exceção das poucas áreas preservadas por lei), fruto de uma política de urbanização que jamais valorizou a vegetação nativa (incluindo o próprio entorno da Arena Amazônia, onde não se vê árvores).


A preservação da arquitetura também não é o forte da cidade e a Copa parece ter contribuído para uma perda nessa área. Todos esperavam, por exemplo, que o antigo estádio, o Vivaldo Lima, chamado de Vivaldão, criado pelo renomado arquiteto Severiano Mário Porto fosse reformado. Mas, apesar da comoção em muitas pessoas que tentaram impedir sua derrubada, ele foi demolido. Somente um novo estádio corresponderia às exigências da Fifa, justificou-se.

O transporte público também é precário e as prometidas obras de mobilidade foram abandonadas. Entre as mais importantes estavam uma linha de monotrilho que faria a ligação da Zona Norte (a mais populosa de Manaus) ao centro da cidade e o corredor exclusivo para ônibus (chamado de BRT – Bus Rapid Transit). O monotrilho foi orçado em R$ 1,3 bilhão e o BRT em R$ 200 milhões e ambos seriam bancados com recursos públicos locais e federais.

A ausência de dados técnicos fundamentando os projetos, porém, provocou uma série de questionamentos do Ministério Público Federal (MPF), do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Controladoria Geral da União (CGU). A sociedade civil também questionou o traçado do monotrilho quando ele ainda estava no papel pela possibilidade de centenas de desapropriações e de impactos em área tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) no centro de Manaus.

Em outubro de 2013, acatando a uma ação do MPF, a Justiça Federal do Amazonas determinou, em liminar, a suspensão das obras do monotrilho, e orientou a Caixa Econômica Federal a não liberar empréstimos para o governo do Amazonas. Até o momento, não há informações de que o governo estadual tenha recorrido da decisão, mas empresas que ganharam a licitação, em 2011, sim. O caso está no Tribunal Regional Federal (TRF1), em Brasília.

IRREGULARIDADES PERMANECEM
O projeto do monotrilho acabou sendo retirado da Matriz de Responsabilidade da Copa e transferido pelo governo do Amazonas para o PAC da Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades, mas isso não altera em nada a ação do MPF, já que as irregularidades permanecem como explica o Procurador da República Jorge Medeiros, que atua na área do patrimônio público.


O monotrilho não tem a devida especificação do que deve ser licitado. Tem rubricas abertas, que constam apenas como ‘verbas´. Verbas para que? A justificativa que era que apenas depois da licitação é que seria possível determinar. O que é uma temeridade. A lei exige que o detalhamento seja prévio. Isso gera problema concreto porque, se não existe especificação antes, que já é ilegal, no momento posterior, fatalmente vai ter termos aditivos”, diz o procurador, que aponta ainda outra irregularidade identificada no projeto: a falta de observância de exigências da lei federal de 2002 que determina que os modais de transporte devam ser inseridos no contexto do plano diretor da cidade.

A Pública tentou ouvir, diversas vezes, a Secretária Estadual de Infra-Estrutura (Seinfra), Valdívia Lopes, responsável pelo projeto do monotrilho, sem sucesso.

Já o BRT foi suspenso e substituído por outro projeto, o BRS (Sistema Bus Rapid Service), também fora da matriz da Copa. Orçado em R$ 150 milhões, o BRS começou a ser implantado, de fato, nas últimas semanas e apesar do pouco tempo de funcionamento, vem sendo questionado pela população por ter sido criado sem levar em conta o fluxo real do trânsito na cidade, trazendo mais congestionamentos.

O BRT foi retirado da Copa porque ele estava vinculado ao monotrilho. Com os complicadores em relação aos dois, a gente adotou uma medida mais simples”, explicou Antônio Nelson, diretor de engenharia da Secretaria Municipal de Infra-Estrutura (Seminf), responsável pela obra. Os R$ 150 milhões estão sendo bancados pela prefeitura de Manaus, segundo Nelson, mas a administração municipal espera receber do governo federal um empréstimo a fundo perdido da Caixa Ecônomica Federal. “O Ministério do Planejamento aprovou o projeto, mas ele ainda será analisado pela Caixa para ver se o banco libera R$ 125 milhões. Os outros R$ 25 milhões serão do tesouro da prefeitura”, disse.

UMA ARENA COM O FUTURO A DEFINIR
O governo do Amazonas terá 20 anos para pagar o empréstimo de R$ 400 milhões ao BNDES destinado à construção da Arena da Amazônia. O restante dos recursos – cerca de 200 milhões, vêm dos cofres do governo estadual. Fazem parte do projeto dois centros de treinamento – o CT Colina e o CT Coroado que custaram R$ 21 milhões e R$ 14 milhões, respectivamente, ao governo do Amazonas.

As cifras assustam quando se junta a esses gastos o valor estimado para a manutenção da Arena da Amazônia: R$ 500 mil por mês, de acordo com os cálculos feitos com base nos custos do Estádio do Engenhão, no Rio de Janeiro, explica Miguel Capobiango. De onde virá o dinheiro? 

Isso nenhum gestor sabe responder. Sem uma equipe de futebol de peso (o time melhor ranqueado no futebol brasileiro é o Nacional, que está na Série D) e, por conseguinte, sem atrativo suficiente para chamar público para os 44 mil lugares do estádio, o futuro da Arena Amazônia virou tema de especulação: já circularam rumores de que se faria ali um presídio depois da Copa (mera especulação, logo negada pelo governo) ou um shopping center.


Miguel Capobiango diz que o governo contratou uma empresa de consultoria “para mapear o que está funcionando no Brasil e no exterior e assim estudar o mercado” de modo a “enfrentar o desafio de manter a arena sem que ela onere o poder público”. Uma eventual evolução do futebol amazonense, atualmente na quarta divisão, também é mencionada: “Com um palco adequado, o futebol passa a ter visibilidade. Se vai (o futebol amazonense) se tornar grande, isso vai depender dos operadores do futebol”, diz, evasivo.

Autor de representações no Ministério Público Federal e Estadual para tentar evitar a demolição do Vivaldão, o engenheiro industrial Jerônimo Maranhão é mais contundente quando fala no assunto: “A população vai gastar R$ 150 milhões por cada um dos quatro jogos da Copa. E depois? O que vai acontecer? Este estádio vai servir apenas para a população vê-lo todos os dias, quando passar de ônibus em frente a ele”, diz ele.

Segundo os cálculos do engenheiro, uma reforma com custo máximo de  R$ 200 milhões teria preservado o antigo estádio e poupado recursos públicos. “Se era para atender exigências da Fifa, bastava, por exemplo, inclinar a arquibancada, rebaixar o gramado, entre outras intervenções”, afirma, questionando também o valor estimado para a manutenção do estádio. “Como se chega a esse valor se tudo ali é novo e está na garantia? Se, por acaso, ocorrer algum problema é a construtora que tem que responder por pelo menos dois anos”, diz.

Miguel Capobiango, o gestor da Copa, diz que não é verdade que a nova Arena se tornará um elefante branco” como se comenta na cidade. “A Arena vai gerar serviços para a população. Se falava a mesma coisa quando foi construído o Sambódromo, em Manaus, e hoje ele é usado para caramba. Ninguém diz que o Sambódromo é um elefante branco”, diz, referindo-se ao Centro de Convenções de Manaus, mais conhecido como Sambódromo, onde acontecem atividades culturais e shows musicais.

O FIM DA NASCENTE DE UM IGARAPÉ
Manaus é uma cidade cortada por centenas de cursos d’água conhecidos localmente como igarapés – microbacias que, juntas, vão formar um grande rio. No caso de Manaus, o rio Negro, o segundo maior do mundo em volume de água, atrás apenas do rio Amazonas. A importância dos igarapés está na sua atividade biológica e química. A presença de um igarapé, além de indicar a qualidade do ambiente, também atesta a qualidade do solo. É esse ambiente que mantém a sustentabilidade da Amazônia”, explica o pesquisador Sérgio Bringel, da Coordenação de Dinâmica Ambiental do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) doutor em Hidrogeoquímica e membro do Conselho de Recursos Hídricos do Amazonas.

A maioria dos igarapés de Manaus estão poluídos e/ou foram aterrados  para obras de urbanização. Os poucos que sobrevivem estão em áreas de proteção ambiental (APPs). Ainda assim, não tem a vida garantida: durante  as obras de ampliação do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes, por exemplo, uma das nascentes do Igarapé da Água Branca, localizado no bairro Tarumã, zona Oeste de Manaus, foi soterrada. Áreas de vegetação nativa também foram suprimidas. A obra faz parte da Matriz de Responsabilidade da Copa.

Nascente do Igarapé da Água Branca foi soterrado
(Foto: Jó Farrah)

A área impactada é conhecida como APP do Aeroporto foi atingida com o aval do órgão estadual Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), que concedeu a licença para a obra. A nascente que desaguava em um igarapé maior, o Tarumã-Mirim, alcançando então o rio Negro, não existe mais.

O jornalista Jó Farrah, morador do Tarumã e ativista em defesa da floresta e da fauna silvestre e dos igarapés que ainda resistem por ali, denunciou os danos mas já era tarde para salvar a nascente. “Começamos a fazer denúncia no facebook no perfil do Igarapé da Água Branca e exibimos fotos. Fizemos a mesma denúncia na comissão ambiental da Assembleia Legislativa do Amazonas e depois uma visita técnica. Fomos no local e identificamos que não tem mais jeito. Soterraram tudo”.

A Infraero, responsável pelo Aeroporto Eduardo Gomes, foi acionada e, segundo Farrah, admitiu que a obra foi feita no local por opção, já que outro traçado poderia forçar desapropriações de residências, aumentando os custos. “A Infraero justificou dizendo que só havia aquela área para fazer a obra. Desapropriar sairia caro. Saiu mais barato destruir a floresta e impactar o igarapé”, diz o ativista.

Desolado, Jó Farrah diz que o Igarapé da Água Branca, um dos poucos de Manaus que tem água limpa, perderá volume com o desaparecimento da nascente. “O igarapé da Água Branca tem água cristalina, e pura e fria. Abastece e oxigena as águas poluídas da bacia do Tarumã-Mirim. Em suas águas peixes como matrinxãs, traíras, bagres, carás , sardinhas e jaraquis crescem até o tamanho certo para migrar para os rios. Sem esse igarapé este fluxo de vida morre”, diz Jó.

Igarapé Água Branca (Foto: Jó Farrah)

Farrah também conta que durante as obras, o barro do aterro foi lançado na parte limpa do igarapé e muitos buritizais (palmeira típica da Amazônia) morreram soterrados pela lama. Fizemos uma reunião com a Infraero, que se comprometeu a realizar ações de mitigação. Mas não sabemos quais serão. Agora, também passaremos a fazer outras cobranças. Com a ampliação do 
aeroporto, queremos saber para onde vão os efluentes já que a demanda de passageiros vai aumentar. Para onde vão jogar os resíduos? Para outros igarapés, para o rio Negro?”, questiona.

O pesquisador Sérgio Bringel explica que quando uma microbacia, como um igarapé, é impactada, além do desaparecimento de uma fonte natural e da vida que ali existia, também ocorrem danos ao solo. Ao ouvir da Pública o caso da nascente do Igarapé Água Branca, ele não tem dúvidas em classificar a obra como um crime ambiental. E, se houve licenciamento ambiental então também houve “falta de responsabilidade do órgão responsável”, ele diz.

A assessoria de imprensa da Infraero informou que, em janeiro passado, a Infraero obteve do órgão ambiental licença de instalação e disse que “todos os procedimentos administrativos e técnicos referentes ao licenciamento foram adotados previamente junto ao órgão ambiental competente”, e que “aguardará pela manifestação do órgão licenciador sobre possíveis impactos 
ambientais”.

Procurada, a assessoria do Ipaam informou que a obra foi licenciada e que “se houver irregularidades e descumprimento das condicionais constantes da licença ambiental”, o órgão vai tomar medidas cabíveis e divulgá-las.

Com um orçamento de R$ 444 milhões, a ampliação do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes é uma promessa antiga, ressuscitada pela Copa. Com as obras, a capacidade do aeroporto, atualmente de 6,4 milhões de passageiros ao ano, subirá para 13,5 milhões ao ano, segundo a assessoria da Infraero.

Mas, além dos prejuízos ambientais, as obras do aeroporto também foram questionadas por irregularidades trabalhistas. Chegaram a ser interditadas por determinação judicial em processo movido pelo MPT. No início de fevereiro, após audiência com o MPT, as obras foram retomadas. Segundo a assessoria de imprensa a previsão é que ele seja reinaugurado no final de abril.

BARCOS, PALAFITAS E VISTA DO RIO NEGRO
Quem passa apressado pela avenida Lourenço da Silva Braga, mais conhecida como Manaus Moderna, pouco tempo tem para observar os detalhes de um dos lugares mais degradados do centro da cidade e, ao mesmo tempo, um dos que possuem a vista mais bela da capital amazonense – o rio Negro. 

Apesar da paisagem, os turistas que visitam Manaus são direcionados para áreas mais arejadas e elitizadas da cidade, como a região da Ponta Negra, na zona Centro-Oeste da cidade.

Casas no Igarapé de Educandos (Foto: Valter Calheiros)

Se um cidadão se dignar a circular na estreita calçada (com vários trechos quebrados) da artéria permanentemente congestionada, vai logo perceber porque ali não há turistas. Basta se escorar na frágil mureta que a circunda e olhar para baixo para uma vista inesquecível: uma orla suja, cheia de lixo e uma fileira de embarcações atracadas no igarapé de Educandos, um dos 
principais e maiores cursos d'água de Manaus.

Um olhar desatento nem imagina que mora gente ali. Mas é na margem do Igarapé de Educandos, que Eliane Nascimento, 36 anos, trabalha como vigia de embarcações junto com o marido, Pedro dos Santos, e vive há cinco anos com os oito filhos em um barco cujo proprietário sumiu. “Eliane, você acompanha notícias sobre a Copa em Manaus? Sabe o que significa isso?”, pergunto. “Olha, sei pouco. Dizem que vai trazer coisas boas, mas não sei que é. Não falam para gente disso. A senhora sabe?”, pergunta de volta Eliane.

Será que vão melhorar as coisas aqui na época da Copa?”, entra na conversa Estônia Gomes, 53, comandante de outro barco ancorado. Estônia trabalha no comando do “timão” do barco transportando produtos extrativistas de cidades do interior próximas para comercializar em Manaus. Passa a maior parte do tempo no rio, mas tem residência fixa.

Palafitas do Igarapé de Educandos (Foto: Elaíze Farias)

Seria bonito se limpassem, tirassem essa sujeira toda que se acumula há anos”, sonha Estônia. Olha, a gente não tem nem água limpa para beber. Não tem torneira. Eu compro água do outro lado do rio, num posto de gasolina e encho várias garrafas de refrigerante PET. Imagine só. A gente morando na cidade onde tem um rio desse tamanho”, lamenta.

A cerca de 300 metros dos barcos ancorados estão as palafitas, cujos donos não sabem até quando vão ficar. As moradias erguidas em estacas de madeira com mais de 30 metros para resistir à cheia do rio, que davam a Manaus o aspecto de “cidade flutuante”, perderam sua aura romântica entre o odor do esgoto e o lixo jogado no rio. Os canoeiros continuam a fazer o transporte 
entre as orlas e as casas, oferecendo serviços pagos. Foi de uma canoa, que a Pública conseguiu conversar com alguns moradores, que ainda sonham com melhorias também na área de Educandos. 

Estou aqui há 15 anos. Gostaria de sair, mas para onde vou? Se Deus permitir, eu saio. Ou me tiram. Mas, pra ser sincera, eu gostaria de ficar. Se ao menos limpassem o igarapé. Está muito sujo”, diz dona Juraci de Souza, 54 anos.

A comandante de barco Estônia Gomes (Foto: Elaíze Farias)

POLÍTICAS PÚBLICAS
A reportagem tentou saber da Prefeitura de Manaus se a administração tem planos de revitalização, reforma ou melhorias para a área da Manaus Moderna. Afinal, a atual gestão da prefeitura criou uma pasta, Secretaria Municipal do Centro, apenas para responder demandas da área. Pela assessoria de imprensa, porém, soube que aquele trecho não faz parte da atuação desta secretaria.

A Secretaria Municipal de Infra-Estrutura (Seminf) sinaliza com um projeto de revitalização do centro, estimado em R$ 1 milhão, que inclui pavimentação, faixa exclusiva para pedestres, balcões com baias para estacionamento e bilheteria para passageiros que usam barcos para viajar. Os recursos viriam da Caixa Econômica Federal, mas o banco ainda está analisando o projeto, segundo Antônio Nelson, diretor de engenharia da Seminf. “Esperamos que a Caixa libere esse recurso, que são sobras aplicadas em um outro projeto anterior e que só podem ser investidas no centro”, disse Nelson.

Como política pública para os moradores das palafitas há o Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (Prosamim) que realiza assentamento de famílias, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), principalmente quando afetadas por inundações durante o período de chuva. Essas famílias são reassentadas em unidades residenciais de baixa renda, e os igarapés canalizados, embora os pesquisadores da área de recursos hídricos em Manaus afirmem que o ideal seria revitalizar os cursos d'água e não aterrá-los.

Juraci de Souza, em palafita no Igarapé de Educandos
(Foto: Elaíze Farias)

Sobre o Igarapé de Educandos, a assessoria de imprensa do Prosamim disse que ainda não há projeto destinado às (aproximadamente) 500 casas, e que as melhorias estão sendo realizadas em outros áreas de igarapés da cidade. A Pública também visitou o Igarapé dos Franceses, no bairro Alvorada I, próximo ao estádio. Além de residências humildes, encontrou dois campinhos de futebol, desolados e precários, cercados por um terreno baldio. Quase nada de área verde. “maior parte dessa vegetação é mato. E ainda temos um igarapé poluído, sujo, que tem mau cheiro. E isso há poucos metros da arena”, disse o comerciante Francisco Gonçalves, de 80 anos, que circulou todo o trecho do Igarapé dos Franceses, um curso d’agua manso e poluído, com a Pública (mas não aceitou sair na foto).

Moro aqui perto mas eu nem sei dizer o que penso sobre isso [a Copa]. Estou preocupado sobre o que vai acontecer com os moradores durante os jogos. Imagine como vai ficar isso aqui”, diz.

FALTA DE ÁGUA NA CAPITAL DA “RAIN FOREST
Há aproximadamente 40 anos, Manaus era uma cidade com pouco mais de 400 mil habitantes. Hoje, são quase dois milhões, segundo o Censo do IBGE de 2010, e os bairros que eram considerados como zona Norte já foram engolidos pela região central. A atual zona Norte forma com a zona Leste a “periferia” da capital, carregando todos os estigmas sociais dessas áreas.

São bairros nascidos de ocupação irregular que foram sendo urbanizados (a maioria das vezes de forma precária) por pressão dos seus moradores. Rraramente aparecem nos anúncios publicitários, com suas ruas esburacadas e mal iluminadas, tragadas por erosões, sistema de transporte público caótico, fornecimento de água irregular.

Cano de água exposto na rua do bairro Nova Floresta
(Foto: Valter Calheiros)

Um  exemplo desse microcosmo da periferia de Manaus é o bairro Jorge Teixeira, localizado na zona Leste e dividido em 13 comunidades. Uma delas se chama João Paulo, formado por três blocos (etapas, dizem em Manaus).

Salatiel Cordovil dos Reis, 61 anos, é um dos moradores da etapa 3 e também a principal liderança comunitária. Para respaldar suas críticas, reclamações e denúncias contra descasos aos moradores, carrega sempre um exemplar da Constituição de 1988.

Um dos maiores “abusos” cometidos pelas autoridades, diz, é a cobrança de tarifa de água a que são submetidos há vários anos os moradores do bairro. A indignação tem um motivo simples: os moradores nunca tiveram fornecimento de água da concessionária privada Manaus Ambiental (nome adotado há dois anos, quando até então se chamava Águas do Amazonas).

Deixei de pagar conta de água há vários anos pois nunca tive água em casa. Meu nome, assim como de outros moradores, foi parar no SPC (Serviço de Proteção ao Crédito), e está lá até hoje. Entramos na justiça para não pagar”, conta Salatiel, que elenca vários outros problemas da cidade: transporte público insuficiente, carência de posto de saúde, ausência de obras de 
melhorias das vias públicas, etc.

No final do ano passado, após muita pressão popular, a prefeitura e a concessionária de água firmaram um acordo para levar abastecimento de água aos moradores da zona Leste e há dois meses, segundo os moradores, a água começou a chegar, embora ainda sem regularidade e qualidade.

Vem suja, poluída, com gosto ruim. A gente usa para lavar louça e tomar banho, mas não para beber. Muita gente daqui de casa passou mal e voltei a comprar água mineral”, diz a dona de casa Ângela de Souza, 27, moradora da rua Erva Doce, no Jorge Teixeira. Ângela também está endividada e com o “nome sujo”. Ela acumula faturas da concessionária de água cujo valor mensal médio é de R$ 600.

Nunca tivemos água e continuamos recebendo faturas com esse valor. Não entendo como eles medem. Por isso decidir nunca pagar”, diz Ângela, cuja rua exibe várias crateras enlameadas por causa de vazamentos feitos pela concessionária para supostos consertos.

A Pública visitou outras ruas do bairro Jorge Teixeira e os bairros Nova Floresta e Grande Vitória, também na zona leste. Em várias partes dos bairros encontrou tubulações de água expostas na rua, sem proteção – até pouco tempo os moradores retiravam água de poços artesianos particulares. No bairro Nova Floresta, um morador foi flagrado retirando água de um cano quebrado da calçada e se justificou dizendo que ela vem mais limpa do que a que vai direto para as casas.

Francisca de Souza mostra contas de água
(Foto: Valter Calheiros)

No bairro Grande Vitória, a aposentada Francisca de Souza, 74, mostrou várias faturas de água que também nunca pagou: apesar de prometido, o abastecimento de água ainda não chegou e ela continua tirando água de um poço artesiano de um vizinho, para quem pagou R$ 700 pelo direito de uso. Sobre o que acha da Copa em Manaus,  Francisca disse: “Se vai trazer benefícios, de certeza não será para mim, nem para a minha família, nem para o meu bairro. Para ser sincera, eu nem sei o que significa isso de benefício de que tanto falam”.

A Manaus Ambiental diz que o fornecimento e a rede de distribuição de água atende a 98% da população de Manaus e que até março pretende ampliar a cobertura para 100%. Também disse ter incorporado 16 mil novas ligações de água ao sistema atual e que vários bairros das zonas Norte e Leste estão sendo atendidos pelo Programa Águas para Manaus (PROAMA).

Em relação à qualidade da água, a Manaus Ambiental informou que a água tratada e distribuída pela concessionária atende integralmente todas as exigências da Portaria 2914/11 do Ministério da Saúde.

Leia também:
- Andrade Gutierrez enfrenta ação do MPT por acidentes de trabalho - Elaize Farias
- Morrendo de sede em Foz do Iguaçu - Zilda Ferreira

Fonte:
http://www.apublica.org/2014/02/manaus-na-copa/