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domingo, 11 de março de 2012

O problema xiita da Arábia Saudita

domingo, 11 de março de 2012 - Rede castorphoto
7/3/12, Toby Matthiesen* em The Middle East Channel, “Saudi Arabia’s Shiite problem”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Pelo menos sete jovens muçulmanos xiitas foram mortos e dezenas de outros foram feridos por forças de segurança no leste da Arábia Saudita, nos últimos meses. Embora não haja detalhes dos confrontos, e o Ministério do Interior alegue que todos foram feridos ou mortos depois de atacarem forças da segurança, em todos os casos houve protestos de massa depois dos funerais.


Esses são só os eventos mais recentes da luta dos xiitas sauditas, que se arrasta por décadas, e que ganhou nova urgência no contexto dos levantes regionais de 2011 – mas que permanece em vasta medida ignorada pela imprensa local dominante e ocidental em geral.

Os eventos da Primavera Árabe fizeram despertar e crescer tensões que persistem há muito tempo na Província do Leste, na Arábia Saudita. Apenas três dias depois de os protestos em larga escala começarem no Bahrain, dia 14/2/2011, começaram os protestos também na Província do Leste, distante do Bahrain apenas 30 minutos, de carro, pela ponte. Talvez não surpreendentemente, o Ministério do Interior saudita decidiu esmagar os protestos com “mão de ferro” e iniciou campanha de desqualificação-ocultação contra os protestos e os xiitas em geral. Durante o verão os protestos diminuíram, mas recomeçaram em outubro e, desde então, só têm aumentado, o que tem levado a resposta ainda mais pesada, pelas forças de segurança.

Essa resposta repressiva, com ecos retóricos diferentes, se comparada ao que se ouve sobre o regime sírio de Bashar al-Assad, impõe desafio perigoso à recente política externa dos sauditas. Os protestos populares na Província do Leste são tão legítimos quanto os protestos na Síria. Se a Arábia Saudita não responder àqueles clamores por reformas em casa, como poderá esperar merecer algum crédito quando se declara defensora da democracia na Síria? A violência na Arábia Saudita e no Bahrain deu aos regimes iraniano e sírio, assim como aos movimentos políticos no Líbano e Iraque, um útil trunfo retórico a ser usado contra seus rivais regionais.

Na Província do Leste está virtualmente todo o petróleo da Arábia Saudita, além de uma considerável minoria xiita estimada em entre 1,5 milhão e 2 milhões de habitantes, cerca de 10% da população da Arábia Saudita. O credo Wahhabi dos islâmicos sunitas que o Estado abraça na Arábia Saudita desenvolveu hostilidade especial contra os xiitas. Os cidadãos sauditas xiitas, por sua vez, há muito tempo protestam contra a discriminação de suas práticas religiosas, nos empregos públicos e no comércio, e contra a marginalização em geral.

Por décadas, grupos de oposição formados por xiitas sauditas, grupos de esquerda e islamistas, além de centenas de petições assinadas por xiitas notáveis, repetem as mesmas demandas: fim da discriminação sectária nos empregos públicos e representação nos principais setores do estado, inclusive no plano ministerial; mais desenvolvimento para as áreas xiitas; fortalecimento do judiciário xiita; e fim das prisões de xiitas por razões religiosas e políticas. Nenhuma dessas demandas, se atendida, comprometeria significativamente a posição da família real, ou ameaçaria, de qualquer outro modo, a integridade da Arábia Saudita. Atendidas essas demandas, todo o atual sistema político ganharia solidez, e seria possível pensar em atrair para o regime a solidariedade, ou no mínimo a simpatia, de 2 milhões de xiitas que vivem literalmente em cima de todo o petróleo do reino.

Desde o ano passado, as demandas passaram a incluir a libertação de nove prisioneiros políticos xiitas e a retirada do Bahrain das forças sauditas, ou pelo menos, uma solução negociada para aquele conflito, além de reformas políticas mais gerais na Arábia Saudita. O governo prometeu aos jovens ativistas que suas dificuldades seriam examinadas em abril de 2011 e, depois de um pedido de respeitados clérigos sauditas xiitas, para que suspendessem os protestos, os jovens concordaram. Mas o governo nada fez do que prometera, e respondeu com mais repressão depois do verão, embora tenha libertado alguns dos que haviam sido presos durante os protestos de fevereiro a abril de 2011. A situação, portanto, permaneceu tensa, e quando quatro xiitas foram mortos em novembro, seus funerais transformaram-se em protestos contra o regime que reuniram mais de 100 mil manifestantes.

A percepção de discriminação sistemática tem levado alguns xiitas sauditas a abraçar ideologias revolucionárias, na verdade, há décadas.

Embora existam grupos pró-Irã entre os xiitas do Golfo, não são os mais poderosos entre os xiitas sauditas, e a maioria já renunciou à luta armada como instrumento político desde, no mínimo, meados dos anos 1990s. Mas a resposta repressiva do regime saudita aos protestos, e a política de concessões zero, têm oferecido campo fértil para novos grupos da oposição. Uma repetição da política xiita pós-1979, quando centenas de jovens xiitas deixaram o Bahrain e a Província do Leste da Arábia Saudita, parece possível.

Dado que os protestos no Bahrain e, sobretudo, em Qatif recebem atenção mínima dos canais de televisão que pertencem a sauditas do Golfo, como Al Jazeera e Al Arabiya, os sauditas são obrigados a assistir ao canal Al-Alande televisão, em árabe, patrocinado pelo Irã; à televisão do Hezbollah libanês, Al-Manar TV; ao canal iraquiano Ahlul Bait TV ou, cada vez mais, a outros canais de televisão pró-Assad, para obter informação sobre as regiões onde vivem.

A nova guerra fria no Oriente Médio está já convertida em guerra total de informação, na qual os veículos de mídia ou são a favor da oposição no Bahrain e em Qatif e a favor do regime de Assad, ou são a favor da oposição na Síria e contra os chamados protestos sectários dos xiitas no Bahrain e em Qatif.

A situação dos xiitas sauditas na Província do Leste não é novidade. O Relatório Anual do Departamento de Estado dos EUA ao Congresso sobre Liberdade Religiosa para a segunda metade de 2010, período imediatamente anterior à Primavera Árabe, registra prisões arbitrárias, fechamento de mesquitas e prisão de crentes xiitas. Telegramas diplomáticos dos EUA publicados por Wikileaks [1] revelaram que diplomatas dos EUA, e especialmente o pessoal do consulado em Dhahran, tinham quantidade gigantesca de informação sobre as comunidades xiitas locais e escrevem, quase como obcecados, sobre agressões às quais se referem como inadmissíveis. Mas os problemas específicos dos xiitas sauditas quase nunca chegavam à pauta de reuniões com funcionários sauditas de alto nível.

Isso não se explica exclusivamente pela cerrada aliança que liga os EUA e os sauditas. Os norte-americanos às vezes partilham as mesmas desconfianças sauditas contra os xiitas do Golfo, os quais existem em vários dos regimes aliados aos EUA. A desconfiança deve-se em parte à questão do Irã, mas tem a ver também com as explosões nas Torres Khobar, um complexo residencial na cidade de Dhahran, na Província do Leste, onde residiam militares norte-americanos, incidente no qual morreram 19 militares norte-americanos.

Nove xiitas permanecem presos desde 1996, acusados de pertencerem ao Hezbollah al-Hijaz, por participação naquele atentado. Foram acusados formalmente nos EUA em 2001, mas, porque as prioridades da política exterior dos EUA mudaram depois do 11/9, tornaram-se “esquecidos” – que é como os xiitas sauditas referem-se a eles. Na acusação, há referências ao envolvimento do Hezbollah libanês e do Irã no atentado, mas nenhuma prova desse envolvimento foi jamais divulgada. À época, alguns norte-americanos exigiram ataque de retaliação contra o Irã. Mas depois do 11/9, todas as acusações centraram-se contra a al-Qaeda como responsável pelo ataque às Torres Khobar, o que levantou dúvidas quanto à culpa daqueles prisioneiros xiitas.

O sigilo que cerca toda essa questão tem contribuído para aumentar a desconfiança e as suspeitas contra o estado, de parte das famílias dos prisioneiros e na comunidade saudita xiita em geral. Os manifestantes sauditas xiitas que tomaram as ruas esse ano abraçaram a causa dos nove xiitas prisioneiros. Havia cartazes com seus retratos e nomes em manifestações que pediam sua imediata libertação, nas quais os familiares dos presos tiveram papel importante. Foram a contrapartida xiita de uma campanha simultânea, à frente do Ministério do Interior em Riad, organizada por familiares dos prisioneiros políticos presos por suspeita de associação com a al-Qaeda. Mas, diferentes desses prisioneiros, os prisioneiros xiitas não acalentam qualquer esperança de serem “reabilitados” por qualquer dos vários programas governamentais, fartamente propagandeados, de des-radicalização. Parece justo exigir, no mínimo, julgamento público, exigência que tem sido repetidas vezes endossada pelas ONGs Human Rights Watch e Anistia Internacional. Mas nada semelhante a julgamento aberto parece estar incluído na agenda da política exterior dos EUA.

O comportamento da liderança saudita só empurra para a conclusão de que a repressão contra os xiitas é parte fundamental da legitimidade política dos sauditas. O estado saudita não quer alterar a posição dos xiitas e usa os protestos xiitas para intimidar a população sunita, ameaçando-a com o risco de os iranianos tomarem os campos de petróleo sauditas com a ajuda dos xiitas locais.

Narrativas similares têm sido distribuídas pela imprensa do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) há meses – ao custo de aprofundar cada vez mais a divisão sectária nos estados do Golfo. A intervenção do CCG no Bahrain fez piorar muito as relações entre as seitas no Golfo e além dele, as quais chegam hoje a níveis de confrontação nunca mais vistos desde a Revolução Iraniana. Mas esse declarado sectarismo saudita já teve repercussões negativas também no Iraque, na Síria, no Líbano e no Kuwait. O Bahrain parece já condenado a anos de conflito sectário; as relações comunitárias já estão completamente rompidas; e o estado está desenvolvendo uma campanha que, para os ativistas xiitas, é “limpeza étnica”.

Em vez de alienar completamente os xiitas, a Arábia Saudita e o Bahrain teriam de negociar com eles um contrato social. Não o fazer levará a muitos anos de instabilidade, com resultados imprevisíveis. E nada garante que outros sauditas não sejam cooptados e estimulados pelos protestos dos xiitas, como já se viu acontecer em recente declaração-manifesto de liberais sauditas de todo o reino, denunciando a violência sectária contra os xiitas, em Qatif.

O ocidente teria de pressionar seus aliados, sobretudo a Arábia Saudita e o Bahrain, para que, de uma vez por todas, parem de matar e prender seus cidadãos xiitas, sempre os acusando de serem agentes a serviço do Irã e traidores. A alienação dos jovens xiitas cria perfeito caldo de cultura para que brote outro movimento xiita de oposição no Golfo, e reforça a posição relativa do regime iraniano. Mesmo sem qualquer ajuda externa aos manifestantes xiitas locais, a área está madura para uma volta à política tensa de relações sectárias dos anos 1980s.

Em seu próprio interesse e no interesse dos estados do Golfo, os EUA deveriam empenhar-se na direção de uma real reconciliação entre os xiitas do Bahrain e da Arábia Saudita e seus respectivos governos. Sem isso, o sectarismo acabará por dominar o Golfo, com prejuízo para todos.


* Toby Matthiesen é pesquisador associado em Estudos Islâmicos e do Oriente Médio, na Universidade de Cambridge, Inglaterra

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Nota dos tradutores [1] Leia em: “WikiLeaks: Saudi crackdown on Shiites has echoes in Bahrain” (http://www.mcclatchydc.com/2011/06/22/116306/wikileaks-saudi-crackdown-on-shiites.html#storylink=misearch)

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Os EUA na segunda armadilha de Bin Laden

08/02/2012 - Immanuel Wallerstein - Tradução: Antonio Martins em seu blog
Outras Palavras


Wallerstein antecipa: depois de perder influência sobre o Paquistão, Washington arrisca-se a ficar sem aliado ainda mais estratégico: a Arábia Saudita

Em outubro de 2001, logo depois do 11 de Setembro, escrevi o seguinte:

“Os regimes [do Paquistão e Arábia Saudita] apoiam-se numa coalizão entre as elites modernizantes pró-ocidentais e um establishment islâmico extremamente conservador, com bases populares. Os regimes mantêm-se estáveis por serem capazes de articular esta combinação. E podem alimentá-la graças à ambivalência de suas políticas e pronunciamentos públicos."
“Os Estados unidos dizem agora que chega de ambiguidades. Esta posição pode prevalecer, é claro. Mas no processo, os regimes saudita e paquistanês poderão descobrir que sua base popular está irremediavelmente erodida…"
“Considere que este pode ter sido o plano de Bin Laden. O objetivo de sua própria missão suicida pode ter sido conduzir os Estados Unidos a tal armadilha”

Acredito que Bin Laden conseguiu agora o que planejou no Paquistão. O fim das ambiguidades acabou significando que o país já não opera geopoliticamente em favor dos interesses dos Estados Unidos. Bem ao contrário! Tomou distância e está promovendo, no Afeganistão e não só lá, políticas às quais os EUA opõem-se firmemente. Falta, agora, o segundo objetivo.

Que está ocorrendo na Arábia Saudita? Não há dúvidas de que, de alguma maneira, o país passou a agir mais independentemente dos Estados Unidos do que fizera nos últimos 70 anos. Mas não houve, ainda, uma ruptura definitiva, como no Paquistão. Ela ocorrerá, em futuro próximo? Penso que talvez.

Analise os múltiplos dilemas internos do regime. A riqueza de cerca de 10% dos sauditas provocou o crescimento agudo das demandas por “modernização” do Estado. São mais visíveis em temas ligados às mulheres (direito ao emprego e a conduzir carros). Mas tais reivindicações por mais direitos são a ponta de um iceberg, de um clamor mais amplo pelo afrouxamento das restrições impostas pela ortodoxia wahhabista. À medida em que o rei se move numa trajetória contínua, mas cautelosa, para atender a estas demandas, ele antagoniza-se ainda mais com o establishment religioso – que está se tornando muito inquieto.

Além disso, as elites “modernizantes” têm outras queixas. O governo saudita é, essencialmente, uma gerontocracia, conduzida por homens na faixa dos 70 e 80 anos. No curioso sistema de sucessão o regime lembra o da antiga União Soviética. Há algo similar a uma votação, no processo sucessório – mas ela se dá entre uma dezena de pessoas, ou um pouco mais. A probabilidade de que o poder passe para gente na faixa dos 50 e 60 é extremamente baixa, se não inexistente. Repare, no entanto, que este grupo de “jovens”, mesmo que formado apenas no interior da família real, cresceu consideravelmente em número, e está impaciente. Isso pode levar a uma séria cisão no próprio topo da elite? É bem possível que sim.

O regime saudita maneja algo como um estado de bem-estar social para os cidadãos comuns. Porém, as desigualdades de renda e riqueza estão crescendo, como em toda parte. E pequenas redistribuições, de tempos em tempos, não vão acalmar as camadas inferiores, mas apenas aguçar seu apetite por novas demandas. Os extratos médios e baixos podem inclusive (surpresa, surpresa!) ecoar os apelos da Primavera Árabe por “democracia”.

E há uma minoria xiita. Afirma-se que ela representa apenas cerca de 10% da população; mas é provável que seja maior e – mais importante – está estrategicamente localizada no sudeste do país, sobre as maiores reservas de petróleo. Por que tais xiitas seriam os únicos, nas nações do Oriente Médio dominadas por sunitas, a não lutar por suas reivindicações identitárias?

O regime saudita tem tentado jogar um papel de destaque na geopolítica da região. Está insatisfeito com as políticas e aspirações do Irã e com a intransigência do presidente Assad, na Síria. Mas, no frigir dos ovos, comporta-se de modo muito moderado, em relação a estes temas. Teme as consequências de guinadas bruscas. E julga as políticas norte-americanas orientadas demais pelos interesses internos dos EUA, e por seus infinitos compromissos com Israel.

Os sauditas têm sido muito “razoáveis” também com Israel. Não creem que esta moderação tenha sido bem recompensada – quer por Israel, quer pelos Estados Unidos. Podem estar prontos, agora, para apoiar o Hamas de forma muito mais aberta. Não enxergam nada “razoável” nas políticas do governo israelense, nem perspetiva alguma de que estas políticas sejam alteradas em breve.

Este quadro não contribui para um regime politicamente estável. Certamente, não ajuda a manter as “ambiguidades” que permitiram ao regime ser, no passado, um aliado inabalável dos Estados Unidos na região.

 A segunda armadilha irá se fechar?