21/01/2014 - Venício Lima - Carta Maior
- Artigo publicado originalmente no Observatório da Imprensa.
Segundo a Wikipedia, “a autoria da oração é atribuída ao monge Hermano Contracto, que a teria escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenan, na Alemanha.
Naquela época, a Europa central passava por calamidades naturais, epidemias, miséria, fome e a ameaça contínua dos povos nômadas do Leste, que invadiam os povoados, saqueando-os e matando”.
Cresci repetindo mecanicamente esta súplica sem saber o que poderia ser “um degredado filho de Eva” ou, muito menos, por que razão estaríamos todos a “suspirar, gemer e chorar” num “vale de lágrimas”.
Com o tempo, ensinaram-me que o “pecado original” nos tornava a todos “degredados”, e que a expressão “vale de lágrimas” tinha sua origem numa passagem do Salmo 84 [na numeração da Bíblia Hebraica], conhecido como Salmo dos Peregrinos.
Anos mais tarde, me dei conta de que, no Salmo 84, o significado literal de “vale de lágrimas” é muito diferente daquele que prevalece na interpretação cristã dominante.
[Registro, embora este não seja o objetivo aqui, que palavras e expressões mudam de significação ao longo do tempo, da mesma forma que palavras são introduzidas no nosso cotidiano e passam a constituir uma nova linguagem, um novo vocabulário dentro do qual se aprisionam determinadas formas de pensar e ver o mundo.
Ver, por exemplo, “A linguagem seletiva do ‘mensalão’“.]
Ver, por exemplo, “A linguagem seletiva do ‘mensalão’“.]
Baca e as lágrimas
A tradução literal da passagem do Salmo 84 no original hebraico é:
“Bem-aventurados os homens cuja força está em Ti, em cujo coração os caminhos altos passando pelo vale de Baca, fazem dele um lugar de fontes; e a primeira chuva o cobre de bênçãos.”
Na Vulgata Latina (Salmo 83), no entanto, que serve de referencia para as interpretações cristãs, o “vale de Baca” é substituído por valle lacrimarum:
“Beatus vir cui est auxilium abs te ascensiones in corde suo disposuit in valle lacrimarum in loco quem posuit etenim benedictiones.”
Na verdade, a palavra hebraica “baca” significa tanto lágrima, choro, como bálsamo.
As “balsameiras” (amoreiras) são árvores que “choram” porque produzem uma resina de cheiro agradável, o bálsamo, palavra que, figurativamente, significa conforto, lenitivo, alívio.
Esta é razão pela qual o vale, ao norte de Enom, recebeu o nome de Baca: é o vale das árvores que “choram”.
Ele era também a última etapa da peregrinação, na encruzilhada das estradas que vinham do norte, do oeste e do sul, com destino ao Templo em Jerusalém [foto].
As “balsameiras” (amoreiras) são árvores que “choram” porque produzem uma resina de cheiro agradável, o bálsamo, palavra que, figurativamente, significa conforto, lenitivo, alívio.
Esta é razão pela qual o vale, ao norte de Enom, recebeu o nome de Baca: é o vale das árvores que “choram”.
Ele era também a última etapa da peregrinação, na encruzilhada das estradas que vinham do norte, do oeste e do sul, com destino ao Templo em Jerusalém [foto].
Os peregrinos, que chegavam até Baca, depois de uma longa caminhada, eram bem-aventurados e poderiam transformar as chuvas em fontes (de água) e de bênçãos.
Na pregação cristã, ao contrário, o “vale das árvores que choram” foi se transformando no “vale de lágrimas” e até mesmo no “vale da morte”, uma condição inescapável da vida humana, uma sequência de sofrimento e purgação para os pecadores na busca do perdão de Deus.
Um pastor presbiteriano assim descreve o vale de Baca:
“É muito indesejável.
a) É árido. Não tem rios de alegria; os poços, cavados por alguns dos peregrinos que nos antecederam ou por nós mesmos são, muitas vezes, “cisternas rotas que não retêm as águas” (Jeremias 2.13).
b) É pedregoso. Os peregrinos conseguem remover as pedras menores, não as grandes; a caminhada é muito sofrida; muitos tropeçam e caem.
c) É escuro. As trilhas serpenteiam entre rochas de angústia e montanhas de pecado; o Sol da Justiça esconde-se por trás destas e o vale fica muito sombrio.
d) É extenso. Os peregrinos sabem que Sião está à frente, mas não podem vê-la; a caminhada parece não ter fim. Muitos ficam desencorajados.
e) É infestado. Há espíritos maus neste vale. Eles tentam; fazem insinuações malditas e sugestões blasfemas: armam ciladas, lançam os “dardos inflamados do maligno” (Efésios 6.11,16) [ver aqui].
a) É árido. Não tem rios de alegria; os poços, cavados por alguns dos peregrinos que nos antecederam ou por nós mesmos são, muitas vezes, “cisternas rotas que não retêm as águas” (Jeremias 2.13).
b) É pedregoso. Os peregrinos conseguem remover as pedras menores, não as grandes; a caminhada é muito sofrida; muitos tropeçam e caem.
c) É escuro. As trilhas serpenteiam entre rochas de angústia e montanhas de pecado; o Sol da Justiça esconde-se por trás destas e o vale fica muito sombrio.
d) É extenso. Os peregrinos sabem que Sião está à frente, mas não podem vê-la; a caminhada parece não ter fim. Muitos ficam desencorajados.
e) É infestado. Há espíritos maus neste vale. Eles tentam; fazem insinuações malditas e sugestões blasfemas: armam ciladas, lançam os “dardos inflamados do maligno” (Efésios 6.11,16) [ver aqui].
Esta é a significação que “vale de lágrimas” (Baca) tem na oração “Salve Rainha”. É um mundo pleno de misérias e obstáculos.
Ajuda divina
Toda essa introdução é para observar que um visitante estrangeiro que desembarque no Brasil e que tome como referência as notícias diariamente veiculadas na grande mídia brasileira se convencerá de que o “vale de lágrimas” da interpretação cristã do Salmo 84 é aqui, hoje e agora.
No enquadramento padrão do jornalismo praticado entre nós, até mesmo as notícias eventualmente “boas” são acompanhadas de comentários irônicos e jocosos insinuando que alguma coisa deu ou dará errado, mantendo-se o “clima geral” de que estamos vivendo numa permanente e irrecorrível sequência de sofrimento e purgação de pecados.
Dia desses, fiz um teste assistindo ao noticiário local da concessionária de televisão líder de audiência do Distrito Federal.
Além das chamadas de abertura e passagem, nos três blocos de notícias, cada um com três matérias, todas tinham um enquadramento negativo e crítico:
- o hospital universitário, que finalmente iniciaria uma necessária reforma na sua maternidade, criava um novo problema para as grávidas, pois elas teriam que procurar outros hospitais;
- o subsecretário de Segurança era criticado (justamente) por referir-se a uma pessoa desaparecida e encontrada morta sob suspeita de ter sido assassinada por policiais como “um zé”;
- um incêndio no Cerrado, incomum nesta época do ano, tinha causado uma enorme fumaça e atrapalhado a visibilidade dos motoristas, mesmo combatido e controlado pelo Corpo de Bombeiros;
- em algumas regiões do Distrito Federal faltavam vagas para crianças de zero a cinco anos, perto de suas casas, nas creches públicas;
- as chuvas estavam provocando buracos nas ruas de uma cidade satélite onde as “bocas de lobo” estão entupidas e com as tampas quebradas;
- em outra satélite há um cruzamento onde a falta de um semáforo tem dificultado a travessia e provocado acidentes;
- e, por fim, o retrato falado de um suspeito de praticar sequestros relâmpago é divulgado com o inescapável comentário sobre a crise na segurança pública.
Além das chamadas de abertura e passagem, nos três blocos de notícias, cada um com três matérias, todas tinham um enquadramento negativo e crítico:
- o hospital universitário, que finalmente iniciaria uma necessária reforma na sua maternidade, criava um novo problema para as grávidas, pois elas teriam que procurar outros hospitais;
- o subsecretário de Segurança era criticado (justamente) por referir-se a uma pessoa desaparecida e encontrada morta sob suspeita de ter sido assassinada por policiais como “um zé”;
- um incêndio no Cerrado, incomum nesta época do ano, tinha causado uma enorme fumaça e atrapalhado a visibilidade dos motoristas, mesmo combatido e controlado pelo Corpo de Bombeiros;
- em algumas regiões do Distrito Federal faltavam vagas para crianças de zero a cinco anos, perto de suas casas, nas creches públicas;
- as chuvas estavam provocando buracos nas ruas de uma cidade satélite onde as “bocas de lobo” estão entupidas e com as tampas quebradas;
- em outra satélite há um cruzamento onde a falta de um semáforo tem dificultado a travessia e provocado acidentes;
- e, por fim, o retrato falado de um suspeito de praticar sequestros relâmpago é divulgado com o inescapável comentário sobre a crise na segurança pública.
Por óbvio, o “vale de lágrimas” não é a única característica do jornalismo brasileiro que omite e/ou enfatiza seletivamente aquilo que atende mais ou menos aos seus interesses, implícitos e/ou explícitos.
De qualquer maneira, o noticiário televisivo do Distrito Federal, escolhido aleatoriamente, é apenas um exemplo de um padrão que se repete várias vezes ao dia, todos os dias.
De qualquer maneira, o noticiário televisivo do Distrito Federal, escolhido aleatoriamente, é apenas um exemplo de um padrão que se repete várias vezes ao dia, todos os dias.
Não haveria nada de positivo eventualmente acontecendo e merecedor de ser noticiado neste pedaço do planeta “descoberto” por Cabral?
No jornalismo do “vale de lágrimas” que vem sendo praticado pela grande mídia, salvar o Brasil, só com ajuda divina.
(*) Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e organizador/autor com Juarez Guimarães de Liberdade de Expressão: as várias faces de um desafio, Paulus, 2013, entre outros livros
http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/O-vale-de-lagrimas-e-aqui/30055
Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.
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