quinta-feira, 24 de março de 2011

Educação Escolar Indígena: a quem interessa o caos



Por Egon Dionísio Heck*


Escola paralisada. Mais de 300 alunos Kaiowá-Guarani da Terra Indígena Nhanderu Marangatu, município de Antonio João ficam sem aula por dois dias. A professora Leia Aquino, que já foi diretora da escola, desabafa: "Não podemos aceitar o que estão fazendo. Estão querendo acabar com nossas conquistas, nossa luta para ter uma escola nossa, do nosso jeito Kaiowá-Guarani, com autonomia e comprometida com a luta do nosso povo pela terra e por nossos direitos”.

Diante da interferência nociva da prefeitura, substituindo toda a direção da escola que era formada por professores indígenas, por professores não indígenas, restou como forma de protesto, a paralisação das aulas por dois dias, na Escola Mbo’erro Tupã’i Arandu Reñoi.

É importante lembrar que esta escola teve um papel relevante na resistência ao despejo desta comunidade em15 de dezembro de 2005. Em vários momentos foram os professores que tomaram iniciativas de mobilização pela terra e contra as inúmeras violências de que foram vítimas membros da comunidade.

Essa situação não é isolada. A maioria das escolas Kaiowá-Guarani estão à beira do caos, com a interferência direta de muitos dos 26 municípios onde existem comunidades indígenas. Além disso, constata-se uma interferência política do governo do Estado, procurando acabar com quase 20 anos de luta e conquista do movimento indígena no Mato Grosso do Sul. Um dos principais alvos é o curso de formação de professores Ará Verá. Em recente documento os professores indígenas advertem: "É extremamente urgente a necessidade de resolver problemas locais das escolas indígenas, pois está havendo um retrocesso político e pedagógico em várias aldeias, por conta de gestores públicos que ainda não entendem este processo, que continuam desrespeitando a lei e que não aceitam nossos direitos” (documento – Esclarecimentos, reivindicações e apelo aos órgãos públicos, sobre a questão de Educação Escolar Indígena no Cone Sul do Mato Grosso do Sul – março 2011).

Com relação ao importante processo de formação dos professores Kaiowá-Guarani através do Curso Ará Verá, reconhecido nacionalmente como uma das experiências mais exitosas nessa área, ameaçado de extinção, ou mutilação pelo governo do estado, "Exigimos a abertura de uma nova turma para o curso Ara Verá ainda em 2011, e outras com entrada anual, tendo em vista a real demanda para formação de professores Guarani-Kaiowá, cuja responsabilidade é do Estado, quando na verdade, o MS está muito aquém de cumprir esta determinação legal. Essas vagas são absolutamente necessárias também para suprir exigências estabelecidas aos municípios de ter profissionais habilitados e concursados, o que só é possível, com um quadro formado, cuja demanda está aumentando cada vez mais, e considerando também que a formação dos indígenas é muito recente. Caso essa necessidade e exigências não sejam atendidas, as leis que garantem os cargos de magistério aos indígenas serão inúteis e as comunidades serão novamente invadidas por profissionais não indígenas sob o argumento de que não há profissionais indígenas habilitados. A demanda para formação de professores indígenas já foi levantada várias vezes (para o etnoterritório foram mais de 100, em 2009; e para a seleção convocada em 2010 foram 240 inscritos), mas a Gestão da SED ignora essa urgência, alegando que é "só isso” (40 vagas) que podem oferecer. Essa afirmação parece uma cruel ironia, diante da propaganda que o governo faz sobre o sucesso da educação no estado. Perguntamos: "sucesso” para quem? Por outro lado, essa afirmação é enganosa, pois se o curso é de uma Escola estadual, deve ser garantido o seu funcionamento regular, ainda que parcelado e específico, com os recursos e a estrutura necessária, como para qualquer outra escola da rede. Por que a discriminação? "

Não bastassem essas interferências nocivas vemos várias escolas indígenas sob forte e destrutivo impacto dos mais diversos interesses, desde igrejas até disputas internas apoiadas por forças externas. Diante desse quadro grave o movimento de professores exige das autoridades do poder executivo estadual e municipal "Retomar o diálogo com o movimento/organizações indígenas como parceiro da construção das políticas públicas, uma vez que estamos num estado democrático e a lei estabelece a obrigação do estado de consultar as comunidades e os povos indígenas”.

O movimento dos professores, no documento já referido, além de denunciar a grave e caótica situação em que está envolvida a educação escolar indígena, dizendo-se decepcionados pela falta de providências aos inúmeros documentos enviados às autoridades, procuram explicitar sua maneira de pensar e agir:

"Em primeiro lugar é necessário entender o modo de ser dos Guarani e dos Kaiowá. Nosso povo se encolhe quando é atacado, ameaçado, manipulado, desrespeitado, humilhado. E é isso que tem acontecido, com muito mais frequência do que a sociedade sabe e que os encarregados de nos defender escondem. As instituições fazem de conta que nos consultam, que agem de acordo com a lei. Mas isso não é bem verdade, é só fachada. Para conseguirem o que querem, manipulam, escondem, acusam, ameaçam, não só a nós, mas também aos que nos apóiam. E isso nos assusta, nos intimida. Nossa história nos levou a sermos desse jeito: temos medo daquilo que não conhecemos; medo daqueles que conhecemos e que sabemos que podem nos prejudicar; medo de perder o pouco que conquistamos; medo de errar; medo da autoridade autoritária. Se a autoridade fosse democrática e sensível às nossas necessidades, não teríamos medo, pois haveria diálogo e o diálogo não assusta ninguém. Pelo contrário, o diálogo é o único caminho para a paz. Sem diálogo, conversa, transparência, é que surgem os conflitos, a repressão e o medo.

Nossa forma de ser é pela não violência, pela paciência, pela palavra escutada e falada através do conselho, da negociação e não da imposição. Nós só falamos quando nos dão a palavra, não tomamos a palavra de ninguém, por isso parece que não temos reação, que não temos opinião...

Nossa palavra é também escrita e já mandamos muitos documentos falando qual é a nossa posição, mas parece que as autoridades não sabem ler, pois não entendem o que colocamos ou simplesmente ignoram nossa palavra escrita. Não sabemos mais o que fazer. Mas nossa paciência também tem limites... A tomada de decisão é sempre demorada e muito pensada. E isso pode parecer que não sabemos tomar decisões. Mas nós sabemos que não é isso. Somos cautelosos, mas não somos crianças. Temos paciência; mas, não somos bobos; queremos ser consultados, ouvidos e respeitados; e tem muita coisa que precisa ser mudada nas instituições públicas e no comportamento dos gestores públicos” (idem, doc. movimento professores).

A pergunta que se impõem nesse momento importante de luta dos povos Kaiowá-Guarani pelos seus direitos e seus territórios, no qual os professores e escolas indígenas têm papel relevante, é a quem interessa essa situação caótica em que se encontram inúmeras escolas desse povo, num claro retrocesso pedagógico e político. O movimento dos professores exige respeito ao seu protagonismo e autonomia, com uma educação diferenciada e de qualidade, formadora de lutadores pelos direitos de seu povo.

Povo Guarani Grande Povo

Brasília, 22 de março de 2011

*Egon Dionísio Heck é assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul
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fonte: Envolverde/Adital