sábado, 8 de março de 2014

Domitila, uma mulher das minas bolivianas

08/03/2014 - Domitila: 'Se me deixam falar...', o livro, 25 anos depois
- Testemunho de uma mulher das minas bolivianas
- para a professora Moema Viezzer
- Resenha do livro por Christina Iuppen (*) - Rio, março de 2014

Há quase quatro décadas, o mundo se assombrou com uma figura inusitada.

Saindo das minas fumegantes da Bolívia, Domitila Barrios de Chungara sobe à Tribuna Internacional da Mulher, organizada pelas Nações Unidas no Ano Internacional da Mulher (1975), e dali profere o seu 'Se me deixam falar...', que se tornaria um clássico da literatura de resistência latino-americana dos anos 70-80.

Não estava só.

Levava consigo a herança de Juana Azurduy, Manuela Sáenz, Policarpa Salavarrieta, Leona Vicario, Josefa Ortiz, Joana Mora de López, Maria Cornelia Olivares, Simona Manzaneda, Anita Garibaldi, Bárbara de Alencar e tantas outras heroínas nossas, insuspeita inspiração. 

Não falava por si.

O que eu falei foi somente o que ouvi de meu povo desde o berço (...).

que de melhor aprendi foi dado pelo povo’.

E Domitila falou.

Contou da exploração voraz sobre os mineiros, operários, camponeses.

Da luta interminável das mulheres bolivianas pela sobrevivência, pela dignidade.

Das condições de semi-escravidão em que viviam os trabalhadores bolivianos. 

De seu co-protagonismo com a resistência popular.

Apontou as guerras múltiplas, desde o Chaco, impulsionadas pelas grandes empresas internacionais, nas quais só o povo sempre perdeu.

Priorizou as muitas batalhas político-ideológicas dos trabalhadores contra o capitalismo explorador sobre os combates meramente sexistas que animavam a burguesia de então.

Mostrou sua frustração com os governos pseudo-populares e sua incapacidade crônica de atender as necessidades de mudança para o povo. 

Mostrou ao mundo que a consciência política se forja no seio da própria luta.

E sonhou com o futuro:No futuro, nosso governo terá que ser da nossa origem, terá que ser operário, terá que ser camponês’.

A boliviana baixinha, gordota e determinada assumiu, desde então, um papel de ponta nos caminhos da militância feminina latino-americana.

Colhida por outro dos tantos golpes na Bolívia enquanto ainda nas Nações Unidas, foi obrigada ao exílio com toda a família – marido e sete filhos – na Suécia. 

Nada a deteve.

Do antigo Comitê de Donas de Casa da Siglo XX-Catavi, onde começou sua militância, até a atual Escola Móvel Domitila, onde trabalha na conscientização de jovens e edita o boletim Imilla (**), passando por incontáveis oficinas, palestras e conferências mundo afora, Domitila segue na Bolívia, aos 75 anos, (***) denunciando e combatendo o multifacético imperialismo norte-americano, ‘trazendo a visão de uma política que vem das mulheres, mas que é para toda a humanidade’.

Domitila Barrios de Chungara faz de sua trajetória de vida um exemplo e um alento para todas as mulheres, militantes e consciências livres de Nossa América.

(*) Christina Iuppen atualmente é tradutora, professora de literatura e, por muitos anos, militante da resistência de esquerda latino-americana. 
(**) Palavra quéchua que significa mulher jovem, garota solteira.
(***) Domitila faleceu nesse mesmo ano, em 2012.

Mais uma palavra:
Não é possível ler ou lembrar de 'Se me deixam falar...' sem trazer à memória a Professora Moema Viezzer [1], [foto] uma gaúcha de Caxias, socióloga, educadora e pesquisadora social, formuladora e militante em Educação de Gênero e Meio Ambiente, com contribuições incontáveis à questão consequente da mulher.  

Graças à visão política, combatividade, coragem e perseverança de Moema, as intervenções e lições de Domitila se registram e perpetuam para gerações de mulheres por todo o planeta.

  
Gerações que hoje, especialmente, a saúdam, aplaudem e agradecem.

[1] Moema Viezzer [foto] revolucionou a pesquisa social com seu livro 'Se me deixam falar...' fiel à vida do personagem Domitila Barrios de Chungara, mas contextualizado à historia do continente.

Leituras afins:
- O tratado de educação ambiental na Rio+20 - Zilda Ferreira
- Moema Viezzer faz balanço da RIO+20 - Zilda Ferreira

sexta-feira, 7 de março de 2014

Quem disse que não há unidade civil e militar na Venezuela?

01/03/2014 - A unidade cívico-militar na Venezuela
- Por Beto Almeida (*) - blogue do Miro

"A revolução bolivariana é pacífica, pero armada"
(Hugo Chávez)

Há 25 anos, num 27 de fevereiro de 1989, o então presidente da Venezuela, Carlos Andrés Perez [foto], lançou um pacote neoliberal explosivo aumentando drasticamente o preço da gasolina e dos alimentos.

O povo de Caracas se rebela, sai às ruas, saqueia supermercados, lojas de roupas, açougues.

Perez dá ordens para o exército reprimir com vigor.

Centenas de cidadãos são mortos [foto abaixo].

O número exato ainda está por ser calculado, pois muitos foram enterrados em valas comuns ou atirados nos lixões da cidade.

Quando tive a oportunidade entrevistar o presidente Chávez, no Palácio de Miraflores, ele contou que estava em serviço e soube quando a ordem de reprimir foi dada e as tropas lançaram-se pelos bairros pobres, esmagando sem dó nem piedade a rebelião, conhecida com o nome de Caracazzo.

Chávez dizia que o Caracazzo foi o estopim, a alavanca, o encorajamento fundamental para que o movimento militar bolivariano, cuja construção liderava dentro dos quartéis de toda a nação, se decidira a agir.

Aquela repressão havia provocado nas fileiras progressistas e nacionalistas militares muito mais do que uma indignação.

47 segundos versus 10 anos
Quase três anos depois, em 4 de fevereiro de 1992, Chávez comandava uma insurreição militar que pretendia colocar um fim no governo neoliberal e corrupto de Andrés Peres e, com o apoio popular, convocar uma Assembleia Nacional Constituinte.

Do ponto de vista militar, a insurreição não foi vitoriosa. Dialeticamente, foi vitoriosa do ponto de vista político.

Hugo Chávez comandou a rendição para poupar vidas, entregou -se, e foi preso. Na prisão, transforma-se no homem mais popular da Venezuela.

O povo venezuelano identificou naqueles poucos segundos em que Chávez usou a cadeia de rádio e TV - exigência para a rendição [foto] - que aquele homem, meio negro e meio índio, era um dos seus, que falava sua língua, representava seus anseios largamente reprimidos.

Tanto assim que longas filas, diariamente, se formaram para visitar a Chávez na prisão. Gente proletária, sofrida, humilde, que tinha tido a objetividade histórica de compreender que ali estava preso o seu líder, enquanto os intelectuais pedantes discutiam, interminavelmente, se Chávez era um populista, um golpista, um autoritário ou um militaresco fascista.

Certa vez, em debate com um dirigente do Partido Comunista Espanhol, em Madrid, escutei-o dizer que só depois do golpe de 2002, ele tivera certeza de que Chávez era de esquerda.

Contra argumentando, assinalei que enquanto ele tinha levado 10 anos para entender a função história de Chávez, o povo venezuelano levara apenas 47 segundos para compreendê-lo, tempo exato daquela declaração do líder da insurreição bolivariana por cadeia para render-se, “por ahora”.

O Caracazzo pariu a Insurreição de 4 de Fevereiro de 1992.

Mas, é chocante observar, ainda hoje, a infinita hipocrisia dos meios de comunicação internacionais e dos governos que os controlam ou manipulam, diante da crise atual da Venezuela.

Quando o governo venezuelano de 1989 mandou reprimir e matou a rodo populares nas ruas de Caracas - Chávez insistia sempre que eram milhares os mortos - esta mídia que faz o maior estardalhaço sobre uma inexistente guerra civil na Venezuela hoje, na época, não fez nenhum escândalo diante da matança aos olhos de todos, nas ruas caraquenhas.

Tampouco os governos, como o dos Estados Unidos, que lançam cínicos comunicados de “preocupação com os direitos humanos na Venezuela”, na época, foram os patrocinadores do pacote neoliberal de Carlos Andrés Perez [foto], fizeram o mais criminoso silêncio.

O silêncio da cumplicidade com aquela matança.

Maldito seja...
O Caracazzo foi uma rebelião popular que levou a uma lição fundamental para os militares revolucionários que se organizavam em torno de Chávez, entre eles o Embaixador da Venezuela no Brasil, Almirante Diego Molero.

E a lição era a aplicação de uma das frases de Bolívar mais repetidas pelo próprio Chávez, linha de princípio do movimento que, depois de anos de preparação política doutrinária, preparava-se para agir: “Maldito seja o soldado que aponta seu fuzil contra seu próprio povo!

Porém, a linha doutrinária, programática, ia muito mais além.

Recuperava e atualizava o Simon Bolívar integracionista, reformador social, criando outra concepção para o papel dos militares: a integração latino-americana, a unidade cívico-militar e a sustentação pela via democrática, porém de armas nas mãos, do processo de mudanças em busca de justiça social.

Afinal, a Venezuela, um país tão rico, possuía 85 por cento de pobres e miseráveis, uma maioria de analfabetos, favelas desumanas por todos os lados, enquanto sua burguesia era conhecida por ser uma das maiores consumidoras de caviar e champanhe do mundo, perdendo apenas para burguesia francesa.

Hoje, 25 anos depois do Caracazzo, já podemos contabilizar os frutos da Revolução Bolivariana, mesmo assediada, atacada, sabotada, golpeada por mais de 15 anos.

O país de Bolívar não tem mais analfabetos, diz a Unesco. Diz a FAO que houve redução drástica da desnutrição e da fome no país.

Os trabalhadores já possuem uma lei trabalhista moderna e foram universalizados os direitos previdenciários.

Lá se paga um dos maiores salários mínimos da América Latina, comparativamente falando.

E, pela primeira vez na história do país, o petróleo, que enriqueceu por décadas uma camarilha insensível e corrupta, agora tem a sua receita aplicada na construção de moradias, de universidades bolivarianas, na sustentação do ensino público gratuito, na instalação de milhares de postos de saúde, com presença de mais 23 mil médicos cubanos, o que reduziu tremendamente a mortalidade infantil.

Claro que a Venezuela tem muitos outros desafios a superar, a começar pela economia rentista do petróleo, como disse hoje, em Brasília, o Chanceler Bolivariano, Elias Jaua [foto], bem como enfrentar a criminalidade, que, aliás, não é problema exclusivo venezuelano.

Ele informou sobre os focos de violência orquestrados por pequenos grupos de agentes provocadores, com apoio do exterior.

Enquanto a Venezuela possui 325 municípios, as ações violentas registraram-se em apenas 18 localidades de todo o país.

Reveladora é a informação de que os atos violentos ocorrem centralmente nos bairros mais ricos.

Mais reveladora ainda, da condição de classe desses jovens de famílias ricas que agem violentamente, é que optaram por queimar um caminhão do sistema Mercal, um sistema estatal de distribuição de alimentos a baixo custo.

Queimaram, mas não saquearam os alimentos.

Ou seja, o motivo não era a fome, mas apenas queimar, destruir.

Militares progressistas
As manifestações pacíficas são permitidas e a oposição, caso queira, pode recorrer ao instrumento da revogabilidade de mandatos, contido na Constituição Bolivariana, uma das mais avançadas do mundo, para tentar retirar Maduro pela vida legal.

Mas, se o objetivo é exigir, sem base nem fundamento, a renúncia do Presidente Nicolás Maduro [foto abaixo], e por meio de incêndios, instalação de linhas de nylon cortantes nas ruas dos bairros mais chiques, o que já provocou a degola de motociclistas, evidentemente, estes grupos vão se defrontar com aquilo que talvez seja uma das mais importantes obras de Chávez: a unidade cívico-militar. 

Os militares bolivarianos possuem outra consciência, enriquecida e temperada na experiência da Revolução dos Cravos, de Portugal, no governo antiimperailista de Velasco Alvarado, no Peru, no exemplo do governo socialista do capitão Thomas Sankara, o Che Guevara africano, de Burkina Fasso, experiências em que os militares atuaram sempre ao lado do povo, sustentando um processo revolucionário, transformador, como ferramenta estratégica.

Este é o eixo que dá suporte e mantém de pé a Revolução Bolivariana até hoje, enfrentando todas as ações de desestabilização emanadas pela Casa Branca, ecoadas pela mídia internacional.

Assim, é muito explicativo observar que a mídia brasileira, especialmente aquela que apoiou o golpe militar de 64 no Brasil, e, também, o golpe derrotado contra Chávez, em 2002, esteja agora tentando fazer crer que exista uma convulsão social na Venezuela.

E que ontem [27 fev], data dos 25 anos do Caracazzo que pariu a Revolução Bolivariana, nada tenha dito daquela rebelião, quando, apoiou não apenas o pacote de amargas medidas neoliberais, mas, também, a sangrenta matança que hoje está sendo apurada por uma espécie de comissão da verdade de lá.

(*) Beto Almeida é membro do diretório da Telesur

Fonte:
http://altamiroborges.blogspot.com.br/2014/03/a-unidade-civico-militar-na-venezuela.html?spref=tw

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

quinta-feira, 6 de março de 2014

A Rússia já está na lista

28/02/2014 - O que a Ucrânia já mostrou: a Rússia, na lista de Washington para “mudança de regime
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Joe Biden (E) e Viktor Yanukovich (D) (Em 2009 a "cama" de Yanukovich já estava feita...)

Dias antes de o presidente ucraniano Viktor Yanukovitch ser expulso do governo, ele foi informado pelo vice-presidente dos EUA, Joe Biden, de que era “fim de jogo”.

Segundo o The Guardian britânico, que cita funcionários não identificados dos EUA, Biden recriminou o presidente ucraniano, durante telefonema que durou uma hora, pelo fracasso de seus esforços para encontrar solução negociada para a crise ucraniana, os quais teriam chegado com “um dia de atraso, e incompletos”.

Não se pode dizer que tenha sido comentário amigável de observador neutro.

Desde o fim de semana passado, Yanukovich desapareceu de circulação, com notícias de que estaria em algum ponto da Península da Crimeia, no sudeste da Ucrânia.

Um ex-chefe de gabinete, Andriy Kluyev, foi ferido em ataque a tiros, por “manifestantes” antigoverno. Outros membros do Partido das Regiões de Yanukovych também fugiram dos gabinetes no Parlamento, temendo ataques similares; o que deixou a Câmara legislativa entregue a bandos da oposição. 

Esse parlamento ilegítimo rapidamente aprovou acusações formais contra o ex-presidente e altos funcionários do governo, como responsáveis pelas dúzias de mortos durante os três meses de tumultos e protestos.

Kiev transformada em terra sem lei pelos nazi-fascistas

O clima de terra sem lei governado por gangues que já se implantou em Kiev espalhou-se para outras partes do país, com as comunidades pró-Rússia, sobretudo, já temendo guerra civil em toda essa ex-República Soviética. Esse clima de medo é reflexo do golpe de estado construído e lançado contra presidente eleito e seu governo.

A chegada essa semana do vice-secretário de Estado dos EUA Williams Burns à capital da Ucrânia, “para discutir com figuras políticas e empresariais” o futuro do país é mais uma evidência de que todo o golpe de estado foi evento patrocinado e promovido por Washington.

Por que mais o vice-presidente dos EUA, Joe Biden tanto se interessaria pelos assuntos internos da Ucrânia a ponto de telefonar várias vezes da Casa Branca ao infeliz Yanukovich, nas últimas semanas?

Essa interferência criminosa nada “encoberta” dos EUA, em estado soberano, já não surpreende ninguém.

Manifestantes nazi-fascistas portando bandeiras da União Europeia combatem em Kiev

O secretário de Estado dos EUA John Kerry e outros líderes ocidentais a repetirem que a Ucrânia não seria “batalha entre o Leste e o Oeste é, no mínimo absurdo risível, sempre devidamente regurgitado servilmente pela chamada imprensa de notícias ocidental, para consumo popular.

A Ucrânia já estava na lista de “mudança de regime” desde o início dos anos 1990s, quando o país foi atacado pela primeira vez por Zbigniew Brzezinski e outros “estrategistas” do império norte-americano, como área desprotegida, um baixo ventre vulnerável, para desestabilizar a Rússia.

A “revolução laranja” patrocinada pelo ocidente, de meados dos anos 2000s, e que abriu a Ucrânia para ser saqueada pelo capital ocidental, já se deixa ver hoje, bem claramente, como um ensaio geral para a operação de golpe para “mudança de regime” que hoje se vê em curso.

De fato, a Ucrânia já pode ser acrescentada ao conhecido inventário de países alvos de golpes para “mudança de regime” que foi revelado em 2007 por Wesley Clark, general norte-americano de quatro estrelas.

Há quase sete anos, Wesley Clark foi a público e contou como Washington tinha um plano em andamento, no mínimo desde o final de 2001, quando o país invadiu o Afeganistão, e que incluía a ambição de “mudar o regime” em outros seis países – Iraque, Síria, Líbano, Somália, Sudão e Irã.

Todos esses países sofreram, em maior ou menor grau, a agressão por operação militar clandestina liderada por Washington, a mais intensa das quais se vê hoje na Síria, onde EUA e aliados financiam e armam uma insurgência estrangeira infiltrada ali.

Além dos conhecidos já sete alvos (incluindo o Afeganistão), eventos recentemente orquestrados na Ucrânia e provas de evidente intervenção ocidental também fazem desse país mais um item na agenda de governos a derrubar, de Washington.

Além do mais, é cada dia mais visível que não só a Ucrânia é alvo dos intentos criminosos.

Grupos pagos pelos EUA provocam agitação e violência na Venezuela

A violência das manifestações de rua na Venezuela para desestabilizar o governo do presidente socialista Nicolás Maduro são, sem dúvida possível, também maquinações da interferência de Washington também na Venezuela. 

E a subversão de hoje faz lembrar a tentativa de golpe, também apoiada pelos EUA, contra o ex-presidente Hugo Chávez em 2002.

Em anos recentes, Washington também esteve ativa em golpes para “mudança de regime” ou tentativa de golpe em Honduras e no Uruguai, e foi cúmplice da intervenção militar ilegal da França em vários pontos da África, incluindo Costa do Marfim, Mali e atualmente na República Centro-Africana.

Golpes para “mudança de regime” são procedimento operacional padrão para Washington e seus procuradores. Não é alguma aberração irracional: é movimento estrutural.

Na longa perspectiva histórica que vai até o surgimento dos EUA como potência imperial entre meados e o final dos anos 1800s, Washington já esteve envolvida em mais golpes, contragolpes, guerras de subterfúgio e agressões por todo o planeta, que qualquer outro estado.

Apesar das aparentemente sinceras declarações de que não há intervenção do ocidente na Ucrânia, o único modo de compreender o torvelinho que tomou conta daquele país é analisá-lo no contexto das ambições imperialistas de Washington, em nome do capitalismo ocidental.

Essa agenda é, infelizmente, seguida por sucessivos governos europeus, que demonstram suas prioridades políticas subscrevendo o diktat do capitalismo liderado pelos EUA na direção de “austeridade” econômica contra seus próprios cidadãos, e garantindo carta branca a Washington para que viole o quanto queira a lei internacional.

A verdade sistêmica é que o capitalismo não pode ser sustentado sem a conquista imperialista.

É especialmente verdade em tempos de crise do capitalismo, e a atual conjuntura é, provavelmente, a mais profunda crise histórica surgida ante a viabilidade do capitalismo liderado pelos EUA.

O imperialismo, com sua proclividade para a intervenção em países estrangeiros, a subversão e a indução a sempre mais guerras está, portanto, hoje no seu ponto mais agudo de necessidade de manifestar-se, para aliviar a estagnada ordem econômica liderada pelos EUA.

E é isso que torna a atual situação global tão perturbadoramente perigosa. 

Essa conexão estrutural entre o capitalismo e o imperialismo foi exposta, em toda a sua cogência, em 1916, por um líder russo bolchevique, Vladimir Lênin [foto, em 1918], em seu estudo O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo.[1]

As intuições de Lênin relacionadas às causas econômicas e sistêmicas da Iª Guerra Mundial resistiram ao teste do tempo, por mais que tenham sido censuradas e excluídas da consciência ocidental “oficial”.

Aquelas intuições de como as crises do capitalismo alimentam a predação imperialista aplicam-se, igualmente precisas e cogentes também para explicar as origens da IIª Guerra Mundial e de muitos outros conflitos internacionais subsequentes, inclusive o surto atual de golpes para “mudança de regime” patrocinado pelos EUA em diferentes continentes.

A análise de Lênin dá conta do motivo pelo qual Washington escalou no seu vício de provocar golpes de “mudança de regime” por todo o planeta ao longo da última década, a partir do momento em que a ordem capitalista comandada pelos EUA viu-se encurralada numa depressão que já parece insuperável.

Como em outras vezes, a guerra e o assalto imperialista são o único modo que o sistema conhece para aliviar sua própria tendência destrutiva, gerando impasses.

Não surpreende, portanto, ironicamente, que um dos primeiros atos dos manifestantes fascistas patrocinados pelo ocidente em Kiev, ainda no final do ano passado, tenha sido destruir monumentos que homenageavam Lênin.

O que se passa hoje na Ucrânia está afinado com a dinâmica histórica maior que os EUA e seus fantoches ocidentais aprofundaram, em seu ímpeto imperialista – por todo o planeta.

Em última instância, os alvos dos capitalistas ocidentais são os dois principais rivais geopolíticos, como os capitalistas ocidentais os veem: Rússia e China. Esses países são obstáculos no caminho do expansionismo doentio dos capitais ocidentais na Eurásia e no Pacífico.

Nesse sentido, desgraçadamente, a Ucrânia deve ser vista como mera cabeça-de-ponte para os planos de golpe e “mudança de regime”, dos EUA, contra a própria Rússia.

Com a ascensão do presidente Vladimir Putin [foto] da Rússia como líder global, que se tem oposto à agressão nua e crua pelo ocidente a outros países (hoje, declaradamente, no caso da Síria), aquela “obstrução” elevou a Rússia à posição de objetivo prioritário, para Washington.

É o que se vê nas repetidas ameaças de escalada militarista dos EUA contra a Rússia (e a China), sob a forma de implantação de mísseis balísticos junto às fronteiras, expansão do armamento nuclear (eufemisticamente chamado “upgrade”) e a velada doutrina da capacidade para “o primeiro ataque”.

A Ucrânia ilustra um desdobramento aterrorizante de uma tendência que se vem desenvolvendo no imperialismo norte-americano ao longo da última década. A cada dia que passa, mais se vê claramente qual o trunfo a que visam as várias operações clandestinas conduzidas pelos EUA, para mudança de regime no mundo: Moscou.

Paramilitares neonazistas agridem forças antitumulto em Kiev

Mas, na verdade, não é simples caso de os EUA retomarem a velha Guerra Fria pós-1945 contra a Rússia. A guerra capitalista global comandada pelos EUA contra a Rússia tem passado mais longo: vai até à Revolução de Outubro de 1917. O massacre da Rússia Soviética pela Alemanha Nazista foi plano ocidental para subjugar um vasto território que se posicionara fora do controle do capitalismo ocidental. (O que é assunto para outra coluna).

Os paramilitares neonazistas que o ocidente mobilizou para desestabilizar a Ucrânia (e a Rússia) hoje trazem ecos de uma agenda velha, sistemática, de golpes para “mudança de regime”, do ocidente imperialista contra o oriente, e por toda a parte.

Nada há de anômalo na associação entre a classe capitalista dominante e a bandidagem fascista, hoje. Essa é uma associação histórica.

Nota dos tradutores
[1] LÊNIN, Vladimir Ilitch [jan.-jun. de 1916], O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, in LÊNIN, Obras Escolhidas, tomo 2, Lisboa-Moscou: Editorial Avante!/Edições Progresso, 1984.
___________________________

[*] Finian Cunningham nasceu em Belfast, Irlanda do Norte, em 1963. Especialista em política internacional. Autor de artigos para várias publicações e comentarista de mídia. Recentemente foi expulso do Bahrain (em 6/2011) por seu jornalismo crítico no qual destacou as violações dos direitos humanos por parte do regime barahini apoiado pelo Ocidente.
É pós-graduado com mestrado em Química Agrícola e trabalhou como editor científico da Royal Society of Chemistry, Cambridge, Inglaterra, antes de seguir carreira no jornalismo. Também é músico e compositor. Por muitos anos, trabalhou como editor e articulista nos meios de comunicação tradicionais, incluindo os jornais Irish Times e The Independent. Atualmente está baseado na África Oriental, onde escreve um livro sobre o Bahrain e a Primavera Árabe.

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/02/o-que-ucrania-ja-mostrou-russia-na.html

quarta-feira, 5 de março de 2014

Um cheiro de cinzas no ar

28/02/2014 - Saul Leblon - Carta Maior

Arquivo
Fica difícil afastar a percepção de que o carnaval conservador saltou para a dispersão sem passar pela apoteose. O cheiro de cinzas no ar é inconfundível.

Como parte interessada, a mídia jamais reconhecerá no fato o seu alcance: mas talvez o Brasil tenha assistido nesta 5ª feira [27 fev] a uma das mais duras derrotas já sofridas pelo conservadorismo desde a redemocratização.

Quem perdeu não foi a ética, a lisura na coisa pública ou a justiça, como querem os derrotados.

A resistência conservadora a uma reforma política, que ao menos dificultasse o financiamento privado das campanhas eleitorais, evidencia que a pauta subjacente ao julgamento da AP 470 tem pouco a ver com o manual das virtudes alardeadas.

O que estava em jogo era ferir de morte o campo progressista

Não apenas os seus protagonistas e lideranças.

Mas sobretudo, uma agenda de resiliência histórica infatigável, com a qual eles seriam identificados.

Ela foi golpeada impiedosamente em 54 e renasceu com um único tiro; foi golpeada em 1960 e renasceu em 1962; foi golpeada em 1964, renasceu em 1988; foi golpeada em 1989, renasceu em 2003; foi golpeada em 2005 e renasceu em 2006, em 2010...

O  que se pretendia desta vez, repita-se, não era exemplar cabeças coroadas do petismo, mas um propósito algo difuso, e todavia persistente, de colocar a luta pelo desenvolvimento como uma responsabilidade intransferível da democracia e do Estado brasileiro.

A derrota conservadora é superlativa nesse sentido, a exemplo dos recursos por ela mobilizados - sabidamente nada modestos.

Seu dispositivo midiático lidera a lista dos mais esfarrapados egressos da refrega histórica.

Se os bonitos manuais de redação valessem, o  desfecho da AP 470  obrigaria a mídia ‘isenta’ a regurgitar as florestas inteiras de celulose que consumiu com o objetivo de espetar no PT o epíteto eleitoral de ‘quadrilha’.

Demandaria uma lavagem de autocrítica.

Que ela não fará.

Tampouco reconhecerá que ao derrubar a acusação de quadrilha, os juízes que julgam com base nos autos desautorizariam implicitamente o uso indevido da teoria do domínio do fato, que amarrou toda uma narrativa largamente desprovida de provas.

Se não houve quadrilha, fica claro o propósito político prévio de emoldurar a cabeça do ex-ministro José Dirceu no centro de uma bandeja eleitoral, cuja guarnição incluiria nomes ilustres do PT, arrolados ou não na AP 470.

O banquete longamente preparado será degustado de qualquer forma agora.

Mas fica difícil afastar a percepção de que o carnaval conservador saltou direto da concentração para a dispersão sem passar pela apoteose.

Aqui e ali, haverá quem arrote peru nos camarotes e colunas da indignação seletiva.

O cheiro de cinzas, porém, é inconfundível e contaminará por muito tempo o ambiente político e econômico do conservadorismo.

O  que se pretendia, repita-se, não era apenas criminalizar fulano ou sicrano, mas a tentativa em curso de enfraquecer o enredo que os mercados impuseram ao país de forma estrita e abrangente no ciclo tucano dos anos 90.

Inclua-se aí a captura do Estado para sintonizar o país à modernidade de um capitalismo ancorado na subordinação irrestrita da economia, e na rendição incondicional da sociedade, à supremacia das finanças desreguladas.

O Brasil está longe de ter subvertido essa lógica. Mas não por acaso, a cada três palavras que a ortodoxia pronuncia hoje, uma é para condenar as ameaças e tentativas de avanços nessa direção.

O jogral é conhecido: “tudo o que não é mercado é populismo; tudo o que não é mercado é corrupção; tudo o que não é mercado é inflacionário, é ineficiência, atraso e gastança”.

O eco desse martelete percorreu cada sessão do mais longo julgamento da história brasileira.

Assim como ele, a condenação da política pelas togas coléricas reverberava a contrapartida de um anátema econômico de igual veemência,  insistentemente lembrado pelos analistas e consultores: “o Brasil não sabe crescer, o Brasil não vai crescer, o Brasil não pode crescer - a menos que retome e conclua  as ‘reformas’”.

O eufemismo cifrado designa o assalto aos direitos trabalhistas; o desmonte das políticas sociais; a deflagração de um novo ciclo de privatizações e a renúncia irrestrita a políticas e tarifas de indução ao crescimento.

Não é possível equilibrar-se na posição vertical em cima de um palanque abraçado a essa agenda, que a operosa Casa das Garças turbina para Aécio - ou Campos, tanto faz.

Daí o empenho meticuloso dos punhais midiáticos em escalpelar os réus da AP 470.

Que legitimidade poderia ter um projeto alternativo de desenvolvimento identificado com uma  ‘quadrilha’ infiltrada no Estado brasileiro?

Foi essa indução que saiu seriamente chamuscada da sessão do STF na tarde desta 5ª feira. [27 fev]

Os interesses econômicos e financeiros que a desfrutariam continuam vivos.

Que o diga a taxa de juros devolvida esta semana ao degrau de 10,75%, de onde a Presidenta Dilma a recebeu e do qual tentou rebaixá-la, sob fogo cerrado da república rentista e do seu jornalismo especializado.

Sem desarmar a bomba de sucção financeira essas tentativas tropeçarão ciclicamente em si mesmas.

Os quase 6% que o Estado brasileiro destina ao rentismo anualmente, na forma de juros da dívida pública, dificultam sobremaneira desarmar o círculo vicioso do endividamento, do qual eles são causa e decorrência. 

É o labirinto do agiota: juro sobre juro leva a mais juro. E mais alto.

Dessa encruzilhada se esboça a disputa entre dois projetos distintos de desenvolvimento.

A colisão entre as duas dinâmicas fica mais evidente quando a taxa de crescimento declina ou ocorrem mudanças de ciclo na economia mundial, estreitando adicionalmente a margem de manobra do Estado e das contas externas.

É o que a América Latina, ou quase toda ela, experimenta  nesse momento.

A campanha eleitoral deste ano prestaria inestimável serviço ao discernimento da sociedade se desnudasse esse conflito objetivo, subjacente à guerra travada diante dos holofotes no julgamento da AP 470.

O conservadorismo foi derrotado. Mas não perdeu seus arsenais.

Eles só serão desarmados pela força e o consentimento reunidos das grandes mobilizações democráticas. 

As eleições de outubro poderiam funcionar como essa grande praça da apoteose.
A ver.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/Um-cheiro-de-cinzas-no-ar/30369

terça-feira, 4 de março de 2014

Governo Maduro neutraliza golpistas

28/02/2014 - Juan Manuel Karg (*)
- via comunicação por e-mail da Alba Movimentos
- Tradução: blog Escrevinhador

O governo da Venezuela parece ter retomado com força a iniciativa política, após a onda de protestos da oposição conservadora na última quinzena.

Convocou todas os setores sociais em uma conferência da paz nacional. Só faltou na reunião a oposição conservadora.

O governo recorreu também aos países do Mercosul, que reconheceu a democracia no país. Por sua vez, também anunciou a próxima reunião da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) para tentar construir uma posição comum contra as tentativas de desestabilização.

Qual é a estratégia da oposição conservadora para este novo cenário? Pesquisas mostram a rejeição da maioria dos venezuelanos aos protestos violentos, que nos últimos dias tem perdido peso.

A reunião convocada pelo Nicolás Maduro [foto], em Miraflores, última quarta-feira [26 fev], sob o nome de Conferência Nacional da Paz, era uma novidade política retumbante no cotidiano vertiginoso na Venezuela neste conturbado fevereiro. 

Representantes de movimentos sociais e políticos, religioso, empresarial e intelectual participaram da conferência. Apenas ficou ausente a Unidade Democrática.

O amplo consenso alcançado na reunião sobre a necessidade de ”pacificar” a situação política do país mostra um antagonismo claro para o ciclo de protestos de rua que têm sido desenvolvido contra o governo nas últimas duas semanas.

A oposição política, para evitar que fosse tirada uma foto com Maduro, acabou optando por não participar de uma conferência que fez uma análise verdadeiramente abrangente, mostrando sua mesquinhez e sectarismo.

Assim, não deixou que ouvissem a sua opinião,  que não a sua voz para o país. Foi o que fez, por exemplo, a Fedecamaras , que teve que admitir à nação que tinha cometido vários “erros” no passado.

Enquanto acontecia a conferência, em Caracas, o chanceler Elias Jaua [foto] começou, a partir de definição de políticas do governo Maduro, a fazer uma excursão ambiciosa nos países do Mercosul.

Em 24 horas, visitou a Bolívia , Paraguai , Argentina, Uruguai e Brasil. Jaua ofereceu aos países do continente ”informação em primeira mão” sobre os últimos acontecimentos.

Na conferência de imprensa realizada em Buenos Aires, ele detalhou o caráter pacífico de seu país, dizendo que “a Venezuela nunca fez uma guerra com outro país. Somos um país de pessoas de paz”.

A intenção do Jaua dar detalhes do que aconteceu, fazendo um contraponto às informações fornecidas pelos principais meios de comunicação internacionais, que, de acordo com a sua opinião, buscam ”demonizar” o governo venezuelano.

Assim, ele informou que das 14 mortes em eventos infelizes, apenas em três estavam envolvidos policiais. Esse funcionários agiram, segundo ele, fora as ordens dadas e foram afastados de seus postos e presos, sendo investigado pelo Ministério Público.

Depois de fazer esse esclarecimento, ele disse que “a nossa revolução é de uma natureza democrática e pacífica” e agradeceu o apoio do governo de Cristina Fernández Kirchner [foto].

No Uruguai, Jaua caracterizou a Unasul como “mais eficaz” e com um funcionamento mais democrático do que a OEA (Organização dos Estados Americanos).

Os dados dão razão ao ministro: em 2008 e 2010, houve duas tentativas de desestabilização na Bolívia e no Equador, que foram contidas pela Unasul. 

Assim, a Venezuela anunciou uma nova reunião da Unasul para discutir a questão.

Por sua vez, a oposição conservadora venezuelana parece aumentar sua divisão interna.

Após a prisão de Leopoldo López [foto], que é investigado pelas suas responsabilidades nos acontecimentos de 12 de fevereiro, Henrique Capriles [foto abaixo] tenta recuperar espaço, especialmente por meio de aparições na mídia.

No entanto, Capriles tem evitado convites para participar com Maduro de reuniões para a construção da paz. 

A sua ausência foi expressa tanto na Conferência Nacional para a Paz como no Conselho Federal de Governo, com a participação dos outros 22 governadores, incluindo Henri Falcón, outro líder da oposição e governador do estado de Lara.

Finalmente, temos conhecido nos últimos dias algumas pesquisas sobre os protestos.

Sem dúvida, se verifica um desgaste dos bloqueios violentos de setores da oposição conservadora.

A sondagem privada da Serviços da Consultoria Internacional quantifica 83% de rejeição da continuidade desses protestos.

É evidente que, à medida em que essas ações se tornaram método de protesto, houve uma rejeição por parte da oposição conservadora como um “atalho”.

Aparentemente, a decisão de retomar fortemente a iniciativa política, tanto nacional e internacionalmente, do governo venezuelano fez grande parte da ”classe política” perdida, vendo um refluxo das suas ações.

As articulações no âmbito da Conferência Nacional para a Paz e uma rápida reunião da Unasul são fundamentais para neutralizar os ânimos dos setores mais violentos e colocar por terra, definitivamente, mais essa tentativa de desestabilização da história da Revolução Bolivariana.

(*) Juan Manuel Karg é professor licenciado em Ciência Política da Universidade de Buenos Aires e pesquisador do Centro Cultural da Cooperação.

Fonte:
http://www.rodrigovianna.com.br/geral/governo-maduro-neutraliza-golpistas.html

segunda-feira, 3 de março de 2014

A luta é com palavras..., como sempre foi

21/02/2014 - Ucrânia e Venezuela: lutar com palavras
- por Rodrigo Vianna - Escrevinhador

Lutar com palavras é a luta mais vã. No entanto lutamos, mal rompe a manhã.” (Drummond)

Não se trata de poesia. Mas de política.

A edição da “Folha” desta sexta-feira [21 fev] é mais uma demonstração de que a batalha nas ruas de Kiev ou Caracas não é feita só de coquetéis molotov, bombas e fuzis.

A batalha se dá na mídia, na TV, na internet, nas páginas envelhecidas dos jornais. São Paulo, Caracas, Kiev, Moscou e Washington. A batalha é uma só.

Reparemos bem.

Ao lado, temos a primeira página do jornal conservador paulistano – o mesmo que apoiou o golpe de 64 e emprestou seus carros para transporte de presos durante a ditadura militar.

Na capa da “Folha”, ucranianos escalam uma montanha de entulho no centro de Kiev, e a legenda avisa:

Manifestantes antigoverno usam pneus e entulho para montar barricadas…”

Logo abaixo, uma chamada sobre reintegração de posse em São Paulo:

Em SP, invasores destroem imóveis do Minha Casa”. Numa página interna, o jornal informa que esse “invasores resistiram e, até a noite, praticavam atos de vandalismo”. (página C-1)

Ucranianos não praticam “vandalismo”. São tratados de forma heroica.

Ainda que se saiba que parte dos manifestantes em Kiev tem um discurso racista, próximo do nazismo [foto].

Brasileiros são “vândalos”. Ucranianos são “manifestantes”.

Mas sigamos adiante.

Nas páginas internas, a “Folha” traz vários textos do enviado especial a Kiev. 

Num deles, o repórter mostra uma pequena fábrica para produção de coquetéis Molotov, dentro do Metrô de Kiev.

O cidadão que produz as bombas é descrito assim: 

Sem afiliação a partidos ou uma proposta ideológica clara, o cidadão diz ter sido atraído pela praça e pelas manifestações a partir da ideia de que é necessário mudar o sistema político na Ucrânia.” 

Mudar o sistema político. Hum. Não fica claro se o cidadão quer uma ditadura.

A Ucrânia não é uma democracia? O governo não foi eleito pela maioria? 

Hum… “Sem afiliação a partidos” – essa parece ser a chave para legitimar tudo nos dias que correm. A CIA, os EUA, a CNN, a Folha não tem filiação a partidos. Não. Nem o nobre manifestante de Kiev.

Ao lado da reportagem sobre os molotov, um texto opinativo assinado por Igor Gielow (sobrenome “eslavo”, muito bom! Isso dá credibilidade ao comentário). [foto]

Basicamente, Gielow diz que a crise na Ucrânia é “reflexo da estratégia de Putin para a região”.

Ele não está errado. Pena que esqueça de contar uma parte da história.

O importante não é o que eu publico, mas o que deixo de publicar”, dizia Roberto Marinho.

Gielow e a “Folha” ensinam: Putin [foto abaixo] é um líder malvado, que pretende manter na Ucrânia “a esfera de poder dos tempos imperiais e soviéticos”.

Aprendam: só a Rússia tem interesses imperiais na Ucrânia.

Do outro lado, há cidadãos sem afiliação partidária, lutando contra um insano governo pró-Moscou.

Os EUA e a Europa não têm interesses na Ucrânia. Só Putin. A culpa é dos russos.

Na “Folha” luta-se com as palavras muito antes da manhã começar. Luta-se com as palavras em Kiev, em São Paulo, Moscou. Washington fica invisível. E toda a estratégia passa por aí.

O poder imperial só existe por parte da Rússia. Washington não tem qualquer projeto imperial: nem na Ucrânia, nem na Síria, nem tampouco na América Latina…

Falando nisso, a cobertura sobre a Venezuela é também grandiosa no diário da família Frias.

Declarações de Maduro aparecem entre aspas. Velho truque jornalistico para desqualificar, colocar no gueto da suspeição, qualquer fala dos chavistas.

Segundo a Folha, o governo de Maduro afirma que o movimento (golpista? Isso a Folha não diz) é uma armação de “forças de ultradireita da Venezuela e de Miami”.

No texto original a expressão está assim, entre aspas. Por que? Para dar a impressão de que Maduro é um lunático, e que não há forças de ultradireita lutando nas ruas. Não. Há só “estudantes” e “manifestantes” (e agora sou eu que coloco entre aspas).

A legenda da foto ao lado (também publicada pelo jornal conservador paulistano) diz:

Estudantes queimam lixo em atos contra Nicolás Maduro”. 

Primeiro, como se sabe que o sujeito é um “estudante”

Depois, reparem que queimar lixo na Venezuela é “ato contra Maduro“. 

Queimar prédios em desapropriação, em São Paulo, vira “vandalismo”.

Em Caracas não há “vândalos”.

Ao lado da foto, um texto assinado por repórter (que está em São Paulo!!!) narra roubo de equipamento da CNN em Caracas: “o ataque à CNN se assemelha a inúmeros relatos de motociclistas intimidando manifestantes, com tolerância e até respaldo das forças de segurança do governo”.

O roubo ocorreu em manifestação da oposição. Mas o roubo certamente é coisa dos chavistas. Claro.

Nem é preciso ir até Caracas pra saber (registro a bem da verdade factual que o repórter - a quem conheço, ótima pessoa – foi correspondente em Caracas).

No mesmo texto (assinado, de São Paulo) os grupos que defendem o governo são chamados de “milícias”. Ok.

Já estive em Caracas cinco ou seis vezes. E há grupos chavistas que se assemelham mesmo a milícias. Mas do lado da oposição há o que? Não há milícias? A turma de Leopoldo, que deu golpe em 2002, é formada por cidadãos inocentes. E só.

Quem lê a “Folha” aprende que, em Caracas, há de um lado “milícias chavistas”. De outro, só “estudantes” e “manifestantes”. 

 Não há neutralidade no uso das palavras. Nunca houve. Nunca haverá.

E quanto mais agudas as crises, mais isso fica claro. Há escolhas. A “Folha” faz as suas. A CNN, a Telesur, a VTV – ou esse blogueiro. A diferença é que uns assumem que têm lado. Outros fingem que estão “a serviço do Brasil”.  

Lutemos, com as palavras. Não há saída. O outro lado luta todos os dias, todas horas.

“Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate” (Drummond)

Fonte:
http://www.rodrigovianna.com.br/vasto-mundo/ucrania-e-venezuela-lutar-com-palavras.html

Nota:
A inserção de imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.