quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Síria: paraíso “jihadi”

10/01/2013 - Redecastorphoto
- 11/01/2013, por Pepe Escobar, Asia Times Online, The Roving Eye
- “Syria: A jihadi paradise
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Bashar al-Assad, pois, falou em tom marcial – pela primeira vez em sete meses.

Como se poderia prever, culpou “terroristas” e “fantoches do ocidente” pela guerra civil na Síria.

O ministro turco das Relações Exteriores, Ahmet Davutoglu (foto), aquele dos (antigamente) “zero problemas com os vizinhos”, comentou que Assad só lê relatórios do seu serviço secreto.

Calma-lá, Ahmet! Bashar pode não ser nenhum Stephen Hawking, mas está administrando bastante bem os seus buracos negros.

E Assad tem um plano: diálogo nacional, que levará a uma carta constitucional nacional – a ser submetida a referendo popular – e, depois, governo ampliado e anistia geral.


Bashar al-Assad  no Opera House, Damasco em 6/1/2013
A questão é quem conseguirá usufruir toda essa felicidade engarrafada, porque Assad descarta total e absolutamente, não só nova oposição síria, mas também o Exército Sírio Livre [orig. Free Syrian Army (FSA)], todas as forças que, para ele, não passam de gangues de mercenários recrutados que recebem ordens de potências estrangeiras cujo único objetivo é dividir a Síria.

Seja como for, Assad tem um plano.

Primeiro estágio: as potências estrangeiras que hoje financiam os “terroristas” – como o conglomerado CCGOTAN, Conselho de Cooperação do Golfo + Organização do Tratado do Atlântico Norte – terão de parar de financiar os terroristas.

Quanto a isso não há qualquer concessão: só no estágio seguinte o Exército Sírio fará cessar todas as suas operações, embora sempre se reservando o direito de responder a provocações que não se possam evitar.

O plano de Assad nada diz sobre o que acontecerá ao próprio Assad. O único ponto sobre o qual nunca houve divergência entre as várias correntes da oposição sempre foi que “o ditador tem de partir”, antes de ser possível alguma negociação.

Nada disso, respondeu Assad. Assad será candidato à própria sucessão, em eleições que aconteçam em 2014.

Como se isso já não bastasse para torpedear de vez, para pôr a pique, todas as arquiteturas inventadas pelo atual mediador da ONU, Lakhdar Brahimi (foto abaixo) [1], há também o ponto crucialmente complexo de Brahimi insistir em incluir a Fraternidade Muçulmana (FM) em qualquer governo sírio de transição.

Brahimi deveria prestar mais atenção em onde se mete. É como se a ONU insistisse em rezar por um milagre (a abdicação de Assad).

A Síria não é Tora Bora [2]

Quem queira saber o que está realmente acontecendo na Síria, basta prestar atenção ao que diga o secretário-geral do Hezbollah, Sheikh Hassan Nasrallah (foto-E), que fala das coisas como as coisas são.

Há também o que Ammar al-Musawi (foto-abaixo), terceiro homem do Hezbollah – é o ministro de Relações Exteriores de facto do Partido de Deus – disse a meu colega italiano Ugo Tramballi. [3] O cenário mais provável pós-Assad, se houver, será “não um estado unitário, mas uma série de emirados próximos à fronteira turca, e alguém proclamará um estado islâmico”.

A inteligência do Hezbollah – a melhor que há no mundo, sobre a Síria – é clara: “um terço dos combatentes na oposição síria são extremistas religiosos; e dois terços das armas que circulam são controladas por eles”.

Resumo da ópera: trata-se de guerra do ocidente, lutada na Síria por procuração; o Conselho de Cooperação Golfo (CCG) operando como “linha de frente” para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Leitores de Asia Times Online já sabem disso há eras, como também sabem da mentira de proporções tectônicas segundo a qual haveria alguma autocracia do Golfo promovendo alguma “democracia” na Síria.

A Casa de Saud abençoada pelos deuses da geologia usou até o último grão de areia para subornar quem pudesse subornar para tentar imunizar-se contra os miasmas da Primavera Árabe, mas, pelo menos no Kuwait, os ventos de mudança já forçam a família Al-Sabah a aceitar um primeiro-ministro que não é fantoche do emir.

Sim, petromonarcas! Mais dia menos dia, vocês todos virão abaixo!

Quem quiser continuar a ignorar Musawi, que meta a cabeça na areia o quanto queira; nem por isso evitarão a volta do chicote no lombo do chicoteador, “como no Afeganistão”.

E Musawi acrescenta:
A Síria não é Tora Bora; está no litoral mediterrâneo, praticamente na Europa”.

A Sírianos anos 2010s é remix do Afeganistão nos anos 1980s – com altíssima probabilidade de o chicote voltar sobre o lombo vocês sabem de quem.

E os que sigam os mais cegos que vivem a repetir que o Hezbollah seria organização “terrorista”, anotem aí: o Hezbollah está trabalhando em íntima cooperação com a ONU, nas fronteiras do campo de combate, ao lado dos mais de 10 mil Capacetes Azuis comandados pelo general italiano Paolo Serra – para manter o sul do Líbano protegido contra qualquer contágio/contaminação pela guerra civil síria.

O ditador deixará o poder. É inevitável...
De novo?!

Não surpreendentemente, as gangues de mercenários apresentadas e rotuladas como se fossem alguma “oposição síria” rejeitaram em bloco o plano de Assad.

Para a Fraternidade Muçulmana (ao lado) – aspirante ao trono sírio, ou, no mínimo, a uma parte dele – Assad seria “criminoso de guerra” e terá de ser julgado.

Para Georges Sabra, vice-presidente do tal “combinado” norte-americano/qatari chamado “Coalizão Nacional”, as palavras de Assad teriam sido “declaração de guerra contra o povo sírio”.

Como se previa, o Departamento de Estado dos EUA – ainda não comandado por John Kerry – disse que Assad estaria “descolado da realidade”.

Londres decretou que o discurso não passaria de hipocrisia e, imediatamente, inventou mais dois dias de reunião “secreta”, agendada para essa semana no Wilton Park em West Sussex, em que se misturarão os membros da tal “coalizão” e o velho selecionado de sempre de “especialistas”, professores de universidades, funcionários de governos do CCG e as tais “agências multilaterais”.

William Hague (foto), o espetacularmente patético ministro de Relações Exteriores do Reino Unido tuitou – pela centésima milésima vez – que “Assad deixará o poder em breve. É inevitável”.

Fatos em campo sugerem fortemente que Assad não deixará coisa alguma nem irá a parte alguma em futuro próximo.

Quanto ao que dizem os britânicos, que “a comunidade internacional pode dar apoio a um governo de transição”, nenhum sírio bem informado – dos que sabem que essa guerra civil está sendo financiada, mantida e amplamente coordenada pelo ocidente, especificamente pela parte OTAN do grupo CCGOTAN – deu qualquer importância à “novidade”.

Os sírios bem informados farejam a ação de um rato – ocidental – na obsessiva repetição de que a guerra na síria seria “guerra sectária”; para ter certeza de que nada é bem assim, consideram a quantidade imensa de sunitas influentes que permanecem leais ao governo sírio.

Farejam o rato – ocidental – quando olham para trás e veem que tudo começou exatamente no momento em que o gasoduto Irã-Iraque-Síria, de US$10 bilhões (que passa ao largo da Turquia, membro crucial da OTAN) começou a ser viabilizado, com chances reais de ser construído.

Seria enorme impulso econômico para uma Síria independente, balde de água geladíssima, gesto não-e-não, contra tudo que tenha a ver com interesses ocidentais.

O governo Obama 2.0 – e Israel – gostariam muitíssimo de ver a Fraternidade Muçulmana no poder na Síria, acompanhando o modus operandi do que está sendo feito no Egito. A Fraternidade promove a ideia de um “estado civil”; basta examinar as poucas “áreas libertadas” na Síria, para saber o de que civilidade se trata, quando encarna em degoladores de vários matizes, seguidores linha-dura da Xaria.

Mas o que o CCGOTAN e Israel realmente desejam é um modelo à Iêmen, para a Síria: ditadura militar, sem o ditador. Pelo que se pode ver, continuarão a só obter, no curto prazo, um Paraíso Jihadista.

Cortem a cabeça deles!
Há quase um ano, o número 1 da al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri (foto), convocou todos os fiéis sunitas linha-dura do Iraque e Jordânia ao Líbano, Turquia, e de toda parte, para viajar à Síria e, alegremente, derrubar, esmagar Assad.

E eles começaram a viajar, e continuam a chegar, incluindo – como aconteceu no Afeganistão – chechenos e uigures e asiáticos do sudeste da Ásia, reunindo gente de todo o tipo, do Exército Sírio Livre à Frente al-Nusra – principal milícia de assassinos, que hoje já reúne mais de 5.000 jihadistas.

Matéria publicada essa semana pela Quilliam Foundation [4], instituto de estudos de contraterrorismo com sede em Londres, confirma o papel da Frente Al-Nusra. O principal autor do relatório, Noman Benotman, é líbio, ex-jihadi, com laços muito estreitos com al-Zawahiri e com o falecido Geronimo”, também conhecido como Osama bin Laden.

Frente al-Nusra, braço sírio da al-Qaeda

A Frente Al-Nusra é, de fato, o braço sírio da al-Qaeda no Iraque (AQI), marca terrorista registrada do falecido Abu Musab al-Zarqawi, também conhecida como Estado Islâmico do Iraque, depois que Zarqawi foi incinerado por um míssil dos EUA, em 2006.

Até o Departamento de Estado sabe que o emir da al-Qaeda no Iraque, Abu Du’a comanda ambos os grupos, a AQI e a Frente al-Nusra, cujo emir é Abu Muhammad al-Jawlani.

É a al-Qaeda no Iraque que facilita o vai-e-vem de comandantes iraquianos – todos com vasta experiência de luta em terra contra os norte-americanos – para e de áreas sensíveis na Síria, enquanto os sírios, iraquianos e jordanianos da Frente al-Nusra também trabalham pelo telefone, para arrancar financiamentos de fontes do Golfo.

A Frente Al-Nusra quer – claro, e o que mais quereria?! – um Estado Islâmico, não só na Síria, mas em todo o Levante.

Tática favorita: carros e caminhões-bomba, com suicidas-bomba, e carros-bomba acionados por controle remoto. No momento, a Frente Al-Nusra mantém um regime tenso de colaboração/concorrência com o Exército Sírio Livre.

E o que acontecerá a seguir?
A nova Coalizão Nacional Síria é piada.

Aqueles bastiões de democracia organizados no CCG estão já completamente submergidos no tsunami jihadista. A Rússia demarcou a linha vermelha e a OTAN não se atreverá a bombardear; russos e norte-americanos estão discutindo detalhes.


Mais dia, menos dia, Ancara afinal lerá a mensagem que grita pelos muros – e voltará atrás, revertendo para uma política de, pelo menos, reduzir ao mínimo qualquer problema com os vizinhos.

Assad viu e entendeu com clareza O Grande Quadro – daí o tom “confiante” de seu discurso. Agora se trata de Assad contra os jihadistas.

A menos que, ou até que, a nova CIA, agora sob o comando de John Brennan, o Exterminador & seus drones, opte por intrometer-se diretamente no quadro da guerra clandestina-suja, para vingar-se.

Notas dos tradutores
[1]Brahimi é o especialista em conflitos que envolvam forças islamistas (...) preferido do ocidente. Tem currículo consistente na arte de criar a ilusão e que haja negociações em curso onde nenhuma negociação exista, e a real discussão prossiga, inalterada, no campo de batalha. Kofi é independente demais; Brahimi obedece em tempo integral” (12/8/2012, redecastorphoto, MK Bhadrakumar, em: “A proposta do Irã ao ocidente, sobre a Síria”).

[2] Sobre isso ver: “Batalha de Tora Bora

[3] 8/1/2013, “Al-Mussawi, numero tre di Hezbollah: ‘Se crolla Assad l'estremismo islamico si avvicinerà all'Europa’” [Al-Mussawi, número 3 do Hezbollah: “Se Assad cair, o extremismo islâmico se aproximará da Europa”], entrevista ao enviado Ugo Tramballi, Il sole 24 ore, Itália.

[4]  8/1/2013, em Quilliam Foundation, press release: QUILLIAM RELEASES NEW STRATEGIC BRIEFING “JABHAT AL-NUSRA” 

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2013/01/pepe-escobar-siria-paraiso-jihadi.html

Ver também:
07/01/2013 – redecastorphoto, Teatro da Ópera, Damasco:Discurso do presidente Bashar al-Assad: Passos para a paz na Síria”.
08/01/2013 – redecastorphoto, Franklin Lamb em:Assad no Teatro de Ópera de Damasco”.
- Um beabá para a al-QaedaHassan N. Gardezi

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Aldeia Maracanã: é preciso resistir

14/01/2013 - extraído do site RedeDemocrática
- escrito por Antonio Elias Sobrinho (*)

Nas imediações do famoso estádio do Maracanã, atualmente em obras para os jogos da Copa do Mundo de 2014, encontra-se o antigo Museu do Índio, hoje habitado por mais de vinte famílias indígenas, originárias de várias etnias, que viviam dispersas pelo Rio de Janeiro.

Atualmente, encontram-se seriamente ameaçadas de despejo pelos poderes estaduais e grandes empresas envolvidas nas obras que querem desalojá-las para a melhor exploração do espaço, segundo os interesses mercantis mais adequados que possam atender melhor à especulação e a acumulação de capitais.

Aquele prédio em ruínas, que tem 147 anos de existência, abrigou o Museu do Índio até a década de 1970, quando foi transferido para Botafogo.

A partir de então, até aproximadamente 2005, ele ficou abandonado, quando começou a ser ocupado. Porém, como os índios não contaram com qualquer tipo de ajuda dos poderes públicos, não puderam evitar sua lenta degradação, mas pelo menos contribuíram para uma conservação mínima.

Além disso, incrementaram uma série de atividades culturais em seu interior, além de servir de espaço para a realização de congressos para variados movimentos sociais e para agregação de índios de várias procedências, importante para estimular e desenvolver traços significativos da cultura indígena em nosso estado.

Assim, qual a razão ou as razões que podem explicar a investida de forma tão impetuosa do Estado contra aquelas famílias e contra aquele prédio que, pela sua própria idade deveria ser um ponto de atração, inclusive para os turistas?

Além disso, sabe-se que existem vários estudos técnicos ligados à prefeitura que recomendam não só sua recuperação como o seu tombamento como patrimônio histórico. Sem dúvida, fica claro que o ponto central dessa questão encontra-se no grande projeto que os poderes públicos, nos seus mais variados níveis, articulados com as grandes empresas de especulação imobiliária, reservam para esta cidade.

Aliás, como é de conhecimento de todos, não é de hoje que esses agentes vem fazendo uma imensa propaganda pela mídia de que a cidade do Rio de Janeiro, uma das mais valorizadas e mais bonitas do mundo, encontra-se degradada, necessitando, portanto, de uma ampla reformulação; isto é, para eles é necessário adequar as estruturas da cidade para que ela possa atender as demandas de um processo de acumulação de capitais, que se encontra numa crise que se arrasta desde a década de 1970.

Assim, esse projeto, que abrange grande parte do centro da cidade, da zona portuária, das principais favelas, bem como o Maracanã e suas imediações onde se encontra a chamada Aldeia Maracanã, é importante que se faça uma modernização, não só para que a cidade corresponda as expectativas das novas formas de investimentos, incrementados pelo capital financeiro internacional, como também seja transformada num centro importante do turismo, sobretudo a partir dos grandes eventos que se avizinham, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

Nesse caso, segundo as informações, toda aquela área deverá ser transformada e explorada por um imenso complexo que envolve estacionamento, e lojas de vários tipos, em suma, num imenso centro empresarial.


É importante, nesse aspecto, ser mencionado o fato de que, como a taxa de lucro dos investimentos produtivos, deixaram de ser atrativos, devido a grande crise internacional, a maior parte dos investimentos passaram a ser direcionados para as várias formas de especulação.

A isso, deve-se o fato de que grande parte dos países que sempre ocuparam o eixo central do sistema, entraram em declínio acelerado, com índices de crescimento econômico ridículos. Esse processo foi agravado por um movimento de desregulamentação financeira, que provocou uma onda devastadora de especulações para aplicação de grande parte dos capitais fictícios, que não estavam encontrando espaços atrativos na produção.

Então, passaram a farejar, em todas as partes do mundo, oportunidades para a realização desses capitais em mercados rentáveis.

Essa estratégia não tem dado bons resultados, porém, tem servido para adiar as manifestações mais selvagens do sistema que esgotou praticamente todos os seus instrumentos estratégicos para encontrar uma saída.

Por isso, eles têm jogado um peso enorme em todas as oportunidades, inclusive usando a violência, para afastar todos os grandes sinais de resistência.

Ontem mesmo [13/01], um batalhão de choque da polícia militar cercou a aldeia e só não concretizou mais uma das suas ações porque encontrou reação de militantes e movimentos sociais. Além disso, não encontraram respaldo legal; mas não nos iludamos. Sem dúvida nenhuma voltarão e desta vez com forças muito mais consistentes, dispostos a passar por cima de tudo e de todos.

Disso, sabemos tranquilamente, assim como também sabemos que agressões mais arrojadas virão.

A compreensão dessa realidade deve servir para que todas as forças sociais que se opõem a esses métodos de dominação, típicos de um sistema em desespero, que é necessário a união e a ação do maior número de pessoas possíveis não só para se opor a esta ordem como também para tentar construir um projeto que seja alternativo.

Sabemos das dificuldades, sobretudo pela dispersão dos movimentos sociais e das propostas políticas, mas também sabemos das dificuldades do campo dominante, que tem utilizado, sistematicamente, instrumentos ilegítimos para continuar esse processo que só tem provocado devastação.

Assim, o exemplo da Aldeia Maracanã é um ponto simbólico bastante significativo nesse processo, o qual não podemos entregar os pontos facilmente.

A Rede Democrática, constituída em sua maioria por ex-combatentes de organizações armadas ao antigo regime militar, esteve, através de vários membros dando apoio na defesa da continuação do projeto da Aldeia, o qual continuaremos.

(*) Antonio Elias Sobrinho é professor de História pela UFF e Mestre em Serviço Social pela UFRJ

Fonte:
http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=3640:a-aldeia-maracan%C3%A3-%C3%A9-preciso-resistir

Veja também:
Povos indígenas e o desenvolvimentismo do governo Dilma Rousseff - Roberto Antonio Liebgot 

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Povos indígenas e o desenvolvimentismo do governo Dilma Rousseff

Informe nº 1046 - 2012 - Conjuntura da Política Indigenista
- por Roberto Antonio Liebgot, Cimi Regional Sul - Equipe Porto Alegre
- blog do Conselho Indigenista Missionário

"Uma breve retrospectiva da política indigenista em 2012 constata a absoluta falta de disposição política, por parte do governo Dilma, para que os programas e projetos que beneficiem as comunidades indígenas sejam efetivamente executados", escreve Roberto Antonio Liebgott, Cimi Regional Sul - Equipe Porto Alegre.

Segundo ele, "tal fato estimula a cobiça de segmentos econômicos e políticos que ambicionam a exploração das terras indígenas e seus recursos ambientais, hídricos e minerais.

O desenvolvimentismo proposto pelo governo visa essencialmente fortalecer os grandes conglomerados econômicos independentemente dos povos, culturas, pessoas e do meio ambiente".

Eis o artigo.


Ao examinar a conjuntura indigenista brasileira, em 2012, salta aos olhos a intensificação de campanhas contra os direitos indígenas, protagonizadas especialmente por políticos, empresários, latifundiários e organizações ruralistas.

A Folha de S. Paulo tem publicado, no caderno Mercado, uma coluna escrita por Kátia Regina de Abreu (foto acima), senadora pelo PSD, do estado do Tocantins. A vinculação da senadora com setores empresariais e pecuaristas fica evidenciada na vigorosa campanha contra as demarcações de terras indígenas, da qual ela se tornou porta-voz.

Algumas ideias defendidas na referida coluna compõem uma plataforma claramente articulada em defesa do agronegócio.

- Kátia Abreu afirma, por exemplo, que a situação de violência contra o povo Guarani-Kaiowá será resolvida com ampliação da assistência e não com garantia de terras;
- que não se trata de um conflito entre os indígenas e o agronegócio e sim da tentativa de ONGs e da Funai de impor sua vontade;
- que o direito indígena a terra deve estar subordinado aos interesses dos setores considerados produtivos;
- que a ideia de que os índios vivem em condições abjetas, possuem poucas terras e estão entregues à própria sorte é um equívoco.

Tais afirmações são sustentadas em rasos argumentos de base quantitativa, gerados em pesquisas cujos procedimentos estão longe de resguardar parâmetros constituídos no sólido terreno dos estudos antropológicos.

Outro exemplo das investidas contra os direitos indígenas são os pronunciamentos ofensivos ou as ameaças claramente formuladas contra as comunidades indígenas por parte de grandes proprietários de terras, fazendeiros, empresários cujas alegadas propriedades estão sobrepostas à terras tradicionais de alguns povos indígenas.

É o caso, por exemplo, dos pronunciamentos do ex-garimpeiro Claudino Garbin (foto), que possui uma empresa de terraplanagem, comprou terras no Paraguai e uma propriedade de 33 hectares no entroncamento das BRs-101 e 280, em Araquari/SC.

Ele argumenta que o processo de expansão econômica não pode sofrer interferências, pois é o maior valor a se resguardar.


Diferente do que pensa o empresário, os preceitos constitucionais são, isto sim, o que se deve resguardar acima de qualquer interesse privado.

Em uma reportagem publicada no site Notícias do Dia, em 24 de novembro de 2012, Claudino Garbin afirma: "Se colocarem índios aqui, a bala vai comer solta. Que não sejam loucos". [1]

Na mesma reportagem, o deputado federal Valdir Colatto (PMDB/SC) (foto) insurge-se contra os direitos indígenas com a absurda afirmação de que a Constituição determinou que as terras deveriam ser demarcadas até cinco anos da promulgação, portanto as terras que não foram demarcadas nesse período não são indígenas e não necessitam de regulamentação.

De acordo com a tese do parlamentar, a inoperância, a morosidade, a omissão do governo anularia os direitos assegurados na Constituição. Se assim fosse, praticamente todos os direitos sociais da população brasileira seriam nulos, considerando-se que os governos raramente cumprem prazos determinados.

Os exemplos destacados mostram como se concretiza, em discursos variados, publicados em diferentes fontes, uma onda anti-indígena com argumentos racistas, preconceituosos, que apelam para uma classificação e hierarquização dos segmentos sociais para justificar que os direitos de alguns (fazendeiros, ruralistas, grandes empresários) sejam respeitados, enquanto os de outros (povos indígenas, quilombolas) sejam negligenciados.

Observam-se também no parlamento brasileiro expressões desses diversos interesses nas terras e em seus potenciais, ao considerar os projetos de lei que tentam impedir que se concretizem as demarcações.

Exemplo disso é a PEC 215/2000 que propõe que as demarcações de terras sejam autorizadas pelo Congresso Nacional. Sem contar as dezenas de outros projetos de lei apresentados por parlamentares para, de algum modo, restringir os direitos indígenas.

Orçamento indigenista contingenciado e violações dos direitos humanos
Os dados da execução do orçamento indigenista, ao longo do último ano, também demonstram o descaso do governo Dilma para com os povos indígenas. Chegamos ao final de 2012 com apenas 71,37% do orçamento indigenista liquidado, conforme dados do programa Siga Brasil/Senado Federal.

Programas e ações fundamentais para a garantia da vida dos povos indígenas tiveram uma pífia execução de seus recursos. É o caso do item Delimitação, Demarcação e Regularização de Terras Indígenas, no qual foram utilizados apenas 37,66% dos R$ 15.878.566,00 alocados para este fim.

Tal aspecto, em si, já é evidência da falta de vontade política para que se cumpram os dispositivos constitucionais que asseguram as terras a estes povos. E se considerarmos que apenas 34% das terras indígenas encontram-se registradas, vemos que, além de ser insuficiente, o orçamento para 2012 sequer foi executado pelo governo, que preferiu, mais uma vez, ceder às pressões de segmentos veementemente opostos aos direitos indígenas.

A falta de uma atuação mais decisiva por parte do governo no tocante às demarcações é demonstrada pelas 339 terras indígenas que ainda encontram-se sem nenhuma providência por parte do poder público. Fica mais clara ainda a negligência se olharmos apenas para o ano de 2012 quando apenas sete terras indígenas foram homologadas pela presidente da República.

A morosidade e negligência na condução dos processos de regularização das terras indígenas têm efeitos diretos sobre a vida de centenas de pessoas.

Não podemos deixar de observar também as crescentes demandas judiciais contra procedimentos de demarcações de terras, em curso ou até em fase de julgamento definitivo.

Normalmente as decisões têm um caráter liminar que suspendem os procedimentos demarcatórios até que o mérito seja decidido pelas instâncias superiores, no caso Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal.

Exemplo disso é a decisão do TRF da 4ª Região, que suspendeu os efeitos da Portaria Declaratória da terra indígena Mato Preto, no estado do Rio Grande do Sul. Em função destas manobras jurídicas, os processos se arrastam por décadas sem que haja uma solução para o litígio imposto.  

Há, inclusive, uma correlação entre este aspecto e o estado caótico em que se encontra a saúde dos povos indígenas. Seja porque, somente quando têm a posse da terra é que as comunidades conseguem restabelecer algumas condições culturais fundamentais, seja porque somente com a finalização do processo de demarcação as pressões e violências praticadas por setores interessados nas terras são atenuadas.

Não bastasse isso, observa-se no atual governo a continuidade de uma modalidade de discriminação cruel, que é a recusa, por parte Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), de atendimento de indígenas que não vivem em áreas demarcadas ou regularizadas.

Neste caso, os indígenas são duplamente penalizados:
primeiro, pela negligência e morosidade na condução dos processos de demarcação e,
segundo, pela desassistência praticada para conter gastos com demandas sociais, fundada sob o argumento de que os indígenas não necessitariam de atenção especial por viverem em periferias urbanas, em áreas (ainda) não reconhecidas.

Outro item da execução orçamentária de 2012 a ser considerado é o que se destina à Estruturação de Unidades de Saúde para Atendimento à População Indígena, para o qual o governo estava autorizado a gastar o montante R$ 26.650.000,00 e liquidou somente R$ 2.176.388,00 (o que corresponde a tão somente 8,17% do previsto).

Vale ressaltar que a situação da saúde indígena (gerada em grande medida pela falta de assistência adequada) é tão grave que os procuradores da República na 6ª Câmara de Revisão e Coordenação Ministério Público Federal, ao participar de uma reunião com integrantes de diferentes regiões do Brasil no mês de novembro deste ano, constataram que os índios estão morrendo hoje não por epidemias, mas por displicência do governo.

Como resposta a essa grave situação, o Ministério Público deflagrou uma campanha denominada Dia D da Saúde Indígena, na qual várias ações judiciais foram propostas exigindo do Governo Federal a adoção de medidas para tentar solucionar problemas como falta de medicamentos, ausência de água potável, transporte adequado para pacientes que vivem nas comunidades etc.

Em documento assinado por procuradores da 6ª Câmara, denuncia-se que a mortalidade de crianças indígenas, por exemplo, está acima da média nacional. A cada mil crianças indígenas nascidas vivas, 52,4 morrem na infância índice duas vezes maior que o do restante da população do país [2].

[ver também ao final - Mortalidade infantil indígena cresce 513%, segundo Cimi]

Enquanto o governo Dilma investe em grandes obras, contingenciando os recursos orçamentários imprescindíveis para assegurar dignidade e atendimento adequado à população indígena, agravam-se os problemas de saúde e precarizam-se as já escassas estruturas existentes.

Tanto é assim que, nas 4.750 aldeias mapeadas pela SESAI, existem apenas 717 postos de saúde, sendo que a maioria deles não dispõe de equipamentos e pessoal para seu efetivo funcionamento.

De acordo com a vice-procuradora-geral da República e coordenadora da Câmara das Populações Indígenas do MPF, Dra. Deborah Duprat (foto), nas aldeias indígenas está faltando tudo: médico, remédio, transporte para levar pacientes para os hospitais. O quadro é de extrema indigência.

Retomando os números da execução orçamentária de 2012, o dado mais impactante é, sem dúvida, o de Saneamento Básico em Aldeias Indígenas para Prevenção e Controle de Agravos, com previsão de R$ 67.986.192,00 dos quais foram aplicados apenas R$ 86.403,00 (o que corresponde à vergonhosa cifra de 0,13%).

Para ressaltar a displicência do Governo Federal em relação a este quesito, basta retomar dados divulgados pelo Censo 2010 do IBGE, que indicam que nas áreas indígenas registram-se os maiores déficits em redes de esgoto sanitário, se comparadas com as demais residências em diferentes regiões do país. Em apenas 2,2% das terras indígenas todos os domicílios estão ligados à rede de esgoto, rede fluvial ou fossa séptica e somente 16,3% são atendidos pela coleta de lixo.

Diante da grave situação vivida pelas comunidades e povos em todo o país, a falta de execução do orçamento previsto para a questão indígena é injustificável e se caracteriza como uma violação dos direitos humanos.
Nesta mesma direção, intensifica-se a perseguição e criminalização de lideranças indígenas que lutam pela terra, em especial nos estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Bahia, Pernambuco, Pará e Maranhão.

Somem-se a isso as dezenas de casos de agressão contra comunidades, resultando, em 2012, no assassinato de pelo menos 55 pessoas.


A omissão do governo em relação ao intenso processo de violências enfrentadas pelos Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul, e que se pode caracterizar como genocídio, é talvez o elemento mais significativo deste processo amplo de agressão aos direitos do ser humano. Os abusos contra este povo são denunciados por organizações no Brasil e no exterior.

Vale ressaltar, ainda, que o estado de Mato Grosso do Sul continuou sendo, em 2012, recordista em violências contra os povos indígenas, e ali as comunidades são obrigadas a viver em beira de estradas uma situação de miséria cercada de riquezas por todos os lados.

Realidade semelhante vive o povo Guarani no estado do Rio Grande do Sul, submetidos em maioria a uma vida em acampamentos provisórios, sem condições adequadas de saúde, de saneamento, de alimentação.

Registre-se aqui que das sete homologações de terras indígenas assinadas pela presidente da República em 2012, nenhuma se destinou a povos de Mato Grosso do Sul ou do Rio Grande do Sul.

Ao fazer esta breve retrospectiva da política indigenista em 2012 constata-se a absoluta falta de disposição política, por parte do governo Dilma, para que os programas e projetos que beneficiem as comunidades indígenas sejam efetivamente executados.

Tal fato estimula a cobiça de segmentos econômicos e políticos que ambicionam a exploração das terras indígenas e seus recursos ambientais, hídricos e minerais.

O desenvolvimentismo proposto pelo governo visa essencialmente fortalecer os grandes conglomerados econômicos independentemente dos povos, culturas, pessoas e do meio ambiente.

Há grandes desafios a serem enfrentados pelos povos e suas organizações: entre eles, o de apresentar as demandas, mobilizar-se em torno delas para que efetivamente sejam acolhidas e transformadas em políticas públicas, assegurando sua participação em todas as etapas; e o de pressionar o poder público para que as terras sejam efetivamente demarcadas, protegidas, estando na posse e usufruto assegurados aos povos e comunidades.

Sem que isso aconteça, não é possível vislumbrar o efetivo combate às violências, ao descaso, à omissão e à dependência de políticas paliativas e compensatórias.

Sem isso, na hora de discutir políticas públicas os povos indígenas serão tratados como "entraves" num modelo de desenvolvimento sem garantias, que privilegia alguns setores e penaliza muitos.

Porto Alegre (RS), 04 de janeiro de 2013.

Fonte:
http://www.dirigida.com.br/news/pt_br/2012_conjuntura_da_politica_indigenista_o_cimi/redirect_11519631.html

Notas do texto:
[1] Ver em:
http://www.ndonline.com.br/joinville/noticias/39132-donos-de-terra-de-araquari-sao-alvo-de-desapropriacao.html
[2] Ver em: http://6ccr.pgr.mpf.gov.br/institucional/clipping/edicao_especial_dia_d_saude_indigena

Veja também:
O tsunami da fome nas aldeias do Mato Grosso do Sul - Egon Heck
- Rio de ouro e soja - Carlos Juliano Barros
- Casaldáliga deveria ser papa, mas - de novo - está ameaçado de morte - Leonardo Sakamoto
- Dia do índio. Qual sociedade é composta por selvagens? - Leonardo Sakamoto
- Bispo dom Pedro Casaldáliga é ameaçado por invasores de Marãiwatsédé - Comissão Patoral da Terra
- No Mato Grosso, tensão aumenta entre xavantes e latifundiários em terra cobiçada por agronegócio - Felipe Milanez
- Mortalidade infantil indígena cresce 513%, segundo Cimi - Leonardo Sakamoto

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.