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domingo, 14 de julho de 2013

É preciso interromper a expansão do Estado policial



A socióloga Vera Malaguti Batista alerta para o risco da expansão do "Estado policial" e da gestão militar da vida dos pobre. Os espetáculos de truculência e despreparo das polícias estaduais na repressão às manifestações, somados à barbárie cotidiana nas favelas e periferias das grandes cidades, fizeram ressurgir a bandeira da desmilitarização das polícias.

Uma proposta ainda muito distante da realidade, lamenta a socióloga Vera Malaguti Batista, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia e professora da Universidade Cândido Mendes. Antes disso, sugere a especialista, é preciso interromper a expansão do Estado polícial. “Precisamos parar de acreditar que vamos resolver os problemas do Brasil com mais polícia e repressão”, diz Batista, organizadora do livro Paz Armada, Criminologia de Cordel, lançado em 2012 pela Editora Revan.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

CartaCapital: Como a senhora avalia o comportamento das polícias durante os protestos do último mês?

Vera Malaguti Batista: A polícia se comportou como costuma se comportar. Só que dessa vez o alvo da truculência era diferente, o público era outro. Os manifestantes eram, em sua maioria, jovens de classe média e brancos. Cada vez que um ônibus é incendiado na favela, o episódio é tratado pela mídia como um ato de vandalismo ou terrorismo. Mas por trás daquele veículo em chamas, quase sempre há um episódio anterior de violência policial, um assassinato. Trata-se de uma forma de protesto desesperada. A classe média se deparou nas ruas com uma forma de atuação policial normalmente dirigida aos pobres, aos moradores de bairros periféricos. Não há nada de novo.

CC: O que explica essa cultura da truculência?

VMB: O coronel Carlos Magno Nazareth Cerqueira, comandante da PM do Rio de Janeiro nos dois governos de Leonel Brizola e assassinado em 1999, dizia que o trabalho policial no Brasil ficava entre o saber jurídico e o saber bélico. Este último está subordinado à lógica das Forças Armadas, na qual o objetivo de uma ação é sempre conter ou eliminar um inimigo. Mas as técnicas e os métodos de policiamento deveriam ter um corpo teórico à parte, o mais afastado possível do paradigma bélico. Não estamos em guerra tampouco enfrentando inimigos nas ruas. A questão central é: a quem a polícia deve servir? Nos Estados Unidos, Itália, França, Alemanha, Cuba, as técnicas e métodos da polícia compõem um corpo teórico bastante distinto da teoria bélica. Há manuais internacionais de controle de distúrbios, discussões sobre o uso legítimo e o uso excessivo da força, padrões de abordagem.

CC: E no Brasil?

VMB: Aqui, a lógica é outra: ocupação do território inimigo. Na medida em que a criminalidade foi caminhando para o centro da política e a mídia começou a criar certa histeria nacional, as pessoas passaram a aceitar como normais e depois a aplaudir ações de guerra. Os mesmos cidadãos que criticavam a violência da ditadura passaram a justificar certos abusos da polícia no regime democrático. A ordem é partir para cima de qualquer forma. Se o policial matar, não tem galho. Registra o homicídio como auto de resistência. Ao mesmo tempo, de forma maluca, há uma expansão do número de policiais. Outro dia vi o governador do Rio, Sergio Cabral, todo orgulhoso dizendo que ele colocou nas ruas 6 mil novos policiais por ano, enquanto no passado não passavam de 500 por ano. Eu considero isso uma notícia apavorante. É o que eu chamo, no meu livro, de Estado de polícia. Mas a classe média ainda não se deu conta disso.

CC: Em recentes protestos na periferia de São Paulo e no Complexo da Maré, no Rio, alguns cartazes alertavam: “A polícia que reprime na avenida é a mesma que mata na favela”.

VMB: Tome o exemplo do massacre na Maré. A ação de meia dúzia de pequenos traficantes e a morte de um sargento do Bope, a tropa de elite da polícia fluminense, deu uma espécie de carta de carta branca para a polícia promover uma chacina na favela. Isto, sim, foi uma verdadeira ação terrorista. Revela um despreparo total, uma tropa enlouquecida, disposta a tudo. E a mídia incentiva este tipo de postura. Cria slogans como “combate ao crime”, “guerra às drogas”, “batalha contra o crack”. Hoje, São Paulo tem um efetivo de 100 mil policiais. O Rio tem mais de 60 mil. Todos os anos, os diferentes governos jogam nas ruas milhares de trabalhadores armados com pouca ou nenhuma formação. E há uma enorme plateia aplaudindo essa política, demandando mais truculência. Um dos grandes equívocos dos governos do PT foi ter permitido, e até incentivado, a expansão do Estado de polícia. Como diz o historiador Joel Rufino dos Santos, o que precisamos ser: guardiões da ordem ou dos direitos humanos?

CC: Ter mais policiais nas ruas é um problema?

VMB: Sem preparo, sim. É preciso pagar melhores salários, melhorar a formação dos policiais. Aquele homem fardado, no meio de uma multidão enfurecida, adestrado para a guerra e sem saber como lidar com civis, também vive um grande dilema.

CC: É o caso de levantar a bandeira da desmilitarização da polícia, como alguns manifestantes têm sugerido?

VMB: Estamos tão distantes disso... A primeira coisa que precisamos interromper é a expansão do Estado de polícia. Parar de acreditar que vamos resolver os problemas do Brasil com mais polícia e repressão. Esse é o consenso da sociedade hoje. Precisamos de muitas prisões, penas mais duras para os criminosos. Em algum momento essa política de encarceramento em massa vai ruir, não tem como se sustentar. Antes de colocar mais policiais nas ruas, é preciso repensar o que queremos. Viver num Estado de polícia ou num Estado de direito? São coisas antagônicas. Como ressalta o jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, ‘o estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao estado de polícia, onde todos estão subordinados ao poder daqueles que mandam’. Hoje, não tenho dúvidas de que vivemos neste segundo cenário.

CC: A senhora é uma crítica ferrenha das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio, que contam com ampla aprovação da população, segundo pesquisas. O que há de errado no modelo?

VMB: É um projeto de alta concentração de forças militarizadas em áreas pobres. Se fosse um programa para a segurança pública do Rio de Janeiro, ele não poderia ser direcionado só para as favelas. A UPP é uma gestão policial da vida dos pobres. Transforma a polícia como principal política pública, acima de todas as outras. Não vejo dessa forma. As pessoas se sentem seguras quando têm transporte, alimentação, limpeza urbana. Além disso, esse modelo de controle territorial está inserido num paradigma bélico. Segurança pública não é guerra tampouco disputa territorial. A UPP parece uma invenção de Sergio Cabral ou do seu Secretário de Segurança Pública, mas o modelo foi testado em outros lugares do mundo e fracassou. O projeto foi vendido aqui como panaceia, uma espécie emplastro Brás Cubas, destinado a curar todos os males da humanidade, nos delírios do célebre personagem de Machado de Assis.

CC: Onde mais esse modelo foi adotado?

VMB: Em Medellín, os pesquisadores do Observatorio de Seguridad Humana têm uma série de estudos e estatísticas que revelam os equívocos desse modelo de ocupação militarizada em áreas pobres da Colômbia. O geógrafo Milton Santos ressalta que a aposta na “recuperação de territórios” remete ao conceito bélico norte-americano e israelense de ocupação de territórios estrangeiros. Sim, porque os governos dos Estados Unidos e de Israel não têm coragem de impor esse mesmo modelo dentro de casa, para a sua própria população.

CC: Vende-se a ideia de que a UPP é um modelo de policiamento comunitário.

VMB: UPP não é policiamento comunitário, é uma tomada de território por forças militarizadas. Algo muito semelhante ao que ocorre na Palestina, no Iraque, no Afeganistão. O coronel Nazareth Cerqueira foi um dos primeiros a implantar o policiamento comunitário na América Latina nos anos 1980. O projeto tinha no horizonte a ideia de o policial estar próximo, mas não metendo o pé na porta. O oficial deveria ser acessível, próximo para atender às demandas da população. Mas nunca para impor sua disciplina, o protagonista era a população.

CC: O que é a vida em uma favela “pacificada”?

VMB: O tipo de atuação policial que se faz nas favelas ocupadas pela polícia no Rio só poderia ser feita na zona sul da cidade caso o governo decretasse “estado de sítio”. Há toques de recolher, abordagens ostensivas, invasão de domicílios sem mandado judicial, a proibição de tudo. Os moradores do morro do Cantagalo costumam reclamar que os bares de Ipanema ficam abertos a noite toda, mas as biroscas da favela têm horário para fechar. Para fazer uma festa em casa, o morador de lá tem de pedir autorização. Se fosse uma experiência de policiamento comunitário, como cinicamente costumam dizer, as intervenções deveriam ocorrer em todo o bairro de Copacabana, não apenas nas favelas dali.

Publicado originalmente: Carta Capital http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-guerra-particular-8733.html

Fonte: Rede Democrática

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Desmilitarização da polícia, a pauta urgente

ECOS DO PROTESTO

Por Sylvia Debossan Moretzsohn* em 27/06/2013 na edição 752 do Observatório da Imprensa

   
A truculência na repressão indiscriminada e gratuita a manifestantes que participaram de várias das passeatas nos últimos dias, desde a quinta-feira sangrenta (13/6) na Avenida Paulista, impôs a urgência de uma velha demanda: a desmilitarização das polícias e a discussão sobre o papel dessa instituição num Estado democrático.

A indignação contra a violência policial se espalhou imediatamente nas redes sociais, muitas vezes acompanhada de vídeos incontestáveis: soldados lançando bombas de gás e disparando balas de borracha contra pessoas que esperavam a abertura dos portões do metrô para voltar para casa, ou estavam em bares, ou observavam o movimento e levantavam as mãos, encurraladas pela polícia.

A avalanche de denúncias, entretanto, animou muita gente a lembrar um detalhe essencial, que teve o poder de síntese de um slogan: na favela, as balas não são de borracha. Noutras palavras: os que sentiram agora o peso das forças da ordem precisam acordar para a gravidade do que ocorre cotidianamente na periferia social.

A propósito, o site da ONG Justiça Global resume, no início do artigo em que defende a desmilitarização das polícias: “A polícia que reprime as manifestações é a mesma que executa pessoas nas favelas e periferias e a mesma que implanta nos morros as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)” (íntegra aqui).

O exemplo mais recente veio agora mesmo, na segunda-feira (24/6): no início da tarde, uma pequena manifestação de jovens na Praça das Nações, em Bonsucesso, no Rio, convocada pelo Facebook, levou a PM a mobilizar, segundo O Globo, “250 homens e até um blindado”, o famoso “caveirão”, para “garantir a segurança e coibir saques”. No início da noite, teria havido um início de arrastão e, para perseguir os bandidos, os policiais iniciaram uma “operação” nas favelas do chamado Complexo da Maré. Resultado: um morador morto, logo depois um sargento do Bope e, em seguida, a chacina. Total oficialmente reconhecido até quarta-feira (26/7): nove mortos.

A palavra de ordem pela desmilitarização da polícia ressurgiu com força depois disso: na manhã da quarta-feira, estava nos precários cartazes de papelão presos nas grades do prédio da Secretaria de Segurança, onde um grupo de moradores se reuniu para protestar. E foi incorporada pelos que se mobilizam para a passeata marcada para quinta-feira (27), no Centro do Rio.

Os métodos da polícia

Quem participou dos protestos no Rio de Janeiro pôde conhecer, se já não sabia, os métodos da repressão. No dia 17/6, incapaz de cercar e conter os que depredavam a Assembleia Legislativa, policiais começaram a prender indiscriminadamente pessoas que apenas assistiam ou documentavam o ato: a maioria jovens universitários, mas também um morador de rua. “Algumas mochilas foram retidas, mochilas que depois apareceram, na delegacia, com pedras e outras coisas que foram colocadas lá como provas”, anotou Carmen Astrid, uma das presas. Filha de exilados políticos chilenos, ela não se dizia surpresa, apenas não entendia qual era a acusação: “Me sentia no Processo de Kafka. Se um policial diz que você fez algo, é a palavra dele que vale”.

Dias depois, na entrevista coletiva de que participou, após a soltura dos jovens, o fundador da ONG Rio da Paz, cujo filho também tinha sido preso, declarou:

“Eu me senti negro, pobre, morador de favela, numa viela escura de uma comunidade pobre. Porque, ao pedir informação para o policial, era como se eu estivesse falando com um androide. Com uma estátua de mármore, com um boneco de gesso. Nenhuma explicação, nenhuma justificativa”.

Na passeata do dia 20/6, foi ainda pior: depois do início do confronto, na frente do prédio da prefeitura do Rio, grupos de vândalos saíram quebrando vidraças, postes, sinais de trânsito, destruindo ônibus, tocando fogo nas ruas. A polícia, entretanto, investiu em quem nada tinha a ver com isso. Muitos procuraram abrigo em dois prédios da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que funcionam no Centro – a Faculdade de Direito e o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) – e só conseguiram sair de lá em segurança muitas horas depois, após a intervenção da OAB e do Ministério da Justiça.

Pai de uma das jovens que estava no IFCS, o professor João Batista de Abreu relatou:

“Os que embarcariam no metrô foram orientados por advogados a não saltar na estação do Largo do Machado. Do lado de fora da estação, por volta de 21h, havia um cerco de 15 policiais fardados aguardando os que desembarcavam. Ao lado deles, três homens fortes, todos com cassetetes na mão, ameaçavam espancar os que saíssem correndo, no que eles considerassem atitude suspeita. Quando interpelados por uma senhora de 65 anos, começaram a destratá-la, dizendo que ela deveria estar em casa. Havia um forte sentimento de que eles tinham recebido carta branca para agir. O comentário geral é de que esses homens, à paisana e sem identificação, teriam sido contratados pela Companhia do Metrô para agredir os estudantes. Como não pertencem aos quadros do Metrô, seria mais fácil depois escondê-los”.

Pessoas que se reuniram em bares na Lapa foram agredidas. Jovens que aguardavam a abertura dos portões do metrô foram atacados, apesar dos pedidos de paz. Mais grave: a polícia chegou a disparar balas de borracha e bombas de gás contra o Hospital Souza Aguiar, para onde iam os feridos ou aqueles que tentavam fugir do caos.

A médica Daniela Judice, que trabalha ali, comentou:

“Meu plantão acaba às 20h. Tentávamos sair quando, de repente, gritaria e fumaça entrando pelo hospital. O gás pimenta subiu pelas escadas até alcançar a pediatria, no sétimo andar. Vários funcionários passaram mal. Mães e crianças aspirando aquele horror. No SÉTIMO andar! Nos isolamos no CTI. Conseguimos sair de lá às 22h15. Passo pela Presidente Vargas, que parecia vítima de um tornado”.

(Breve observação sobre o comportamento do maior telejornal do país, que no dia seguinte conseguia a proeza de veicular um compacto com uma seleção dos “melhores momentos” dos atos de vandalismo: quatro minutos de cenas de destruição, sem narração. Apenas no sábado (22/6), o Jornal Nacional abriu espaço para as denúncias que desde o início circulavam nas redes sociais, inclusive com vários vídeos sobre o descalabro da repressão policial. Ainda assim, a apresentação cercou-se da cautela do condicional: falava nos “abusos que teriam sido cometidos por policiais militares”, apesar das evidências).

O discurso terrorista e discriminatório

Ao analisar o comportamento da polícia no tumulto em frente à Assembleia Legislativa, diante de cenas em que um policial descarrega uma metralhadora para o alto, o comentarista do RJTV Rodrigo Pimentel, ex-membro do Bope – inspirador do “capitão Nascimento”, personagem do filme Tropa de Elite –, declarou: “Isso é desastroso, uma arma de guerra, uma arma de operação policial em favelas, não é uma arma pra ser usada no ambiente urbano...”.

Porque, como sabemos, favela não é ambiente urbano, é território livre para a barbárie.

Para quem tem alguma memória, Pimentel repetia então o raciocínio do secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, sobre uma operação policial na favela da Coreia, Zona Oeste do Rio, há alguns anos, quando traficantes que tentavam fugir foram mortos com tiros disparados de um helicóptero: “Um tiroteio na Coreia é uma coisa, em Copacabana é outra”.

O próprio Beltrame, na coletiva sobre os excessos policiais nas manifestações da semana passada, declarou, medindo as palavras: “De nada adianta demonizar a polícia. A polícia é a que o Estado brasileiro tem. Demonizar a polícia talvez seja benéfico para vândalo”.

O mesmo discurso terrorista de sempre, que silencia toda crítica, para afastar a hipótese de que essa crítica sirva ao “inimigo”. Quem não está conosco está contra nós.

A questão estrutural

Quando discursou em rede nacional na noite de sexta-feira (21/6), após os conflitos que marcaram os protestos ao longo da semana em todo o país, a presidente Dilma Rousseff fez o discurso da lei e da ordem: saudou o “vigor” das manifestações mas condenou enfaticamente os “arruaceiros”. Não deu uma palavra sobre a brutalidade policial, que foi flagrante e precisaria ser enfaticamente condenada por uma questão de princípio, embora, evidentemente, a administração das polícias seja uma tarefa para os governadores.

Esse aspecto do discurso, em particular, mereceu muitas críticas nas redes sociais, exatamente por parte daqueles que apontavam a necessidade de aproveitar a indignação da classe média para alertar sobre a violência cometida cotidianamente contra os pretos e pobres.

Porém o problema é estrutural, e uma visita a um artigo do falecido criminalista Augusto Thompson ajudaria a esclarecer. Ele mostra que os policiais são treinados para incorporar o estereótipo de criminoso, associado à pobreza e à cor da pele, e afirma que a polícia que temos é a que convém ao sistema: “Venal, submissa ao jogo das pressões, atrabiliária, preconceituosa”.

O criminalista indica ainda as armadilhas discursivas que desviam o foco da questão estrutural: bastaria apresentar a “podridão policial” como problema conjuntural, fruto de defeitos e vícios individuais, e anunciar o saneamento – ou, como popularmente se diz, a “faxina”.

“Logo o órgão começará a cumprir suas atribuições de forma limpa, justa, correta, quando, então, viveremos no melhor dos mundos. Ciclicamente promovem-se campanhas de depuração nas hostes policiais, aplicam-se mais recursos no setor, aprimoram-se equipamentos, garantindo-se que já, já, a perfeição será atingida”.

(Bem a propósito, o secretário Beltrame, diante dos “possíveis excessos” cometidos na Maré, declarou: “Essas coisas têm de ser apuradas. Temos aqui mais de 1.500 policiais expulsos. Isso não é problema e, se tiver que expulsar mais, vamos expulsar”.)

Luta de classes

Thompson aponta a manobra operada através dos meios de comunicação com o objetivo de convencer a população de que a questão relativa à distribuição de uma justiça criminal perversa decorre de mero acidente, “ou, ainda, em último caso, porque de um povo que não presta fica inviável recrutar gente de bem para integrar o corpo policial (‘cada povo tem a polícia que merece’)”.

O resultado é que as pessoas esquecem que o problema está nos próprios fundamentos do sistema, feito para funcionar exatamente assim, e gastam suas energias “em brados de revolta contra a polícia que atualmente existe”.

Diante dos acontecimentos das últimas semanas, estaríamos, talvez, em condições de levantar essas questões estruturais: porque finalmente as pessoas estão percebendo o que é esta polícia é que precisaríamos, urgentemente, protestar e exigir o fim desta polícia, ou então não estaremos vivendo no que minimamente se poderia chamar de democracia.

Porém, passada a indignação inicial, talvez tudo volte a ser como sempre. Os acontecimentos na Maré, que vararam a madrugada de segunda para terça-feira, oferecem uma boa oportunidade para saber de que lado estamos e o que queremos de fato.

Afinal, como disse um poeta da periferia paulistana durante uma das recentes manifestações em São Paulo, “esta não é uma luta qualquer; é uma luta de classes”.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/desmilitarizacao_da_policia_a_pauta_urgente

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Os mortos bons e os maus

18/09/2012  - Leituras do MEIA HORA - Por Sylvia Debossan Moretzsohn (*)
- edição 712 do Observatório da Imprensa

Desculpe, leitor. Hoje não tem piada”, estampou o Meia Hora em manchete na terça-feira (11/9) sobre a foto aberta com os corpos dos seis jovens assassinados a caminho de uma cachoeira na Chatuba, na Baixada Fluminense.

Eram rapazes entre 16 e 19 anos que só queriam se divertir e foram torturados e mortos, aparentemente porque penetraram numa área dominada por traficantes.

As notícias sobre o tráfico local são vagas. Não se sabe – nós, da Zona Sul, nunca sabemos muito bem o que se passa na periferia – se não havia tráfico antes ou se havia e se intensificou com a fuga de traficantes de morros cariocas após a chamada “pacificação” de algumas áreas especialmente conflagradas no Rio de Janeiro. Mas o que importa não é isso.

Importa o gesto de pedido de desculpas, porque resume a atitude do jornal – e a indicação que dá a seus leitores – em relação ao tema geral da violência urbana: há mortos bons, que devem ser pranteados, e mortos maus, que devem ser execrados, ou – de acordo com a linguagem desse mesmo jornal – escrachados para virarem motivo de piada.

Estímulo ao extermínio
Jornais populares não costumam ser objeto de crítica de mídia, mas isto é um equívoco porque a formação de opinião não ocorre apenas no âmbito dos jornais de referência ou dos variados espaços qualificados disponíveis hoje na internet. Jornais populares desempenham historicamente esse papel de formação de opinião entre o público de baixa escolaridade e renda, especialmente a partir de seu noticiário sobre crime, reiterando estereótipos que ajudam a consolidar a crença na separação entre os bons e os maus e, por consequência, a apoiar políticas de segurança de extermínio dos criminosos. Políticas que, frequentemente, vitimam esse mesmo público, porque, afinal, estão voltadas para a repressão aos suspeitos de sempre, desde os tempos da escravidão.

Que outro sentido, a não ser o estímulo ao extermínio, teria a manchete Goleada da polícia: 11 bandidos são mortos em 5 favelas”, de 6/4/2006, ainda mais com a referência, logo abaixo, ao (outrora) “Mengão matador”, evidente intercâmbio semântico entre matança de pessoas e o êxito num jogo de futebol?

Ou, em pleno período de epidemia de dengue, a famosa capa Bopecida, o inseticida da polícia”, “terrível contra os marginais (17/4/2008), na qual o coronel da PM afirma que os marginais são os mosquitos do mal” e “o policial é um saneador? (Isso, apesar do erro elementar na origem do “gracejo”, porque, se inseticidas matam insetos, um Bopecida eliminaria os próprios policiais...).

Ou, na mesma linha, “Bope faz aniversário e apaga quatro” (20/1/2012), com a imagem de quatro velas correspondentes aos traficantes mortos, e balões de festa pretos com a marca da caveira trespassada por dois revólveres e um punhal?

Ou, ainda, “Polícia distribui azeitonas e ladrões de restaurante viram presunto”  (14/8/2012), óbvio jogo de palavras para tratar da repressão a um assalto a um restaurante na Tijuca?

Não que os jornais de referência, fabricados nas mesmas empresas, tratem de modo não maniqueísta o noticiário policial. Mas o fazem de maneira mais sutil, pois se dirigem a outro tipo de público. E jamais tripudiariam de vítimas como o dono de uma empresa de cereais assassinado e esquartejado pela mulher, que no Meia Hora de 7/6/2012 foi destacada em foto com a manchete “Essa aí não pipoca” e o subtítulo “Viúva encara a polícia de frente, confessa que estourou com dono da Yoki e botou o corpo em saquinhos”.

Exploração do grotesco
O Meia Hora nasceu como um fenômeno editorial: lançado em setembro de 2005, já no ano seguinte aparecia em nono lugar na listagem do Instituto Verificador de Circulação (IVC), com quase 130 mil exemplares diários, e foi subindo até 2008, com 231 mil, para então decair e retornar praticamente aos números iniciais: são pouco menos que 137 mil em 2011 e o primeiro trimestre de 2012 aponta uma queda relativa de quase 10% da circulação. Ainda assim, é o terceiro maior diário do Rio de Janeiro, atrás apenas do Extra e de O Globo, voltados a outras parcelas de público. Em 2011, estava em décimo lugar no ranking nacional.

Acompanhando a tendência para o setor, o Meia Hora se afastou do estilo “espreme que sai sangue” típico da tradição dos jornais populares e adotou a exploração do grotesco, o que lhe garantiu reiterados elogios por parte de uma certa intelectualidade entusiasmada com a criatividade dos responsáveis pelas capas, que é o que atrai a atenção e garante a vendagem entre o público popular (nos dias de semana, o jornal custa R$ 0,70).

Pausa para pensar
Enquanto o grotesco se aplica a cenas bizarras da vida cotidiana ou a celebridades do mundo do futebol ou da televisão – aquilo que normalmente se encaixaria na definição de fait-divers –, não haveria muito a discutir além do gosto duvidoso das manchetes e as implicações sobre a exposição das pessoas ao ridículo, embora, no caso das celebridades, esse tipo de situação faça parte do jogo. Além do mais, não haveria grotesco sem o escárnio ou o duplo sentido.

Mas tudo muda de figura quando se trata da eliminação de seres humanos, quaisquer que sejam os motivos para isso.

As desculpas na capa daquela terça-feira são dessas surpresas que podem conduzir a uma pausa para pensar.

A rigor, deveriam se estender a todas as inúmeras edições em que a morte virou motivo de galhofa.

Se pelo menos servirem para levar à reflexão aqueles que sempre elogiaram a “criatividade” do jornal, já terão valido a pena.


(*) Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de "Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

Fonte:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed712_os_mortos_bons_e_os_maus