Mostrando postagens com marcador desenvolvimento. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador desenvolvimento. Mostrar todas as postagens

sábado, 11 de janeiro de 2014

Capitalismo sustentável, existe isso?

13/12/2013 - “O capitalismo sustentável é uma contradição em seus termos” - Eduardo Viveiros de Castro
- Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

Crítico feroz do neoliberalismo, de seus ícones e verdades, de suas políticas de “crescimento” que destroem a natureza, do consumo que empobrece as vidas, do Estado que as administra (não sem constrangimentos) e da esquerda (conservadora e antropocêntrica).

A felicidade, diz, tem muitos outros caminhos”.

Enquanto esperamos que a Tinta Limón Ediciones termine a edição (mais ou menos alterada) do livro de entrevistas com Eduardo Viveiros de Castro, o sítio Lobo Suelto! convida à leitura da última – muito transcendental – conversa com o antropólogo brasileiro. A entrevista é de Julia Magalhães, publicada nesse sítio em 04/12/2013. A tradução é do Cepat.

Qual é a sua percepção acerca da participação política da sociedade brasileira?
Prefiro começar com uma “des-generalização”: vejo a sociedade brasileira profundamente dividida em relação à visão sobre o país e seu futuro. A ideia de que existe “um” Brasil – no sentido de que as ideias de “unidade” e “brasilidade” não são triviais – parece uma ilusão politicamente conveniente (para os setores dominantes), mas antropologicamente equivocada. Há, pelo menos, dois ou muito mais “Brasis”.

O conceito geopolítico de estado-nação unificado não é descritivo, mas normativo.

Há rachaduras profundas na sociedade brasileira.

Há setores da população com uma vocação conservadora enorme, que não necessariamente compreendem uma classe específica, apesar de que as chamadas “classes médias”, ascendentes ou descendentes, estão bem representadas aqui.

Grande parte da chamada “sociedade brasileira” – temo que seja a maioria – se sentiria muito satisfeita com um regime autoritário, especialmente se conduzido midiaticamente por uma autoridade paternal de personalidade forte.

Mas, esta é uma das coisas que a minoria liberal que existe no país – e, inclusive, é uma certa minoria “progressista” – prefere manter-se envolta em um silêncio constrangedor.

Repete-se o tempo todo, e para qualquer propósito, que o povo brasileiro é democrático, “cordial e amante da liberdade e da fraternidade, o que é uma ilusão muito perigosa.

É assim que vejo a “participação política do povo brasileiro”: como a de um povo fragmentado, dividido, polarizado. Uma polarização que não necessariamente condiz com as divisões políticas (partidos oficiais etc.).

O Brasil segue como uma sociedade visceralmente escravocrata, obstinadamente racista e moralmente covarde. Enquanto não nos darmos conta deste inconsciente, não iremos “em frente”.

Em outras ocasiões, fui claro: insurreições esporádicas e uma certa indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos, é o que se evidência entre os mais pobres – ou os mais alheios ao drama montado pelos setores de cima, na escala social – que inspiram modestas utopias e moderado otimismo por parte daqueles que a história situou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.

O que é necessário para mudar isto?
Falar, resistir, insistir, olhar além do imediato. E, obviamente, educar.

Mas, não “educar o povo” (como se a elite fosse muito educada e devesse – ou pudesse – conduzir o povo até um nível intelectual superior), mas criar as condições para que as pessoas se eduquem e acabem educando a elite – e, quem sabe, inclusive, se livrem dela.

O panorama da educação do Brasil é, hoje, o de um deserto. Um deserto!

E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar neste deserto. Pelo contrário, tenho pesadelos de conspirações, em que sonho que os projetos de poder não se interessam realmente em modificar o panorama da educação do Brasil: domesticar a força de trabalho – se é isto que está se tentando (ou planejando) – não é, de nenhuma maneira, o mesmo que educar.

Isto é apenas um pesadelo, obviamente: não é assim, não pode ser assim... Espero que não seja assim.

Mas o fato é que não se vê uma iniciativa para mudar a situação.

Considerando a espetacular abertura de dezenas de universidades sem a mínima infraestrutura física (para não falar de boas bibliotecas, um luxo quase impensável no Brasil), enquanto a escola secundária segue muito deficitária, com professores que ganham uma miséria, com as greves dos professores universitários reprimidas, como se fossem ladrões.

A “falta” de educação – que é uma forma de instrução muito particular e perversa, imposta de cima para baixo – é talvez o principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de grande parte da sociedade brasileira. Por fim, é urgente uma reforma radical da educação brasileira.

Em “A floresta e a escola”, Oswald de Andrade sonhava. Infelizmente, parece que já deixamos de ter uma e ainda não temos a outra. Pois sem escola, já não cresce a floresta.

Por onde se começa a reforma da educação?
Começa-se de baixo, é claro, a partir da escola primária. A educação pública deveria ter uma política unificada, orientada a partir de uma – com perdão da expressão – “revolução cultural”.

Ela não será alcançada através da redistribuição da renda (ou melhor, com o aumento da quantidade de migalhas que caem da mesa dos ricos) apenas para comprar um televisor e para assistir ao BBB, e ver a mesma merda.

Não é assim que se redistribui a cultura, a educação, a ciência e a sabedoria. Deve-se oferecer ao povo as condições de fazer cultura ao invés de consumir aquela produzida “para” eles.

Está havendo uma melhora nos níveis de vida dos mais pobres, e talvez também nos da velha classe média. Uma melhora que vai durar todo o tempo em que a China continuar comprando do Brasil ao invés de comprar da África.

Mas, apesar da melhora no chamado “nível de vida”, não vejo nenhuma melhora real na qualidade de vida, na vida cultural ou espiritual, se me permite usar essa palavra arcaica. Pelo contrário.

Será que é necessário destruir as forças vivas, naturais e culturais das pessoas, do povo brasileiro de instrução, para construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.

Neste cenário, atualmente, quais são os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira?
Vejo a “sociedade brasileira” magnetizada – ao menos em termos de sua autorrepresentação normativa, por parte dos meios de comunicação – por um patriotismo oco, uma espécie de besta orgulhosa, deslumbrados pela certeza de que, de uma vez por todas, o mundo se inclinou frente ao Brasil.

Copa do Mundo, Jogos Olímpicos...

Não vejo mobilização acerca de temas urgentíssimos, como poderiam ser o da educação e da redefinição da nossa relação com a terra, quer dizer, com o que há debaixo do território.

Natureza e cultura, enfim, que agora se encontram, não apenas, mediadas, midiatizadas, pelo mercado, mas mediocrizadas por ele.

O Estado se uniu ao Mercado contra a natureza e a cultura.

E estas questões não mobilizam?
Existe certa preocupação da opinião pública por questões ambientais, um pouco mais do que em relação às questões da educação, o que não deixa de ser algo para se lamentar, pois as duas vão juntas.

Contudo, tudo me parece “too little, too late”: muito pouco e muito tarde. Está se demorando tempo demais para difundir a consciência ambiental. Uma conscientização que o planeta requer, com absoluta urgência, de todos nós.

E esta inércia se traduz na escassa pressão sobre os governos, corporações e empresas que apenas investem nesse conto chinês do “capitalismo verde”.

Em particular, evidencia-se muito pouca pressão sobre as grandes empresas, sempre distraídas e incompetentes quando se trata do problema da mudança climática.

Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que conta com o apoio desinformado (é o que se deduz) de uma parte significativa da população do sul e do sudeste, para onde irá a maior parte da energia que não for vendida – a um preço extremamente barato – para multinacionais de alumínio fazerem latas de saquê – no baixo Amazonas – para o mercado asiático.

Necessitamos de um discurso político mais agressivo em relação às questões ambientais. É necessário, sobretudo, falar com as pessoas, chamar a atenção a respeito de que o saneamento básico é um problema ambiental, de que a dengue é um problema ambiental.

Não se pode separar a dengue do desmatamento e do saneamento. Temos que convencer aos mais pobres de que melhorar as condições ambientais é assegurar as condições de existência das pessoas.

No entanto, a esquerda tradicional, como está sendo demonstrado, apresenta-se completamente inútil para articular um discurso sobre os temas ambientais.

Quando suas cabeças mais pensantes falam, parece haver a sensação de estar “indo para trás”, tratando desastradamente de capturar e de reduzir um tema novo ao já conhecido, um problema muito real que não está em seu DNA ideológico e filosófico.

Mesmo quando a esquerda não se alinha com o insustentável projeto “ecocida” do capitalismo, revela sua origem comum a este, com as névoas e obscuridades da metafísica antropocêntrica do cristianismo.

Enquanto continuarmos sustentando que melhorar a vida das pessoas é lhes dar mais dinheiro para comprar uma televisão, ao invés de melhorar o saneamento, abastecimento de água, saúde e educação primária, nada mudará.

Escuta-se o governo dizer que a solução é consumir mais, mas não se percebe a menor ênfase para abordar estes aspectos literalmente fundamentais da vida humana nas condições do presente século.

Isto não significa, obviamente, que os mais favorecidos pensem melhor e que possam ver além dos mais pobres. Não há nada mais estúpido que estas Land Rovers que vemos em São Paulo ou no Rio de Janeiro, andando com adesivos do Greenpeace, de slogans ecológicos, coladas no para-brisa.

As pessoas vão às ruas nestes 4x4 e bebem um diesel venenoso... Gente que pensa que o contato com a natureza é fazer um Rally no Pantanal...

É uma questão difícil: falta educação básica, falta o compromisso dos meios de comunicação, falta agressividade política no tratamento da questão do meio ambiente.

E sempre que se pensa que existe um problema ambiental, algo que está longe de ser o caso dos governantes atuais, estes mostram, ao contrário, e, por exemplo, a preocupação em formar jovens que possam manobrar com segurança e, ao mesmo tempo, mantém firme sua aposta no transporte individual, em carros, em uma cidade como São Paulo, em que já não cabe nem uma agulha.

Um governo que não se cansa de se orgulhar pela quantidade de carros produzidos por ano. É absurdo utilizar os números da produção de veículos como um indicador de prosperidade econômica.

Essa é uma proposta podre, uma visão estreita e uma proposta muito empobrecedora para o país.

Você está dizendo que os apelos ao consumo vêm do próprio governo, mas também há um apelo muito forte procedente do mercado. Como avalia isto?
O Brasil é um país capitalista periférico.

O capitalismo industrial-financeiro é visto por quase todo o mundo como uma evidência palpável, o modo inevitável em que se vive no mundo atual.

Diferentemente de alguns companheiros de caminhada, eu entendo que o capitalismo sustentável é uma contradição em seus termos.

E que nossa atual forma de vida econômica é realmente evitável. Então, simplesmente, nossa forma de vida biológica (quer dizer, a espécie humana) não será mais necessária e a Terra irá favorecer outras alternativas.

As ideias de crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, ou a ética da suficiência são incompatíveis com a lógica do capital. O capitalismo depende do crescimento contínuo.

A ideia de manter certo nível de equilíbrio em relação ao intercâmbio de energia com a natureza não se ajusta na matriz econômica do capitalismo.

Este impasse, gostemos ou não, será “resolvido” pelas condições termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que pensávamos. As pessoas fingem não saber o que está se passando, preferem não pensar nisso, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o Brasil, pelo contrário, sempre se prepara para o melhor.

Este otimismo nacional frente a uma situação planetária é extremamente preocupante, assim como perigoso... E a aposta de que vamos bem dentro do capitalismo é um tanto ingênua, se não desesperada...

O Brasil segue como um país periférico, uma plantação “high tech” que abastece com matérias-primas o capitalismo central. Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne bovina, para os países industrializados: são estes quem têm a última palavra, os que controlam o mercado.

Estamos bem neste momento, mas de modo nenhum em condições de controlar a economia mundial. Se a coisa muda um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil simplesmente pode perder esse lugar no qual se encontra hoje.

Para não mencionar, claro, o fato de que estamos vivendo uma crise econômica mundial que se tornou explosiva em 2008, que está longe de terminar e que ninguém sabe aonde irá parar.

O Brasil, neste momento de crise, é uma espécie de contracorrente do tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Deve-se falar sobre estas coisas.

E como você avalia a macropolítica em relação a esta realidade, as políticas macroeconômicas, com as realidades rurais do Brasil, os indígenas ribeirinhos?
O projeto de Brasil, que tem a atual coalizão do governo sob o mando do Partido dos Trabalhadores (PT), considera os ribeirinhos, os indígenas, os campesinos, os quilombolas como pessoas com atraso, um atraso sociocultural, e que devem ser conduzidas para outro estado.

Esta é uma concepção tragicamente equivocada.

O PT é visceralmente paulista, o projeto é uma “paulistização” do Brasil.

Transformar o interior do país em um país de fantasia: muita festa de peão de vaqueiro, caminhonetes 4x4, muita música country, botas, chapéus, rodeios, touros, eucaliptos, gaúchos. E do outro lado, cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo.

O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar para civilizar, para domar, para obter benefícios econômicos, para capitalizar.

Em uma lamentável continuidade entre a geopolítica da ditadura e a do governo atual, este é o velho “bandeirantismo” que hoje faz parte do projeto nacional.

Mudaram as condições políticas formais, mas a imagem do que é ou deveria ser a civilização brasileira, daquilo que é uma vida digna de ser vivida, do que é uma sociedade que está em sintonia consigo mesmo, é muito, muito similar.

Estamos vendo hoje uma ironia muito dialética: o governo, liderado por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura, realizando um projeto de sociedade que foi adotado e implementado por esta mesma ditadura: a destruição da Amazônia, a mecanização, a “transgenização” e a “agrotoxicação” da agricultura, migração induzida pelas cidades.

E por detrás de tudo isso, certa ideia de Brasil que se vê, no início do século XXI, como se devesse ser, ou como se fosse, o que os Estados Unidos eram no século XX.

A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, em vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywood nos anos 50: muitos carros, muitas autopistas, muitas geladeiras, muitas televisões, todo mundo feliz. Quem pagou por tudo isso? Entre outros, nós. Quem irá nos pagar agora? A África, outra vez? Haiti? Bolívia? Para não falar da massa de infelicidade bruta gerada por esta forma de vida (e de quem se enriquece com isto).

Isto é o que vejo com tristeza: cinco séculos de maldade continuam aí.

Sarney é um capitão hereditário, como os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios.

Nosso governo “de esquerda” governa com a permissão da oligarquia e necessita destes capangas para governar. Pode-se fazer várias coisas, desde que a melhor parte fique com ela.

Toda vez que o governo ensaia uma medida que a ameaça, o Congresso – que sabemos como é eleito –, a imprensa bombardeia, o PMDB sabota.

Há uma série de becos para os quais eu não vejo saída ou que não têm saída no jogo da política tradicional, com suas regras. Vejo um caminho possível pelo lado do movimento social – que hoje está desmobilizado.

Mas, se não for pelo lado do movimento social, seguiremos vivendo neste paraíso subjetivo de que um dia tudo vai ficar bem.

O Brasil é um país dominado politicamente pelos grandes proprietários de terra e grandes empreiteiros que jamais sofreram uma reforma agrária e ainda dizem que atualmente não é mais necessário fazê-la.

Acredita que as coisas começarão a mudar quando chegarmos a um limite?
É provável que a crise econômica mundial afete ao Brasil em algum momento próximo. Contudo, o que vai ocorrer, com certeza, é que o mundo vai passar por uma transição ecológica, climática e demográfica muito intensa durante os próximos 50 anos, com epidemias, fome, secas, catástrofes, guerras, invasões.

Estamos vendo como as condições climáticas mudaram muito mais rápido do que pensávamos. E há grandes possibilidades de desastres, de perdas de colheitas, de crises alimentares.

Neste meio tempo, hoje em dia, o Brasil até se beneficia, mas um dia a fatura irá chegar. Climatologistas, geofísicos, biólogos e ecologistas são profundamente pessimistas sobre o ritmo, as causas e consequências da transformação das condições ambientais em que se desenvolve a vida atual da espécie. Por que deveríamos ser otimistas?

Acredito que se deve insistir que é possível ser feliz sem ficar hipnotizado por este frenesi de consumo que os meios de comunicação impõem. Não sou contrário ao crescimento econômico no Brasil, não sou tão estúpido para pensar que tudo se resolveria mediante a distribuição do dinheiro de Eike Batista entre os agricultores do nordeste semiárido ou cortando os subsídios à classe política-mafiosa que governa o país.

Não que não seja uma boa ideia. Sou contrário, isto sim, ao crescimento da “economia” do mundo, e sou a favor de uma redistribuição das taxas de crescimento.

E também sou, obviamente, a favor de que todos possam comprar uma geladeira e, por que não, uma televisão. Sou a favor de uma maior utilização das tecnologias solar e eólica. E estaria encantado em deixar de dirigir o carro, se pudéssemos trocar este meio de transporte absurdo por soluções mais inteligentes.

E como vê os jovens neste contexto?
É muito difícil falar de uma geração a qual não se pertence. Nos anos 1960, tínhamos ideias confusas, mas ideais claros: pensávamos que poderíamos mudar o mundo e imaginávamos que tipo de mundo queríamos. Acredito que, em geral, os horizontes utópicos têm retrocedido enormemente.

Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou a sua atenção?
No Brasil, a aceleração difusa do que poderíamos chamar de uma cultura “agro-sulista”, tanto da direita quanto da esquerda, pelo interior do país.

Vejo isto como a consumação do projeto de branqueamento da nacionalidade, deste modo muito peculiar da elite governante no poder acertar as contas com seu próprio passado (passado?) escravista.

Outra mudança importante é a consolidação de uma cultura popular vinculada ao movimento evangélico popular. O evangelismo da Igreja Universal do Reino de Deus associa, por certo, a religião ao consumo.

O como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Essa é uma das poucas coisas a respeito das quais sou muito otimista: o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total dos meios de comunicação de cinco ou seis conglomerados midiáticos.

Esse enfraquecimento está muito vinculado à proliferação das redes sociais, que são grande novidade na sociedade brasileira e que estão contribuindo para que circule um tipo de informação que não tinha lugar na imprensa oficial.

E estão habilitando formas, antes impossíveis, de mobilização. Há movimentos inteiramente produzidos pelas redes sociais, como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada”, os diversos movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas.

As redes são nossa saída de emergência frente à aliança mortal entre o governo e os meios de comunicação. São um fator de desestabilização – no melhor sentido da palavra – do poder dominante. Se puder ocorrer alguma mudança importante na cena política, acredito que será através da mobilização pelas redes sociais.

E por isso se intensificam as tentativas de controlar estas redes, em todo o mundo, por parte do poder constituído.

Contudo, controlar o acesso é um instrumento vergonhoso, como o caso do “projeto” da banda larga brasileira, que parte do reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade.

Uma decisão tecnológica e política antidemocrática e antipopular, equivalente ao que se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à circulação das produções culturais.

Parece, às vezes, que haveria uma conspiração para evitar que os brasileiros tenham uma boa educação e um acesso à Internet de qualidade. Essas duas coisas andam de mãos dadas e têm o mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social que, diga-se de passagem, é necessário vigiar com muito cuidado.

Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no Ministério do Meio Ambiente, na época de Marina Silva, criticava-me dizendo que meu discurso, feito à distância do Estado, era romântico e absurdo, que tínhamos que tomar o poder.

Eu respondia que, se tomássemos o poder, tínhamos que, sobretudo, saber como mantê-lo depois, pois aí é que a coisa se complica.

Não tenho um desenho, um projeto político para o Brasil, eu não pretendo saber o que é melhor para o povo brasileiro em geral, e em seu conjunto. Só posso expressar minhas preocupações e indignações, apenas aí é que me sinto seguro.

Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou a esta altura tinha – as condições geográficas, ecológicas, culturais para desenvolver um novo estilo de civilização, que não seja uma cópia empobrecida do modelo da América do Norte e da Europa.

Poderíamos começar a experimentar, timidamente, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna.

Todavia, imagino que se algum país do mundo irá fazer isso, esse país é a China.

É certo que os chineses têm 5.000 anos de história cultural praticamente contínua e o que nós temos para oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste história de etnocídio, deliberado ou não.

Ainda assim, é imperdoável a falta de inventividade da sociedade brasileira – ao menos de sua elite política e intelectual – que já perdeu várias ocasiões de gerar soluções socioculturais – tal como o povo brasileiro historicamente ofereceu – e articular, assim, uma civilização brasileira minimamente diferente da que propõem os comerciais de televisão.

Temos que mudar completamente e, primeiramente, a relação secularmente depredadora da sociedade nacional com a natureza, com a base físico-biológica de sua própria nacionalidade.

Já é hora de começar uma nova relação com o consumo, menos ansioso e mais realista frente à situação de crise atual.

A felicidade tem muitos outros caminhos.

Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/526606-o-capitalismo-sustentavel-e-uma-contradicao-em-seus-termos-diz-eduardo-viveiros-de-castro

Para ler mais:

- 20/04/2008 - "Os índios incomodam porque suas terras, homologadas e reservadas, saem do mercado fundiário’ - entrevista com Eduardo Viveiros de Castro
- 14/02/2007 - Uma sociedade de indivíduos. Uma reflexão antropológica de Eduardo Viveiros de Castro
- 11/10/2013 - Capitalismo e soberania alimentar
- 02/07/2013 - "O capitalismo é a neurose da humanidade", diz filósofa Renata Salecl
- 09/05/2013 - "Ecossocialismo, alternativa contra o capitalismo" - entrevista com Michael Löwy
- 04/05/2013 - O que Francisco pensa sobre capitalismo, emprego e globalização? - Thomas Reese
- 16/01/2013 - O capitalismo e a economia política da mudança climática
- 04/10/2011 - "É preciso sair do capitalismo" - Marcela Valente

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Violências invisíveis

28/10/2013 - Ieda Estergilda de Abreu
- Revista Fórum, edição 125

A pesquisadora Luciane Lucas dos Santos [foto] fala sobre como o atual modelo de desenvolvimento e a sociedade de consumo se relacionam com as formas de violência presentes em nosso cotidiano

Como o atual modelo de desenvolvimento, adotado não apenas no Brasil, mas também em outros em países, afeta a dignidade humana?

A questão do modelo neoextrativista de desenvolvimento, a violência intrínseca a ele, o consumo e a questão indígena brasileira, temas entrelaçados, são estudados e discutidos pela professora e pesquisadora em Sociologia do Consumo, Luciane Lucas dos Santos.

Carioca com doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela hoje é pesquisadora pós-doc no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em Portugal, e em junho esteve em São Paulo, onde conduziu o 105º Fórum do Comitê de Cultura de Paz, parceria Unesco-associação Palas Athena.

Na entrevista abaixo, Luciane aborda as inúmeras formas de violência presentes no nosso cotidiano e como a sociedade de consumo e o modelo de desenvolvimento nutrem a invisibilidade desses fenômenos.

Fórum – Como se manifesta a violência hoje, na sua avaliação?
Luciane Lucas dos Santos – Muitos imaginam a violência como sendo apenas algo que tem a ver com o mal que um vai causar ao outro, com o contexto da guerra, da limpeza étnica, da violência das cidades. Há muitas formas de violência.

Caminhões com ameixas apodrecendo ao sol, que não chegam ao território palestino, é, por exemplo, uma forma de violência. 

Pode-se pensar também na humilhação social e na invisibilidade de algumas minorias – caso dos moradores de rua – como uma forma agressiva e silenciosa de violência.

Morador de rua em São Paulo:
uma forma de violência não
identificada pela sociedade em geral
(Valter Campanato / ABr)
É comum pensarmos que morador de rua quer vida fácil, não faz nada, não gosta de trabalhar. Não é verdade.

Estive com alguns numa feira de trocas embaixo do Viaduto do Glicério [região central de São Paulo] e aprendi muito.

Muitos estão diretamente envolvidos na organização da feira de trocas do Glicério. 

Trabalham montando e desmontando as barracas, na limpeza dos banheiros, no apoio às tarefas da cozinha. Recebem mirucas (moeda social) por este trabalho e, com elas, obtêm aquilo de que necessitam – alimento, roupas, produtos de higiene pessoal.

Nós temos uma concepção equivocada sobre a população em situação de rua. Muitos trabalham. 

Tem gente que veio de outros estados, da construção civil, perderam o emprego, não tiveram como voltar e ficaram por aqui. Muitos não voltam para casa, para sua terra, por vergonha.

A razão para se estar na rua também pode ser diversa: o abandono e a desagregação familiar, assim como o desemprego, estão entre os motivos. A droga e o álcool chegam, às vezes, depois. A invisibilidade social a que eles são muitas vezes relegados é, sem dúvida, uma forma de violência.

Fórum – A senhora diz que o modelo de desenvolvimento de um país pode vir a ser, paradoxalmente, um vetor de violência. Como é isso?
Luciane – As ideias de progresso e desenvolvimento não raro transformam-se em desrespeito às diversidades e às diferentes temporalidades que marcam as múltiplas formas de organização da vida.

O Brasil faz parte de um grupo de países que têm apostado no neoextrativismo – ou seja, trata-se de uma aposta nos hidrocarbonetos, na mineração, no alargamento dos latifúndios. 
As correlações, no entanto, nos escapam.

O hidrocarboneto pode estar no batom; quanto mais você compra, mais petróleo é necessário; quanto mais renova o celular, mais é necessário o coltan.

Muita gente não sabe que por trás da sede de novidades tecnológicas (laptops, celulares, pads), existe uma demanda crescente por este minério – o coltan (columbita-tantalita) – e que, muitas vezes, a demanda de coltan no mercado internacional implicará o acirramento da guerra civil em países como a República Democrática do Congo, onde há uma grande quantidade desse minério.

Não se trata de não ter celular, mas de discutir a violência invisível que habita os produtos, serviços e tudo mais que está no nosso cotidiano.

Fórum – Qual o papel do consumo nesse contexto?
Luciane – A maneira como eu me visto, onde eu como, que lugares eu frequento, tudo isto diz algo sobre mim. Os hábitos de consumo estão diretamente relacionados à questão da identidade.

Há um mito, aqui, que precisa ser desfeito: o de que o consumo seja um ato individual. Embora ele pareça ancorar-se na escolha do indivíduo, o repertório que sustenta e valida o consumo é social.

Isto quer dizer que, embora os indivíduos re-signifiquem, a todo momento, os conteúdos que recebem eles estão sempre presos a uma teia de significados validada socialmente.

Outra questão a considerar é que, no mundo contemporâneo, os nossos afetos têm sido mediados pelo mundo dos bens. Há riscos nisto.

Uma mãe atarefada que leva o filho, no fim do dia, para comer numa destas grandes lojas de fast food está tentando propiciar à criança uma experiência de bem-estar instantânea.

Ela pode pensar: “meu filho, não temos muito tempo para estarmos juntos…. quero que esta experiência seja alegre pra você… se você gosta tanto de ficar aqui, então vambora”.

Mas de todas as coisas que precisamos repensar acerca do consumo, uma me parece urgente: o reconhecimento de que o consumo constitui um sistema de classificação social.

Este modelo de consumo que hoje alimentamos contribui para que se naturalize uma hierarquia entre diferenças. Hierarquia entre gêneros, etnias e classes sociais. Mas, também, entre saberes, entre temporalidades, entre modos de estar no mundo e organizar a reprodução material da vida.

Fórum – O que o carro significa nesse contexto?
Luciane – Tem tudo a ver, estamos falando da violência estrutural, cotidiana e que tem muito da nossa aceitação. E aí entram as relações de trabalho.

Falemos do combustível que alimenta nossos carros – carros que associamos ao conforto.

Um trabalhador, no canavial, corta 12 toneladas diárias de cana. Ele anda quase nove quilômetros para cortar essas toneladas, segundo uma pesquisa da Embrapa. Faz cerca de 800 trajetos diários, dá 133 mil golpes de podão por dia. É uma violência silenciosa de que não temos notícia.

Ainda assim, queremos que aumente o valor do etanol no mercado internacional porque significa que o Brasil vai crescer. De que modelo de desenvolvimento estamos falando, afinal?

Fórum – E sobre os impactos sociais e culturais por trás do nosso consumo?
Luciane – Vamos ao caso dos megaeventos, tendo em vista o “consumo” da cidade.

Veja o que se passa no Rio de Janeiro. Bairros inteiros estão sendo afetados para facilitar o tráfego entre o Galeão e a Barra. 

Em São Paulo são organizadas visitas a Paraisópolis, que fica ao lado do Morumbi, por R$ 300.

Você sai da Vila Olímpia, por exemplo, e vai até Paraisópolis fazer um city tour.  Os pobres viram, simplesmente, objeto de consumo.

De repente, torna-se in subir o bondinho do Alemão ou ir aos restaurantes bacanas que agora estão dentro das favelas. 

Usando um termo empregado por Boaventura de Sousa Santos, estamos diante de uma relação de “apropriação e violência”.

A favela tem sido espetacularizada.

Não estou dizendo que tudo o que esteja acontecendo em função da Copa seja ruim, que as pessoas não estejam se reorganizando e criando oportunidades, mas quando transformamos a favela noutra coisa, estabelecemos com ela uma relação de violência.

Fórum – A questão indígena é outro tema de sua pesquisa. Como encaixaria no contexto da violência?
Luciane – Vou dar alguns exemplos do que tem acontecido com os povos indígenas para mostrar a situação de insegurança jurídica e fundiária.

Inúmeros documentos – entre projetos de lei, decretos etc – tratam de questões candentes sob uma perspetiva claramente anti-indígena.

A PEC 215 e a PEC 38 são bons exemplos. A PEC 215 propõe que seja do Congresso Nacional a responsabilidade pela demarcação das terras indígenas e quilombolas (já a PEC 38 propõe que seja o Senado a fazê-lo).

Isto significa, todos sabemos, uma barreira política aos processos de demarcação.

A Portaria 303, por sua vez, em consonância com o Código Florestal, separa os povos originários dos recursos que estão em suas terras. Ou seja, restringe o usufruto dos bens e recursos por parte destas populações, ainda que tais bens e recursos se encontrem em terras indígenas.

Se o Código Florestal abre o caminho ao retrocesso em relação aos direitos coletivos, a Portaria 303 pavimenta a estrada que confirma o grande latifúndio. Mas a questão não pára aí: a partir da Portaria 303, as demarcações já estabelecidas podem ser revistas e reconsideradas.

Outro exemplo é o projeto de lei 1610/96, bem como seu texto substitutivo, que complementam o cenário de retrocesso. 

Versam, ambos, sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas – sempre, é claro, com a alegação do interesse nacional. Segundo este Projeto de Lei, alcunhado de PL da Mineração, a consulta pública passa a ser um ato mais simbólico do que deliberativo e não interfere na continuidade do processo de exploração mineral.

Fórum – O que fazer?
Luciane – Primeiro, precisamos entender que dentro da diferença existem diferenças, para podermos perceber a dignidade de forma mais ampla.

Na luta das mulheres, por exemplo, é comum acharmos que o movimento feminista é um só, que vai reunir todas as lutas numa luta única. Há também violência quando as mulheres são tratadas como se falassem em uníssono, como se seus mundos fossem de uma única cor ou matiz.

Os problemas das mulheres não são sempre os mesmos; tampouco elas têm uma essência platônica a compartilhar.

Cair nesta cilada epistemológica é desconsiderar que os problemas vividos por estas mulheres podem ser ampliados diante de outras questões vividas na própria carne, como, por exemplo, o racismo, a intolerância religiosa, o preconceito com a opção sexual e as diferenciações de classe que abatem ainda mais o corpo da mulher pobre.

Já ouvi de uma mulher da periferia de São Paulo dizendo: “Quero saber como é que vocês podem me apoiar no final de semana, que é quando o bicho pega.”

É uma pergunta interessante. As condições de resposta de uma mulher de classe média à situação de violência doméstica não são as mesmas de uma mulher que vive na periferia.

Assim, não dá para, em nome dos direitos humanos, acharmos que a luta é a mesma para todo mundo; não necessariamente ela será.

Fórum – A senhora diz também que precisamos repensar a paz.
Luciane – Sim, fala-se muito na cultura de paz, mas acho importante pensarmos de que paz estamos falando e como ela é possível.

Evocar a paz implica, primeiro, não esquecer a diferença dentro das diferenças e perceber que não é possível evocar a paz, a dignidade, passando por cima de desigualdades e dívidas históricas.

Não estou dizendo que a paz não é possível, quero deixar claro. Contudo, é importante ter em conta que esta paz branca que tudo dilui – inclusive a história – é também violenta.

A cultura de paz só poderá efetivamente acontecer mediante efetivos processos de tradução intercultural e, portanto, de respeito às diferenças.

A tradução intercultural, nos termos propostos por Boaventura de Sousa Santos, configura-se como um antídoto poderoso contra o esgarçamento do tecido social, constituindo também uma forma preciosa de articulação política das minorias silenciadas.

Queremos a paz, sim, mas uma paz justa, que não seja construída em cima do silenciamento e da diluição da diferença.

Fonte:
http://revistaforum.com.br/blog/2013/10/violencias-invisiveis/