quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Quem eram os verdadeiros donos das terras onde está Pinheirinho?

Ter, 24 de Janeiro de 2012 - Rede Democrática

Confira esta noticia de 1 de julho de 1969

O Campo dos Alemães é um bairro localizado na zona sul da cidade de São José dos Campos, estado de São Paulo. O maior bairro da cidade, foi fundado a partir de uma fazenda antigamente denominada Chacara Régio, que pertencia a Familia Kubitzky. Seus donos se chamavam Hermann, Artur, Erma e Frida. Nesta fazenda se produziam hortifrutigranjeiros e ovos que eram vendidos nas quitandas da região.

Porém esta família de imigrantes alemães, foi brutalmente assassinada em meados do ano de 1969. A área ficou sem herdeiros, pois seus donos eram bem idosos e solteiros (Arthur, por exemplo, na época de sua morte tinha 77 anos).

Como eles não tinham herdeiros o terreno passou (a princípio) para as mãos do Estado, mas.... eis que surge Naji Nahas. Coincidentemente no inicio do auge da repressão do periodo da ditadura.

Naji Robert Nahas é um especulador, atuando como comitente de grande porte na área de investimentos e especulação financeira. Brasileiro nascido no Líbano, chegou ao Brasil no começo da década de 1970 com cinqüenta milhões de dólares - segundo suas próprias declarações - para investir e montou um conglomerado de empresas que incluía fábricas, fazendas de produção de coelhos, banco, seguradora e outros. Tornou-se nacionalmente conhecido depois de ter sido acusado como responsável pela quebra da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro em 1989.

Pelo visto Naji Nahas já chegou no Brasil metendo o pé na porta dos outros e no auge da ditadura.

Foi grilagem? Até agora Naji Nahas não apresentou nenhum documento confirmando a posse do terreno. O Governo de São paulo - nas mãos do PSDB - aceitou o terreno, que se dizia fazer parte da massa falida da empresa Selecta, como garantia sem checar os documentos. Para esclarecer esta questão e lançar luz sobre o processo de concentração da propriedade urbana, pode-se tirar a certidão de cinquenta anos do imóvel para ver seu histórico.

Por outro lado, os moradores de Pinheirinho, ocupando a área há mais de cinco anos tem direito ao usocapião.

Como é que fica esta situação agora?

Quem é que a prefeitura e o governo do PSDB está tentando acobertar enquanto criminalizam o movimento social e praticam a especulação imobiliária?


Estado e Justiça
A foto ao lado é do Juiz estadual Rodrigo Capez que foi, pessoalmente, em Pinheirinho acompanhar a reintegração de posse em favor de Naji Nahas, expulsando os moradores e defendendo a força policial. A presença dele teve uma única finalidade: impedir que qualquer ação da justiça federal suspendesse a ação policial, como já havia acontecido antes.

Neste sentido, é importante rememorarmos Michel Foucault quando fala das funções policiais do juiz. O juiz serve para, no fundo, fazer a policia funcionar. A justiça só é feita para registrar no nivel oficial, ao nivel legal e ritual também. São controles de normalização. A justiça está a serviço da policia. A policia foi constituida pelo Estado para fazer cumprir aquilo que o Estado quer. O juiz, portanto, normatiza e ritualiza esta função servindo, portanto, a policia.
O juiz foi a Pinheirinho, portanto, para trabalhar para a policia. Foi lá para servir à policia.

Pinheirinho é uma lição viva, atual, clara e nítida do caráter do Estado brasileiro e em especial da organização conservadora e anti-social do Estado paulista e de seus governantes.

Alguém tem dúvida de que lado está a justiça desse país, para que e quem serve: ao invés de defender o direito constitucional a moradia vai defender e se colocar a serviço da policia e das forças de repressão.

Justiça e remuneração
Mas, não vamos nos iludir considerando apenas o aspecto ideológico da Justiça no pais. Esta é uma batalha de muito longo prazo para ser travada. Vamos ao aqui e agora.

O juiz Rodrigo Capez não foi lá apenas para servir e 'proteger' a policia de outros recursos que visavam impedir a chamada 'reintegração de posse' do terreno de um milhão de metros quadrados. Nem foi apenas para garantir o pagamento de R$ 10 milhões de reais, que seria a dívida da empresa Selecta de Naji Nahas.

Se dividirmos R$ 10 milhões por entre 6 a 8 mil moradores, daria uma dívida de cerca de R$ 1.200,00 a R$ 1.600,00 por morador. Esta divida fica solucionada com um bom plano e proposta política. Melhor ainda se contarmos com um pouco de ajuda do BNDES - que afinal, não precisa apostar todas as fichas nas grandes empresas e investir excessivamente fora do pais, criando empregos no exteriror. Fica claro que esta divida é irrisória para a sociedade e plenamente 'pagável' pelos ocupantes.

Então, temos que questionar o que move o PSDB e a justiça paulista para montar esta mega-operação de despejo, com todos os seus custos diretos, os prejuizos para os ocupantes e um evidente prejuizo eleitoral para o Tucanato?

Evidente que não é o valor da dívida, mas sim, o valor do terreno de um milhão de metros quadrados e a consequente especulação imobiliária onde as prefeituras se locupletam e desviam os recursos das cidades. Se for levada em consideração apenas a divida, teremos um valor de R$ 10.00 por metro quadrado que se obtem dividindo R$ 10 (dez) milhões por 1 (um) milhão de metros quadrados. A área de um apartamento pequeno de 50 metros quadrados, custaria R$ 500.00. Fica claro que o que está em jogo não é a divida.

Para um advogado que já negociou seus 'honorários' - normalmente de 20 % - o que ele quer é receber este valor muito maior, não importa os custos sociais. Este valor muito maior, o valor do terreno, pode chegar, segundo algumas avaliações, até a R$ 170 milhões. E se contabilizarmos as contruções que serão feitas, este valor vai ficar incomensuràvelmente maior. Assim sendo, a 'causa' se torna extremamente apetitosa para a ganância da especulação imobiliária alojada na prefeitura e no judiciário. Claro que a Justiça - os tribunais - também vão receber sua parte do botim de guerra contra as populações de baixa renda.

Esta justiça, junto com o PSDB, não pensa pouco ($$$$) nem pensa pequeno: eles querem TUDO, absolutamente TUDO, e não querem nenhum compromisso social. Não se importam com a concentração imobiliária e os confilitos que naturalmente irão aumentar. O caminho para se safarem de acusações e de responsabilizações é um só: criminalizar e judicializar o movimento social.

Afinal, já está em tempo de se criar uma CPI do Judiciário!

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Nota: Significado de Comitente:
adj. e s.m. e f. Que ou aquele que dá comissão ou encargo. O que consigna mercadorias ou dá ordens de compra a outrem.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

“VÂNDALOS?” A SÍRIA É AQUI – NO PINHEIRINHO

   "A única coisa que quero é tirar minhas coisas da casa, porque lá é onde estão o meu suor e a minha vida. Comprei fiado na loja de material de construção para poder levantar a minha casa com a ajuda do meu marido. Deixei de comprar carne para para comprar saco de cimento. Por isso, se for para deixar a casa pra sempre..., quero tirar tudo o que eu puder. Quero tirar, porta, janela, tudo! E se não puder eu vou botar fogo na minha casa, porque prefiro fazer isso a ver ela no chão"  (Relato de uma das despejadas em Pinheirinho).


 Laerte Braga

A invasão do bairro do Pinheirinho em São José dos Campos, São Paulo, foi um ato claro de terrorismo de Estado. O governador Geraldo Alckmin – integrante da organização criminosa OPUS DEI – fiel ao seu estilo traiçoeiro e covarde negociava pela frente enquanto armava a ocupação pelas costas.
A área onde viviam oito mil pessoas de mais ou menos duas mil famílias tinha ruas asfaltadas e rede de água e esgoto construídas pela municipalidade o que, por si só, caracteriza a condição de bairro.

O governo federal já havia manifestado interesse em encontrar uma solução para a permanência das famílias e o governador de São Paulo, laranja das várias máfias que gravitam em torno do tucanato, inclusive juízes, desembargadores e ministros de cortes superiores, devidamente propinado, coordenou a operação montada pelo mafioso Naji Nahas (envolvido em vários inquéritos e processos por fraudes, lavagem de dinheiro, etc, dos quais tem se safado comprando autoridades do Judiciário), um dos donos da massa falida da qual faz parte o terreno/bairro de Pinheirinho.

O interesse? Um grande projeto imobiliário com ganho para todos os que participaram do ataque terrorista de domingo, 22 de janeiro, contra os moradores do bairro. O sócio/parceiro de Naji Nahas é o banqueiro Daniel Dantas, um dos responsáveis pelo Plano Nacional de Privatizações do governo FHC.

A decisão de atacar Pinheirinho já estava tomada e fora alvo de advertência de jornalistas e moradores uma semana antes do dia em que aconteceu. A chamada “reintegração de posse” foi determinada em seguida suspensa por um desembargador de um tribunal regional federal e no domingo, 22, autorizada por uma juíza venal e com cobertura do corrupto Ivan Sartori que preside o Tribunal de Justiça (?) do Estado de São Paulo. Tudo isso com a certeza que na noite daquele mesmo dia o inútil e dispendioso STJ – Superior Tribunal de Justiça – garantiria a competência da justiça estadual. Ou seja, todo o esquema montado sem qualquer respeito pela vida, pelo ser humano. Os “negócios” valem mais que a vida no capitalismo. E não existe banqueiro, grande empresário ou latifundiário que seja humano.

Os acessórios desse esquema são governadores, prefeitos, senadores, deputados, juízes, desembargadores, ministros de cortes superiores, que têm seus mandatos comprados ou suas indicações bancadas por essas máfias. O PSDB é o principal agente de execuções do esquema.

Ivan Sartori no seu despacho que autorizou, no domingo, a ação policial, ou seja, dentro do combinado e pago, chegou a afirmar, escrever, que “repelindo-se qualquer óbice que venha a surgir no curso da execução, inclusive a oposição de corporação policial federal”.

Como disse o presidente nacional da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil – a ação do governo de São Paulo “rompeu o pacto federativo”. Vale dizer que o governo federal e nada são a mesma coisa na visão das elites políticas e econômicas que comandam de fato esse arremedo de democracia que temos.

Homens, mulheres, crianças, idosos arrancados de suas casas por “policiais militares” – polícia militar é uma aberração. As PMs são braços das elites e agem em função de seus interesses – marcados e levados para acampamentos improvisados, espancados, tendo seus pertences violados, vítimas da violência e da barbárie que é a marca registrada dessas “corporações” corruptas e com práticas que trazem de volta os tempos da ditadura.

A mídia de mercado mal tratou do assunto. Optou pelo início da temporada futebolística nos estados brasileiros e uma das redes nacionais, por fustigar a concorrente mais próxima, por conta de um estupro estimulado pelo diretor de um dos programas da rival.

A maior rede de tevê do País, a GLOBO, parte principal dessa mídia de mercado, podre e venal, chamou de “vândalos” os moradores do bairro de Pinheirinho. É uma das máfias que integra a grande máfia que controla o País.

As manifestações em Damasco, Síria, ou outras cidades daquele país, todas contra o governo central, são mostradas pela mesma GLOBO e ao contrário do aconteceu com os moradores de Pinheirinho, os agentes policiais do governo são chamados de braço de um ditador. Osmanifestantes que reagem à violência policial/militar de “defensores da democracia”.

É claro que a questão Síria é a questão Síria e a questão Pinheirinho é a questão Pinheirinho, mas em ambas está presente a barbárie capitalista. A forma como a mídia de mercado encara o assunto e mostra, exibe, é dentro do leque de interesses das grandes máfias capitalistas.

Neste caso, Pinheirinho, a Síria é aqui também.

A omissão do governo Dilma Roussef, como que paralisado no domingo, apresenta, por outro lado, uma presidente sem autoridade para intervir em situações assim, na prática houve uma insurreição em São Paulo, um desafio claro do governo estadual. Ficou por isso mesmo.

Declarações “cautelosas” de ministros como a de Gilberto Carvalho, sumiu o ministro da Justiça (existe isso?), nem se teve notícia da presidente, o tal “poste” que Lula elegeu. Isso pode ser entendido sem receio de erro como covardia.

A realidade brutal é que milhares de seres humanos tiveram seus direitos fundamentais violados por quadrilhas que controlam o Estado instituição e pelo jeito, vai ficar por isso mesmo.

Pinheirinho reforça uma convicção e deixa um exemplo pronto e acabado da realidade brasileira, ou do “capitalismo a brasileira” inventando por Lula.

Somos um País onde o governo não tem poder. O poder é exercido por máfias de banqueiros, grandes empresários e latifundiários que infiltrados na máquina estatal imobilizam o Executivo, têm no bolso a maioria dos deputados e senadores e agora partidariza o Poder Judiciário.

Pagar setecentos mil reais a César Peluso – presidente da suposta suprema corte – e a Ricardo Lewandovsky de forma indevida, ilegal, pode, Marco Aurélio Melo garante que o assunto não será investigado castrando os poderes do CNJ – Conselho Nacional de Justiça –, atropelando a Constituição.

Colocam-se à margem da lei.

Prender e arrebentar Pinheirinho também pode. É o desejo consumado dos grandes investidores, os que trazem “progresso” ao País.

Que progresso? Somos o paraíso das máfias internacionais, sequer um automóvel nacional de fato temos. O livro A PRIVATARIA TUCANA mostrou toda a podridão em que estamos imersos por conta do governo de FHC (presidente honorário e vitalício da grande máfia). Israel controla a indústria bélica do Brasil. O sistema financeiro está todo ele – a exceção dos dois bancos estatais – sob controle de grupos internacionais, majoritários ou não. Empresas francesas diante da dissolução em água fervente da Comunidade Européia correm para o Brasil naquele negócio que aqui o crime compensa, é garantido o retorno.

E para mídia trabalhadores brasileiros são “vândalos”. Naji Nahas, um criminoso sem qualquer escrúpulo, um pústula no sentido absoluto da palavra, escorado em seus laranjas, dentre eles os tucanos e lógico, Geraldo Alckmin, ganha o epíteto de empresário e no caso de Pinheirinho, ao lado de toda a violência, vai nascer mais um grande empreendimento imobiliário.

A ação da “polícia” mostrou que a Síria é aqui também.

E a ação e omissão dos governos exibem ao mundo que no Brasil o crime compensa.

domingo, 22 de janeiro de 2012

China dá o primeiro passo para reciclar os petrodólares

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012 - redecastorphoto - MK Bhadrakumar
quinta-feira, 19/1/2012, *MK Bhadrakumar, Indian Punchline China tiptoes to petrodollar recycling
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

 Ver também neste blog:
19/1/2012, Pepe Escobar, “EUA-CCG: atração fatal”
20/1/2012, Adam Hanieh, “Classe e Capitalismo no Golfo”
 
O acordo de troca de moedas assinado entre China e Emirados Árabes Unidos (EAU) durante a viagem do premiê Wen Jiabao pela região do Golfo Persa, que termina hoje, provocará incômodo nas capitais ocidentais, especialmente em Londres e Washington. A lista de países com os quais a China já tem esse tipo de acordo vai aumentando lenta e continuadamente, e esse é o primeiro desses acordos assinado com estado do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG).


Visita de Wen Jiabao aos Emirados Árabes Unidos
O acordo com os EAU cobre $5,5 bilhões – o comércio bilateral no ano passado, com as exportações chinesas responsáveis por 2/3, alcançou $36 bilhões – e visa a “fortalecer a cooperação financeira bilateral, promovendo o comércio e os investimentos e, simultaneamente, salvaguarda a estabilidade financeira regional” – segundo o Banco Central da China. A China está, essencialmente, fornecendo “seed money” [lit. “dinheiro semente”], para que os comerciantes não precisem converter ao dólar todas as transações, o que reduz os custos de câmbio.

À primeira vista, o critério é da conveniência, mas evidentemente lança sombras sobre vários outros campos. Bem visivelmente, a China está tratando de “sensibilizar” o Oriente Médio, em relação à função do renminbi [1]. Estar guardado como moeda de reserva nos cofres dos Emirados Árabes Unidos aumenta o prestígio do renminbi. Quanto aos Emirados Árabes Unidos, ter o poderoso Yuan em suas reservas é a medida mais segura que jamais tomaram no mundo da alta finança, dado que a valorização da moeda chinesa é evento praticamente garantido para o futuro.

Além disso, a troca de moedas chama a atenção para o rápido crescimento dos laços econômicos da China com a região do CCG. É uma declaração política de que a China trabalha para ampliar seus laços com os Emirados Árabes Unidos que, até agora, historicamente, sempre viveram como “bolsão” dos britânicos no Oriente Médio. Dos dhows [2], ouvem-se os gritos “Yo, ho, os chineses estão chegando!”

Mas estão chegando também com propósito bem claro. Abu Dhabi controla 7% das reservas comprovadas de petróleo do mundo, o preço do barril já está ultrapassando os $100, os EAU estarão renovando suas concessões de petróleo em 2014, e, então, as empresas chinesas com certeza estarão posicionadas para dar trabalho, na disputa pelas concessões, à Royal Dutch Shell, à ExxonMobil e à Total francesa. Claro, os EAU são mercado difícil, no qual a cultura de negócios ocidental está profundamente enraizada, mas... Nunca subestimem os chineses.

Acima de tudo, a China dá seus primeiros passos no mundo embriagador da reciclagem de petrodólares, e é difícil imaginar que Pequim não saiba o que está fazendo agora, nessa troca de moedas com os Emirados Árabes Unidos. A China é país milenar e sabe muito bem que qualquer longa marcha começa num pequeno primeiro passo.

EAU - Emirados Árabes Unidos, o "outro lado" do Estreito de Ormuz
O xis da questão é que as moedas dos países do Conselho de Cooperação do Golfo são aderidas ao papel verde, e seus massivos lucros são em grande parte encaminhados para os cofres dos bancos de Londres ou New York, ou são usadas para comprar ações e bônus do Tesouro dos EUA – e, isso, quando não são usadas para comprar armas ou noutros gastos extravagantes.

O negócio agora assinado entre China e Emirados Árabes Unidos meteu um pensamento muito excitante na cabeça dos estados do CCG: a possibilidade de faturar em renminbis – que muito preocupará o ocidente. Atualmente, ninguém precisará perder o sono, porque Pequim restringe rigidamente os fluxos de sua moeda fora das fronteiras chinesas, mas não há dúvidas de que a China já está implantando toda a infraestrutura indispensável para uma era, não muito distante, quando poderá dar adeus às estritas restrições hoje vigentes para o fluxo de moedas, se se interessar por usar o renminbi no comércio internacional.

É possível que em 2025 a China esteja importando três vezes mais petróleo dos países do CCG, do que Tio Sam.

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Notas dos tradutores:
[1] Renminbi [lit. “moeda do povo”] é o nome oficial da moeda oficial da China, introduzida pelo Partido Comunista da República Popular da China, na fundação, em 1949. Também chamado “Yuan” (abr. RMB; símbolo ¥; código CNY, CN¥, ? e CN?).
[2] Dhow - Embarcação mercante tradicional na região.

*MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Classe e capitalismo no Golfo - A Economia Política do Conselho de Cooperação do Golfo

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012 - Adam Hanieh - redecastorphoto

Adam Hanieh (entrevistado por Ed Lewis), Socialist Register, New Left Project Class and Capitalism inthe Gulf – The Political Economy of the GCC
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


- Para o senhor, os seis estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) – Arábia Saudita, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Qatar, Bahrain e Omã – são o centro político e econômico do Oriente Médio, mas não só pelas reservas de petróleo. O que, para o senhor, explica que os estados do Golfo tenham assumido essa posição de centralidade?
Há aí vários fatores. Primeiro, claro, o petróleo. Os estados do CCG estão entre os maiores fornecedores de gás e petróleo do mundo. Os números variam, mas pode-se dizer, repetindo o número mais citado, que 40-45% das reservas comprovadas de petróleo do mundo estão nos países do CCG, e 20% de todo o gás do mundo. Atualmente, se extrai ali cerca de 20% do petróleo extraído no mundo. Dada a importância dos combustíveis fósseis – como fonte de energia e matéria prima para a indústria petroquímica –, é enorme a importância dessa região para os padrões de acumulação da economia global.

Oriente Médio - mapa político

Outro fator, relacionado ao primeiro, são os altos níveis de capital excedente que acorreram para aquela região, como resultado das vendas de cru, gás e petroquímicos. Esses “petrodólares” foram fator-chave no desenvolvimento da arquitetura financeira global. Não é novidade. Durante os anos 1970s os fluxos financeiros que saíam do Golfo foram parte essencial do desenvolvimento dos mercados do eurodólar (depósitos em dólares norte-americanos em bancos fora dos EUA) e também como lastro para os bônus do Tesouro dos EUA (sobre isso, ver o trabalho de David Spiro). Assim, os petrodólares foram fator chave para empurrar adiante a hegemonia do dólar norte-americano e dar sustentação aos desequilíbrios financeiros globais que caracterizaram o mercado mundial ao longo das últimas décadas. A rápida financeirização da economia global, portanto, dependeu, em parte, da integração dos países do CCG no mercado mundial e nos circuitos financeiros.

Isso implica que o modo como o mercado mundial desenvolveu-se ao longo das últimas poucas décadas, com complexas cadeias de produção que iam da manufatura de bens em áreas de baixos salários, até a venda de commodities nos países capitalistas avançados, depende fortemente da produção de commodity do Golfo, tanto quanto de excedentes financeiros. Nesse sentido, as classes e o Estado na região do CCG constituíram paralelamente (e a formação de ambos é estreitamente ligada) ao desenvolvimento mais amplo do mercado capitalista mundial.

Por tudo isso, os países do Conselho de Cooperação do Golfo são altamente significativos em escala global. Mas, propriamente no Oriente Médio e no Norte da África, houve algumas transformações fundamentais ao longo das décadas recentes; e essas transformações dão caráter muito particular ao papel que o Golfo desempenha dentro da região.

O traço mais marcante das duas últimas décadas foi a generalização de políticas neoliberais em praticamente todos os estados da região. Aconteceu cooperação entre o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, grupos regionais como o Conselho Empresarial Árabe do Fórum Econômico Mundial e o Conselho da Agenda Regional sobre Oriente Médio e Norte da África, além de outras instituições bilaterais, como a USAID. Políticas chaves dentre essas políticas neoliberais foram: a liberalização das leis de propriedade, sobretudo nos setores imobiliário, financeiro e de telecomunicações, o que abriu caminhos para fortes fluxos de investimento externo; a privatização de indústrias estatais; reformas nos regimes tributários; fim dos subsídios para alimentos e energia; e o relaxamento de barreiras comerciais.

MENA (em azul)

Essas políticas tiveram acentuado impacto em escala nacional, o que levou ao empobrecimento das populações, por um lado; e, por outro lado, levou à concentração da riqueza. Em muitas economias árabes houve forte crescimento do setor ‘informal’, e migração de centenas de milhares de pessoas para áreas urbanas (ou através de fronteiras), à medida que se foi tornando mais difícil extrair da terra a sobrevivência. A estreita relação que liga a região MENA [orig. Middle East/North of Africa] ao mercado mundial – caracterizada pelo desenvolvimento orientado para as exportações, migrações e oscilação nos preços dos alimentos e da energia – expôs muitos países aos ventos da economia global. Todos esses fatores são relevantes para que se possa entender como a região foi atingida pela crise econômica de 2008, e o possível impacto, nessa parte do mundo, do atual torvelinho que sacode a economia global.

Mas o fator mais importante, é que essas medidas neoliberais não apenas reconfiguraram o poder de classe em escala nacional. Elas reconfiguraram o poder de classe também em escala regional. No Oriente Médio não se pode entender o “estado-nação” como uma economia política limitada internamente, sem considerar os laços que unem todas as economias ‘nacionais’ numa escala regional mais ampla. Há vários aspectos importantes a destacar aqui, mas o fundamental é a rápida internacionalização do capital baseado nos países do CCG, sobretudo depois do aumento dos excedentes financeiros que começou em 1999 e chegou ao pico em 2008. Claro que o núcleo do capital excedente do CCG continua a ser investido fora da região. Mas, nas duas últimas décadas, muitos daqueles fluxos foram dirigidos para outros estados do Oriente Médio. Tomado na escala regional – o CCG foi um dos principais beneficiários da cerca de uma década de privatização, desregulação e abertura dos mercados.

Alguns números ajudam a ilustrar. No período 2008-2010, segundo números do banco de dados Anima, da União Europeia, que rastreia investimentos na região, o Conselho de Cooperação do Golfo, como bloco, foi a principal fonte de investimento externo direto [orig. FDI] para Egito, Jordânia, Líbano, Líbia, Palestina, Tunísia, e a segunda para Marrocos e Síria. Em 2010, o capital baseado em países do CCG foi responsável por todos os grandes projetos alimentados com investimento externo direto anunciados na Argélia, Líbano, Líbia e Tunísia. São números impressionantes. E não se incluem aí os investimentos nos portfólios de ações na região ou outras formas de “empréstimos para o desenvolvimento” que fluem do Golfo para o resto do Oriente Médio. Deve-se observar também que, ao contrário do que pretendem muitos, esses fluxos não são necessariamente dirigidos por fundos soberanos ou empresas estatais dos países do CCG. Grande proporção daqueles fluxos vem de capitais privados nos países do CCG dirigidos a grandes projetos imobiliários, instituições financeiras, shopping-centers, telecomunicações e outros investimentos.

Os processos que comentei até aqui foram acentuados pela diferenciação regional cada vez mais marcada, que começou nos primeiros momentos da crise econômica de 2008. No próprio CCG, embora tenha havido alguns pequenos desastres financeiros causados por alto endividamento em alguns grandes conglomerados, o principal efeito da crise foi reforçar a posição das classes dominantes do Golfo. A natureza da formação de classe nos países do CCG (mais sobre isso, adiante) deslocou a crise na direção dos trabalhadores migrantes; e isso, somado ao apoio estatal que receberam as grandes entidades financeiras e industriais, significou que as elites do Golfo mantiveram-se fortemente protegidas contra os piores impactos dos tumultos econômicos.

A experiência da crise, diferente em diferentes partes da região, indica não só o relativo fortalecimento dos maiores conglomerados e das famílias reinantes do Golfo, mas, também, o alargamento da fissura que separa os estados do CCG e outros estados no Oriente Médio. Isso indica que o neoliberalismo, observado na escala regional, teve dois efeitos: enriqueceu as classes capitalistas nacionais e, simultaneamente, consolidou a posição do CCG, como bloco, dentro da região.


- De que modo o relacionamento entre o CCG e as potências externas, sobretudo os EUA, mas também outras, modela hoje a política interior, entre os estados do Oriente Médio?
Como já dissemos, a importância do CCG para o mercado mundial foi aumentada com a maior internacionalização e a financeirização do capital no plano global. Indicação disso é a deriva rumo ao leste do petróleo do Golfo e dos petroquímicos exportados, que desempenhou papel importante no processo de conter a produção chinesa. De 2000 a 2006, o consumo de energia no mundo aumentou cerca de 20%, com, só a China, responsável por 45% do aumento da energia consumida no mundo nesse período Em 2007, cerca de 50% das importações chinesas de petróleo cru saíam do Oriente Médio. Hoje, metade de todo o petróleo que a Arábia Saudita extrai vai para a China, mais do que os sauditas exportam para os EUA; e em 2025 as importações chinesas de petróleo do Golfo devem equivaler a três vezes as importações dos EUA dessa região. O fluxo de excedentes financeiros do CCG para os mercados dos países de capitalismo avançado acompanha essas exportações de hidrocarbonetos.

No contexto de relativo declínio do poder dos EUA, e com a emergência de um mundo cada vez mais multiplolar, isso significa que o ‘bloco’ CCG (e, por extensão, o Oriente Médio) é zona chave para decidir que rumo tomarão as rivalidades entre os principais países capitalistas em disputa. Por isso, precisamente, a estratégica de longo prazo dos EUA põe em lugar central o estreito relacionamento militar e político com os estados do CCG. Esse relacionamento foi forjado no pós-II Guerra Mundial, mas continuou a aprofundar-se durante os anos 1980s (de fato, a própria formação do CCG em 1981 foi em grande parte uma consolidação dos estados do Golfo sob o guarda-chuva militar dos EUA, no contexto da guerra Irã-Iraque). O domínio na região foi fator estratégico chave nas invasões do Iraque e do Afeganistão comandadas pelos EUA e também é fator estratégico importante nas atuais disputas pelo controle da Ásia Central.

A crescente beligerância contra o Irã também tem de ser analisada sob essa luz. O anúncio, pelos EUA, há poucas semanas, de que reposicionarão suas forças militares localizadas no Iraque, para estados do CCG, é mais uma confirmação. Os estados do CCG já hospedam, hoje, a 5ª-Frota dos EUA (no Bahrain) e o quartel-general avançado do Comando Central dos EUA (Centcom) (no Qatar) – responsáveis por todo o engajamento militar, pelo planejamento e por operações em 27 países, do Chifre da África à Ásia Central. As monarquias do CCG dependem absolutamente da proteção militar que os EUA lhes dão, e dependem também de firme apoio político do ocidente (como mostra a reação contra o levante popular no Bahrain). Evidentemente, há rivalidades e pontos de tensão nas relações entre os EUA e os países do DDG (como há também entre os próprios estados do ‘bloco’ CCG), mas o ponto central é que esse relacionamento é fator decisivo para o domínio dos EUA em escala global.

Esse é o quadro geral para que se possa entender como os EUA e outras potências estrangeiras veem o Oriente Médio como um todo. Outras explicações – como os argumentos ocos e, na essência, liberais, sobre um “lobby israelense” que se supõe que ‘mande’ na construção da política externa dos EUA – são falsas explicações que nada explicam e, em minha opinião, devem ser descartadas.

Mas também as rivalidades entre estados que competem no mercado do mundo capitalista também de ser vistas à luz, também, de interesses que aqueles estados compartilham. A formação de classe nos CCG é profundamente atravessada pelo desenvolvimento do capitalismo como processo total, e o maior medo de qualquer dos países que hoje lideram o mercado mundial – mercado que, vale lembrar, inclui a China e a Rússia – é que haja alguma mudança significativa naquela estrutura de classe.

Em outras palavras, uma preocupação da qual partilham todos os grandes estados capitalistas é assegurar que os estados que constituem o CCG permaneçam completamente alinhados com os interesses do capitalismo mundial. As políticas das grandes potências no Oriente Médio, por isso, têm um caráter duplo: por um lado, todas querem ampliar seus interesses específicos competitivos; e, por outro lado, todas trabalham de modo cooperativo para evitar qualquer tipo de ‘desafio’ popular que sugira que a riqueza regional venha a ser usada para beneficiar mais as massas pobres, que a microscópica camada das elites parasitas ricas. Esse é o significado profundo dos levantes que ocorreram ao longo de 2011.


- Exceto o Bahrain, os estados do Golfo são conhecidos por apresentar baixo nível de insatisfação política, o que dá aos regimes autoritários assento firme no poder, apesar das profundas desigualdades materiais. Por quê? Será mais o resultado de fatores domésticos, ou é resultado modelado significativamente pelo tipo de relacionamento que há entre o Golfo e a ordem global?
Há uma história oculta e em boa parte esquecida, das importantes lutas sociais no Golfo. Dos anos 1950s aos anos 1970s, houve vários bem organizados movimentos de militantes árabes nacionalistas e de grupos de esquerda na região. Vê-se a importância desses movimentos, para mencionar apenas alguns, nas greves e manifestações de protesto nos campos de petróleo sauditas, na guerrilha na região de Dhofar em Omã, e no amplo apoio, no Kuwait e em toda a região, à luta dos palestinos. Sempre houve forte solidariedade nas populações do Golfo à causa palestina e a causas árabes nacionalistas, quase sempre associadas à presença de trabalhadores árabes palestinos, egípcios, sírios, do Iêmen etc.

Esses movimentos sempre foram reprimidos pelas monarquias no poder (apoiadas fortemente por assessores britânicos e norte-americanos). Mas, além da repressão, também se viu uma transformação na natureza do mercado de trabalho na região, que se tornou bem evidente ao longo dos anos 1980s e 1990s. Durante esse tempo, sobretudo depois das deportações feitas nos anos da Guerra do Golfo de 1990-1991, houve uma deriva, de operários árabes, que se converteram em trabalhadores migrantes temporários no sul e no leste da Ásia. Esses trabalhadores deslocados assinavam contratos de trabalho de curto prazo, quase sempre eram alojados em campos distanciados de qualquer contato com a população local e submetidos a restrições de todos os direitos trabalhistas e políticos. Em muitos casos, sobretudo nos setores nos quais os salários são mais baixos, esses trabalhadores migrantes sequer podiam levar a família.

Hoje, os estados do Golfo dependem muito fortemente desse tipo de trabalho migrante temporário (cerca de 70% dos trabalhadores vindos do sul e leste da Ásia, e 30%, do Oriente Médio (proporção que é praticamente o inverso do que se via em meados dos anos 1970s). Esses fluxos de trabalho diferem dos fluxos de migração permanente que se veem em outras partes do mundo, porque são migrações de curto prazo, não se discutem nesse caso qualquer tipo de direitos de cidadania, e tudo se faz com vistas a conseguir mandar a maior quantidade possível de dinheiro para o país de origem dos trabalhadores. Em todos os estados do CCG, os trabalhadores migrantes temporários representam mais da metade de toda a força de trabalho; e em quatro deles (Kuwait, Qatar, Omã e Emirados Árabes Unidos) os trabalhadores migrantes temporários ultrapassam os 80% da força de trabalho local. Fluxos de trabalho temporário que dependem quase completamente da estrutura do trabalho que se vê ali, associam firmemente as regiões exportadoras de trabalho aos padrões de acumulação típicos do CCG.

A relativa estabilidade e a ‘adaptabilidade’ do capitalismo no Golfo e de suas elites governantes estão intimamente conectadas àquela estrutura de classes. Altos níveis de exploração são possíveis, porque o visto de residente para o trabalhador é diretamente associado a manter-se empregado. Se desempregado, o trabalhador torna-se ‘ilegal’ e tem de deixar o país. Em outras palavras, uma vez que o direito de permanecer no país é condicionado ao emprego, o empregador tem imenso poder desigual sobre o trabalhador. Além disso, a reprodução generacional de classe é muito fragmentada, porque os trabalhadores quase sempre voltam para casa ao final dos contratos – laços de memória ou de solidariedade de classe são muito frágeis, e a ação coletiva é quase impossível, ou muito difícil. E há também restrições legais que impedem ações de classe: os sindicatos são absolutamente proibidos na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos; e muito limitados nos demais estados.

Contrariamente ao quadro geralmente aceito dessas sociedades, a pobreza relativa não existe entre os cidadãos de países como a Arábia Saudita (e nos demais países do Golfo). Mas a ausência de uma classe trabalhadora de cidadãos locais implica que as lutas políticas não têm efetiva base social. O conflito político nesses estados (exceto no Bahrain, que discutirei adiante) assim origina-se em geral da discórdia dentro da elite (como entre diferentes ramos da família real, e os conflitos entre intelectuais religiosos e a monarquia) ou entre movimentos islamistas – não de alguma ampla luta de classes. Essa relativa calma política pode ser comparada à situação em dois países vizinhos, também ricos em petróleo, o Iraque e o Irã, onde a classe trabalhadora tem longa história de mobilização e de persistente oposição às políticas ocidentais no Golfo e, em geral, no Oriente Médio.

Podem-se ver as implicações disso na reação à crise econômica de 2008. Imediatamente depois da eclosão da crise, os estados do Golfo praticamente não conheceram protestos ou fúria populares. É indiscutível verdade que alguns projetos muito propagandeados foram suspensos, que o consumo despencou e que vários negócios cerraram as portas – mas a população de cidadãos passou pela crise sem maiores danos. O que se viu foi uma diminuição na contratação de trabalhadores migrantes e – por exemplo em Dubai – milhares deles foram mandados para casa. Isso implica dizer que a real dor da crise só foi sentida nos números sempre crescentes de desempregados nas regiões em volta do Golfo.

O Bahrain, porém, é importante exceção parcial a esse padrão. O Bahrain tem menos riqueza auferida do petróleo que outros estados do CCG (só 0,03% das reservas comprovadas do CCG), e as peculiaridades de seu desenvolvimento histórico deixam ver uma considerável divisão sectária entre uma elite governante sunita (dominada pela monarquia Al Khalifa) e a população majoritariamente xiita. Apesar disso, a estrutura social no Bahrain não é efeito de algum conflito religioso persistente entre xiitas e sunitas (como em geral se lê na imprensa, e é a versão divulgada pela monarquia bahraini). De fato, a discriminação contra a maioria xiita que vive no país não pode ser compreendida se não se consideram as vias da formação das classes no país. Enquanto o país continua a depender pesadamente do trabalho migrante – em 2005, cerca de 58% da população do Bahrain eram trabalhadores migrantes não cidadãos – a maioria da população xiita permanece desempregada, é extremamente pobre e enfrenta dura discriminação sistêmica.

Em anos recentes, viu-se no Bahrain uma longa e mais avançada experiência de neoliberalismo (se comparada à dos outros estados do CCG). Isso acentuou muito o desenvolvimento capitalista desigual – aumentando as distâncias entre os cidadãos mais pobres (concentradamente xiitas) e as elites do setor privado e do estado, que se beneficiaram da posição do Bahrain, como “a economia mais livre do Oriente Médio” (segundo o índice de liberdade econômica da Heritage Foundation 2010). Em 2004, o Bahrain Centre for Human Rights estimava que mais da metade dos cidadãos bahraini viviam na pobreza e, simultaneamente, os 5.200 bahrainis mais ricos acumulavam, somada, riqueza de mais de $20 bilhões. O caráter mais proletarizado da população de cidadãos bahrainis, que se sobrepõe às vítimas da discriminação sectária, e tem sido reforçado pelo profundo impacto do neoliberalismo, explica que movimentos de esquerda e de caráter trabalhista continuem a ser significativo no país. Em períodos de poucos anos, e repetidamente, acontecer grandes greves e levantes de trabalhadores no país – e a intifada de 2011 é o exemplo mais recente.

Mas a importância do Bahrain estende-se além do próprio país. Há considerável população xiita na província leste da Arábia Saudita, região rica em petróleo – bem próxima da fronteira do Bahrain. Nessa região houve protestos no início de 2011, e há grande temor entre os estados do Golfo (e entre as potências ocidentais que os apóiam) de que um movimento bem sucedido no Bahrain deflagraria lutas semelhantes na Arábia Saudita e em outros pontos. Isso explica a furiosa repressão desfechada contra o povo bahraini ao longo de 2011, que incluiu envio de tropas sauditas, dos Emirados Árabes Unidos e do Qatar ao país, para sufocar o levante. Mas não há dúvidas de que a história dos levantes no Bahrain ainda não terminou.


- Que importância tem a batalha pelos preços do petróleo? Que interesses estão em jogo, e como isso modela as políticas dos estados da região e as políticas externas das potências estrangeiras (dos EUA, por exemplo)?
Os fatores que determinam o preço do petróleo têm a ver com a oferta de diferentes tipos de petróleo e de outras fontes de energia, com a demanda global, com níveis de capital investido na indústria, com especulação e com a situação política no Oriente Médio. Tem havido tendência geral de alta desde 1999 (pontuada por forte queda logo depois do início da crise econômica de 2008) e, se as estimativas de oferta e procura globais são acuradas, o preço deve permanecer alto no médio prazo.

Petróleo caro mantém forte correlação com períodos de recessão, e como os anos 1970s mostraram, os países que mais dependam de petróleo importado podem ser duramente atingidos pelos preços altos. De fato, esse foi fator importante (facilitado em parte pela reciclagem dos petrodólares do Golfo) na explosão da dívida do sul, dos anos 1970s em diante. A tendência de alta dos preços dos alimentos que se vê hoje (em parte ligada ao preço dos hidrocarbonetos) indica que altos preços do petróleo pode ter impacto devastador, em vários sentidos.

O verso dessa medalha é, porém, o interesse que os estados do Golfo (e, claro, também as empresas de petróleo) tem em conseguir preços máximos. Há várias estimativas de qual seria o ‘ponto de equilíbrio’ para os estados do Golfo – o preço mínimo do petróleo para que aqueles estados cumpram seus compromissos fiscais. O FMI estimava, em 2008, que a Arábia Saudita precisava do petróleo a $49/barril para equilibrar seu orçamento fiscal naquele ano. Os valores mais baixos estimados pelo FMI para os estados do Golfo foram $23 para os Emirados Árabes Unidos e $33 para o Kwait; os mais altos $75 para o Bahrain e $77 para Omã. Na média, os países do CCG precisavam vender petróleo a $47/barril. Mas essas estimativas, muito provavelmente, são baixas demais. Temos de lembrar que os estados do CCG lançaram massivos programas de gastos, logo no início dos levantes, para tentar conter qualquer tipo de insatisfação popular interna. O Institute of International Finance, associação que reúne os maiores bancos do mundo, estimava, em março de 2011, que a Arábia Saudita precisaria vender o barril de petróleo, em média, a $88, em 2011 para que as contas do estado fechassem equilibradas. A Arábia Saudita é produtor chave, porque é dos poucos estados com potencial para aumentar a oferta mundial e, assim, fazer cair o preço do petróleo (embora alguns analistas da indústria discutam se essa possibilidade realmente existe e dizem que as reservas sauditas teriam sido superestimadas). Em resumo, há inúmeros diferentes fatores, interligados aqui de modo complexo. Mas me parece que o cenário mais provável em futuro próximo é alta continuada de preços e crescimento continuado de excedentes nos estados do CCG.


- A “Primavera Árabe” pode ameaçar o equilíbrio regional de poder e o equilíbrio das forças de classe dentro dos estados do Golfo?
Esse é, precisamente, o verdadeiro potencial dos levantes que se viram ao longo de 2011. Os dois processos que comentei – o peso crescente da economia regional e o impacto diferenciado da crise global – implicam a impossibilidade de tratar as escalas nacional e regional como esferas políticas diferentes. O que se vê à superfície como lutas ‘nacionais’ limitadas dentro de estados-nação individualizados, cresce inevitavelmente e desafia as hierarquias regionais mais amplas. Nesse contexto aconteceram os levantes da ‘Primavera Árabe’.

Há aí diferentes aspectos. Por um lado, pode-se ver o papel dos EUA e outras potências estrangeiras na região e, muito importante, também a posição de Israel. Os levantes (sobretudo o dos egípcios) fazem frente a todos esses aspectos, porque os regimes que estão sendo desafiados eram centrais para o modo como essa ordem regional foi construída. É errado, portanto, ver nos levantes exclusivamente uma questão de ‘democracia’ – como se a luta ‘política’ pudesse ser separada da luta ‘econômica’, ou a luta ‘nacional’, da luta ‘regional’.

E o mesmo se pode dizer do papel que os estados do CCG desempenham na economia política regional. Não estou dizendo que os slogans e demandas dos levantes visassem explicitamente os estados do CCG dessa maneira (ou que visassem explicitamente os EUA ou Israel), mas eles tinham, em sua lógica própria, um desafio implícito à ordem regional, que se veio desenvolvendo ao longo das duas últimas décadas.

As estruturas sociais que caracterizavam o regime político no Egito, na Tunísia e em outros pontos eram, elas mesmas, parte do modo como o Conselho de Cooperação do Golfo – associado à dominação pelas potências estrangeiras e à posição de Israel – estabeleceu o seu lugar baseado nas hierarquias do mercado regional. As lutas contra a ditadura que os levantes populares fizeram são, simultaneamente, interconectadas ao modo como o capitalismo desenvolveu-se em toda a região e, nesse sentido, são lutas contra o Golfo.

Isso explica as tentativas furiosas que os estados do Conselho de Cooperação do Golfo fizeram para conter e esvaziar os levantes – são tentativas absolutamente centrais na onda contrarrevolucionária que se vê hoje na região.

Parece-me que se pode dizer, convincentemente, que o imperialismo na região está articulado com – e em larga medida opera através dos – estados do CCG. A invasão da Líbia, em operação conduzida pela OTAN, é claro exemplo disso, com o Qatar e os Emirados Árabes Unidos, em especial, desempenhando papel importante naquela invasão. Os estados do Golfo enviaram soldados, dinheiro e equipamento e – mais importante – encarregaram de garantir legitimidade política para o ataque à Líbia. Há vários outros exemplos – dentre outros, nos bilhões de dólares que os estados do Golfo prometeram aos regimes no Egito e na Tunísia; a intervenção militar no Bahrain; o convite a Jordânia e Marrocos, para que se juntem ao CCG (com o quê, todas as monarquias reacionárias da região ficam afinal reunidas num só bloco); e o papel central do CCG nas tentativas para mediar e controlar os levantes na Síria e no Iêmen. E, talvez o mais importante, as ameaças sempre crescentes que estão sendo feitas contra o Irã. De fato, a questão do Irã é tanto questão do CCG, quanto de Israel.

Portanto, sim, os levantes representam real possibilidade de alterar a ordem regional. O Egito, com sua ampla e bem organizada classe trabalhadora e organizações de esquerda muito mais fortes, é ponto chave da luta. Mas, voltando aos temas acima, no longo prazo não há soluções ‘nacionais’ para os grandes problemas do desenvolvimento desigual que o Oriente Médio e o Norte da África enfrentam. Esses problemas exigem solução pan-regional, e – e aqui está o ponto central – essa solução pan-regional implica confrontar a posição dos estados do CCG, que é o núcleo duro do capitalismo na região.

Pensar com a própria cabeça: educação e pensamento crítico na América Latina



por Raquel Sosa Elízaga*
proibido pensar 300x280 Pensar com a própria cabeça: educação e pensamento crítico na América LatinaAs sociedades latino-americanas devem se reinventar constantemente sempre que cada experiência de surgimento de liberdade seja seguida de golpes dos velhos e novos conquistadores.
Simón Rodríguez, o admirável mestre de todos nós que acompanhou Simón Bolívar em seu périplo, passou toda sua vida imaginando, desenhando e construindo os fundamentos de uma proposta educacional a partir da explosão da criatividade de nossos povos, a qual só pode ser explicada pelo irrenunciável desejo de liberdade perante a contínua opressão (Rodríguez, 1975). Consideremos que, se o colonialismo produz impotência e dissabor, seu efeito mais perverso é induzir o conquistado a se conformar diante do fato de que sua liberdade tenha sido cerceada, talvez para sempre, e que para continuar existindo deve inevitavelmente se dar por vencido, aceitando e repetindo aquilo que seus opressores lhe impõem. A sequência dramática é tão atroz que o conquistado acaba considerando o pensamento imposto como se fosse o seu e a obstrução de sua liberdade como parte do caminho que o levará ao aprimoramento de sua vida.
Retroceder esses passos, rompendo com esses tortuosos vínculos, para muitas pessoas pode parecer um salto no escuro, uma aventura sem destino, uma espécie de suicídio intelectual e moral. Entretanto, nenhuma geração humana pode renunciar ao seu direito de criar, de imaginar e projetar sua própria vida, sob o risco de transformar-se em um reprodutor conformista de tudo o que em verdade lhe produz um autêntico mal-estar cultural: a frustração, o desenraizamento, a perda de objetivos e o esquecimento dos sonhos – um problema do qual padecem muitos jovens em nossas doídas sociedades ainda no dia de hoje. Todos esses males não têm outra origem nem outra razão de ser além da ruptura dos vínculos com nossa realidade; uma realidade de sociedades oprimidas, empobrecidas, construídas sobre a desigualdade, a exclusão e o esquecimento, mas que também possuem a energia, a vontade e a esperança de serem capazes de remontar sua odiosa condição de submissão.
Nossa aposta, portanto, não pode ser mais irracional do que aquilo que nos impuseram os conquistadores: “inventamos ou erramos”, disse muito bem Simón Rodríguez, afirmando que o único caminho possível para nós é o que decidamos construir entre todos a partir de nossa própria experiência, de nossas próprias perguntas, de nossas necessidades e sonhos. Precisamos ser os mais radicais possíveis, isto é, capazes de desentranhar, sem medo ou falsas suposições, as raízes dos nossos problemas e o modo em que poderemos nos empenhar a remontá-los, com as forças e a capacidade de que disponhamos em cada época. Precisamos aprender a olhar uns aos outros com outros olhos, nossos olhos, para refazer o amor por nossa terra, por nossos saberes, pela cor e pelo cheiro da nossa pele. As sociedades latino-americanas devem se reinventar constantemente sempre que cada experiência de surgimento de liberdade seja seguida de golpes dos velhos e novos conquistadores. Principalmente – e talvez esta seja a condição mais dramática que enfrentamos – nossas sociedades devem se proteger do fato de que a memória perversa da opressão as chame para regressar a ela como lugar seguro, apesar de toda dor que produz. Lembro-me muito bem das frases de Norbert Lechner, que, no contexto da ditadura pinochetista, afirmava que não havia outra sociedade que a sociedade possível, que não cabia outra imaginação além daquela indicada por quem se sentia cansado dos extremos, que somente o reconhecimento da necessidade de segurança, de tranquilidade, de proteção, de ordem, podia ser a garantia de uma sociedade harmoniosamente moderna (Lechner, 1986). Descanse em paz este pensador e vida longa aos jovens chilenos que nos devolveram a esperança com sua teimosia em resistir ao colonialismo contemporâneo, com sua cruel pilhagem e sua opressão sobre a educação.
A Reforma Educacional Neoliberal: A história que vivemos e pouco vimos
Assim como os chilenos, o que todos nós latino-americanos precisamos é voltar ao momento em que as baionetas e os uniformes verdes substituíram a inteligência no país de Neruda, De Rokha, Violeta Parra e Salvador Allende. Devemos à pesquisadora Marcela Gajardo a recuperação das abomináveis circulares da Junta Militar, quando impôs um Comando de Institutos Militares, cujos delegados seriam responsáveis por:
garantir que as atividades educativas e anexas (…) sejam realizadas em todos os níveis do sistema escolar (…) com uma sujeição estrita aos postulados preconizados pela H. Junta de Governo; obedecendo fielmente às diretrizes emanadas do Ministério de Educação; observada a mais estrita disciplina e justiça; entregando-se exclusiva e totalmente a trabalhos puramente profissionais com complexa exclusão do proselitismo político ou de ações obscuras de grupos ideológicos (…).
Esta circular, emitida em agosto de 1974, forçava os diretores das escolas, sob pena de destituição imediata de seus cargos, a informar a seus superiores quando acontecessem casos nos quais os docentes, seus auxiliares ou trabalhadores administrativos da educação emitissem “comentários políticos, difusão de comentários mal intencionados sobre as atividades de governo, difusão de piadas ou histórias estranhas relacionadas à gestão da Junta, (…) distorção dos conceitos ou valores patrióticos, distorção das ideias contidas nos textos de estudo (…)”, etc. (Gajardo, 1982). A reforma da educação no Chile foi realizada no contexto de uma brutal repressão ao povo chileno, repressão esta que deixou uma parte significativa de vítimas entre os estudantes e suas famílias e os docentes e trabalhadores organizados, cuja influência acreditava-se ser ampla e completamente contrária aos fins da ditadura (Sosa, 2010).
Diferentemente do que muitos pedagogos supõem, não foram os Chicago Boys que introduziram o modelo neoliberal no Chile, mas sim a necessidade de suprimir toda a memória e experiência organizacional independente; foi o feroz empreendimento de subordinar completamente as consciências das chilenas e chilenos que abriu caminho para as concepções empresariais que hoje recebem seu primeiro grande golpe no país em que foram fundadas (Vázquez, 2010). Seguindo a lógica burguesa que bem descreveu Marx em O Manifesto Comunista, a Junta Militar e seus aliados internacionais se empenharam para – e em grande medida conseguiram – fazer com que tudo o que era sólido se dissolvesse no ar, isto é, que uma prolongada tradição democrática e de desenvolvimento da inteligência criativa e autônoma das organizações civis e sociais, dos colégios e universidades, sindicados e partidos, intelectuais, acadêmicos e artistas, fosse dissolvida no ácido da perseguição, da queima de livros, da morte, do desalojamento e do refúgio de centenas de milhares de pessoas.
Meus amigos e mestres queridos Agustín Cueva, René Zavaleta, Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Eduardo Ruiz Contardo, Carlos Morales Oyarzún, Hugo Zemelman, entre muitíssimos outros, beberam nesse recipiente do conhecimento que foi o Chile da Unidade Popular, e acredito que nunca deixariam de refletir sobre os desastrosos efeitos produzidos por sua destruição.
Surpreendentemente, o que foi difícil de perceber a partir dos espaços de nossas universidades foi o verdadeiro alcance do processo de colonização mental que ocorreu a partir da imposição do esquema neoliberal em nosso subcontinente. Isto se explica em grande medida por duas razões: a primeira, obviamente, é que praticamente todas as nossas universidades foram objeto de perseguição, tiveram seus professores e seus estudantes perseguidos, presos ou assassinados, tendo o desenvolvimento do pensamento crítico violentamente suspenso em seus centros de pesquisa e salas de aula.
Além disso, a falta de visão do que ocorria na educação como um todo também se deve ao fato de que foram precisamente nossas universidades as que receberam o primeiro e mais definitivo golpe da reforma educacional, com a imposição da linguagem empresarial ou mais precisamente bancária (não no sentido de Paulo Freire, mas no sentido do Banco Mundial), o qual posteriormente se generalizaria em todas as instituições sociais, da educação à saúde, do funcionamento da economia aos meios de comunicação. Foi em nossas universidades que começou a ser utilizada a linguagem das competições, da certificação, da busca pela excelência, do estabelecimento de índices de desempenho, da avaliação de acordo com parâmetros internacionais e dos estímulos à produtividade (De Moura e Levy, 1997).
Praticamente todas as nossas universidades aceitaram e incorporaram, a partir de meados dos anos 1980, as orientações e instrumentos de avaliação cuja aplicação se tornou condição para concessão de empréstimos que o Banco Mundial ofereceu para superar o desastre da redução generalizada dos orçamentos públicos, após o ajuste estrutural dos anos 1980. Estes instrumentos se transformariam nos fundamentos de uma nova concepção da vida pública e, de maneira central, da educação (De Wit, Jaramillo et al, 2010; Thorn e Soo, 2006). Não podemos deixar de insistir em que, tal e qual a orgulhosa cidade da Nova Espanha foi construída sobre as ruínas do Templo Maior dos mexicas em Tenochtitlan, os neoliberais primeiro destruíram, mas logo se empenharam em surgir como os únicos capazes de controlar e dirigir as consciências de todos nós, com a anuência e a subordinação sem limites daqueles que ficaram encarregados de nossas instituições públicas: os novos conquistados pela religião da competitividade. Os fanáticos religiosos da nova evangelização neoliberal seriam as autoridades de nossas universidades e centenas de colegas de todas as áreas do conhecimento, ungidos como professores de excelência e encarregados de avaliar e, dentro do possível, suprimir as marcas de um pensamento crítico. Durante os anos 1990 e boa parte da década passada, poucas instituições aceitaram editar e promover os trabalhos de autores qualificados como ideologizados, de escassa projeção internacional, ou cuja produtividade fosse julgada como insuficiente, particularmente porque dão conferências, participam de eventos ou ainda editam suas obras em âmbitos não arbitrados.
Um olhar para o futuro
Os neoliberais introduziram em nossa região uma estratégia de controle e coerção que consiste no abuso sistemático dos meios de comunicação para socializar suas posturas com relação a todos os assuntos da vida pública, juntamente com o desenvolvimento das forças da ordem para atemorizar e conter as populações que manifestem críticas ao fato de que alguns poucos tenham se apropriado do direito de todos de decidir sobre os assuntos vitais de seu país.
Temos também todos os elementos para afirmar que um dos pontos de destaque da chamada reforma educacional foi a eliminação de conteúdos e práticas que tinham a tendência a estimular nos estudantes a imaginação, a memória, a criatividade. Com exceção dos casos de Cuba e Venezuela, em todo o restante da América Latina a reforma impôs como eixos a supressão da capacidade de localização histórica e geográfica, assim como a eliminação do reconhecimento das peculiaridades culturais e da identidade de nossos povos, a partir da escola. Isto, obviamente, no contexto do estabelecimento de um sistema de controle-subordinação que garantisse a repetição de lemas, a execução de ordens e a identificação dos estudantes com a busca da conquista individual, a aceitação das regras do mercado, o conformismo e o desmemoriamento.
Acredito que para avaliar os danos causados à nossa capacidade de pensar, deveríamos começar estabelecendo um índice de desaprendizagem, o que significaria compreender os limites da repressão da identidade, da memória, da vontade, do projeto de futuro nos alunos formados pelo sistema educacional nas gerações do neoliberalismo. Durante estes anos, algo muito profundo se perdeu de forma acelerada e acredito que é o momento de começarmos a processar a reversão dessa perda, pois, ao não fazê-lo, corremos o grave risco de que em alguns anos fiquemos sem instrumentos de conhecimento que nos permitam lançar mão de nossas reservas estratégicas para salvar nossos saberes tradicionais, os princípios e valores sobre os quais se fundou a existência de comunidades e povos, o uso não destrutivo dos recursos naturais, sociais e estratégicos de nossos países.
Portanto, temos uma dívida com nossa memória, que é desenterrar o esquecimento e poder reconstruir, passo a passo, as nossas necessidades que podem novamente dar sentido aos atos de nossa vida. Precisamos poder voltar a nomear tudo, transformando os conceitos e categorias impostos nestes negros anos em referências secundárias e armazenando a enorme tradição intelectual e cultural que fez da América Latina a região de maior riqueza histórica viva do mundo. Temos de nos lembrar de nossos mortos e de nossos vivos, sujeitos presentes nessa longa luta por sermos nós mesmos, que herdamos e da qual fazemos parte. Precisamos ser capazes de transformar nossas bibliotecas, nossas casas e as casas de todas as famílias de nossa região em espaços de restauração de uma identidade da qual só vimos pedaços nos olhos de nossos conquistadores. É absolutamente indispensável que iniciemos uma nova e mais profunda etapa de revolução de independência e de reconquista de nossa soberania, que não é outra coisa senão nosso poder de decidir, nos mais mínimos detalhes, como queremos viver. Pensar com a própria cabeça é o começo de olhar o mundo e ter a valentia de recusar a existência de um pensamento único, da falsa religião do mercado, do comércio da morte. Pensar com um pensamento crítico deve nos levar a saber que é possível transformar nossas cabeças e nosso horizonte, confiando que as soluções que propusermos serão certamente melhores do que as que nos obrigaram a aceitar. A liberdade terá seus custos e suas consequências, mas seus caminhos se iluminam com a felicidade que sentiremos por não termos de viver à sombra de nós mesmos. Estas formosas terras e nós, os seres humanos que nelas habitamos, merecemos dar um espaço à alegria e à esperança verdadeiras.

* Raquel Sosa Elízaga é doutora em história, latino-americanista e socióloga. Professora pesquisadora do Centro de Estudos Latino-Americanos da UNAM desde 1976. Autora de Hacia la recuperación de la soberanía educativa en América Latina.

** Publicado originalmente no site Revista Fórum.
Extraído do site Envolverde