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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Desmatamento na Amazônia e as secas no Sudeste

Caro leitor, em seguida trazemos artigo do meteorologista Luiz Carlos Molion sobre as secas que atualmente assolam o Sudeste. Há duas opiniões sobre a crise de abastecimento de água em São Paulo, por sinal uma crise prevista pelos especialistas. Qual é a sua opinião? Importante lembrar que água é um Direito Humano previsto na Resolução da ONU 64/292 (veja no pé do post entrevista do relator especial da ONU, o brasileiro Leo Heller). Mais. O estado de São Paulo está sobre o Aquífero Guarani e dentro da Bacia do Prata. Além disso, é de conhecimento que o consumo doméstico de água representa menos de 10% do total, o agronegócio (irrigação) aproximadamente 70% e indústrias - principalmente agroindústrias e metalúrgicas - em torno de 20%.
Zilda Ferreira, editora do EDUCOM

Por Luiz Carlos Baldicero Molion, PhD em Meteorologia
A afirmação de que as secas da Região Sudeste estão sendo causadas pelo desmatamento da Amazônia é leviana, não tem base científica, pois não sobrevive a uma análise de dados climáticos, além de ser contrária ao bom senso. A anomalia climática pela qual São Paulo está passando é decorrente da variabilidade natural do clima e já ocorreu, até com intensidade maior, no passado. O gráfico abaixo representa a variação dos desvios de precipitação padronizados para a Estação da Luz, no centro da capital paulista, que tem dados observados de chuva desde 1888. Nesse gráfico, notam-se desvios fortemente negativos em anos como 1933 e 1936,e na década dos anos 1960, como 1963, 1968 e 1969. Séries de precipitação mais curtas, a partir dos anos 1950, também registram as secas da década de 1960 que afetou a Região Sudeste. Ou seja, a Região já esteve submetida a secas severas no passado quando o desmatamento  da Amazônia era incipiente.


















A floresta está lá porque as condições climáticas globais, notadamente o transporte de umidade vindo do Oceano Atlântico Norte, criam as condições propícias para que ela exista. É claro que, após a instalação da floresta, há complexos mecanismos de interação floresta-atmosfera que tornam o clima local mais úmido. Antes do soerguimento dos Andes a 70 milhões de anos atrás, a floresta não existia como ela é vista hoje. E no pico da última era glacial, há 15 mil anos, há evidências que também não existia uma floresta extensa e contínua, mas apenas algumas "ilhas de vegetação” ou "refúgios” na denominação de Aziz Ab’Saber e Paulo Vanzolini. Portanto, é o clima global atual que permite a existência da floresta extensa e contínua, como observada modernamente, e não o contrário!

A umidade para as chuvas do Sudeste não é produzida na Amazônia. Ela vem do Oceano Atlântico Norte e, notem,apenas passa sobre a Amazônia e interage com a floresta. Como essa floresta produz atrito ao escoamento do ar que sai do oceano[como um carrinho elétrico que passa da cerâmica (superfície lisa) para cima de um tapete (superfície rugoso)], essa rugosidade cria intensa turbulência vertical e nuvens convectivas que convertem mais eficientemente parte da umidade transportada pelos ventos em chuva.O restante do fluxo de umidade oceânica segue seu caminho para fora da Região. Afirmação que “uma árvore cuja copa tenha 10 metros de raio, fornece mil litros de água por dia para a atmosfera”, tem o objetivo de sensibilizar o público leigo e usa, de forma inadvertida, resultados, por exemplo, obtidos no Experimento Micrometeorológico na Amazônia (ARME), organizado e dirigido por nós na década dos anos 1980 na Amazônia Central próximo a Manaus. No ARME, concluímos que a evapotranspiração [evaporação + transpiração da vegetação] injetava na atmosfera 3,4 mm por dia, ou 3,4 litros de água por metro quadrado por dia [l/m2/d], um número bem inferior ao que era tido como verdadeiro na época. Ora, um círculo de 10 metros de raio possui uma área de cerca de 300 metros quadrados que, multiplicada pela taxa de evapotranspiração acima, de 3,4 l/m2/d, resulta em 1000 litros por dia. A pergunta que cabe aqui é de onde essa tal árvore retirou a umidade que está transferindo para a atmosfera? E a resposta óbvia é“a umidade foi retirada da chuva que se infiltrou no solo”. Sabe-se que 98%a 99% da umidade que a vegetação retira do solo são utilizados apenas para manter baixa a temperatura de sua folhagem por meio do processo físico de vaporização da água, que consome grandes quantidades de energia solar e refrigera a folhagem. Se a evaporação não ocorresse, a temperatura da folhagem poderia atingir valores superiores a 34°C-35°C e danificaria os tecidos da folhagem severamente, ou seja, a floreta não sobreviveria. Portanto, apenas 1% a 2% da água retirada do solo ficam incorporados nas árvores. A floresta não é fonte de umidade, ela é apenas um transdutor da água da chuva, que é derivada do fluxo de umidade oceânica transportado pelos ventos para dentro do continente. A floresta recicla 98% a 99% da água da chuva, devolvendo-a para o escoamento atmosférico que a transporta para outras regiões do país. Na eventual hipótese absurda de se desmatar completamente a Amazônia, a rugosidade da floresta deixaria de existir, choveria menos na Amazônia e, pode se dizer, um fluxo de umidade um pouquinho maior do que o atual seria transportado para o Sudeste, possivelmente aumentando suas chuvas.

É fato observado e incontestável que áreas dentro da própria Amazônia e ao sul da mesma apresentam uma estação seca bem definida ao longo do ano.No Centro Oeste e Sudeste, por exemplo, a estação seca chega a ser de seis meses, notadamente entre abril e setembro. Por que não chove nessas regiões se a floresta está em pleno funcionamento e transferindo umidade para o ar?  É porque o clima global não permite a umidade existente na superfície seja convertida em chuva regionalmente. Durante a estação seca, e em anos de seca, essas regiões estão sobre o domínio de um sistema de alta pressão atmosférica de milhares de quilômetros de extensão e a inversão térmica associada a ele e existente a cerca de 2 km de altura, inibe a formação e o desenvolvimento de nuvens de chuva. Além do ciclo anual, o clima do Brasil apresenta variabilidade interanual decorrente de fenômenos de escala global como os eventos El Niño que, afirma-se, produzem secas severas sobre a Amazônia, mesmo com toda umidade que, em princípio, seria fornecida pela floresta. Em adição, existe uma variabilidade climática na escala decadal resultante da variabilidade da temperatura da superfície (TSM) dos Oceanos Pacífico e Atlântico que, juntos, ocupam 54% da superfície do planeta. Durante o período que o Pacífico Tropical ficou, em média, ligeiramente mais frio, entre 1946 e 1976, chovia 10% a 20% a menos no país de maneira geral. Isso porque a atmosfera [e, como consequência, o clima] é aquecida por baixo, o ar se aquece em contato com a superfície. Se as TSM ficam mais frias, o clima também se resfria, a evaporação dos oceanos se reduz, o transporte do fluxo de umidade para cima dos continentes é diminuído e uma atmosfera mais fria e mais seca produz menos chuva na região tropical. A partir de 1999, o Pacífico começou a se resfriar e o estado energético do clima parece estar semelhante ao do período 1946-1976 quando o Pacífico se resfriou e, portanto, mais baixo que o do período 1976-1998 recém-passado, em que o pacífico estava mais aquecido e o estado energético do clima era mais elevado e chovia mais. Admitindo que o ciclo de resfriamento/aquecimento do Pacífico seja de 50-60 anos, conforme publicado na literatura especializada, o Pacífico deve permanecer, em média, ligeiramente mais frio até os anos 2025-2030. Sob considerações meramente baseadas na dinâmica do clima global observada ao longo dos últimos 100 anos, se este se assemelhar ao período frio passado [1946-1976], as chuvas devem se reduzir em todo país, notadamente no Sudeste e Centro Oeste, independentemente de se acabar com o desmatamento e recuperar as áreas degradadas na Amazônia. Não queremos dizer, com isso, que somos favoráveis ao desmatamento na Amazônia. Muito pelo contrário, somos contra o desmatamento da Amazônia, em função da fantástica biodiversidade nela existente e dos serviços ambientais por ela prestados à sociedade. E os produtores rurais da Amazônia tem plena consciência disso.

domingo, 27 de outubro de 2013

Morrendo de sede em Foz do Iguaçu

Por Zilda Ferreira*

Imagine no país mais rico em água do planeta, em cima do rio e em baixo das Cataratas do Iguaçu, você só poder beber água mineralizada da Coca-Cola a R$ 3,50, contra-indicada às pessoas que têm problemas de saúde. Não é lógico. É um desrespeito à Resolução da ONU 64/292, que estabelece como Direito Humano Água e Saneamento. Essa resolução foi aprovada em julho de 2010, a partir de moção da delegação boliviana

Enquanto caminhava, na trilha de quase um quilômetro que contorna as Cataratas, observava água fresca minando das pedras, mas com um aviso: era imprópria ao consumo. A sede aumentava. Antes de chegar à Foz do Iguaçu, uma colega sugeriu que solicitasse à assessoria do Parque Nacional do Iguaçu uma visita. Argumentei que estava voltando à terra natal, pois nasci próximo dessa região, em Santo Inácio, e não pretendia ter nenhum compromisso, era apenas uma turista.

O meu orgulho de ser paranaense e minha esperança de que meu estado ainda preservava alguns de seus tesouros, como as Cataratas, morriam um pouco. Entregaram tudo. O esplendor do lugar era um sonho, mas em seguida vinha o pesadelo, nada daquela beleza era mais nossa. O Parque Nacional do Iguaçu atualmente é administrado por cinco concessionárias, sendo a principal Cataratas S/A. E a Coca-Cola reina em Foz do Iguaçu. Não encontrei água, nem no hotel, a não ser da Coca-Cola.

Á noite fui convidada para ir a Puerto Iguazú, Argentina, na Tríplice Fronteira. Passamos no "Ice Bar", onde pude beber uma água mineral de verdade, mas a 15 pesos uma garrafinha, mais caro do que uma grande compota de belos pêssegos amarelos e do que meio quilo de excelentes azeitonas, na feirinha da fronteira. Me lembrei do livro de cabeceira 'O Ouro Azul - Como as grandes corporações estão se apoderando da água doce do planeta', de Maude Barlow e Tony Clarke. Jantei e não conseguia mais ser apenas turista.

No dia seguinte parti para Toledo, onde ia encontrar Moema Viezzer, autora de 'Se Me Deixam Falar - Domitila', sobre a ativista boliviana Domitila Chungara. Moema me havia convidado para o 'Tinkuniche' (em guarani, Nosso Encontro), que seria uma conversa sobre os problemas indígenas da região da Tríplice Fronteira. Moema e o marido, o historiador e antropólogo Marcelo Grondin, foram me buscar no hotel para que eu conhecesse a cidade. Estava impressionada com a limpeza e a riqueza do lugar - Toledo é uma cidade próspera, centro universitário e cultural do oeste do Paraná. Passamos por um belo lago e continuamos a circular, quando de repente veio um cheiro insuportável. Depois de explicar o porquê desse odor, o senhor Grondin informou que já havia enviado várias reclamações às autoridades do município. Ele sugeriu que eu reclamasse também, pois encontraria várias autoridades no 'tinkuyninche'.

Estávamos todos reunidos, aguardando a chegados das lideranças indígenas na Secretaria de Cultura, quando me apresentaram o irmão do prefeito e alguns vereadores. Aproveitei para perguntar o porquê do odor insuportável no final da tarde do dia anterior. Assessores tentaram me explicar que estavam tomando providências, mas lembrando que em Toledo fica a sede de produção e o laboratório da Sadia. E que na região há mais cabeças de suínos do que gente. Um vereador do PV argumentou que providências para sanar o problema já foram tomadas e que uma empresa francesa foi contratada para tratamento dos resíduos. Repliquei – excelente marketing ambiental. 

A reunião com os índios começara. Havia lideranças principalmente das fronteiras, onde os problemas parecem mais graves, porque a maioria dos índios não tem documentos e por isso não podem provar a nacionalidade. Os índios voltaram a lembrar que 33 aldeias foram para debaixo d'água em Itaipu e que do lado paraguaio a situação é mais grave. Além dos índios brasileiros e paraguaios havia também representantes do Equador e mapuches do Chile.

Mas o que emocionou no encontro foi o depoimento de Marcelo Grondin, um verdadeiro intelectual orgânico. Grondin amou tanto os índios bolivianos que abriu mão da nacionalidade canadense para ter a boliviana. Além disso, criou o Método Quechua, língua dos Incas e o Método Aymara, língua da etnia de Evo Morales. Depois, foi perseguido pelo governo Hugo Banzer, que lhe tirou a nacionalidade, foi exilado no México e voltou ao Canadá como imigrante para reaver sua nacionalidade. Quando acabou a ditadura Banzer, voltou a ser boliviano. Grondin é um estudioso da história do líder Tupaj Katari, da revolução indígena boliviana de 1779/1781. Para Marcelo Grondin a maior conquista do Continente ainda é tomada do poder pelos povos originários bolivianos, por via democrática: a eleição do presidente Evo Morales, em 2005.

Desinformação e desrespeito ao direito à água

Viajar pelo país e constatar o império da Coca-Cola de norte a sul é desolador. Até mesmo a Fundação Amazonas Sustentável, criada pelo governo amazonense em 2007 e responsável por implantar a tal Bolsa Floresta - para serviços ambientais -, tem como um dos presidentes de seu Conselho um executivo da multinacional. Além da Coca-Cola, as concessionárias estrangeiras de água reinam por todo o Brasil, sem o menor respeito à Resolução 64/292. Não por acaso as nações hegemônicas odeiam o presidente Morales. Além de ter proposto a resolução, a Bolívia expulsou a Coca-Cola e as concessionárias de água. 

A relatora especial da ONU para o Direito Humano à Água e Saneamento, Catarina Albuquerque, enviou uma carta aos países participantes da Rio+20, em junho de 2012, pedindo a garantia do Direito Humano à Água no documento  final da Conferência. Porém, essa garantia não consta em nenhum documento divulgado para conhecimento público.

Essa foi a grande batalha travada durante a Rio+20. Canadá, Reino Unido e a delegação da União Européia tentaram enfraquecer e derrubar essa Resolução. Os interesses são incalculáveis. Imagine que Vivendi e Suez, duas empresas francesas, controlam quase 70% do mercado de água do mundo - a Europa é o continente mais pobre em água do planeta.

Mas o que não se pode compreender é que na Semana Internacional da Água, em 2013, uma revista do porte de Carta Capital e um veículo da mídia brasileira especializada como a Folha do Meio Ambiente, mesmo trazendo matérias de quatro páginas, não tenham mencionado o Direito Humano à Água em uma linha sequer. Ao não fazer qualquer referência ao direito da população a água potável e saneamento básico, a mídia deixa de cumprir seu papel de informar e conscientizar sobre essa prerrogativa inalienável.

Na volta a Foz do Iguaçu, sentei ao lado de uma jovem mestranda em Tenologias Ambientais na UTFPR – Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Ela contou que pretende trabalhar na área de saneamento, por ser este um mercado em expansão. Logo lhe perguntei se conhecia a Resolução 64/292. Disse que não e, para justificar, explicou que não estudava legislação e sim tecnologias. Para minha surpresa, o único lugar público onde encontrei água de graça, no Paraná, foi nesse ônibus que me levava de volta a Foz do Iguaçu, onde pegaria o avião para o Rio de Janeiro.

*em visita à terra natal, que não conhecia, durante a segunda quinzena de outubro de 2013

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