Luiz Carlos Azenha, do blog 'Vi o mundo'
Num evento recente do qual participei estava lá a arquiteta Ermínia Maricato. Ela pediu a palavra para dizer que, infelizmente, os movimentos sociais haviam se desarticulado na luta pela “reforma urbana”. Disse que o programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, tratava do subsidiário sem atacar o principal. Que, na verdade, o programa tinha sido responsável por inflacionar o estoque de terras, beneficiando a especulação imobiliária.
As tragédias do Rio de Janeiro e de São Paulo, além da inépcia generalizada — bombeiros sem equipamento para iluminação noturna, Defesa Civil dependente de aparelhos celulares, prefeituras que só agem (quando agem) para remediar as tragédias — demonstram o quanto somos reféns dos interesses imobiliários, que ao mesmo tempo determinam as leis de ocupação locais E financiam a mídia e as campanhas eleitorais.
Na entrevista abaixo, concedida antes das tragédias do Rio e de São Paulo à Caros Amigos, Ermínia faz previsões sombrias sobre o futuro das cidades se nada for feito. Meu pessimismo neste tema tem relação com o fato de que tanto o PT quanto o PSDB são almas gêmeas quando se trata da reforma urbana: ninguém fala do assunto para ver se o problema some.
Especulação da terra inviabiliza moradia popular
originalmente publicado na revista 'Caros Amigos'
Participaram: Bárbara Mengardo, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Júio Delmanto, Lúia Rodrigues, Otávio Nagoya, Tatiana Merlino.
A arquiteta Ermínia Maricato tem uma longa trajetória de reflexão teórica e enfrentamento dos problemas urbanos, como profissional e como militante do PT. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, coordenadora do programa de pós-graduação (1998-2002), foi também secretária de Habitação de São Paulo (1989-1992) e secretária-executiva do Ministério das Cidades (2003-2005). Na entrevista a seguir ela faz uma análise profunda e reveladora da situação caótica das cidades brasileiras. Vale a pena ler.
Hamilton Octávio de Souza – Onde você nasceu? O que estudou? Fale sobre a sua trajetória.
Ermínia Maricato – Eu nasci no interior do Estado de São Paulo, em uma cidade chamada Santa Ernestina, mas vim muito cedo para São Paulo. Meu pai foi camponês, mas se tornou um pequeno empresário, tinha uma granja de aves. A família é três quartos italiana e um quarto portuguesa. Nós tivemos que vir para São Paulo porque a minha mãe tinha uma doença, hoje eu sei que é psíquica, mas no interior nós não sabíamos bem o que era. Com 5 anos eu vim para São Paulo, estudei em escola pública, que era maravilhosa, morei no Brás e, enfim, sempre gostei muito de estudar, minha mãe não queria que eu estudasse, o meu pai me deu toda a força, acho que não tem tanta novidade aí. Foi um período em que era possível um filho de europeu, mesmo que viesse do campo, era fácil ter ascensão social em São Paulo. Foi o que aconteceu com o meu pai, ele amealhou um certo patrimoniozinho, então não é a mesma condição que o filho de camponês brasileiro, que tem origem muitas vezes na herança escrava, uma condição diferente. Bem, eu fiz química industrial no nível médio, comecei a faculdade de física na USP, depois é que eu passei para arquitetura; mas hoje eu acho que errei, estou muito apaixonada pela terra, por agricultura, por agricultura orgânica. Atualmente pertenço a uma associação que tem uma gleba de Mata Atlântica e nós estamos fazendo um pomar de frutas em extinção da Mata Atlântica, esse é o meu hobby atual. Então eu estou tão encantada, tão impressionada com a força e a exuberância da Mata Atlântica que fico pensando como nós conseguimos destruir essa riqueza.
Lúcia Rodrigues – Como surgiu essa ideia?
A associação já existia. Eu cheguei em um amigo e falei: acho que a gente devia comprar um pedaço de mata para deixar lá. E aí ele falou: mas eu já estou em um lugar que tem isso e tal. Aí eu fui, me encantei, entrei na diretoria. Temos uma médica homeopata como presidente, temos várias tribos ali, temos sete nascentes de água, então nós estamos trabalhando no tratamento e distribuição dessa água e agora nós passaremos a discutir o lixo, o esgoto.
Tatiana Merlino – Onde é?
Fica a uma hora de São Paulo, em São Lourenço da Serra. Então é a minha paixão atual e eu fiquei muito impressionada de como é que eu não fui para a agricultura, pois tem muito a ver com a questão ambiental. Eu comi uma fruta quando era criança e morava no interior que chamava pindaíva, é uma fruta lindíssima, vermelha, parece uma fruta do conde, ela é de uma árvore muito alta e aí eu falei: Mas cadê a fruta? Não existe mais. Então eu fui pesquisar e consegui, depois de muito procurar, achar uma muda da pindaíva, hoje nós plantamos quatro mudas lá no vale e aí tem outras frutas que eu nem sei o que são, comprei outras mudas, fui atrás, agora eu estou pesquisando isso. Lá tem uns malucos que entram na mata, pegam semente, estão plantando, tem um pessoal interessante. Eu gosto mais de falar disso do que falar de cidade, meu Deus do céu. O que eu quero deixar de fundamental em relação a questão urbana é que as cidades vão piorar.
Lúcia Rodrigues – Mais ainda?
Muito, muito.
Lúcia Rodrigues – Por que, professora?
Porque não tem nada sendo feito para contrariar o rumo.
Júlio Delmanto – As cidades que você diz não são só as grandes, né?
Não só as grandes, porque as cidades que mais crescem atualmente são as médias no Brasil, não são as metrópoles, as metrópoles deram uma recuada, desde a década de 80 as metrópoles estão crescendo menos e as cidades médias estão crescendo mais.
Tatiana Merlino – Nada está sendo feito nos âmbitos federal, estadual e municipal?
Não é só uma questão de governo. Primeiro não é uma questão restrita a governo, é uma questão do capitalismo periférico, eu quero fazer questão de falar isso porque muita gente fala: ah! falta vontade política! Eu vou dizer que tem problemas que são estruturais. Um deles: o mercado residencial, no capitalismo periférico, atinge uma pequena parte da população. Até 2004, quando começa uma mudança na política habitacional, da qual eu fiz parte, o mercado brasileiro produzia para 20% da população. Em São Luís (MA) é para 10% da população. Eu fico pensando, pela minha experiência, que São Paulo, por exemplo, chega a 40% da população, mas quando você vai para São Luís ou Belém (PA), o mercado não chega a 10% da população. O mercado, esse sim, segue a lei, que tem um investimento, às vezes tem um financiamento, ou às vezes até mesmo a empresa incorpora o teu financiamento, você faz um projeto que é aprovado na prefeitura de acordo com a legislação de código de obras, legislação de parcelamento do solo, legislação de zoneamento, aí isso é lançado, tem compradores que também podem ter um financiamento. Isso é o que? No Canadá, na Europa, nos EUA isso atinge de 70 a 80% da população. No Canadá isso é muito claro: 30% da população precisa de subsídio para comprar moradia. Aqui no Brasil é o oposto: tem 70% da população. Varia de cidade, de região, se tem uma classe média maior, esse número é maior, se você tem uma classe média menor, como as cidades do Norte e Nordeste, esse número é menor. Então, vivemos em uma sociedade em que uma parte da população se vira, ela não se integra ao mercado e não tem política pública para chegar nela. O financiamento, o investimento público habitacional ampliou muito a partir de 2004, é impressionante o aumento nos últimos anos. Mas na sociedade brasileira a classe média não entra no mercado. O que quer dizer que a classe média não entra no mercado? O policial, o funcionário da USP, o professor secundário mora em favela, isso é uma coisa comum. Então, o Brasil é um país típico de capitalismo periférico, onde um trabalhador regularmente empregado, com estabilidade no emprego, que é o caso de um funcionário público, não tem acesso à moradia no mercado.
Tatiana Merlino – Esse “se vira” a que você se referiu é equivalente ao déficit habitacional que há no Brasil?
É mais do que o déficit.
Tatiana Merlino – Qual é o déficit habitacional hoje do Brasil?
Olha, o déficit deve estar entre os 7 e 8 milhões, o déficit é sempre uma coisa que deve ser discutida, né? O que você considera déficit? Uma das questões que discutimos no ministério, por exemplo, é que o IBGE considera déficit a convivência de famílias e às vezes é uma decisão sua conviver com mais de uma família. Então, devo ou não considerar isso déficit? O que eu quero dizer é o seguinte: “parte da população brasileira se vira” significa que ela arruma terra, eu tenho muita restrição para usar a palavra invadindo, porque os movimentos sociais não gostam, digamos que ocupando ilegalmente, mas esse ocupando ilegalmente é uma coisa muito vasta. E construindo as próprias casas, como o Chico de Oliveira mostrou em um artigo que ficou clássico, em 1972, que essa autoconstrução, essas ocupações ilegais não eram uma coisa espontânea ou decisão deles, aquilo era o resultado do rebaixamento da força de trabalho, quer dizer uma força de trabalho que não ganha para comprar uma casa, para pagar para alguém construir, mas não dentro da lei, não é dentro do mercado, não consegue comprar a terra. E a terra é um capítulo a parte. Então essa condição de ilegalidade é geral no Brasil. Tem um município perto de Belém, Ananindeua, ou outros municípios na periferia de Recife, Salvador, Fortaleza, onde 90% dos domicílios são ilegais. Quando você chega à região metropolitana de Fortaleza o próprio IBGE dá 33% da chamada sub-habitação. Nós temos alguns estudos, não temos dados fidedignos, mas isso já mostra um pouco o que é a realidade brasileira. Quanto por cento da população brasileira mora em favela? Tem alguns trabalhos que mostram que há uma grande diferença de uma cidade para outra no Brasil, mas que a exceção que seria uma casa ilegal, construída completamente fora da lei em uma terra ocupada de forma completamente irregular, construída aos poucos, sem qualquer conhecimento de engenheiro ou arquiteto etc., é regra, não é mais exceção. Veja bem, o que era para ser exceção virou regra e o que era para ser regra virou exceção.
Tatiana Merlino – Essa é uma característica do capitalismo periférico?
É. Você vê isso no mundo inteirinho e varia um pouco em cada país. A Argentina, que já teve uma condição muito melhor socialmente na América Latina, agora está em uma situação dramática. Na Argentina você tinha menos disso, algo em torno de 20 ou 30 anos atrás, ela era mais formal, a cidade na Argentina. Fui convidada para ir a um encontro sobre moradores de rua na Argentina, eles ficaram encantados com a nossa política de morador de rua e aí eu falei: Bom, mas vocês não tinham porque vocês não tinham morador de rua e no Brasil tem há muito tempo. Se você vai para o Chile você tem uma formalidade maior na cidade, tem uma classe média mais forte. Agora o resto, Bolívia, Venezuela, que eu andei pelos morros em volta de Caracas, o próprio México, você tem uma situação que é pior do que algumas metrópoles brasileiras, porque o Brasil tem algumas coisas que são mais ricas e algumas coisas que são mais pobres.
Hamilton Octávio de Souza – Mas esse processo não está sendo revertido?
Ao contrário, as cidades do mundo estão se empobrecendo. Se você pegar a África é impressionante o que está acontecendo.
Hamilton Octávio de Souza – E São Paulo? O que acontece em São Paulo?
São Paulo está assim: o município concentra, se não me engano, 22% da população que ganha acima de 20 salários mínimos do Brasil. Então você tem uma grande concentração de renda em São Paulo, Ribeirão Preto, Santos, e Brasília – no plano piloto. Então você tem uma condição de expulsão da população desses municípios mais ricos.
Hamilton Octávio de Souza – A favelização aqui tem sido crescente, não tem? Desde a década de 50?
Mas muito mais nas periferias. Se eu pegar Cajamar, Franco da Rocha, Itapecerica da Serra, Embu, Embu-Guaçu, você tem uma periferização com o aumento da violência, com uma queda geral de índices e a gente trabalha com média, o que é complicado.
Lúcia Rodrigues – A concentração do capital é o que está levando ao empobrecimento das cidades, é isso?
Não é só. Você tem assim uma tradição de desigualdade histórica, você tem nesses países essa questão estrutural da informalidade tanto no trabalho quanto na ocupação do solo, então nós temos ilhas que são cidades do primeiro mundo, isso é tudo inadequado. Por isso que eu acho engraçado dizer que a questão é técnica. Na verdade nós copiamos a lei de zoneamento, toda a legislação do primeiro mundo e aí a gente garante uma ilha onde o resto não cabe. Para inserir a população pobre nessa cidade eu preciso transformar o conjunto, isso foi o que discutimos no Fórum Urbano Mundial e no Fórum Social Urbano.
Júlio Delmanto – Existe alguma diferença entre esses países que são chamados em desenvolvimento em relação ao resto da periferia?
Sim. O Brasil é diferente. É uma economia forte. É um player internacional. Ele passou de “nada dava certo” para “país do futuro” ou “do presente”. Mas a desigualdade é uma coisa escandalosa no Brasil. A África do Sul me impactou porque ela saiu do apartheid, em que a segregação, diferentemente da nossa, era jurídica. Então você não podia ir para a cidade se você fosse negro, a menos que você tivesse um passe. Vencer essa segregação quando o Mandela ganhou parecia fácil. Mas existe um problema que está atingindo todo o terceiro mundo que é a questão da terra. A questão da terra não foi superada com a luta contra o apartheid. Aliás, foi uma coisa que me impressionou muito, que eu ouvi de vários líderes: se a terra tivesse entrado em negociação, a paz não acontecia.
Hamilton Octavio de Souza – O que é a questão da terra? É a terra urbana?
É a terra urbana e rural. A terra está na essência da alma brasileira. A desigualdade no Brasil passa essencialmente pela questão fundiária. Campo e cidade. Só terminando a história dessa segregação, não tem nenhum mistério. Uma parte da população constrói as casas, constrói fora da lei e não tem lugar nas cidades. Às vezes os planos diretores não disseram onde os jovens iam morar, porque todo plano diretor é seguido de uma lei de zoneamento e a lei de zoneamento é lei para o mercado, e a nossa população tá fora do mercado. Então os urbanistas estão trabalhan do em um espaço de ficção, com realidade de ficção. Aliás, essa ausência dos engenheiros nem se fala. Eu quero falar depois do estrago que a engenharia fez em São Paulo.
Lúcia Rodrigues – Essas leis que você citou funcionam?
Nada. O estatuto da cidade é um sucesso no mundo. Do Brasil para o mundo. Eu sou convidada a consultoria internacional o tempo todo por conta do estatuto da cidade. Eu fui a poucos lugares, mas para onde eu fui eu falei que não está sendo aplicado no Brasil. Não está sendo aplicado.
Tatiana Merlino – Existe uma política habitacional para resolver essa questão do controle do solo?
Lei nós temos. O estatuto da cidade é ótimo. Constituição Federal nós temos. Só que nós não aplicamos a função social da propriedade. Só terminando aquilo. A nossa lógica é que a mão de obra barata de que o Celso Furtado falava muito, que garante a exportação de riqueza, que garante uma elite conspícua, que é patrimonialista, que se agarrou a este Estado e fez dele o que fez, tem a lógica de que nós temos que ter uma mão de obra absolutamente rebaixada no seu preço para poder segurar essa relação.
Lúcia Rodrigues – Mas isso não é anticapitalista? Por que se você tem gente ganhando mais, injeta força e fluxo no mercado.
É engraçado isso. Porque o Ford descobriu que os operários precisavam ganhar melhor para que o capitalismo fosse melhor em 1905, início do século 20. Não é essa a lógica no Brasil. Inclusive uma das coisas que nós nos perguntamos é se o capitalismo brasileiro, principalmente a burguesia nacional, porque as transnacionais não estão nem aí se vão esgotar as reservas, se as cidades vão virar um negócio inviável, pretende se tornar viável. O capitalismo no Brasil não está preocupado em viabilizar. As nossas cidades estão ficando inviáveis. O automóvel está inviabilizando não só São Paulo, mas todas as cidades brasileiras. Brasília está também com um problema seríssimo de trânsito. Então você tem um problema que também é estrutural. A indústria automobilística é responsável por 20% do PIB do mundo, se eu colocar a exploração de petróleo, a distribuição de petróleo, toda a indústria da borracha, das autopeças. E todas as obras nas cidades são uma questão de infraestrutura para o automóvel andar. Quebrar esse modelo é o que seria necessário para incorporar os pobres.
Lúcia Rodrigues – E como se quebra esse modelo?
Vamos primeiro falar da terra. Porque esse “como se quebra esse modelo” é uma reflexão muito difícil para eu fazer depois que eu saí do governo federal. A terra no Brasil durante vários séculos, a propriedade da terra, esteve ligada à detenção de poder social, político e econômico. É interessante perceber em uma cidade como São Paulo como é que a área de proteção dos mananciais, que é uma área protegida por lei federal, estadual e municipal e planos de tudo quanto é tipo, está sendo ocupada. O poder de polícia sobre o uso do solo tem cinco organismos: a Sabesp, a Cetesb, Eletropaulo, o poder municipal sobre o parcelamento do solo, e a Polícia Florestal. Todo mundo é responsável pela fiscalização. Então não falta lei, não falta plano. É bem importante deixar isso claro. Estou cansada de ouvir gente dizendo que falta planejamento, falta plano diretor. Não falta nada. E não falta lei no papel. O que falta é que essa população tem que morar em algum lugar. E ela vai morar onde? Então pensa na população que chega na cidade de São Paulo. O centro está se esvaziando. Isso parece incrível, aliás, em todas as cidades brasileiras grandes. Então nós temos em área de proteção dos mananciais, já vi secretário de meio ambiente falar em um milhão e quinhentas mil pessoas. E já ouvi gente da Empresa Metropolitana de Planejamento falar em dois milhões de pessoas. É uma ligeira margem de dúvida. Isso mostra que nós não sabemos quantas pessoas moram na área de proteção dos mananciais. Mais
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