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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Nossa terra cada vez menos verde e amarela

06/02/2014 - Rogério Grassetto Teixeira da Cunha (*)
Correio da Cidadania

A coisa na área ambiental anda ruim, muito ruim. E poderá piorar neste ano. As razões para este pessimismo são muitas.

Como o fato de que o mostrengo da usina de Belo Monte, no rio Xingu, deve entrar em funcionamento em sua primeira etapa talvez já no final de 2014.

É neste ano que provavelmente acontecerá o remanejamento das famílias e a supressão da vegetação das ilhas e de boa parte das margens do Xingu ao longo do futuro lago.

O governo, fazem já dois anos, ou muito mais que isso, se contarmos toda a história das tentativas ao longo das últimas décadas, lançou-se de cabeça na insanidade de construir esta 
famigerada usina.

Não repetirei aqui toda a história de erros, ilegalidades e mentiras acumulados ao longo deste percurso, analisada extensamente nesta coluna por Rodolfo Salm.

Porém, agora, com a obra já bem encaminhada, percebi alguns setores da grande mídia mostrando algumas de suas nefastas consequências ou “preocupando-se” com problemas ambientais na região. 

Pode ser uma mera coincidência, claro, ou um viés pessoal meu, pois esporadicamente pipocaram aqui e ali algumas matérias mostrando os problemas da obra. Mas achei o “timing” no mínimo curioso (seria por causa da eleição, pergunto retoricamente?).

Em uma série de reportagens da rádio CBN (aqui e aqui), por exemplo, foi analisada a mineração na região amazônica, e mencionada a instalação da mineradora de ouro canadense Belo Sun na região de Altamira, próximo à nova usina, com um tênue espaço para os impactos da mineração na região.

Faz tempo que os ambientalistas chamam a atenção para o fato de que um dos principais motivos para a construção de hidrelétricas na Amazônia é fornecer energia barata para projetos de mineração, que vão ganhar cada vez mais espaço na Amazônia. É o amarelo do ouro de nossa bandeira, indo para fora do país, como desde sempre.

no site da Folha, um material muito bem produzido abre caminho para que a população desinformada do nosso “sul 
maravilha” conheça um pouco dos impactos da obra.

Só as fotos do canteiro de obras deixam, sob o ponto de vista da natureza, qualquer filme da série “Sexta-Feira 13” no chinelo.

Apesar disto tudo, a usina será ligada, a exploração mineral vai ocorrer na região e o desmatamento e degradação vão aumentar o volume de suas trombetas do apocalipse.

Aqui é o verde da nossa bandeira sendo dilapidado também.

Não é com nenhuma felicidade (muito pelo contrário) que diremos: nós avisamos. Nós, ambientalistas, sempre ressaltamos alguns dos reais motivos das obras: favorecer setores industriais eletro-intensivos e um modelo de ocupação na Amazônia que não irá beneficiar a população local (exceto com as costumeiras migalhas), mas sim grandes capitais externos e internos.

Ao fazermos isto, as reações de sempre: fomos taxados de contrários ao desenvolvimento, de jogarmos um bagre no colo de Lula, de estarmos na contramão do progresso etc. O velho e cansativo ramerrão. Mas este será um caso em que demonstrar estar-se certo trará muita tristeza e melancolia, não alegria.

O pessimismo do artigo advém também do fato de que a sanha dos barrageiros na Amazônia é imensa, e que seu desrespeito por tudo (regras, bom senso, ambiente, população local) é 
absoluto.

Sua gana agora volta-se contra o rio Tapajós, em uma região totalmente desabitada no coração da floresta.

Em ano eleitoral, quando a necessidade de mostrar serviço é maior, podemos esperar novos avanços sobre a Amazônia.

E também, escrevam aí, nos próximos anos veremos políticos e economistas defendendo aquilo que, quando do debate sobre a construção ou não de Belo Monte, foi “prometido” que não seria feito: a instalação de novas barragens rio Xingu acima.

Isto serviria para regularizar o fluxo do rio ao longo do ano e resolver a principal crítica técnica à obra, a de que a vazão baixa na época da seca diminui drasticamente seu potencial gerador de energia em boa parte do ano.

Cada vez mais aparecerão artigos nos jornalões e comentaristas dos grandes veículos defendendo esta ideia.

Isto porque a região amazônica é vista pelos barrageiros, pelos governos e pelas empreiteiras, que coincidentemente financiam campanhas e constroem barragens (ou seria o oposto? Nunca sei ao certo.), como a grande fronteira hidrelétrica do país.

Neste assunto, precisaríamos de um Bom Senso Ambiente Clube inspirado no Bom Senso Futebol Clube.

Mas a importância dada ao meio ambiente no Brasil é, infelizmente, infinitamente menor que ao futebol, embora os desmandos e tapetões guardem sórdida semelhança.

Um outro motivo para pessimismo é justamente o fato de tratar-se de ano eleitoral. E anos eleitorais não são mesmo época para se apertar a fiscalização.

Embora reconhecendo os avanços sociais nestes quase 12 anos de governo petista, também entendo que seu pior desempenho foi na área ambiental. E os governantes do partido serão cobrados duramente por isto pela história, que, com o passar dos anos, dará muito mais destaque a esta chaga do que ao belo show do assim chamado “mensalão”.

Parte deste desempenho ambiental pífio (ou melhor, nefasto) deve-se ao noivado e casamento de Lula com o setor do agronegócio, sendo que Dilma parece muito contente com a duradoura união. 

Alianças com líderes locais são melindrosas, e eles não devem ser provocados. De mais a mais, a atenção de boa parte da opinião pública estará voltada para mais um round do UFC PT x PSDB (embora a dupla Marina/Campos esteja doida para entrar no octógono e melar a disputa), o que provavelmente deixará brechas para os desmatadores.

E, para fechar a conta, ainda teremos o oba-oba da Copa dos estádios bilionários.

Provavelmente, ocorrerá mais outro oba-oba de manifestações acéfalas e genéricas (muitas delas ocas, como a maioria das de junho, ou manipuladas por este ou aquele esperto tentando tirar uma casquinha eleitoral).

Nelas, falar-se-á de quase tudo (principalmente de lemas pequeno-burgueses “contra a corrupção”), menos de meio ambiente, deixando os destruidores sempre muito à vontade.

Afinal, episódio recente da invasão do Instituto Royal em São Paulo demonstrou que a opinião pública se sensibiliza muito mais com algumas dezenas de cachorros beagle (sem entrar aqui no mérito da questão, apenas reconhecendo objetivamente o fato) do que pelos milhões (ou bilhões, se incluirmos na conta insetos e outras formas de vida menos “in”) de animais e plantas sacrificados todos os dias devido à destruição da maior floresta tropical do planeta que, não custa lembrar, tem girado em torno de 1200 a 2000 campos de futebol por dia nos últimos anos.

É isto aí, Amazônia, feliz 2013! Pois, na região, cada ano parece melhor que o que virá.

(*) Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é docente da Universidade Federal de Alfenas-MG e, apesar do pessimismo, lá no fundo tem sempre uma esperança.

Fonte:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9231:meioambiente060114&catid=28:ambiente-e-cidadania&Itemid=57

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Às esquerdas da Europa e do mundo

25/12/2013 - por Álvaro Garcia Linera - Carta Maior
- Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

Falando no IV Congresso do Partido da Esquerda Europeia, vice-presidente da Bolívia [Álvaro Garcia Linera, foto] apresentou cinco propostas para a esquerda europeia e mundial.

O IV Congresso do Partido da Esquerda Europeia (PIE) reuniu 30 formações de esquerda europeias em Madri, entre os dias 13 e 15 de dezembro, em busca de um discurso para unificar estratégias frente às políticas de austeridade e de submissão de Bruxelas às exigências dos mercados.

Este foi o discurso do vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Álvaro Garcia Linera [foto], convidado para o encontro.

"Permitam-me celebrar este encontro da Esquerda europeia e, em nome de nosso presidente Evo, em nome do meu país, de nosso povo, agradecer o convite que nos fizeram para compartilhar um conjunto de ideias, reflexões neste tão importante congresso da Esquerda Europeia.

Permitam-me ser direto, franco, mas também propositivo.

O que vemos desde fora da Europa?

Vemos uma Europa que enfraquece, uma Europa abatida, uma Europa ensimesmada e satisfeita de si mesmo, até certo ponto apática e cansada. 

Sei que são palavras muito feias e muito duras, mas é assim que vemos. 

Ficou para trás a Europa das luzes, das revoltas, das revoluções.

Ficou para trás, muito atrás, a Europa dos grandes universalismos que moveram e enriqueceram o mundo, que empurraram povos de muitas partes do mundo a adquirir uma esperança e mobilizar-se em torno dessa esperança.

Ficaram para trás os grandes desafios intelectuais.

Essa interpretação que faziam e que fazem os pós-modernos de que acabaram os grandes relatos, à luz dos últimos acontecimentos, parece que só encobre os grandes negócios das corporações e do sistema financeiro.

Não é o povo europeu que perdeu a virtude ou a esperança, porque a Europa a que me refiro, cansada, a Europa esgotada, a Europa ensimesmada, não é a Europa dos povos, mas sim esta Europa silenciada, encerrada, asfixiada.

A única Europa que vemos no mundo hoje é a Europa dos grandes consórcios empresariais, a Europa neoliberal, a Europa dos grandes negócios financeiros, a Europa dos mercados e não a Europa do trabalho.

Carentes de grandes dilemas, horizontes e esperança, só se ouve – parafraseando Montesquieu – o lamentável ruído das pequenas ambições e dos grandes apetites.

Democracias sem esperança e sem fé, são democracias derrotadas, são democracias fossilizadas. Em um sentido estrito, não são democracias.

Não há democracia válida que seja simplesmente um apego aborrecido a instituições fósseis com às quais sem cumprem rituais a cada três, quatro ou cinco anos para eleger os que virão decidir (mal) sobre nossos destinos.

Todos sabemos e na esquerda mais ou menos compartilhamos um pensamento comum de como chegamos à semelhante situação.

Os estudiosos, os acadêmicos, os debates políticos oferecem um conjunto de linhas interpretativas sobre a situação que estamos e como chegamos a ela.

Um primeiro critério compartilhado de como chegamos a isso é que entendemos que o capitalismo adquiriu – não resta dúvida – uma medida geopolítica planetária absoluta. Ele cobre o mundo inteiro.

O mundo inteiro tornou-se uma grande oficina mundial.

Um rádio, uma televisão, um telefone, já não tem uma origem de criação. O mundo inteiro se converteu nessa origem.

Um chip é feito no México, o desenho vem da Alemanha, a matéria prima é latino-americana, os trabalhadores são asiáticos, a embalagem é norte-americana e a venda é planetária.

Esta é uma característica do moderno capitalismo, não resta dúvida, e é a partir dessa realidade que devemos agir.

Uma segunda característica dos últimos vinte anos, é uma espécie de retorno a uma acumulação primitiva perpétua.

Os textos de Karl Marx, que retratam a origem do capitalismo nos séculos XVI e XVII, se repetem hoje como textos do século XXI.

Temos uma permanente acumulação originária que reproduz mecanismos de escravidão, mecanismos de subordinação, de precariedade, de fragmentação, retratados excepcionalmente por Marx.

O capitalismo moderno reatualiza a acumulação originária. Ela a expande, a irradia a outros territórios para extrair mais recursos e mais dinheiro.

Mas há algo que vem junto com esta acumulação primitiva perpétua – que vai definir as características das classes sociais contemporâneas, tanto em nossos países como no mundo, porque reorganiza a divisão do trabalho local, territorialmente, e a divisão do trabalho planetário.

Junto com isso temos uma espécie de neo-acumulação por expropriação.

Temos um capitalismo depredador que acumula, em muitos casos produzindo nas áreas estratégicas: conhecimento, telecomunicações, biotecnologia, indústria automobilística, mas em muitos de nossos países, acumula por expropriação.

Ou seja, acumula ocupando os espaços comuns: biodiversidade, água, conhecimentos ancestrais, bosques, recursos naturais.

Esta é uma acumulação por expropriação – não por geração de riqueza -, por expropriação de riquezas comuns que se tornam riqueza privada. Essa é a lógica neoliberal.

Se criticamos tanto o neoliberalismo, é por sua lógica depredadora e parasitária. Mais que um gerador de riquezas ou um desenvolvedor de forças produtivas, o neoliberalismo é um expropriador de forças produtivas capitalistas e não capitalistas, coletivas, locais, de sociedades inteiras.

Mas a terceira característica da economia moderna não é somente a acumulação primitiva perpétua, acumulação por expropriação, mas também por subordinação – Marx diria subsunção real do conhecimento e da ciência à acumulação capitalista.

O que alguns sociólogos chamam de sociedade do conhecimento.

Não resta dúvida, essas são as áreas mais potentes e de maior desdobramento das capacidades produtivas da sociedade moderna.

A quarta característica e cada vez mais conflitiva e arriscada, é o processo de subsunção real do sistema integral da vida do planeta, ou seja, dos processos metabólicos entre os seres humanos e a natureza.

Estas quatro características do capitalismo moderno redefinem a geopolítica do capital em escala planetária, redefinem a composição de classes da sociedade e das classes sociais no planeta.

Não estamos falando só da externalização – para as extremidades do corpo capitalista, da classe operária tradicional, que vimos surgir no século XIX e início do século XX, e que agora se transfere para as zonas periféricas, Brasil, México, China, Índia, Filipinas -, mas também do surgimento, nas sociedades mais desenvolvidas, de um novo tipo de proletariado, um novo tipo de classe trabalhadora.

Professores, pesquisadores, cientistas, analistas, que não se veem a si mesmos como classe trabalhadora, mas sim como pequenos empresários, mas que no fundo constituem uma nova composição social da classe trabalhadora, do princípio do século XXI.

Mas, ao mesmo tempo, temos também uma criação no mundo daquilo que poderíamos chamar de proletariado difuso.

Sociedades e nações não capitalistas, que são subsumidas formalmente à acumulação capitalista. América Latina, África, Ásia, falamos de sociedades e de nações não estritamente capitalistas, mas que no conjunto aparecem subsumidas e articuladas como formas de proletarização difusas.

Não somente por sua qualidade econômica, mas também pelas próprias características de unificação fragmentada, ou de difícil fragmentação por sua dispersão territorial.

Temos então, não somente uma nova modalidade da expansão da acumulação capitalista, mas também uma reacomodação das classes, do proletariado e das classes não proletárias no mundo.

O mundo hoje é mais conflitivo.


O mundo hoje está mais proletarizado, só que as formas de proletarização são distintas daquelas que conhecemos no século XIX, princípios do século XX.

E as formas de proletarização destes proletários difusos, destes proletários profissionais liberais não tomam necessariamente a forma de um sindicato.

A forma sindicato perdeu sua centralidade em alguns países e surgem outras formas de unificação do popular, do laboral, do obreiro.

O que fazer? – a velha pergunta de Lenin.

O que fazemos?

Compartilhamos diagnósticos sobre o que está errado, sobre o que está mudando no mundo e frente a essas mudanças não podemos responder – ou melhor – as respostas que tínhamos antes são insuficientes, caso contrário a direita não estaria governando aqui na Europa.

Está faltando algo em nossas respostas e em nossas propostas.

Permitam-me, de maneira modesta, fazer cinco sugestões nesta construção coletiva a que se propõe a esquerda europeia.

A esquerda europeia não pode se contentar com o diagnóstico e a denúncia.

O diagnóstico e a denúncia servem para gerar indignação moral e é importante a expansão da indignação moral, mas não gera vontade de poder.

A denúncia não é uma vontade de poder.

Pode ser a antessala de uma vontade de poder, mas não é a própria.

A esquerda europeia e a esquerda mundial, diante desse turbilhão destrutivo, depredador da natureza e do ser humano, impulsionado pelo capitalismo contemporâneo, tem que aparecer com propostas ou com iniciativas.

Nós precisamos construir um novo sentido comum. No fundo, a luta política é uma luta pelo sentido comum. Pelo conjunto de juízos e preconceitos. Pela forma como, de modo simples, as pessoas – o jovem estudante, o profissional, a vendedora, o trabalhador, o operário – ordenam o mundo.

Esse é o sentido comum. É a concepção de mundo básica com a qual ordenamos a vida cotidiana. A maneira pela qual valoramos o justo e o injusto, o desejável e o possível, o impossível e o provável.

A esquerda mundial tem que lutar por um novo sentido comum, progressista, revolucionário, universalista. Mas, obrigatoriamente, um novo sentido comum.

Em segundo lugar, necessitamos recuperar – como apresentou o primeiro expositor de maneira brilhante – o conceito de democracia.

A esquerda sempre reivindicou a bandeira da democracia. É nossa bandeira.

É a bandeira da justiça, da igualdade, da participação.

Mas para isso temos que nos livrar da concepção da democracia como um fato meramente institucional.

A democracia são instituições? Sim, são instituições. Mas é muito mais do que isso. A democracia é votar a cada quatro ou cinco anos? Sim, mas é muito mais do que isso. É eleger o Parlamento? Sim, mas é muito mais do que isso. É respeitar as regras da alternância? Sim, mas não é só isso.

Essa é a maneira liberal, fossilizada, de entender a democracia na qual às vezes ficamos presos. A democracia são valores?

São valores, princípios organizativos do entendimento do mundo: a tolerância, a pluralidade, a liberdade de opinião, a liberdade de associação. Está bem, são princípios, são valores, mas não são somente princípios e valores. São instituições, mas não são somente instituições.

A democracia é prática, é ação coletiva.

A democracia, no fundo, é a crescente participação na administração dos bens comuns que uma sociedade possui.

Há democracia se os cidadãos participam dessa administração. Se temos como um patrimônio comum a água, então democracia é participar na gestão da água.

Se temos como patrimônio comum o idioma, a língua, democracia é a gestão comum do idioma.

Se temos como patrimônio comum as matas, a terra, o conhecimento, democracia é a gestão comum destes bens.

Crescente participação comum na gestão das matas, na gestão da água, na gestão do ar, na gestão dos recursos naturais.

Teremos democracia, no sentido vivo, não fossilizado do termo, se a população (e a esquerda trabalhar para isso) participar de uma gestão comum dos recursos comuns, das instituições, do direito e das riquezas.

Os velhos socialistas dos anos 70 falavam que a democracia deveria tocar as portas das fábricas. É uma boa ideia, mas não é suficiente.

Deve tocar a porta das fábricas, a porta dos bancos, das empresas, das instituições, a porta dos recursos, a porta de tudo o que seja comum para as pessoas.

Nosso delegado da Grécia me perguntava sobre o tema da água.

Como começamos na Bolívia? Por temas básicos, de sobrevivência, água!

E, em torno da água, que é uma riqueza comum, que estava sendo expropriada, o povo travou uma “guerra” e recuperou a água para a população.

Depois recuperamos não somente a água, fizemos outra guerra social e recuperamos o gás e o petróleo, as minas e as telecomunicações, e falta muito ainda por recuperar.

Mas a água foi o ponto de partida para a crescente participação dos cidadãos na gestão dos bens comuns que tem uma sociedade, uma região.

Em terceiro lugar, a esquerda tem que recuperar também a reivindicação do universal, dos ideais universais. Dos comuns.

A política como bem comum, a participação como uma participação na gestão dos bens comuns.

A recuperação dos bens comuns como direito: direito ao trabalho, direito à aposentadoria, direito à educação gratuita, direito à saúde, a um ar limpo, direito à proteção da mãe terra, direito à proteção da natureza. São direitos.

Mas são universais, são bens comuns universais frente aos quais a esquerda, a esquerda revolucionária, tem que propor medidas concretas, objetivas e de mobilização.

Eu estava lendo no jornal como na Europa estão se utilizando recursos públicos para salvar bens privados. Isso é uma aberração.

Usaram o dinheiro dos poupadores europeus para socorrer os bancos.

Usaram bens comuns para socorrer o privado.

O mundo está ao contrário! Tem que ser o inverso disso: usar os bens privados para salvar e ajudar os bens comuns. Não os bens comuns para salvar os bens privados.

Os bancos têm que ter um processo de democratização e de socialização de sua gestão. Caso contrário, eles vão acabar tirando não somente seu trabalho, sua casa, sua vida, sua esperança e tudo mais, e isso é algo que não se pode permitir.

Também precisamos reivindicar, em nossa proposta como esquerda, uma nova relação metabólica entre o ser humano e a natureza.

Na Bolívia, por nossa herança indígena, chamamos isso de uma nova relação entre ser humano e natureza. Como o presidente Evo diz, a natureza pode existir sem o ser humano, mas o ser humano não pode existir sem a natureza. 

Mas não é o caso de cair na lógica da economia verde, que é uma forma hipócrita de ecologismo.

Há empresas que aparecem ante vocês europeus como protetoras da natureza, como se fossem limpas, mas essas mesmas empresas provocam uma série de desperdícios e danos na Amazônica, na América e na África. 

Aqui são depredadores, aqui são defensores e ali se tornam depredadores.

Converteram a natureza em outro negócio.

A a preservação radical da ecologia não é um novo negócio, nem uma nova lógica empresarial. É preciso restituir uma nova relação, que é sempre tensa. Porque a riqueza que vai satisfazer necessidades humanas requer transformar a natureza e ao fazermos isso modificamos sua existência, modificamos a biosfera.

Ao modificarmos a biosfera, muitas vezes destruímos a natureza e também o ser humano. O capitalismo não se importa com isso, porque para ele tudo não passa de um negócio. Mas para nós sim, para a esquerda, para a humanidade, para a história da humanidade.

Precisamos reivindicar uma nova lógica de relação, não diria harmônica, mas sim metabólica, mutuamente benéfica, entre entorno vital natural e ser humano. Trabalho, necessidades.

Por último, não resta dúvida que precisamos reivindicar a dimensão heroica da política.

Hegel via a política em sua dimensão heroica. E seguindo a Hegel suponho, Gramsci [foto] dizia que as sociedades modernas, a filosofia e um novo horizonte de vida, tem que se converter em fé na sociedade.

Isso significa que precisamos reconstruir a esperança, que a esquerda tem ser a estrutura organizativa, flexível, crescentemente unificada, que seja capaz de reabilitar a esperança nas pessoas.

Um novo sentido comum, uma nova fé – não no sentido religioso do termo -, mas sim uma nova crença generalizada pela qual as pessoas dediquem heroicamente seu tempo, seu esforço, seu espaço e sua dedicação.

Eu destaco o que comentava minha companheira quando nos dizia que hoje temos 30 organizações políticas reunidas aqui. Excelente.

Isso quer dizer que é possível reunir-se, que é possível sair dos espaços fechados.

A esquerda tão débil hoje na Europa não pode se dar ao luxo de ficar distante de seus companheiros.

Pode haver diferença em 10 ou 20 pontos, mas coincidimos em 100. Esses 100 tem que ser os pontos de acordo, de proximidade, de trabalho. E deixemos os outros 20 para depois.

Somos demasiados fracos para nos darmos ao luxo de seguir em brigas doutrinárias e de pequenos feudos, nos distanciando dos demais.

É preciso assumir novamente uma lógica gramsciana para unificar, articular e promover ações comuns.

É preciso tomar o poder do Estado, lutar pelo Estado, mas nunca devemos esquecer que o Estado, mais do que uma máquina, é uma relação. Mais do que matéria, é uma ideia. O Estado é fundamentalmente ideia.

E um pedaço é matéria.

É matéria como relações sociais, como força, como pressões, como orçamentos, acordos, regulamentos, leis. Mas é fundamentalmente ideia como crença de uma ordem comum, de um sentido de comunidade.

No fundo, a luta pelo Estado é uma luta por uma nova maneira de nos unificarmos, por um novo universal. 

Por uma espécie de universalismo que unifique voluntariamente as pessoas.

Mas isso requer uma vitória prévia no terreno das crenças, uma vitória sobre os nossos adversários na palavra, no sentido comum, ter derrotado previamente as concepções dominantes de direita no discurso, na percepção do mundo, nas percepções morais que temos das coisas.

E isso requer um trabalho muito árduo.

A política não é somente uma questão de correlação de forças, capacidade de mobilização. Em um momento, ela será isso.

Mas ela é, fundamentalmente, convencimento, articulação, sentido comum, crença, ideia compartilhada, juízo e conceito compartilhado a respeito da ordem do mundo.

E aqui a esquerda não pode se contentar somente com a unidade de suas organizações. Ela tem que se expandir para o âmbito dos sindicatos, que são o suporte da classe trabalhadora e sua forma orgânica de unificação.

É preciso ficar muito atento também, companheiros e companheiras, a outras formas inéditas de organização da sociedade, à reconfiguração das classes sociais na Europa e no mundo, às formas diferentes de unificação, formas mais flexíveis, menos orgânicas, talvez mais territoriais, menos por centros de trabalho.

Tudo é necessário.

A unificação por centros de trabalho, a unificação territorial, a unificação temática, a unificação ideológica.

É um conjunto de formas flexíveis, frente às quais a esquerda tem que ter a capacidade de articular, propor e de seguir adiante.

Permitam-me em nome do presidente, e em meu nome, felicita-los, celebrar esse encontro, desejar-lhes e exigir-lhes – de maneira respeitosa e carinhosa – que lutem, lutem e lutem!

Não nos deixem sós, outros povos que estão lutando de maneira isolada em alguns lugares, na Síria, na Espanha, na Venezuela, no Equador, na Bolívia. Não nos deixem sós.

Geopoliticus Child Watching the Birth of the New Man
Salvador Dali

Precisamos de vocês, precisamos mais ainda de uma Europa que não veja somente à distância o que ocorre em outras partes do mundo, mas sim novamente uma Europa que volte a iluminar o destino do continente e o destino do mundo."


Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/alvaro-Garcia-Linera-as-esquerdas-da-Europa-e-do-mundo/6/29876

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Capitalismo sustentável, existe isso?

13/12/2013 - “O capitalismo sustentável é uma contradição em seus termos” - Eduardo Viveiros de Castro
- Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

Crítico feroz do neoliberalismo, de seus ícones e verdades, de suas políticas de “crescimento” que destroem a natureza, do consumo que empobrece as vidas, do Estado que as administra (não sem constrangimentos) e da esquerda (conservadora e antropocêntrica).

A felicidade, diz, tem muitos outros caminhos”.

Enquanto esperamos que a Tinta Limón Ediciones termine a edição (mais ou menos alterada) do livro de entrevistas com Eduardo Viveiros de Castro, o sítio Lobo Suelto! convida à leitura da última – muito transcendental – conversa com o antropólogo brasileiro. A entrevista é de Julia Magalhães, publicada nesse sítio em 04/12/2013. A tradução é do Cepat.

Qual é a sua percepção acerca da participação política da sociedade brasileira?
Prefiro começar com uma “des-generalização”: vejo a sociedade brasileira profundamente dividida em relação à visão sobre o país e seu futuro. A ideia de que existe “um” Brasil – no sentido de que as ideias de “unidade” e “brasilidade” não são triviais – parece uma ilusão politicamente conveniente (para os setores dominantes), mas antropologicamente equivocada. Há, pelo menos, dois ou muito mais “Brasis”.

O conceito geopolítico de estado-nação unificado não é descritivo, mas normativo.

Há rachaduras profundas na sociedade brasileira.

Há setores da população com uma vocação conservadora enorme, que não necessariamente compreendem uma classe específica, apesar de que as chamadas “classes médias”, ascendentes ou descendentes, estão bem representadas aqui.

Grande parte da chamada “sociedade brasileira” – temo que seja a maioria – se sentiria muito satisfeita com um regime autoritário, especialmente se conduzido midiaticamente por uma autoridade paternal de personalidade forte.

Mas, esta é uma das coisas que a minoria liberal que existe no país – e, inclusive, é uma certa minoria “progressista” – prefere manter-se envolta em um silêncio constrangedor.

Repete-se o tempo todo, e para qualquer propósito, que o povo brasileiro é democrático, “cordial e amante da liberdade e da fraternidade, o que é uma ilusão muito perigosa.

É assim que vejo a “participação política do povo brasileiro”: como a de um povo fragmentado, dividido, polarizado. Uma polarização que não necessariamente condiz com as divisões políticas (partidos oficiais etc.).

O Brasil segue como uma sociedade visceralmente escravocrata, obstinadamente racista e moralmente covarde. Enquanto não nos darmos conta deste inconsciente, não iremos “em frente”.

Em outras ocasiões, fui claro: insurreições esporádicas e uma certa indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos, é o que se evidência entre os mais pobres – ou os mais alheios ao drama montado pelos setores de cima, na escala social – que inspiram modestas utopias e moderado otimismo por parte daqueles que a história situou na confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.

O que é necessário para mudar isto?
Falar, resistir, insistir, olhar além do imediato. E, obviamente, educar.

Mas, não “educar o povo” (como se a elite fosse muito educada e devesse – ou pudesse – conduzir o povo até um nível intelectual superior), mas criar as condições para que as pessoas se eduquem e acabem educando a elite – e, quem sabe, inclusive, se livrem dela.

O panorama da educação do Brasil é, hoje, o de um deserto. Um deserto!

E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar neste deserto. Pelo contrário, tenho pesadelos de conspirações, em que sonho que os projetos de poder não se interessam realmente em modificar o panorama da educação do Brasil: domesticar a força de trabalho – se é isto que está se tentando (ou planejando) – não é, de nenhuma maneira, o mesmo que educar.

Isto é apenas um pesadelo, obviamente: não é assim, não pode ser assim... Espero que não seja assim.

Mas o fato é que não se vê uma iniciativa para mudar a situação.

Considerando a espetacular abertura de dezenas de universidades sem a mínima infraestrutura física (para não falar de boas bibliotecas, um luxo quase impensável no Brasil), enquanto a escola secundária segue muito deficitária, com professores que ganham uma miséria, com as greves dos professores universitários reprimidas, como se fossem ladrões.

A “falta” de educação – que é uma forma de instrução muito particular e perversa, imposta de cima para baixo – é talvez o principal fator responsável pelo conservadorismo reacionário de grande parte da sociedade brasileira. Por fim, é urgente uma reforma radical da educação brasileira.

Em “A floresta e a escola”, Oswald de Andrade sonhava. Infelizmente, parece que já deixamos de ter uma e ainda não temos a outra. Pois sem escola, já não cresce a floresta.

Por onde se começa a reforma da educação?
Começa-se de baixo, é claro, a partir da escola primária. A educação pública deveria ter uma política unificada, orientada a partir de uma – com perdão da expressão – “revolução cultural”.

Ela não será alcançada através da redistribuição da renda (ou melhor, com o aumento da quantidade de migalhas que caem da mesa dos ricos) apenas para comprar um televisor e para assistir ao BBB, e ver a mesma merda.

Não é assim que se redistribui a cultura, a educação, a ciência e a sabedoria. Deve-se oferecer ao povo as condições de fazer cultura ao invés de consumir aquela produzida “para” eles.

Está havendo uma melhora nos níveis de vida dos mais pobres, e talvez também nos da velha classe média. Uma melhora que vai durar todo o tempo em que a China continuar comprando do Brasil ao invés de comprar da África.

Mas, apesar da melhora no chamado “nível de vida”, não vejo nenhuma melhora real na qualidade de vida, na vida cultural ou espiritual, se me permite usar essa palavra arcaica. Pelo contrário.

Será que é necessário destruir as forças vivas, naturais e culturais das pessoas, do povo brasileiro de instrução, para construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.

Neste cenário, atualmente, quais são os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira?
Vejo a “sociedade brasileira” magnetizada – ao menos em termos de sua autorrepresentação normativa, por parte dos meios de comunicação – por um patriotismo oco, uma espécie de besta orgulhosa, deslumbrados pela certeza de que, de uma vez por todas, o mundo se inclinou frente ao Brasil.

Copa do Mundo, Jogos Olímpicos...

Não vejo mobilização acerca de temas urgentíssimos, como poderiam ser o da educação e da redefinição da nossa relação com a terra, quer dizer, com o que há debaixo do território.

Natureza e cultura, enfim, que agora se encontram, não apenas, mediadas, midiatizadas, pelo mercado, mas mediocrizadas por ele.

O Estado se uniu ao Mercado contra a natureza e a cultura.

E estas questões não mobilizam?
Existe certa preocupação da opinião pública por questões ambientais, um pouco mais do que em relação às questões da educação, o que não deixa de ser algo para se lamentar, pois as duas vão juntas.

Contudo, tudo me parece “too little, too late”: muito pouco e muito tarde. Está se demorando tempo demais para difundir a consciência ambiental. Uma conscientização que o planeta requer, com absoluta urgência, de todos nós.

E esta inércia se traduz na escassa pressão sobre os governos, corporações e empresas que apenas investem nesse conto chinês do “capitalismo verde”.

Em particular, evidencia-se muito pouca pressão sobre as grandes empresas, sempre distraídas e incompetentes quando se trata do problema da mudança climática.

Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que conta com o apoio desinformado (é o que se deduz) de uma parte significativa da população do sul e do sudeste, para onde irá a maior parte da energia que não for vendida – a um preço extremamente barato – para multinacionais de alumínio fazerem latas de saquê – no baixo Amazonas – para o mercado asiático.

Necessitamos de um discurso político mais agressivo em relação às questões ambientais. É necessário, sobretudo, falar com as pessoas, chamar a atenção a respeito de que o saneamento básico é um problema ambiental, de que a dengue é um problema ambiental.

Não se pode separar a dengue do desmatamento e do saneamento. Temos que convencer aos mais pobres de que melhorar as condições ambientais é assegurar as condições de existência das pessoas.

No entanto, a esquerda tradicional, como está sendo demonstrado, apresenta-se completamente inútil para articular um discurso sobre os temas ambientais.

Quando suas cabeças mais pensantes falam, parece haver a sensação de estar “indo para trás”, tratando desastradamente de capturar e de reduzir um tema novo ao já conhecido, um problema muito real que não está em seu DNA ideológico e filosófico.

Mesmo quando a esquerda não se alinha com o insustentável projeto “ecocida” do capitalismo, revela sua origem comum a este, com as névoas e obscuridades da metafísica antropocêntrica do cristianismo.

Enquanto continuarmos sustentando que melhorar a vida das pessoas é lhes dar mais dinheiro para comprar uma televisão, ao invés de melhorar o saneamento, abastecimento de água, saúde e educação primária, nada mudará.

Escuta-se o governo dizer que a solução é consumir mais, mas não se percebe a menor ênfase para abordar estes aspectos literalmente fundamentais da vida humana nas condições do presente século.

Isto não significa, obviamente, que os mais favorecidos pensem melhor e que possam ver além dos mais pobres. Não há nada mais estúpido que estas Land Rovers que vemos em São Paulo ou no Rio de Janeiro, andando com adesivos do Greenpeace, de slogans ecológicos, coladas no para-brisa.

As pessoas vão às ruas nestes 4x4 e bebem um diesel venenoso... Gente que pensa que o contato com a natureza é fazer um Rally no Pantanal...

É uma questão difícil: falta educação básica, falta o compromisso dos meios de comunicação, falta agressividade política no tratamento da questão do meio ambiente.

E sempre que se pensa que existe um problema ambiental, algo que está longe de ser o caso dos governantes atuais, estes mostram, ao contrário, e, por exemplo, a preocupação em formar jovens que possam manobrar com segurança e, ao mesmo tempo, mantém firme sua aposta no transporte individual, em carros, em uma cidade como São Paulo, em que já não cabe nem uma agulha.

Um governo que não se cansa de se orgulhar pela quantidade de carros produzidos por ano. É absurdo utilizar os números da produção de veículos como um indicador de prosperidade econômica.

Essa é uma proposta podre, uma visão estreita e uma proposta muito empobrecedora para o país.

Você está dizendo que os apelos ao consumo vêm do próprio governo, mas também há um apelo muito forte procedente do mercado. Como avalia isto?
O Brasil é um país capitalista periférico.

O capitalismo industrial-financeiro é visto por quase todo o mundo como uma evidência palpável, o modo inevitável em que se vive no mundo atual.

Diferentemente de alguns companheiros de caminhada, eu entendo que o capitalismo sustentável é uma contradição em seus termos.

E que nossa atual forma de vida econômica é realmente evitável. Então, simplesmente, nossa forma de vida biológica (quer dizer, a espécie humana) não será mais necessária e a Terra irá favorecer outras alternativas.

As ideias de crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, ou a ética da suficiência são incompatíveis com a lógica do capital. O capitalismo depende do crescimento contínuo.

A ideia de manter certo nível de equilíbrio em relação ao intercâmbio de energia com a natureza não se ajusta na matriz econômica do capitalismo.

Este impasse, gostemos ou não, será “resolvido” pelas condições termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que pensávamos. As pessoas fingem não saber o que está se passando, preferem não pensar nisso, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o Brasil, pelo contrário, sempre se prepara para o melhor.

Este otimismo nacional frente a uma situação planetária é extremamente preocupante, assim como perigoso... E a aposta de que vamos bem dentro do capitalismo é um tanto ingênua, se não desesperada...

O Brasil segue como um país periférico, uma plantação “high tech” que abastece com matérias-primas o capitalismo central. Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja, açúcar, carne bovina, para os países industrializados: são estes quem têm a última palavra, os que controlam o mercado.

Estamos bem neste momento, mas de modo nenhum em condições de controlar a economia mundial. Se a coisa muda um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil simplesmente pode perder esse lugar no qual se encontra hoje.

Para não mencionar, claro, o fato de que estamos vivendo uma crise econômica mundial que se tornou explosiva em 2008, que está longe de terminar e que ninguém sabe aonde irá parar.

O Brasil, neste momento de crise, é uma espécie de contracorrente do tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Deve-se falar sobre estas coisas.

E como você avalia a macropolítica em relação a esta realidade, as políticas macroeconômicas, com as realidades rurais do Brasil, os indígenas ribeirinhos?
O projeto de Brasil, que tem a atual coalizão do governo sob o mando do Partido dos Trabalhadores (PT), considera os ribeirinhos, os indígenas, os campesinos, os quilombolas como pessoas com atraso, um atraso sociocultural, e que devem ser conduzidas para outro estado.

Esta é uma concepção tragicamente equivocada.

O PT é visceralmente paulista, o projeto é uma “paulistização” do Brasil.

Transformar o interior do país em um país de fantasia: muita festa de peão de vaqueiro, caminhonetes 4x4, muita música country, botas, chapéus, rodeios, touros, eucaliptos, gaúchos. E do outro lado, cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo.

O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar para civilizar, para domar, para obter benefícios econômicos, para capitalizar.

Em uma lamentável continuidade entre a geopolítica da ditadura e a do governo atual, este é o velho “bandeirantismo” que hoje faz parte do projeto nacional.

Mudaram as condições políticas formais, mas a imagem do que é ou deveria ser a civilização brasileira, daquilo que é uma vida digna de ser vivida, do que é uma sociedade que está em sintonia consigo mesmo, é muito, muito similar.

Estamos vendo hoje uma ironia muito dialética: o governo, liderado por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura, realizando um projeto de sociedade que foi adotado e implementado por esta mesma ditadura: a destruição da Amazônia, a mecanização, a “transgenização” e a “agrotoxicação” da agricultura, migração induzida pelas cidades.

E por detrás de tudo isso, certa ideia de Brasil que se vê, no início do século XXI, como se devesse ser, ou como se fosse, o que os Estados Unidos eram no século XX.

A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, em vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywood nos anos 50: muitos carros, muitas autopistas, muitas geladeiras, muitas televisões, todo mundo feliz. Quem pagou por tudo isso? Entre outros, nós. Quem irá nos pagar agora? A África, outra vez? Haiti? Bolívia? Para não falar da massa de infelicidade bruta gerada por esta forma de vida (e de quem se enriquece com isto).

Isto é o que vejo com tristeza: cinco séculos de maldade continuam aí.

Sarney é um capitão hereditário, como os que vieram de Portugal para saquear e devastar a terra dos índios.

Nosso governo “de esquerda” governa com a permissão da oligarquia e necessita destes capangas para governar. Pode-se fazer várias coisas, desde que a melhor parte fique com ela.

Toda vez que o governo ensaia uma medida que a ameaça, o Congresso – que sabemos como é eleito –, a imprensa bombardeia, o PMDB sabota.

Há uma série de becos para os quais eu não vejo saída ou que não têm saída no jogo da política tradicional, com suas regras. Vejo um caminho possível pelo lado do movimento social – que hoje está desmobilizado.

Mas, se não for pelo lado do movimento social, seguiremos vivendo neste paraíso subjetivo de que um dia tudo vai ficar bem.

O Brasil é um país dominado politicamente pelos grandes proprietários de terra e grandes empreiteiros que jamais sofreram uma reforma agrária e ainda dizem que atualmente não é mais necessário fazê-la.

Acredita que as coisas começarão a mudar quando chegarmos a um limite?
É provável que a crise econômica mundial afete ao Brasil em algum momento próximo. Contudo, o que vai ocorrer, com certeza, é que o mundo vai passar por uma transição ecológica, climática e demográfica muito intensa durante os próximos 50 anos, com epidemias, fome, secas, catástrofes, guerras, invasões.

Estamos vendo como as condições climáticas mudaram muito mais rápido do que pensávamos. E há grandes possibilidades de desastres, de perdas de colheitas, de crises alimentares.

Neste meio tempo, hoje em dia, o Brasil até se beneficia, mas um dia a fatura irá chegar. Climatologistas, geofísicos, biólogos e ecologistas são profundamente pessimistas sobre o ritmo, as causas e consequências da transformação das condições ambientais em que se desenvolve a vida atual da espécie. Por que deveríamos ser otimistas?

Acredito que se deve insistir que é possível ser feliz sem ficar hipnotizado por este frenesi de consumo que os meios de comunicação impõem. Não sou contrário ao crescimento econômico no Brasil, não sou tão estúpido para pensar que tudo se resolveria mediante a distribuição do dinheiro de Eike Batista entre os agricultores do nordeste semiárido ou cortando os subsídios à classe política-mafiosa que governa o país.

Não que não seja uma boa ideia. Sou contrário, isto sim, ao crescimento da “economia” do mundo, e sou a favor de uma redistribuição das taxas de crescimento.

E também sou, obviamente, a favor de que todos possam comprar uma geladeira e, por que não, uma televisão. Sou a favor de uma maior utilização das tecnologias solar e eólica. E estaria encantado em deixar de dirigir o carro, se pudéssemos trocar este meio de transporte absurdo por soluções mais inteligentes.

E como vê os jovens neste contexto?
É muito difícil falar de uma geração a qual não se pertence. Nos anos 1960, tínhamos ideias confusas, mas ideais claros: pensávamos que poderíamos mudar o mundo e imaginávamos que tipo de mundo queríamos. Acredito que, em geral, os horizontes utópicos têm retrocedido enormemente.

Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou a sua atenção?
No Brasil, a aceleração difusa do que poderíamos chamar de uma cultura “agro-sulista”, tanto da direita quanto da esquerda, pelo interior do país.

Vejo isto como a consumação do projeto de branqueamento da nacionalidade, deste modo muito peculiar da elite governante no poder acertar as contas com seu próprio passado (passado?) escravista.

Outra mudança importante é a consolidação de uma cultura popular vinculada ao movimento evangélico popular. O evangelismo da Igreja Universal do Reino de Deus associa, por certo, a religião ao consumo.

O como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Essa é uma das poucas coisas a respeito das quais sou muito otimista: o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total dos meios de comunicação de cinco ou seis conglomerados midiáticos.

Esse enfraquecimento está muito vinculado à proliferação das redes sociais, que são grande novidade na sociedade brasileira e que estão contribuindo para que circule um tipo de informação que não tinha lugar na imprensa oficial.

E estão habilitando formas, antes impossíveis, de mobilização. Há movimentos inteiramente produzidos pelas redes sociais, como a marcha contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada”, os diversos movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas.

As redes são nossa saída de emergência frente à aliança mortal entre o governo e os meios de comunicação. São um fator de desestabilização – no melhor sentido da palavra – do poder dominante. Se puder ocorrer alguma mudança importante na cena política, acredito que será através da mobilização pelas redes sociais.

E por isso se intensificam as tentativas de controlar estas redes, em todo o mundo, por parte do poder constituído.

Contudo, controlar o acesso é um instrumento vergonhoso, como o caso do “projeto” da banda larga brasileira, que parte do reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade.

Uma decisão tecnológica e política antidemocrática e antipopular, equivalente ao que se faz com a educação: impedir que a população tenha acesso pleno à circulação das produções culturais.

Parece, às vezes, que haveria uma conspiração para evitar que os brasileiros tenham uma boa educação e um acesso à Internet de qualidade. Essas duas coisas andam de mãos dadas e têm o mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social que, diga-se de passagem, é necessário vigiar com muito cuidado.

Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no Ministério do Meio Ambiente, na época de Marina Silva, criticava-me dizendo que meu discurso, feito à distância do Estado, era romântico e absurdo, que tínhamos que tomar o poder.

Eu respondia que, se tomássemos o poder, tínhamos que, sobretudo, saber como mantê-lo depois, pois aí é que a coisa se complica.

Não tenho um desenho, um projeto político para o Brasil, eu não pretendo saber o que é melhor para o povo brasileiro em geral, e em seu conjunto. Só posso expressar minhas preocupações e indignações, apenas aí é que me sinto seguro.

Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o Brasil tem – ou a esta altura tinha – as condições geográficas, ecológicas, culturais para desenvolver um novo estilo de civilização, que não seja uma cópia empobrecida do modelo da América do Norte e da Europa.

Poderíamos começar a experimentar, timidamente, algum tipo de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna.

Todavia, imagino que se algum país do mundo irá fazer isso, esse país é a China.

É certo que os chineses têm 5.000 anos de história cultural praticamente contínua e o que nós temos para oferecer são apenas 500 anos de dominação europeia e uma triste história de etnocídio, deliberado ou não.

Ainda assim, é imperdoável a falta de inventividade da sociedade brasileira – ao menos de sua elite política e intelectual – que já perdeu várias ocasiões de gerar soluções socioculturais – tal como o povo brasileiro historicamente ofereceu – e articular, assim, uma civilização brasileira minimamente diferente da que propõem os comerciais de televisão.

Temos que mudar completamente e, primeiramente, a relação secularmente depredadora da sociedade nacional com a natureza, com a base físico-biológica de sua própria nacionalidade.

Já é hora de começar uma nova relação com o consumo, menos ansioso e mais realista frente à situação de crise atual.

A felicidade tem muitos outros caminhos.

Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/526606-o-capitalismo-sustentavel-e-uma-contradicao-em-seus-termos-diz-eduardo-viveiros-de-castro

Para ler mais:

- 20/04/2008 - "Os índios incomodam porque suas terras, homologadas e reservadas, saem do mercado fundiário’ - entrevista com Eduardo Viveiros de Castro
- 14/02/2007 - Uma sociedade de indivíduos. Uma reflexão antropológica de Eduardo Viveiros de Castro
- 11/10/2013 - Capitalismo e soberania alimentar
- 02/07/2013 - "O capitalismo é a neurose da humanidade", diz filósofa Renata Salecl
- 09/05/2013 - "Ecossocialismo, alternativa contra o capitalismo" - entrevista com Michael Löwy
- 04/05/2013 - O que Francisco pensa sobre capitalismo, emprego e globalização? - Thomas Reese
- 16/01/2013 - O capitalismo e a economia política da mudança climática
- 04/10/2011 - "É preciso sair do capitalismo" - Marcela Valente

terça-feira, 8 de maio de 2012

Sustentabilidade e Educação

06/05/2012 - Leonardo Boff - em seu blog

A sustentabilidade, um dos temas centrais da Rio+20, não acontece mecanicamente.


Resulta de um processo de educação pela qual o ser humano redefine o feixe de relações que entretém com o Universo, com a Terra, com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo dentro dos critérios de equilíbrio ecológico, de respeito e amor à Terra e à comunidade de vida, de solidariedade para com as gerações futuras e da construção de uma democracia sócio-ecológica sem fim.

Estou convencido de que somente uma processo generalizado de educação pode criar novas mentes e novos corações, como pedia a Carta da Terra, capazes de fazer a revolução paradigmática exigida pelo risco global sob o qual vivemos. Como repetia com freqüência Paulo Freire: ”a educação não muda o mundo mas muda as pessoas que vão mudar o mundo”. Agora todas as pessoas são urgidas a mudar. Não temos outra alternativa: ou mudamos ou conheceremos a escuridão.

Não cabe aqui abordar a educação em seus múltiplos aspectos tão bem formulados em 1996 pela UNESCO: aprender a conhecer, a fazer, a ser e a viver juntos; eu acrescentaria: aprender a cuidar da Mãe Terra e de todos os seres.

Mas este tipo de educação é ainda insuficiente. A situação mudada do mundo exige que tudo seja ecologizado, isto é, cada saber deve prestar a sua colaboração a fim de proteger a Terra, salvar a vida humana e o nosso projeto planetário. Portanto, o momento ecológico deve atravessar todos os saberes.

A 20 de dezembro de 2002 a ONU aprovou uma resolução proclamando os anos de 2005-2014 a Década da educação para o desenvolvimento sustentável. Neste documento se definem 15 perspectivas estratégicas em vista de uma educação para sustentabilidade.

Referiremos algumas:
Perspectivas socioculturais que incluem: direitos humanos, paz e segurança; igualdade entre os sexos; diversidade cultural e compreensão intercultural; saúde; AIDS; governança global.


Perspectivas ambientais que comportam: recursos naturais (água, energia, agricultura e biodiversidade); mudanças climáticas; desenvolvimento rural; urbanização sustentável; prevenção e mitigação de catástrofes.


Perspectivas econômicas que visam: a redução da pobreza e da miséria; a responsabilidade e a prestação de contas das empresas.

Como se depreende, o momento ecológico está presente em todas as disciplinas: caso contrário não se alcança uma sustentabilidade generalizada. Depois que irrompeu o paradigma ecológico, nos conscientizamos do fato de que todos somos ecodependentes.

Participamos de uma comunidade de interesses com os demais seres vivos que conosco compartem a biosfera.


O interesse comum básico é manter as condições para a continuidade da vida e da própria Terra, tida como Gaia [1]. É o propósito intencionado pela sustentabilidade.
 A partir de agora a educação deve impreterivelmente incluir as quatro grandes tendências da ecologia: a ambiental, a social, a mental e a integral ou profunda (aquela que discute nosso lugar na natureza). Mais e mais se impõem entre os educadores esta perspectiva: educar para o bem viver que é a arte de viver em harmonia com a natureza e propor-se repartir equitativamente com os demais seres humanos os recursos da cultura e do desenvolvimento sustentável.

Precisamos estar conscientes de que não se trata apenas de introduzir corretivos ao sistema que criou a atual crise ecológica mas de educar para sua transformação. Isto implica superar a visão reducionista e mecanicista ainda imperante e assumir a cultura da complexidade. Ela nos permite ver as interrelações do mundo vivo e as ecodependências do ser humano.

Tal verificação exige tratar as questões ambientais de forma global e integrada. Deste tipo de educação se deriva a dimensão ética de responsabilidade e de cuidado pelo futuro comum da Terra e da humanidade. Faz descobrir o ser humano como o cuidador de nossa Casa Comum e o guardião de todos seres. Queremos que a democracia sem fim (Boaventura de Souza Santos) assuma as características socioecológicas pois só assim será adequada à era ecozóica e responderá às demandas do novo paradigma.


Ser humano, Terra e natureza se pertencem mutuamente. Por isso é possível forjar um caminho de convivência pacífica. É o desafio da educação no atual momento.


[1] Nota do blog: A Hipótese Gaia, também conhecida como a Teoria ou Princípio Gaia, concebido pelo cientista norte-americano James Lovelock sugere que todos os organismos vivos e os componentes inorgânicos presentes na Terra estão intimamente integrados com a finalidade de conservar um singular, autorregulável e complexo sistema que assegura-lhes as condições para viver neste planeta.