02/04/2012 - J Carlos de Assis* - Carta Maior
No Brasil, estamos assistindo estupefatos ao descortinamento do conúbio inacreditável entre setores da mídia e crime organizado: gravações feitas pela Polícia Federal com autorização da Justiça revelam que a maior revista do pais, “Veja”, teria sido regularmente pautada por bandidos que usam espiões privados, alguns egressos do antigo SNI, para muitas vezes forjar escândalos.
O artigo é de J. Carlos de Assis*
Décadas atrás li a autobiografia do general Reinhard Gehlen, o chefe da espionagem alemã no Leste europeu durante a Segunda Guerra, o qual, com o fim desta e a derrota de Hitler, salvou a própria cabeça e as cabeças de seus auxiliares mais próximos vendendo aos americanos seus arquivos e sua rede de contatos no coração da União Soviética. Tornou-se uma legenda, pela eficiência com que organizou, nas duas situações – sob Hitler, e sob os americanos -, sua excepcional rede de espionagem contra os soviéticos.
General Reinhard Gehlen ao centro |
O fim da guerra deveria ter significado também o seu fim. Precavido, antes da derrocada final alemã enterrou algo como 50 barris de microfilmes em montanhas da Áustria para negociá-los com os vencedores. Deu certo. Gehlen acabou conquistando a confiança dos americanos, e da própria CIA, transferindo para eles sua lealdade e, principalmente, seus arquivos materiais e mentais. Na antiga função, notabilizara-se sobretudo por ter sob seu comando centenas de brilhantes jovens espiões, recrutados entre a elite dos exércitos alemães.
Ex-general Reinhard Gehlen |
Cerca de 4 mil agentes do antigo Reich foram “transferidos” para os serviços de espionagem da nova Alemanha dirigidos por Gehlen. Foram fundamentais para a organização de um serviço de informação ocidental direcionado contra os soviéticos. Antes, não havia nenhum sistema de espionagem estruturado nesse sentido pelos americanos. Sem os serviços de Gehlen, e sem essa “transferência”, os Estados Unidos teriam uma tremenda dificuldade na condução ideológica de seu lado na Guerra Fria, que não se limitava apenas à espionagem, mas também à comunicação.
Boris Yeltsin |
Essas reminiscências me vieram à mente com o fim da União Soviética, e com a pergunta óbvia: O que foi feito do imenso aparato de espionagem, informação e contra-informação soviético, deixado sem pai nem mãe enquanto o Estado se desestruturava no desgoverno Yeltsin? Sabemos que algo dele sobreviveu nas mãos de Putin, mas até que este antigo homem de informação assumisse o poder dezenas de milhares de espiões de dentro e de fora da União Soviética perderam privilégios e rendas, sendo forçados a buscar outros meios de vida.
Minha intuição é que essa rede universal de espionagem deserdada, não tendo em seu comando um general Gehlen que a negociasse em bloco com um novo patrão – os americanos não se interessariam, a não ser pelos cabeças -, tem sido comprada no varejo por duas estruturas poderosas, que podem pagar por ela: o sistema financeiro e a grande mídia. O sistema financeiro usa a espionagem privada para manipular e chantagear políticos na busca de decisões legislativas a seu favor. É uma forma agressiva de lobby, que funciona sobretudo nos Estados Unidos.
Quanto à utilização pela mídia de espiões descolados das estruturas formais de espionagem, tivemos a primeira evidência mundial com o caso Murdoch na Inglaterra: esse mega-empresário das comunicações, dono do Wall Street Journal, dentre outros jornais de direita, foi pego com a boca na botija ao empregar espiões para grampear personalidades de várias áreas na Inglaterra para chantageá-los com seu jornal de escâncalos. Isso sugere o cruzamento de interesses financeiros com interesses midiáticos espúrios, numa conspiração gigantesca, em escala global, contra a democracia.
No Brasil, estamos assistindo estupefatos ao descortinamento do conúbio inacreditável entre mídia e crime organizado: gravações feitas pela Polícia Federal com autorização da Justiça revelam que a maior revista do pais, “Veja”, teria sido regularmente pautada por bandidos que usam espiões privados, alguns egressos do antigo SNI, para muitas vezes forjar escândalos. Note-se que o SNI, Serviço Nacional de Informações, foi extinto por Collor anos atrás, e seus espiões, assim como os soviéticos, foram deixados à solta no mundo para quem pagasse melhor.
Em relação à “Veja” havia outros indícios de utilização de espiões, como tem sido bem documentado pelos jornalistas Luís Nassif e Paulo Henrique Amorim. Com minha experiência de mais de 30 anos de jornalismo ativo, e tendo eu próprio sido um dos introdutores do jornalismo econômico investigativo na área econômica no início dos anos 80 – portanto, ainda sob a ditadura -, desconfio de reportagens com excesso de detalhes cronológicos, minuto a minuto – como recentemente fizeram com José Dirceu. Nenhum repórter consegue esses detalhes relativamente a fatos passados a não ser pela mão de um espião. Alguém os colhe, e a maioria que os colhe, colhe-os para vender.
Como outras revistas de direita, “Veja” paga pelo material, na medida em que rende aumento de circulação, pondo um laranja para assinar.
Tudo se faz, claro, sob o manto protetor da liberdade de imprensa!
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