Mostrando postagens com marcador BRICS. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador BRICS. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

As lições de Libra

25/10/2013 - Mauro Santayana em seu blog

(JB) - A mobilização de várias organizações, e a greve dos petroleiros, com a apresentação de dezenas de ações na justiça, não conseguiu impedir que o Leilão de Libra fosse realizado, com a vitória de duas estatais chinesas, duas multinacionais européias, e participação, em 40%, da Petrobras.

Obviamente, do ponto de vista do interesse nacional, o ideal seria que o negócio tivesse ficado totalmente com a Petrobras, ou melhor, com outra empresa, 100% estatal e brasileira (a PPSA não tem estrutura de produção  própria) que fosse encarregada de operar exclusivamente essas reservas.

Não podemos esquecer que a Petrobras – por obra e arte sabe-se muito bem de quem - não é mais uma empresa totalmente nacional.

Os manifestantes que enfrentaram a polícia, nas ruas do Rio de Janeiro, ontem, estavam – infelizmente - e muitos nem sabem disso, defendendo não a Petrobras do “petróleo é nosso”, mas uma empresa que pertence, em mais de 40%, a capitais privados nacionais e estrangeiros, que irão lucrar, e muito, com o petróleo de Libra nos próximos anos.

De qualquer forma, a lei de partilha, da forma como foi aprovada, praticamente impedia que a Petrobras ficasse com 100% do negócio.

Além disso, institucionalmente, a empresa tem sido sistematicamente sabotada, nos últimos anos, pelo lobby internacional do petróleo.

cometeram-se, no Brasil, diversos equívocos que a enfraqueceram empresarialmente, o mais grave deles, o incentivo dado à venda de automóveis, sem que se tivesse assegurado, primeiro, fontes alternativas – e, sobretudo nacionais – de combustível.

A questão geopolítica é, também, bastante delicada. O Brasil lançou-se, com determinação e talento, à pesquisa de petróleo na zona de projeção de nosso território no Atlântico Sul, antes 
de estar militarmente preparado para defendê-la.

O embate entre certos segmentos da reserva das Forças Armadas - principalmente aqueles que fazem lobby ou estão ligados a empresas de países ocidentais – e militares nacionalistas que propugnam que se busque tecnologia onde ela esteja disponível, como os BRICS, tem atrasado o efetivo rearme do país, que, embora necessário, deve ser conduzido com cautela, para não provocar nem atrair demasiadamente a  atenção de nossos adversários.

O mundo está mudando, e o Brasil com ele.
Seria ideal se pudéssemos simplesmente virar as costas para os países ocidentais - que sempre exploraram nossas riquezas e tudo fizeram para tolher nosso desenvolvimento - e nos integrarmos, de uma vez por todas, ao projeto BRICS, e a países como a China e a Índia, que estarão entre os maiores mercados do mundo nas próximas décadas.

Esse movimento de aproximação com os maiores países emergentes –  lógico e inevitável, do ponto de vista histórico – terá que ser feito, no entanto, de forma paulatina e ponderada. 

Parte da sociedade ainda acredita – por ingenuidade, interesse próprio ou falta de brio, mesmo – que para sermos prósperos e felizes basta integrarmo-nos e sujeitarmo-nos plenamente à Europa e aos Estados Unidos.

E que temos que abandonar toda veleidade de assumir um papel de importância no contexto geopolítico global, mesmo sendo a sexta maior economia e o quinto maior país do mundo em território e população.

É essa contradição e esse embate, que vivemos hoje, em vários aspectos da vida nacional, incluindo a defesa e a exploração de petróleo. É preciso explorar o petróleo do pré-sal e nos armar, para, se preciso for, defendê-lo.

Mas, nos dois casos, não podemos esperar para fazê-lo nas condições ideais.

O resultado do Leilão de Libra reflete, estrategicamente, essa contradição geopolítica. Mesmo que esse quadro não tenha sido ponderado para efeito da negociação, ele sugere que se buscou 
uma solução feita, na medida, para agradar a gregos e troianos. 

Sem deixar de mandar um recado aos norte-americanos.


Independente da questão de capital e de tecnologia – a da Petrobras é  superior à dos outros participantes do consórcio – poderíamos dizer que:
a) Os chineses entraram porque, como membros do BRICS, e parceiros antigos em outros projetos estratégicos, como o CBERS, não poderiam ficar de fora.
b) Os franceses foram contemplados porque são também parceiros estratégicos, no caso, na área bélica, por meio do PROSUB, na construção de nossos submarinos convencionais e atômico.
c) Os anglo-holandeses da Shell – mais os ingleses que os holandeses – entraram não só para reforçar a postura de que o Brasil não estava fechando as portas ao “ocidente”, mas também para tapar a boca de quem, no país e no exterior, dizia que o leilão estaria fadado ao fracasso devido à ausência de capital privado.

O lobby internacional do petróleo, no entanto, não descansa.


Antes e depois do resultado do leilão, já podia ser lido em dezenas de jornais, do Brasil e do exterior, que o modelo de 
partilha, do jeito que está, é insustentável e terá que ser mudado.

Apesar da declaração do Ministro de Minas e Energia de que o governo não pretende alterar nada – e da defesa dos resultados do leilão feita pela Presidente da República na televisão – já se 
fala na pele do urso e as favas se dão por contadas.

Os argumentos são de que não houve concorrência – interessante, será que o “mercado” pretendia que o governo ficasse com mais petróleo do que ficou? – que a Petrobras não tem escala para assumir os poços que serão licitados no futuro – uma “consultoria” estrangeira disse que a Petrobras já está com “as mãos cheias” com Libra, e as exigências de conteúdo local.

Isso tudo quer dizer o seguinte: a guerra pelo petróleo brasileiro não acaba com o leilão de Libra. Ela está apenas começando, e vai ficar cada vez pior.

Já que não podemos ter o ideal, fiquemos com o possível.

Os desafios para a Petrobras, daqui pra frente, serão tremendos, tanto do ponto de vista institucional, quanto do operacional, na formação e contratação de mão de obra, no gerenciamento de projetos, no endividamento, no conteúdo nacional.

É hora de cerrar fileiras em torno daquela que é – com todos os seus problemas - a nossa maior empresa de petróleo.

A sorte está lançada. A partir de agora, os adversários do Brasil, e da Petrobras, vão fazer de tudo para que ela se dê mal no pré-sal.

Fonte:
http://www.maurosantayana.com/2013/10/as-licoes-de-libra.html

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A China quer "desamericanizar" o mundo

20/10/2013 - A China e o nascimento do mundo des-Americanizado
- Pepe Escobar - Carta Maior

Para a China, é hora de construir um mundo "des-Americanizado".

É hora de "uma nova moeda internacional de reserva" substituir o dólar norte-americano.

É isso. A China decidiu que “basta!”. Tirou as luvas (diplomáticas).

É hora de construir um mundo “des-Americanizado”. É hora de “uma nova moeda internacional de reserva” substituir o dólar norte-americano.

Está tudo lá, escrito, em editorial da rede Xinhua, saído diretamente da boca do dragão. E ainda estamos em 2013. 

Apertem os cintos – especialmente as elites em Washington. Haverá fortes turbulências.

Longe vão os dias de Deng Xiaoping de “manter-se discreto”. O editorial de Xinhua mostra, em formato sintético, a gota d’água que fez transbordar o copo do dragão: o atual “trancamento” 
(shutdown) nos EUA.

Depois da crise financeira provocada por Wall Street, depois da guerra do Iraque, um mundo “desentendido”, não só a China, quer mudança.

Esse parágrafo não poderia ser mais explícito:

"Sobretudo, em vez de honrar seus deveres como potência liderante responsável, uma Washington interessada só em si mesma abusa de seu status de superpotência e gera caos ainda mais profundo no planeta, disseminando riscos financeiros para todo o mundo, instigando tensões regionais e disputas territoriais, e guerreando guerras ilegítimas, sob o manto de deslavadas mentiras."

A solução, para Pequim, é “des-Americanizar” a atual equação geopolítica – a começar por dar voz mais ativa no FMI e no Banco Mundial a economias emergentes e ao mundo em desenvolvimento, o que deve levar à “criação de uma nova moeda internacional de reserva, a ser criada para substituir o dólar norte-americano hoje dominante”.

Observe-se que Pequim não advoga a sumária extinção do sistema de Bretton Woods – não, pelo menos, já; quer, isso sim, mais poder para decidir. Parece razoável, se se considera que a China tem peso apenas ligeiramente superior ao da Itália, no FMI.

A “reforma” do FMI – ou coisa parecida – está em andamento desde 2010, mas Washington, como seria de esperar, vetou todas as alterações substanciais, até agora.

Quanto ao movimento para afastar-se do dólar norte-americano, também já está em andamento, com graus variados de velocidade, especialmente no que diga respeito ao comércio entre os países BRICS, as potências emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que já está sendo feito, hoje, predominantemente, nas respectivas moedas.

O dólar norte-americano está lentamente, mas firmemente, sendo substituído por uma cesta de moedas. 

A “des-Americanização” também já está em curso.

Considere-se, por exemplo, a ofensiva de charme dos chineses pelo Sudeste Asiático, que está acentuadamente começando a inclinar-se na direção de mais ação com principal parceiro econômico daqueles países, a China.

O presidente Xi Jinping da China, fechou vários negócios com a Indonésia, a Malásia e também com a Austrália, apenas umas poucas semanas depois de ter fechado outros vários negócios com os “-stões” da Ásia Central.

A empolgação chinesa com promover a Rota da Seda de Ferro alcançou nível de febre, com as ações das empresas chinesas de estradas de ferro subindo à estratosfera, ante o projeto de uma 
ferrovia de trens de alta velocidade até e através da Tailândia já virando realidade.

No Vietnã, o premiê chinês Li Keqiang selou um entendimento segundo o qual querelas territoriais entre dois países no Mar do Sul da China não interferirão com mais e novos negócios. Pode-se chamar de “pivotear-se” para a Ásia.

Todos a bordo do petroyuan.

Todos sabem que Pequim possui himalaias de bônus do Tesouro dos EUA – cortesia daqueles massivos superávits acumulados ao longo dos últimos 30 anos, mais uma política oficial de manter lenta, mas segura, a apreciação do Yuan.

E Pequim, simultaneamente, age.

O Yuan está também lentamente, mas seguramente, se tornando mais conversível nos mercados internacionais.

(Semana passada, o Banco Central Europeu e o Banco do Povo da China firmaram acordo para uma troca de moeda (orig. swap) de US$45-$57 bilhões, que aumentará a força internacional do Yuan e melhorará seu acesso ao comércio financeiro na área do euro).

A data não oficial para a total conversibilidade do Yuan cairá em algum ponto entre 2017 e 2020.

A meta é clara: afastar-se de qualquer respingo da dívida dos EUA, o que implica que, no longo prazo, Pequim está-se afastando desse mercado – e, assim - tornando muito mais caro, para os EUA, tomarem empréstimos.

A liderança coletiva em Pequim já fechou posição sobre isso e está agindo nessa direção.

O movimento na direção da plena conversibilidade do Yuan é tão inexorável quanto o movimento dos BRICS na direção de uma cesta de moedas que, progressivamente, substituirá o dólar norte-americano como moeda de reserva.

Até lá, mais adiante nessa estrada, materializa-se o evento cataclísmico real: o advento do petroyuan – destinado a ultrapassar o petrodólar, tão logo as petromonarquias do Golfo vejam de que lado ventam os ventos históricos.

Então, o bate-bola geopolítico será outro, completamente diferente.

Pode ser processo longo, mas é certo que o famoso conjunto de instruções de Deng Xiaoping está sendo progressivamente descartado:

"Observe com calma; proteja sua posição; lide com calma, com as questões; esconda nossas capacidades e aposte no nosso tempo; seja discreto; e jamais reclame a liderança."

Uma mistura de cautela e escamoteamento, baseada na confiança que os chineses têm na história e, levando em consideração uma - grave ambição de longo prazo – era Sun Tzu clássica.

Até aqui, Pequim andou devagar; deixando que o adversário cometa erros fatais (e que coleção de erros de 
multi-trilhões de dólares...); e acumulando “capital”.

Agora, chegou a hora de capitalizar. Em 2009, depois da crise financeira provocada por Wall Street, ainda havia chineses que resmungavam contra “o mau funcionamento do modelo ocidental” e, em suma, contra o “mau funcionamento da cultura ocidental”.

Beijing ouviu [Bob] Dylan (legendado em mandarim?) e concluiu que, sim, the times they-are-a-changing [os tempos estão mudando].

Sem que se veja nem sinal de avanço social, econômico e político – o “trancamento” [shutdown] nos EUA seria outra perfeita ilustração, se se precisasse de ilustração – de que os EUA deslizam tão inexoravelmente quanto a China, pena a pena, vai abrindo as asas para comandar a pós-modernidade do século 21.

Que ninguém se engane: as elites de Washington lutarão contra, como se estivessem ante a pior das pragas.

Mesmo assim, a intuição de Antonio Gramsci precisa ser atualizada: a velha ordem morreu, e a nova ordem está um passo mais perto de nascer.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Pepe-Escobar-A-China-e-o-nascimento-do-mundo-des-Americanizado-/7/29265

sábado, 12 de outubro de 2013

Por um Brasil 2.0


Por Mauro Santayana*


No novo marco da internet brasileira e no quadro do enfrentamento da espionagem cibernética norte-americana e de outros países anglo-saxônicos, como se descobriu, agora, no caso do Canadá, é preciso tomar cuidado com o que se está falando, fazendo e propondo.

Se pretende ter papel ativo no estabelecimento de um marco internacional para a internet, o Brasil não pode - por açodamento ou desinformação - adotar ou apresentar propostas inócuas, como a de tornar obrigatória a hospedagem, por empresas internacionais, de dados de cidadãos brasileiros em servidores situados em território nacional.

Estejam onde estiverem, os servidores continuarão a ser operados pelas próprias empresas - a não ser que o governo passe a co-administrar o Google, o Facebook ou a Microsoft no Brasil, o que é tão improvável como ilegal. Se a empresa quiser (ou um diretor seu, ou um simples funcionário) bastará repassar os dados requeridos para governo norte-americano, após recolhê-los em seus servidores instalados em território brasileiro.

Depois, porque esteja dentro ou fora do Brasil, teoricamente qualquer servidor pode ser invadido. Prova disso é que até mesmo servidores do Pentágono e do governo dos EUA já foram “derrubados”, inclusive por hackers brasileiros, que atacaram servidores da NASA (por ter sido – pasmem! - confundida com a NSA) há alguns dias.

Além disso, surgem (e morrem), todos os dias, milhares de empresas na internet, entre elas redes sociais, que, de um jeito ou outro, terão acesso a informações de brasileiros, pessoais ou não, já a partir do cadastro. Como saber se elas têm ou não contato com o governo-norte-americano? Ou se não foram criadas pelas agências de segurança norte-americanas? Como monitorar seu surgimento, e obriga-las a transferir seus servidores para o Brasil?

Construir uma rede de internet, seja ela de âmbito doméstico, corporativo, nacional ou planetário, é, teoricamente, simples.

Com determinação e dinheiro, qualquer nação, ou uma aliança de países, como o BRICS – abordamos a hipótese de uma BRICSNET há alguns dias – pode comprar, ou desenvolver, se tiver tempo, os servidores, backbones, roteadores, cabos de fibra ótica, satélites, antenas, computadores, tablets, iphones, etc, necessários para isso.

Embora o controle físico de uma rede, ou de parte dela –  estamos encomendando satélites, instalando os cabos óticos da UNASUL e discutindo o projeto BRICS Cable – seja importante, ele de nada vai adiantar se não dispusermos de softwares, que sejam também relativamente seguros, para que essa rede, ou sub-rede,  venha a funcionar.

Esses softwares, “open source”, existem. Como possuem código aberto e são aperfeiçoados rotineiramente, de forma voluntária e colaborativa, por gente do mundo inteiro, é mais difícil dotá-los de “armadilhas” e “portas” clandestinas - como ocorre com softwares das grandes empresas de internet, -  para espionar os usuários.

O governo brasileiro já utiliza software livre em programas ligados ao estado. E também softwares desenvolvidos pelo próprio governo. Tem que passar a usá-los, exclusiva e obrigatoriamente, dotando-os de criptografia, nas comunicações oficiais, além de instalar sistemas que bloqueiem a utilização de e-mails, redes sociais e sites particulares a partir de computadores da administração pública.

Mas nada disso vai adiantar se esses softwares não puderem ser multiplicados, disseminados e utilizados, por meio de aplicativos, no dia a dia do cidadão comum, o que nos leva a um fator decisivo - o marketing - que não tem sido tratado, até agora, com a devida importância, nessa discussão.

Cidadãos de todo o mundo não tem seus dados devassados, apenas porque os EUA sejam manipuladores e “malvados”. Eles são espionados porque preferem continuar a sê-lo, a deixar de usar sites como o Google, o Youtube, o Skype,  o Instagram ou o Facebook.

Se essas empresas forem proibidas de atuar no Brasil, os cidadãos brasileiros continuariam a ter – voluntariamente - acesso a elas e aos seus serviços, bastando para isso conectar-se aos seus computadores, situados nos EUA ou em outros países. Isso, a não ser que cidadãos brasileiros fossem censurados e proibidos de fazê-lo, e mesmo assim – nessa hipótese absurda – eles poderiam burlar o governo através de proxys, VPNs, e muito mais.

Como já fizeram antes com o cinema e a televisão, quando se sentam para decidir que roteiro escrever e produzir, na internet - na hora de escolher que startup apoiar, que tipo de aplicação desenvolver, onde instalar um vírus ou um malware - os norte-americanos agem, também, como o personagem do conto de fadas do Flautista de Hamelin.

Desde a mais tenra idade, nossas crianças são fascinadas pelos seus jogos, se comunicam por meio de seus serviços de mensagem, interagem em suas redes sociais, conversam por meio de seus bate-papos e video-chats.

Se – sozinhos ou com o BRICS - não soubermos apostar na educação e inovação, no marketing e no entretenimento, para conquistar a atenção de nossos jovens, a sociedade brasileira continuará a ser espionada - mesmo que a presidente passe a usar o novo email dos Correios, ou um dia venha a deixar de  "tuitar".
                                                   
No novo marco da internet brasileira e no quadro do enfrentamento da espionagem cibernética norte-americana e de outros países anglo-saxônicos, como se descobriu, agora, no caso do Canadá, é preciso tomar cuidado com o que se está falando, fazendo e propondo.

Se pretende ter papel ativo no estabelecimento de um marco internacional para a internet, o Brasil não pode - por açodamento ou desinformação - adotar ou apresentar propostas inócuas, como a de tornar obrigatória a hospedagem, por empresas internacionais, de dados de cidadãos brasileiros em servidores situados em território nacional.

Estejam onde estiverem, os servidores continuarão a ser operados pelas próprias empresas - a não ser que o governo passe a co-administrar o Google, o Facebook ou a Microsoft no Brasil, o que é tão improvável como ilegal. Se a empresa quiser (ou um diretor seu, ou um simples funcionário) bastará repassar os dados requeridos para governo norte-americano, após recolhê-los em seus servidores instalados em território brasileiro.

Depois, porque esteja dentro ou fora do Brasil, teoricamente qualquer servidor pode ser invadido. Prova disso é que até mesmo servidores do Pentágono e do governo dos EUA já foram “derrubados”, inclusive por hackers brasileiros, que atacaram servidores da NASA (por ter sido – pasmem! - confundida com a NSA) há alguns dias.

Além disso, surgem (e morrem), todos os dias, milhares de empresas na internet, entre elas redes sociais, que, de um jeito ou outro, terão acesso a informações de brasileiros, pessoais ou não, já a partir do cadastro. Como saber se elas têm ou não contato com o governo-norte-americano? Ou se não foram criadas pelas agências de segurança norte-americanas? Como monitorar seu surgimento, e obriga-las a transferir seus servidores para o Brasil?

Construir uma rede de internet, seja ela de âmbito doméstico, corporativo, nacional ou planetário, é, teoricamente, simples.

Com determinação e dinheiro, qualquer nação, ou uma aliança de países, como o BRICS – abordamos a hipótese de uma BRICSNET há alguns dias – pode comprar, ou desenvolver, se tiver tempo, os servidores, backbones, roteadores, cabos de fibra ótica, satélites, antenas, computadores, tablets, iphones, etc, necessários para isso.

Embora o controle físico de uma rede, ou de parte dela –  estamos encomendando satélites, instalando os cabos óticos da UNASUL e discutindo o projeto BRICS Cable – seja importante, ele de nada vai adiantar se não dispusermos de softwares, que sejam também relativamente seguros, para que essa rede, ou sub-rede,  venha a funcionar.

Esses softwares, “open source”, existem. Como possuem código aberto e são aperfeiçoados rotineiramente, de forma voluntária e colaborativa, por gente do mundo inteiro, é mais difícil dotá-los de “armadilhas” e “portas” clandestinas - como ocorre com softwares das grandes empresas de internet, -  para espionar os usuários.

O governo brasileiro já utiliza software livre em programas ligados ao estado. E também softwares desenvolvidos pelo próprio governo. Tem que passar a usá-los, exclusiva e obrigatoriamente, dotando-os de criptografia, nas comunicações oficiais, além de instalar sistemas que bloqueiem a utilização de e-mails, redes sociais e sites particulares a partir de computadores da administração pública.

Mas nada disso vai adiantar se esses softwares não puderem ser multiplicados, disseminados e utilizados, por meio de aplicativos, no dia a dia do cidadão comum, o que nos leva a um fator decisivo - o marketing - que não tem sido tratado, até agora, com a devida importância, nessa discussão.

Cidadãos de todo o mundo não tem seus dados devassados, apenas porque os EUA sejam manipuladores e “malvados”. Eles são espionados porque preferem continuar a sê-lo, a deixar de usar sites como o Google, o Youtube, o Skype,  o Instagram ou o Facebook.

Se essas empresas forem proibidas de atuar no Brasil, os cidadãos brasileiros continuariam a ter – voluntariamente - acesso a elas e aos seus serviços, bastando para isso conectar-se aos seus computadores, situados nos EUA ou em outros países. Isso, a não ser que cidadãos brasileiros fossem censurados e proibidos de fazê-lo, e mesmo assim – nessa hipótese absurda – eles poderiam burlar o governo através de proxys, VPNs, e muito mais.

Como já fizeram antes com o cinema e a televisão, quando se sentam para decidir que roteiro escrever e produzir, na internet - na hora de escolher que startup apoiar, que tipo de aplicação desenvolver, onde instalar um vírus ou um malware - os norte-americanos agem, também, como o personagem do conto de fadas do Flautista de Hamelin.

Desde a mais tenra idade, nossas crianças são fascinadas pelos seus jogos, se comunicam por meio de seus serviços de mensagem, interagem em suas redes sociais, conversam por meio de seus bate-papos e video-chats.

Se – sozinhos ou com o BRICS - não soubermos apostar na educação e inovação, no marketing e no entretenimento, para conquistar a atenção de nossos jovens, a sociedade brasileira continuará a ser espionada - mesmo que a presidente passe a usar o novo email dos Correios, ou um dia venha a deixar de  "tuitar".
                                                      

terça-feira, 10 de setembro de 2013

A BRICSNET - UMA REDE PARA OS BRICS

Por Mauro Santayana*

(JB)-Entre as diferentes hipóteses de resposta à espionagem da Presidente da República e de seus ministros e assessores, aventa-se a possibilidade – segundo afirmam os meios de comunicação, teria sido suspenso o envio da delegação precursora – do cancelamento da viagem de Dilma Roussef aos EUA, no mês que vem.

Pensando fria e estrategicamente, esta pode não ser a opção mais adequada para enfrentar o problema. Ao deixar de comparecer a uma visita de Estado, mesmo que em previsível gesto de protesto, o Brasil estaria abdicando de mostrar ao mundo que procura ter com os Estados Unidos uma relação à altura.

Estaríamos, guardadas as devidas proporções e circunstâncias, agindo como o governo golpista  de Federico Franco, que, ao tentar – de maneira inócua - reagir contra a suspensão do Paraguai do Mercosul por    quebra  de suas  salvaguardas democráticas, resolveu votar contra a vitoriosa eleição de representantes brasileiros na OMC e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Muito mais efetivo seria se, no âmbito dos  BRICS, Dilma obtivesse de nossos parceiros russos, chineses, indianos e sul-africanos, o compromisso de se trabalhar, coordenada e aceleradamente, no desenvolvimento de uma BRICSnet.

Uma rede de internet para o grupo, alternativa e paralela à que foi criada pelos Estados Unidos e que permanece sob estrito controle dos norte-americanos. Um sistema que contasse com avançados programas criptográficos que embaralhassem a informação entre origem e destino,  impedindo que ela fosse decifrada pelas agências de inteligência dos EUA.

Segundo o analista geopolítico Eric Drauster, entrevistado pela edição espanhola do Russia Today esta semana, o grande alvo da espionagem norte-americana – e isso está claro no caso brasileiro – são os BRICS, como a única aliança capaz de rivalizar com o bloco EUA-União Européia nos planos político, estratégico e econômico nos próximos anos, e essa mesma premissa vale para o campo das redes globais de comunicação instantânea.
 
A China possui, hoje, tecnologia de ponta na área de telecomunicações, a ponto da  Huawei ter sido impedida de trabalhar nos EUA, pelo Congresso dos Estados Unidos, sob a suspeita – olhem só quem está falando – de que seus equipamentos fossem usados para espionar os norte-americanos.
A Índia, com centenas de milhares de programadores formados, todos os anos, nas mais avançadas linguagens da engenharia da computação, dispõe de um verdadeiro exército para o desenvolvimento de softwares e chaves  criptográficas virtualmente imunes à bisbilhotice da CIA ou da NSA.

Juntos, Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul poderiam, se quisessem, em menos de um ano, espalhar uma rede de cabos submarinos da BRICSnet unindo seus respectivos continentes sem que esses equipamentos passassem, como acontece hoje, pelo território dos EUA.

Uma rede de satélites de comunicação da BRICSnet também poderia ser desenvolvida e lançada em curto espaço de tempo – quem sabe como o primeiro projeto a ser financiado pelo banco de infraestrutura dos BRICS - nos moldes de outros programas já existentes, como o CBERS, o Programa de Satélites China-Brasil de Recursos Terrestres.

Uma aliança na BRICSnet entre desenvolvedores indianos e a manufatura chinesa, com a colaboração de russos, brasileiros e sul-africanos, seria praticamente imbatível no desenvolvimento e venda, para os países emergentes – só o Grupo BRICS representa mais de 40% da população do mundo – de  novos serviços de email, redes sociais, navegadores, sistemas de exibição e distribuição de vídeos e música, sistemas operacionais para tablets e telefones inteligentes, tudo desenvolvido à margem das empresas ocidentais que hoje colaboram, prestimosamente, com os serviços de espionagem dos Estados Unidos.

A Presidente Dilma, poderia, sim, fazer sua visita de Estado aos Estados Unidos.  É importante que ela escute as explicações – se houver e forem dadas – do Presidente Barrack Obama, que pode ter lá seus problemas com a área de inteligência, como temos aqui, de vez em quando, com a nossa.
Mas é muito mais importante, ainda, que ela discurse no jardim da Casa Branca, dizendo na cara dos norte-americanos, e diretamente ao próprio Presidente Barrack Obama, que a nenhum país foi dado o direito de tutelar os outros em assuntos de segurança.

Que o Brasil, assim como outros grandes países, não delegou a ninguém a licença de defendê-lo no mundo.

Que somos uma nação soberana que não aceita ser monitorada, sob nenhum pretexto, por quem que seja.

E que a comunicação entre países e entre pessoas não pode – em defesa justamente da liberdade e da democracia – ficar, sob nenhuma hipótese, a cargo de um único estado, por mais que esse estado acredite em mandato divino ou destino manifesto.


sábado, 13 de abril de 2013

Fórum Social Mundial, esperança e medo

03/04/2013 - Por Immanuel Wallerstein (*)
- Tradução de Gabriela Leite para o blog Outras Palavras

Immanuel Wallerstein resenha as principais polêmicas que marcaram FSM-2013 na Tunísia. E frisa: elas confirmam enorme importância do encontro.

O Fórum Social Mundial (FSM), que acaba de encerrar sua edição atualmente bienal, aconteceu este ano em Túnis.

Foi vastamente ignorado pela imprensa mundial mainstream.

Muitos de seus participantes eram céticos que falavam de sua irrelevância, algo que acontece a cada encontro desde sua segunda edição, em 2002.

Foi marcado por debates sobre sua própria estrutura e esteve repleto de polêmicas sobre qual a estratégia política correta para o mundo da esquerda.

Apesar disso, foi um enorme sucesso.

Uma maneira de medir seu êxito é relembrar o que ocorreu no último dia do último FSM, em Dakar, em 2011.

Neste dia, Hosni Mubarak foi forçado a abandonar a presidência do Egito. Todos no Fórum aplaudiram.

Mas muitos disseram que esse ato em si provava a irrelevância do encontro.

Algum dos revolucionários na Tunísia ou no Egito buscou inspiração no evento?

Eles ao menos tinham ouvido falar sobre o Fórum Social Mundial?

Mas, dois anos depois, o Fórum reuniu-se em Túnis, a convite dos próprios grupos que iniciaram a revolução na Tunísia.

Parecem ter considerado que sediá-lo em sua capital ampliaria a força de sua luta para preservar as conquistas da revolução, contra as forças que, acreditam, estão agindo para domá-la, e levar ao poder novamente um governo opressivo e anti-secular.

O slogan de longa data do FSM é “outro mundo é possível”.

Os tunisianos insistiram em adicionar um novo, exibido com igual proeminência no encontro.

A palavra era “Dignidade” (ao lado) — nos crachás de todos, em sete línguas.

De muitas maneiras, o slogan adicional enfatiza o elemento essencial que une as organizações e indivíduos presentes no Fórum — a busca por igualdade verdadeira, que respeita e aumenta a dignidade de todos, em todos os lugares.

Não significa que houve total acordo no Fórum. Longe disso!

Uma maneira de analisar as diferenças é observá-las como reflexo do contraste entre a ênfase na esperança e a ênfase no medo.

Em sua composição, o FSM tem sido sempre uma grande e inclusiva arena de participantes, que situam-se desde a extrema esquerda até o centro-esquerda.

Para alguns, isso tem sido sua força, permitindo educação recíproca entre pessoas e organizações ligadas diversas tendências, ou com foco em distintos temas — uma educação mútua que levaria a médio prazo a unir ações, para transformar nosso sistema capitalista existente.

Para outros, isso parece ser o caminho da cooptação por aqueles que desejam meramente atenuar as desigualdades existentes, sem fazer nenhuma mudança fundamental. Esperança versus medo.

Outra fonte de constante discussão foi o papel dos partidos políticos de esquerda no processo de transformação.

Para alguns, não é possível fazer mudanças significativas, tanto em curto quanto em médio prazos, sem partidos de esquerda no poder. E uma vez no poder, essas pessoas sentem que é essencial mantê-los lá.

Outros resistem a essa ideia. Sentem que, mesmo se ajudarem tais partidos a chegarem ao poder, os movimentos sociais devem permanecer de fora, como controle crítico destes partidos, que com a prática quase certamente descumprirão suas promessas. Mais uma vez, esperança versus medo.

A atitude a adotar diante dos novos países emergentes — os chamados BRICS e outros — é outra fonte de divisão.

Para alguns, os BRICS representam uma importante contra-força ao norte clássico — Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão.

Para outros, eles levantam suspeitas sobre um novo grupo de poderes imperialistas. O papel da China na Ásia, África e América Latina hoje é particularmente controverso. Esperança versus medo.

O estado concreto da esquerda mundial é outra fonte de debate interno.

Para alguns, o FSM tem sido bom na negação — oposição ao imperialismo e neoliberalismo. Mas está, lamentavelmente, atrasado na formulação de alternativas específicas. Essas pessoas clamam pelo desenvolvimento de objetivos programáticos concretos para a esquerda mundial.

Mas para outros, a tentativa de fazê-lo serviria primariamente para dividir e enfraquecer as forças unidas no Fórum. Esperança versus medo.

Outra discussão constante é sobre o que tem sido chamada de “descolonização” do FSM.

Para alguns, ele está exageradamente, desde seu início, em mãos de gente do mundo pan-Europeu: de homens, pessoas mais velhas, das chamadas populações privilegiadas do mundo.

O Fórum tem, como organização, buscado estender-se além de sua base inicial — espalhando-se geograficamente, procurando fazer suas estruturas refletirem cada vez mais demandas a partir da base.

Isso tem sido um esforço contínuo, e ao comparar cada edição sucessiva do Fórum, percebe-se que ele tem se tornando, neste aspecto, cada vez mais inclusivo.

A presença em Túnis de todos os tipos de “novas” organizações — Occupy, Indignados, etc — é prova disso.

Para outros, este objetivo está longe de ser alcançado, a ponto de produzir dúvidas sobre se há uma real intenção de cumprir este objetivo. Esperança versus medo.

O FSM fundou um espaço de resistência. Doze anos depois, permanece o único lugar onde todas partes destes debates reúnem-se para continuar a discussão.

Existem pessoas que estão cansadas dos mesmos debates contínuos? Sim, é claro.

Mas também parece sempre haver novas pessoas e grupos chegando, que buscam participar e contribuir para a construção de um mundo de esquerda eficaz.

O Fórum Social Mundial está vivo e está bem.

(*) Immanuel Wallerstein é um dos intelectuais de maior projeção internacional na atualidade. Seus estudos e análises abrangem temas sociológicos, históricos, políticos, econômicos e das relações internacionais. É professor na Universidade de Yale e autor de dezenas de livros. Mantém um site. Seus textos traduzidos publicados por Outras Palavras podem ser lidos aqui 

Fonte:
http://www.outraspalavras.net/2013/04/03/forum-social-mundial-entre-esperanca-e-medo/

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Pepe Escobar: “Raia o sul!”

06/04/2013 - em 4/4/2013, Pepe Escobar, para o Asia Times Online
– The Roving Eye - “The South also rises
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu para a redecastorphoto

Não seria delírio imaginar que o Anjo da História de Walter Benjamin rende-se e sucumbe à tentação de declarar que raiou afinal o dia do Sul Global.

Ah, sim, sim. Será estrada longa e sinuosa. [1] Mas se a geração Google/Facebook precisar só de um manual que explique a coisa dos sonhos, tentativas, atribulações do mundo em desenvolvimento no início do século 21, o manual será o recém-publicado The Poorer Nations [As nações mais pobres], [2] de Vijay Prashad. Podem considerá-lo sequência digital, pós-moderna, do clássico Os Condenados da Terra, [3] de Frantz Fanon.

É livro absolutamente essencial, a ser lido simultaneamente, com outra maravilha escrita por um asiático global, Pankaj Mishra, From the Ruins of Empire: The Revolt Against the West and the Remaking of Ásia [Das ruínas do Império: A revolta contra o Ocidente e a reconstrução da Ásia], [4] que se serve de figuras chaves, como Jamal al-Din al-Afghani, Liang Qichao e Rabindranath Tagore para contar uma história extraordinária.

Os fundadores do MNA converteram-se em ícones do mundo pós-colonial: Jawaharlal Nehru, na Índia; Gamal Abdel Nasser, no Egito; Sukarno, na Indonésia; Josip Broz Tito, na Iugoslávia. Mas todos sabiam que seria combate morro acima. Como Prashad observa, ... a ONU fora sequestrada pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança.

O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial haviam sido capturados pelas potências atlânticas; e o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade [Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio]), precursor da Organização Mundial do Comércio (OMC), foi constituído para minar qualquer esforço que as novas nações tentassem na direção de revisar a ordem econômica internacional.

Quanto ao Projeto Atlântico, basta citar uma frase de Henry Kissinger, de 1969. Kissinger – codestruidor do Camboja; agente que capacitou o líder chileno Augusto Pinochet; aliado, embora contra-vontade, dos sauditas (“os mais incompetentes, preguiçosos e covardes dos árabes”) e elogiador-em-chefe do Xá iraniano (“sujeito durão, que sabe o que quer”):

Nada de importante pode vir do sul. O eixo da história começa em Moscou, vai a Bonn, salta por cima de Washington e vai a Tóquio. O que acontece no sul não tem importância.

Os atlanticistas empenharam-se ferozmente contra o (“sem importância”) Projeto Terceiro Mundo, mas também contra a democracia social e o comunismo. O Santo Graal deles era mergulhar fundo em quaisquer lucros de brotassem de uma nova geografia de produção, “mudanças tecnológicas que capacitaram as empresas a extrair vantagem máxima de diferentes padrões salariais” – sobretudo dos salários muito baixos pagos em todo o leste da Ásia.

Estava pronto, pois, o cenário para a emergência do neoliberalismo. Aqui, Prashad acompanha o indispensável David Harvey, detalhando o modo como o Sul Global chegou ao ponto de ser plenamente (re)explorado: bye bye libertação nacional e ideias de bem coletivo.

Manter os bárbaros à distância
Com o FMI sendo parte, hoje, da troika que dita austeridade à maior parte da Europa Ocidental (junto com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu), é fácil esquecer que, em 1944, as coisas já estavam bem amarradas.

O mundo em desenvolvimento não falou em Bretton Woods, muito menos deu palpite nos vários tipos de controle impostos ao Conselho de Segurança.

Foi o silêncio dos cordeiros. Os lobos disseram o que quiseram, e a desigualdade virou cláusula pétrea.

Prashad oferece os detalhes indispensáveis de como o dólar norte-americano tornou-se moeda mundial efetiva, com os EUA fazendo dançar o preço do dólar, por todo o planeta, sem medir consequências: formou-se o Grupo dos Sete, como mecanismo mundial essencialmente antidesenvolvimentista (e não anti-Soviético); e, claro a muito temida Comissão Trilateral, criada por David Rockfeller do Chase Manhattan para impor a vontade do norte, contra o sul.

E adivinhem quem foi o arquiteto intelectual da Comissão Trilateral? O inefável Zbigniew Brzezinski, adiante consigliere do presidente Jimmy Carter. O Dr. Zbig queria “conter” a “ameaça contagiosa da anarquia global”. Dividir para governar, mais uma vez. A periferia tinha de ser posta no seu lugar.

Deve-se lembrar, quanto a isso, que em seu épico de 1997, The Grand Chessboard [O Grande Tabuleiro de Xadrez], o Dr. Zbig, que seria feito conselheiro para política externa de Barack Obama em 2008, escreveu:

Os três grandes imperativos da geoestratégia imperial são impedir a colusão e manter a dependência em segurança entre os vassalos; manter os tributários dóceis e protegidos; e impedir que os bárbaros se unam.

Por muito tempo os “vassalos” foram facilmente contidos; mas o Dr. Zbig, um passo à frente de Kissinger, já planejava um modo para conter os dois “bárbaros” chaves, as duas potências euroasiáticas ascendentes: Rússia e China.

O Grupo dos Sete, seja como for, foi estrondoso sucesso, levando sua “teoria da governança” para todo canto, implementada pela máfia de Bretton Woods – e quem mais seria? Prashad define claramente:

O que recebeu o nome de “neoliberalismo” foi menos uma doutrina econômica coerente, que uma campanha muito direta, posta em andamento pelas classes proprietárias, para manter ou restaurar sua posição de dominação” – mediante a “acumulação por despossessão” (termo cunhado por David Harvey), também bem conhecida de milhões de europeus sob o codinome de “austeridade.

Os números contam a história. Em 1981, o fluxo líquido de capitais para o Terceiro Mundo foi de $35,2 bilhões. Em 1987, $30,7 bilhões deixaram o Terceiro Mundo, para bancos ocidentais. Por graça de Deus e sua lei escrita em pedra, também chamada “Ajuste Estrutural”, baseada em “condicionalidades” (privatização selvagem, desregulação, destruição dos serviços sociais, “liberalização” das finanças).

Parafraseando (Bob) Dylan, quando você tem nada, você ainda tem esse nada, a perder. Jamais houve qualquer estratégia política, do norte, para negociar a crise da dívida dos anos 1980s. Os cordeiros do Sul Global só foram autorizados a desfilar, em triste procissão, para receber o ajuste estrutural consagrado, um a um.

Mas nem tudo isso bastaria. Com o fim da URSS, Washington ficou livre para desenvolver a Dominação de Pleno Espectro. Os que não se submeteram completamente foram rotulados “estados delinquentes” – como Cuba, Irã, Iraque, Líbia, República Popular Democrática da Coreia e até, por certo tempo, a Malásia (porque resistia ao FMI).

Mas então lenta, mas firmemente, o Sul Global começou a erguer-se. Prashad detalha as razões – o boom de commodities puxado pela China; lucros advindos da venda de commodities que fizeram renascer as finanças latino-americanas; mais investimentos estrangeiros diretos correndo mundo. O Sul Global começou a negociar mais dentro do próprio Sul Global.

Então, em junho de 2003, à margem da reunião do Grupo dos Oito em Evian, França, emergiu algo chamado IBSA (“Diálogo Índia-Brasil-África do Sul). O IBSA estava apto a “maximizar os benefícios da globalização” e a promover crescimento econômico sustentado. O Ministro de Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, definiu-o naquele momento como “uma ideologia no melhor sentido da palavra: ideologia de democracia, diversidade, tolerância e busca de cooperação”.

Paralelamente, a China estava – como teria de estar – crescendo. É essencial lembrar aqui, a viagem, crucialmente decisiva, que Deng Xiaoping fez a Cingapura, em novembro de 1978, quando foi recebido por Lee Kuan Yew. Sobre essa visita, Prashad poderia ter escrito um capítulo inteiro. Foi o “gancho” de suspense, para o capítulo seguinte. Deng entendeu que podia mobilizar as guanxi (“conexões”) da diáspora chinesa, com todo o seu potencial.

Nunca esquecerei minha primeiríssima viagem a Shenzhen, apenas um mês depois do famosíssimo tour de Deng pelo sul, em janeiro de 1992. Foi quando o boom realmente começou. Naquele momento, senti que estava mergulhado, até o pescoço, na China maoísta.

Façam avançar a fita até hoje, com a China ajudando a desenvolver a África. Vastas porções do mundo em desenvolvimento jamais sequer considerariam a possibilidade de abraçar cegamente o azhongguo moshi – o Modelo Chinês. A coisa se passa mais como Prashad faz, começando com essa maravilhosamente clara frase de Donald Kaberuka, um ex-ministro das finanças de Rwanda e atual presidente do Banco Africano de Desenvolvimento:

Podemos aprender [dos chineses] como organizar nossa política comercial, como sair do status de baixa renda, para um status de renda média, como educar nossas crianças em setores e habilidades que, em poucos anos, pagarão o próprio custo.

BRIC a BRIC [*]
O que nos traz aos BRICS, criados como grupo em 2009, da união BRIC-IBSA e que são hoje a principal locomotiva do Sul Global.

Àquela altura, “Culpem a China” já se tornara uma das Belas Artes, em Washington; era absolutamente imperativo que todos os chineses se convertessem em consumidores.

Eles são e serão – mas ao ritmo deles e seguindo o seu próprio modelo político. [6]

Até o FMI já admite que, por volta de 2016, os EUA já terão deixado de ser a maior economia do mundo.

Tinha razão portanto o grande Fernand Braudel, quando escreveu Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII [7] (Le temps du monde [1979, 3 volumes]); (ing.) The Perspective of the World: Civilization and Capitalism, Fifteenth- Eighteenth Century, em que diz que esse seria o “sinal do outono” para a hegemonia atlântica.

Claro que os BRICS enfrentam problemas imensos, como Prashad detalha. As respectivas políticas domésticas podem, sim, ser interpretadas como uma espécie de “neoliberalismo com características do Sul Global”.

Estão ainda longe de ter construído ou de ser alternativa ideológica para o neoliberalismo. Não têm nem qualquer mínima condição de defesa contra a arrasadora hegemonia militar dos EUA e da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN (basta ver o fiasco na Líbia). E não são o embrião de mudança revolucionária na ordem mundial.

Mas, pelo menos, trazem “uma lufada de ar fresco para oxigenar o mundo estagnado do imperialismo neoliberal”.

O ar fresco circulará sob a forma de um novo banco de desenvolvimento, um Banco BRICS do Sul, versão do Banco del Sur sulamericano fundado em 2009 (para conhecer a leitura de Prashad, veja “Os grandes BRICS: a China afinal encontra seu nicho” [8].

China e Brasil já definiram uma conta de $30 bilhões em moeda própria para pagar contas comerciais, deixando de lado o dólar norte-americano. Pequim e Moscou aprofundam a parceria estratégica (ver “BRICS conseguem furar o cerco” [9]).

Os BRICS como são hoje – três grandes consumidores de commodities e dois grandes produtores de commodities tentando abrir uma picada que os salve do desastre para o qual o ocidente dirige o mundo – são só um começo. Já começam a movimentar-se como poderoso ator geopolítico, o que destaca a multipolaridade. Logo haverá novos BRICS – os países MIST (México, Indonésia, [South] Coreia (do Sul) e Turquia). E não esqueçam o Irã. Será hora, já, para os BRICS MIIST?

Dr. Fantástico
O que se vê, como que desenhadamente claro, é que o Sul Global já sofreu demais –dos saques que sofre do turbo-capitalismo de cassino, à OTAN fazendo-se de Robocop, do norte da África ao sudeste da Ásia, para nem falar da Eurásia, que vai sendo cercada por aquela quimera de Dr. Fantástico – um escudo de mísseis.

O Sul Global ainda padece sob muitos absurdos. Basta pensar nas petro-gás-monarquias do Conselho de Cooperação do Golfo – aqueles exemplares de “democracia” – já configurados como anexo da OTAN. Poucos eventos recentes foram tão espantosamente assustadores, quanto a Liga Árabe, a lamber as botas de seus senhores na OTAN e desrespeitando todas as leis internacionais, para pôr os tresloucados “rebeldes” sírios na cadeira que, por direito, cabe à Síria, estado soberano e membro fundador da própria Liga.

Cenas estranhas na mina de ouro [10]
A queda do neoliberalismo será sangrenta – e demorada. Prashad tenta uma análise objetiva da unidade do Sul Global, seguindo a trilha do pensamento de um marxista indiano, Prabhat Patnaik.

Patnaik é pensador consistente. Ele sabe que “não se vê no horizonte qualquer resistência coordenada global”.

Mas considera “a centralidade de construir a resistência dentro do estado-nação, e sua análise pode ser facilmente estendida a regiões (escreve prioritariamente sobre a Índia, mas produz análise aplicável aos experimentos bolivarianos na América Latina)”.

Assim sendo, o mapa do caminho sugere que se enfrente a “questão camponesa” – que envolve, essencialmente, terra e direitos; e que nos concentremos em lutas imediatas para melhorar as condições de vida e de trabalho das pessoas. Inevitavelmente, Prashad teria de fazer, e faz, referência ao vice-presidente da Bolívia, Alvaro Garcia Linera, um dos mais importantes intelectuais latino-americanos contemporâneos.

Sob vários aspectos, é em partes da América Latina que o processo de emancipação está mais avançado. Fiquei imensamente impressionado quando visitei a Bolívia, no início de 2008. Prashad praticamente resume as análises de Linera, de como se desenvolve o processo.

Tudo começa com uma crise do estado, que permite que “um bloco social dissidente” mobilize o povo para um projeto político. Desenvolve-se um “embate catastrófico” entre o bloco do poder e o bloco do povo, o qual, no caso da América Latina, pôde resolver-se, pelo menos por hora, a favor do povo.

O novo governo tem, então, de “converter o que foram demandas da oposição, em atos de Estado” e construir hegemonia mais profunda e mais ampla, “combinando as ideias da sociedade mobilizada e recursos materiais oferecidos ou pelo Estado, ou através do Estado”.

O ponto de virada (“ponto de bifurcação”), para Garcia Linera, vem mediante “séries de confrontações” entre os blocos, que se resolvem de modos inesperados, ou com a consolidação da nova situação, ou com a reconstituição da situação velha.

Estamos no ponto de bifurcação, ou bem próximos. O que virá não é previsível.
O que as melhores cabeças na Ásia, África e América Latina já sabem, até agora, é que nunca houve qualquer fim da história, como papagueavam patéticos órfãos de Hegel; e tampouco houve algum fim da geografia, como papagueavam os panacas dançantes da globalização, para os quais “a Terra é plana”.

Está finalmente em curso a libertação do pensamento do Sul Global, que se vai livrando do pensamento do Norte. Esse é processo sem volta, irreversível. Não há retorno possível à velha ordem.

Se fosse um filme, seria 1968, repetido sempre, sempre, sempre, em tempo integral, sem parar. Sejamos realistas: exijamos e implementemos o impossível.

Notas de tradução
[*] Há aqui um trocadilho intraduzível. A palavra brick (ing.) significa “tijolo”. Com mínima diferença de grafia e nenhuma de pronúncia, quem diga “BRIC by BRIC” (ing.) diz também “brick by brick” (ing.), “tijolo a tijolo”. Tentamos “BRIC a BRIC”, como tradução possível, para salvar pelo menos uma parte da metáfora. Há outras possibilidades [NTs].

[1] Orig. ...a long, arduous and winding road [http://letras.mus.br/the-beatles/190/traducao.html]. De verso dos Beatles em “The Long And Winding Road”. Assiste-se/ouve-se a seguir:



[2] PRASHAD, Vijay. The Poorer Nations: A Possible History of the Global South [http://www.amazon.com/The-Poorer-Nations-Possible-ebook/dp/B007NQVV1G], 2013, New York: Verso, 300 p.
[3] FANON, Franz. Os Condenados da Terra [http://www.livrariacultura.com.br/Produto/LIVRO/CONDENADOS-DA-TERRA-OS/5060504] [1961, pref. Jean-Paul Sartre], Juiz de Fora: Ed. Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006
[4] MISHRA, Pankaj. From the Ruins of Empire: The Revolt Against the West and the Remaking of Asia [http://www.amazon.com/From-Ruins-Empire-Against-Remaking/dp/1250037719], Amazon.
[5] PRASHAD, Vijay. The darker nations: a people's history of the Third [http://books.google.com.br/books/about/The_Darker_Nations.html?id=iPxsQGDri8MC&redir_esc=y] - World Perseus Distribution Services, Abril,1, 2008 - 364 pg.
[6] Primavera, 2013, Europe’s world, Zhang WeiWei em: Why China prefers its own political model [http://www.europesworld.org/NewEnglish/Home_old/Article/tabid/191/ArticleType/ArticleView/ArticleID/22086/language/en-US/WhyChinaprefersitsownpoliticalmodel.aspx] [Por que a China prefere seu próprio modelo político].
[7] BRAUDEL, Fernand e COSTA, Telma. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV-XVIII [http://books.google.com.br/books/about/Civiliza%C3%A7%C3%A3o_material_economia_e_capita.html?hl=pt-BR&id=OEuMAAAACAAJ] – Livraria do GOOGLE.
[8] 27/3/2013, redecastorphoto, Visay Prashad em: “Os grandes BRICS: a China afinal encontra seu nicho” [http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/03/os-grandes-brics-china-afinal-encontra.html], [em port.]
[9] 26/3/2013, redecastorphoto, Pepe Escobar: “BRICS conseguem furar o cerco” [http://brasileducom.blogspot.com.br/2013/03/brics-conseguem-furar-o-cerco.html], [em port.]
[10] É subtítulo de um livro: BOXALL, Fiona Vivien, The New Age of Corporate Management: Weird Scenes Inside the Goldmine [http://books.google.com.br/books/about/The_New_Age_of_Corporate_Management.html?id=UG3hNQAACAAJ&redir_esc=y] [A nova era da gestão corporativa: cenas estranhas na mina de ouro], Ed. Macquarie University (Division of Society, Culture, Media & Philosophy, Department of Anthropology), 2003, 742 p..

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/04/pepe-escobar-raia-o-sul.html

Não deixe de ler:
- Brasil e China comercializarão em suas moedas - The Brics Post, publicado por BRICS Media Network Ltd.
[http://brasileducom.blogspot.com.br/2013/03/brasil-e-china-comercializarao-em-suas.html]
- Os BRICS no FMI e no G-20 - Paulo Nogueira Batista[http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/12/os-brics-no-fmi-e-no-g-20-1.html]
- Brics pensa em novo banco próprio - Kester Kenn Klomegah[http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/03/brics-pensa-em-novo-banco-proprio.html]
- A Cúpula dos BRICS e o boicote da mídia ocidental - Mauro Santayana[http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/04/cupula-dos-brics-e-o-boicote-da-midia.html]
- BRICS: combate à pobreza será prioridade na Rio+20 - Agência Brasil[
[http://brasileducom.blogspot.com.br/2012/05/brics-combate-pobreza-sera-prioridade.html]

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.