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domingo, 4 de novembro de 2012

O sangrento fracasso dos EUA na Síria

02/11/2012 - original em 01/11/2012, no Xinhua News Agency, Pequim:
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
- para a redecastorphoto

PEQUIM – “Já dissemos bem claramente que o Conselho Nacional Sírio não pode continuar a ser visto como líder visível da oposição”, disse a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton [foto] em visita à Croácia, na 4ª-feira [31/10], “exigindo” modificações na liderança da oposição síria.

A recente “grande virada”, que visa a descartar o Conselho Nacional Sírio que tem base em Istambul, Turquia – o mesmo CNS que os EUA até agora haviam apoiado sem restrições – mostra a confusão reinante nas “táticas” do ocidente para a Síria que, hoje, se veem ante o grande problema de encontrar outros representantes locais aos quais apoiar.


Os EUA, que em nenhum momento se ocuparam em buscar alguma verdade factual em campo e temerariamente acolheram como aliado e “representante local” o Conselho Nacional Sírio, acabam de constatar que o aliado é absolutamente imprestável; e retiram-lhe todo o apoio. Os EUA estão esmurrando, de fato, a própria cara.

Agora, os EUA partem à procura de outras forças de oposição as quais apoiar. Mas o mais provável é que a nova tentativa falhe outra vez, dado que, outra vez, os EUA deixam sem considerar as causas que continuam ativas na raiz daquela crise crônica e, outra vez, rejeitam qualquer solução política para a Síria.

Desde o início do conflito, há 20 meses, o ocidente nada faz além de, obcecadamente, trabalhar para derrubar o governo do presidente Bashar al-Assad [foto], sem em momento algum considerar objetivamente a potência variável das diferentes facções que disputam o governo da Síria.

Forças leais a Assad continuam a combater cabeça à cabeça contra rebeldes, e absolutamente não se vê no horizonte qualquer possibilidade de processo de paz.

Até agora, aqueles confrontos já fizeram mais de 32 mil mortos.

Sem conseguir conter os confrontos, a trégua de quatro dias, para a Festa do Sacrifício em outubro de 2012, iniciada pelo enviado da ONU, Lakhdar Brahimi e prevista para marcar o começo de um processo de paz, também já deu em nada.

A experiência já mostrou que a intervenção e a “exigência” de que Assad deixe o poder não conseguiram conter a violência ainda crescente e precipitaram a Síria em caos ainda mais profundo.

Aparentemente, Washington ainda insiste na velha ideia intervencionista, que mais de uma vez levou os EUA a beco sem saída. Em nenhum caso o ocidente deveria apoiar um dos lados, na luta para varrer do mundo a oposição, porque esse tipo de ação sempre implica consequências incontroláveis.

Nem Clinton dá sinais de saber o que faz em relação à Síria e insiste em esperar que rebeldes consigam derrotar o governo de Assad. Na 4ª-feira [31/10], a secretária Clinton disse que não é segredo que muitos na Síria, especialmente grupos minoritários, temem que o governo de Assad seja substituído por governo da oposição sunita. “Não que amem o regime Assad” – disse ela. – “Mas estão, com muita razão, preocupados com o futuro”.

É mais que hora de o ocidente entender que a única abordagem razoável é apoiar genuinamente uma solução política e diplomática para a crise.

A China, com a Rússia e outros países, tem buscado incansavelmente apoiar os esforços do enviado internacional e tem insistido na direção de que todas as partes envolvidas busquem desempenhar papel mais construtivo.

Na 4ª-feira, o Ministro de Relações Exteriores da China, Yang Jiechi [foto acima] apresentou proposta chinesa, de quatro pontos, para encaminhar solução estável para o conflito sírio.

Os chineses entendem que é absolutamente necessário que os lados em conflito respeitem o cessar-fogo acordado e deem início, imediatamente, a uma transição política negociada.

Os EUA ainda precisam aprender que soluções políticas demandam paciência e tempo.

Fonte:http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/11/o-sangrento-fracasso-dos-eua-na-siria.html

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A Hidra em Damasco

14/07/2012 - Pepe Escobar
em 13/7/2012, no Asia Times Online – The Roving Eye - “A Hydra in Damascus”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu para a redecastorphoto

Kofi Annan está cada vez mais parecido com Austin Powers [1], menos os ternos vermelhos; misterioso agente internacional, que voa de capital em capital, pelo mundo, tentando impedir uma guerra terrível.

O “Dr. Mal”, claro, é Bashar al-Assad, da Síria. “Mexa-se, baby”! [2]

O mediador-em-chefe da ONU está agora convencido de que Irã e Iraque apoiam seu novo plano de transição política para Damasco, que, na essência, é o plano anterior, de 12 de abril remixed, por causa de uma equipe de exilados oportunistas conhecidos como Conselho Nacional Sírio (CNS) [orig. Syrian National Council (SNC)].

Há matéria [3] com detalhes deliciosos do encontro em Damasco, no início da semana, entre Annan e Assad. Como em qualquer show decente, as melhores falas aparecem antes dos créditos:

Annan: Por quanto tempo você acha que essa crise continuará?
Assad: Durará enquanto o regime financiá-la.
Annan: Você acha que todo o dinheiro é deles?
Assad: Eles estão por trás de muitas coisas que acontecem em nossa região. Acham-se capazes de liderar todo o mundo árabe hoje e para sempre.
Annan: Mas tenho a impressão de que eles não têm a população necessária para tanta ambição. [Todos riem]

Chamem o agente Kofi Powers, para salvar o mundo?

Não apenas Annan e Assad: todo mundo sabe que “o regime” referido é o Qatar.

E por isso o CNS não aceita cumprir o cessar-fogo decidido no plano anterior de Annan – e novamente não aceitarão agora, pelo segundo plano. Todos sabem que o Qatar – e a Arábia Saudita – continuarão a armar os “rebeldes”, sejam desertores, associados ao CNS ou não, membros dos diferentes ramos do Exército-sírio-nada-Livre, ou mercenários salafistas-jihadistas outra vez alugados em alegre colaboração com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

O CNS foi a Moscou, para conversar com o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov (foto abaixo). [4] Os russos não se impressionaram. Nas palavras do novo chefe do CNS, Abdulbaset Sayda, “Exigimos a partida imediata de todos os representantes do atual governo, a começar pelo líder Assad (...) Qualquer tentativa de reconciliação com o atual regime dará em nada”.

Quer dizer: outra vez, o CNS está torpedeando Kofi Powers Annan e sua transição política, antes até de haver alguma transição. Para nem dizer que já deram jeito de alienar Moscou, cujo principal interesse é ser o principal mediador de um governo sírio de transição. Moscou redigiu uma resolução, para prorrogar a missão da ONU na Síria por mais três meses, trocando o monitoramento de uma trégua que ninguém respeita, pela negociação de uma transição política.

O chamado plano de seis pontos de Annan implica imediato cessar-fogo (que jamais será respeitado pelo CNS e pelo ESL); retirada, de vilas e cidades, de todo o armamento pesado e forças militares; acesso para socorro humanitário e jornalistas; e criação de um mecanismo para a transição política.

Mais uma vez, até essa “transição política”, baseada em “aceitação mútua” – decidida em Genebra, dia 30 de junho – já começa plantada sobre terreno extremamente movediço. Para Washington, “aceitação mútua” significa “Assad fora”. Para Moscou, “aceitação mútua” significa que o sistema Assad é parte da negociação.

A oposição síria, representada pelo CNS e pelo Exército Sírio Livre (ESL) – devidamente apoiada pela secretária de Estado Hillary (“Viemos, vimos, ele morreu”) Clinton e sua gangue de “Amigos da Síria” – continua aos gritos: que se danem as negociações; queremos o poder e queremos já. Que democracia seria essa?

You say you want a revolution [5]

A essa altura, Kofi Powers já deveria ter subido a aposta e usado alguma tática de intimidação sedosa contra aquele pessoal. Afinal, é sua reputação que está em jogo. Não acontecerá.

Assim sendo, não surpreende que toda a gangue desejante – do pessoal do Pentágono, CIA e gente do Departamento de Estado, aos aliados turcos do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, incluindo aqueles “democratas” exemplares do Golfo – estejam salivando ante a possibilidade de... e o que mais seria?!... um golpe.

Agora, quando por todos os cantos florescem as “democraturas” [4/7/2012, redecastorphoto, Pepe Escobar: E tudo sempre pode acabar em “democratura” - ver em http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/07/pepe-escobar-e-tudo-sempre-pode-acabar.html], o cardápio parece bem apetitoso. No Egito, o orwelliano Conselho Supremo das Forças Armadas já desferiu seu golpe, imediatamente antes das eleições presidenciais. No Iêmen, a Casa de Saud instalou o substituto preferido, no posto de Abdul Saleh, depois de uma espécie de golpe branco.

Considerando que a OTAN e os “Amigos da Síria” são totalmente ineptos/incapazes para montar golpe semelhante, e considerando que as elites no topo do poder da Síria absolutamente não racharam, o quadro é semelhante ao de Hosni Mubarak: tenta-se cortar a cabeça da cobra, mesmo que, imediatamente, novas minicabeças já estejam brotando na mesma cobra, como na Hidra.

Fachadas de inteligência dos EUA, como a recentemente hackeada-detonada empresa Stratfor, temem que esse arranjo só beneficie Irã e Rússia, ambos com complexas redes instaladas dentro da Síria, e ambos interessados em manter o atual sistema, porque interessa aos seus projetos geopolíticos.

Altamente útil será manter olho vivo, acompanhando o que o clã Assad enfrenta, no plano interno. Uma “transição” liderada de dentro da Síria pode dar ainda mais poder a alguns seletos sunitas e talvez a uns poucos cristãos e curdos – mas a mudança nada terá a ver com a “revolução” com que o CNS delira. Em termos estruturais, continuará tudo mais ou menos como está.

Dentre os sunitas que ganham poder num cenário pós-Assad, os principais candidatos são o ministro do Interior Mohammad Ibrahim al-Shaar; o Comandante do Estado-maior do Exército Fahd Jasem al-Farij; o vice-secretário regional do Partido Baath Muhammad Said Bukhaytan; e o comandante da Guarda Republicana Manaf Tlas (o qual, sim, desertou e já está em Paris [6]).

Dr. Evil e Mini-me

 Até agora, contudo, as deserções são praticamente irrelevantes; mas há um grupo que é preciso observar de perto. Se alguém desse grupo desertar, então, sim, o clã Assad pode começar a enfrentar problemas graves. Nesse grupo estão Jamil Hassan; Abdel-Fatah Qudsiyeh; Ali Mamlouk; e Muhammad Deeb Zaitoon. São os chefes das quatro agências de inteligência da Síria (sim, a Síria de Assad é estado policial de linha ultra dura). E, claro, Hisham Bakhtiar – chefe do Conselho de Segurança Nacional e principal conselheiro de segurança de Assad.

No pé em que estão as coisas hoje, o grupo governante sírio ainda parece monoliticamente indestrutível. Não sairão de lá e só serão arrancados com luta extrema. E a “alternativa” é a Fraternidade Muçulmana e o Conselho Nacional Sírio – cujas credenciais “revolucionárias”, para nem falar em democracia, são, para dizer o mínimo, pífias. As massas de civis apanhadas sob fogo cruzado, talvez até se interessassem pela possibilidade de golpe. Melhor que acabar governados pelos sinistros “Amigos da Síria”, o que seria substituir um Dr.Mal por um Dr. Mini-Mal [7], só que “democrático”.

Notas dos tradutores
[1] Personagem de três filmes sobre um agente do Ministério da Defesa britânico, e seu arqui-inimigo-nêmesis, Dr. Evil [Dr. Mal], obcecado com apressar o fim-do-mundo-como-o-conhecemos, e cujos planos Austin sempre consegue fazer fracassar. Imagens em: “Film: Austin Powers”. (ver em: http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Film/AustinPowers?from=Main.AustinPowers )

[2] De License to swing, da série Austin Powers, trailer a seguir: (ver em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=wvHWmmZ3q5w )

[3] 10/7/2012, Al-Akhbar, em: “Assad and Annan: Back to Square One”. (ver em: http://english.al-akhbar.com/content/assad-and-annan-back-square-one )

[4] 11/7/2012, RIANOVOSTI, “Syrian Opposition Group Calls for Revolution”. (ver em: http://www.en.rian.ru/world/20120711/174555887.html )

[5] É verso de Revolution, Beatles, 1968, assista e ouça em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=VKB-w179PIQ

[6] 6/7/2012, Syria Comment, “Manaf Tlas Defection Confirmed: His Statement from Paris”. (ver em: http://www.joshualandis.com/blog/?p=15233 )

[7] Orig. Mini-me. É personagem da série Austin Powers. Sobre ele, com imagens. (ver em: http://en.wikipedia.org/wiki/Mini-Me )

Postado por Castor Filho - em:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/07/pepe-escobar-hidra-em-damasco.html

domingo, 11 de março de 2012

O problema xiita da Arábia Saudita

domingo, 11 de março de 2012 - Rede castorphoto
7/3/12, Toby Matthiesen* em The Middle East Channel, “Saudi Arabia’s Shiite problem”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Pelo menos sete jovens muçulmanos xiitas foram mortos e dezenas de outros foram feridos por forças de segurança no leste da Arábia Saudita, nos últimos meses. Embora não haja detalhes dos confrontos, e o Ministério do Interior alegue que todos foram feridos ou mortos depois de atacarem forças da segurança, em todos os casos houve protestos de massa depois dos funerais.


Esses são só os eventos mais recentes da luta dos xiitas sauditas, que se arrasta por décadas, e que ganhou nova urgência no contexto dos levantes regionais de 2011 – mas que permanece em vasta medida ignorada pela imprensa local dominante e ocidental em geral.

Os eventos da Primavera Árabe fizeram despertar e crescer tensões que persistem há muito tempo na Província do Leste, na Arábia Saudita. Apenas três dias depois de os protestos em larga escala começarem no Bahrain, dia 14/2/2011, começaram os protestos também na Província do Leste, distante do Bahrain apenas 30 minutos, de carro, pela ponte. Talvez não surpreendentemente, o Ministério do Interior saudita decidiu esmagar os protestos com “mão de ferro” e iniciou campanha de desqualificação-ocultação contra os protestos e os xiitas em geral. Durante o verão os protestos diminuíram, mas recomeçaram em outubro e, desde então, só têm aumentado, o que tem levado a resposta ainda mais pesada, pelas forças de segurança.

Essa resposta repressiva, com ecos retóricos diferentes, se comparada ao que se ouve sobre o regime sírio de Bashar al-Assad, impõe desafio perigoso à recente política externa dos sauditas. Os protestos populares na Província do Leste são tão legítimos quanto os protestos na Síria. Se a Arábia Saudita não responder àqueles clamores por reformas em casa, como poderá esperar merecer algum crédito quando se declara defensora da democracia na Síria? A violência na Arábia Saudita e no Bahrain deu aos regimes iraniano e sírio, assim como aos movimentos políticos no Líbano e Iraque, um útil trunfo retórico a ser usado contra seus rivais regionais.

Na Província do Leste está virtualmente todo o petróleo da Arábia Saudita, além de uma considerável minoria xiita estimada em entre 1,5 milhão e 2 milhões de habitantes, cerca de 10% da população da Arábia Saudita. O credo Wahhabi dos islâmicos sunitas que o Estado abraça na Arábia Saudita desenvolveu hostilidade especial contra os xiitas. Os cidadãos sauditas xiitas, por sua vez, há muito tempo protestam contra a discriminação de suas práticas religiosas, nos empregos públicos e no comércio, e contra a marginalização em geral.

Por décadas, grupos de oposição formados por xiitas sauditas, grupos de esquerda e islamistas, além de centenas de petições assinadas por xiitas notáveis, repetem as mesmas demandas: fim da discriminação sectária nos empregos públicos e representação nos principais setores do estado, inclusive no plano ministerial; mais desenvolvimento para as áreas xiitas; fortalecimento do judiciário xiita; e fim das prisões de xiitas por razões religiosas e políticas. Nenhuma dessas demandas, se atendida, comprometeria significativamente a posição da família real, ou ameaçaria, de qualquer outro modo, a integridade da Arábia Saudita. Atendidas essas demandas, todo o atual sistema político ganharia solidez, e seria possível pensar em atrair para o regime a solidariedade, ou no mínimo a simpatia, de 2 milhões de xiitas que vivem literalmente em cima de todo o petróleo do reino.

Desde o ano passado, as demandas passaram a incluir a libertação de nove prisioneiros políticos xiitas e a retirada do Bahrain das forças sauditas, ou pelo menos, uma solução negociada para aquele conflito, além de reformas políticas mais gerais na Arábia Saudita. O governo prometeu aos jovens ativistas que suas dificuldades seriam examinadas em abril de 2011 e, depois de um pedido de respeitados clérigos sauditas xiitas, para que suspendessem os protestos, os jovens concordaram. Mas o governo nada fez do que prometera, e respondeu com mais repressão depois do verão, embora tenha libertado alguns dos que haviam sido presos durante os protestos de fevereiro a abril de 2011. A situação, portanto, permaneceu tensa, e quando quatro xiitas foram mortos em novembro, seus funerais transformaram-se em protestos contra o regime que reuniram mais de 100 mil manifestantes.

A percepção de discriminação sistemática tem levado alguns xiitas sauditas a abraçar ideologias revolucionárias, na verdade, há décadas.

Embora existam grupos pró-Irã entre os xiitas do Golfo, não são os mais poderosos entre os xiitas sauditas, e a maioria já renunciou à luta armada como instrumento político desde, no mínimo, meados dos anos 1990s. Mas a resposta repressiva do regime saudita aos protestos, e a política de concessões zero, têm oferecido campo fértil para novos grupos da oposição. Uma repetição da política xiita pós-1979, quando centenas de jovens xiitas deixaram o Bahrain e a Província do Leste da Arábia Saudita, parece possível.

Dado que os protestos no Bahrain e, sobretudo, em Qatif recebem atenção mínima dos canais de televisão que pertencem a sauditas do Golfo, como Al Jazeera e Al Arabiya, os sauditas são obrigados a assistir ao canal Al-Alande televisão, em árabe, patrocinado pelo Irã; à televisão do Hezbollah libanês, Al-Manar TV; ao canal iraquiano Ahlul Bait TV ou, cada vez mais, a outros canais de televisão pró-Assad, para obter informação sobre as regiões onde vivem.

A nova guerra fria no Oriente Médio está já convertida em guerra total de informação, na qual os veículos de mídia ou são a favor da oposição no Bahrain e em Qatif e a favor do regime de Assad, ou são a favor da oposição na Síria e contra os chamados protestos sectários dos xiitas no Bahrain e em Qatif.

A situação dos xiitas sauditas na Província do Leste não é novidade. O Relatório Anual do Departamento de Estado dos EUA ao Congresso sobre Liberdade Religiosa para a segunda metade de 2010, período imediatamente anterior à Primavera Árabe, registra prisões arbitrárias, fechamento de mesquitas e prisão de crentes xiitas. Telegramas diplomáticos dos EUA publicados por Wikileaks [1] revelaram que diplomatas dos EUA, e especialmente o pessoal do consulado em Dhahran, tinham quantidade gigantesca de informação sobre as comunidades xiitas locais e escrevem, quase como obcecados, sobre agressões às quais se referem como inadmissíveis. Mas os problemas específicos dos xiitas sauditas quase nunca chegavam à pauta de reuniões com funcionários sauditas de alto nível.

Isso não se explica exclusivamente pela cerrada aliança que liga os EUA e os sauditas. Os norte-americanos às vezes partilham as mesmas desconfianças sauditas contra os xiitas do Golfo, os quais existem em vários dos regimes aliados aos EUA. A desconfiança deve-se em parte à questão do Irã, mas tem a ver também com as explosões nas Torres Khobar, um complexo residencial na cidade de Dhahran, na Província do Leste, onde residiam militares norte-americanos, incidente no qual morreram 19 militares norte-americanos.

Nove xiitas permanecem presos desde 1996, acusados de pertencerem ao Hezbollah al-Hijaz, por participação naquele atentado. Foram acusados formalmente nos EUA em 2001, mas, porque as prioridades da política exterior dos EUA mudaram depois do 11/9, tornaram-se “esquecidos” – que é como os xiitas sauditas referem-se a eles. Na acusação, há referências ao envolvimento do Hezbollah libanês e do Irã no atentado, mas nenhuma prova desse envolvimento foi jamais divulgada. À época, alguns norte-americanos exigiram ataque de retaliação contra o Irã. Mas depois do 11/9, todas as acusações centraram-se contra a al-Qaeda como responsável pelo ataque às Torres Khobar, o que levantou dúvidas quanto à culpa daqueles prisioneiros xiitas.

O sigilo que cerca toda essa questão tem contribuído para aumentar a desconfiança e as suspeitas contra o estado, de parte das famílias dos prisioneiros e na comunidade saudita xiita em geral. Os manifestantes sauditas xiitas que tomaram as ruas esse ano abraçaram a causa dos nove xiitas prisioneiros. Havia cartazes com seus retratos e nomes em manifestações que pediam sua imediata libertação, nas quais os familiares dos presos tiveram papel importante. Foram a contrapartida xiita de uma campanha simultânea, à frente do Ministério do Interior em Riad, organizada por familiares dos prisioneiros políticos presos por suspeita de associação com a al-Qaeda. Mas, diferentes desses prisioneiros, os prisioneiros xiitas não acalentam qualquer esperança de serem “reabilitados” por qualquer dos vários programas governamentais, fartamente propagandeados, de des-radicalização. Parece justo exigir, no mínimo, julgamento público, exigência que tem sido repetidas vezes endossada pelas ONGs Human Rights Watch e Anistia Internacional. Mas nada semelhante a julgamento aberto parece estar incluído na agenda da política exterior dos EUA.

O comportamento da liderança saudita só empurra para a conclusão de que a repressão contra os xiitas é parte fundamental da legitimidade política dos sauditas. O estado saudita não quer alterar a posição dos xiitas e usa os protestos xiitas para intimidar a população sunita, ameaçando-a com o risco de os iranianos tomarem os campos de petróleo sauditas com a ajuda dos xiitas locais.

Narrativas similares têm sido distribuídas pela imprensa do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) há meses – ao custo de aprofundar cada vez mais a divisão sectária nos estados do Golfo. A intervenção do CCG no Bahrain fez piorar muito as relações entre as seitas no Golfo e além dele, as quais chegam hoje a níveis de confrontação nunca mais vistos desde a Revolução Iraniana. Mas esse declarado sectarismo saudita já teve repercussões negativas também no Iraque, na Síria, no Líbano e no Kuwait. O Bahrain parece já condenado a anos de conflito sectário; as relações comunitárias já estão completamente rompidas; e o estado está desenvolvendo uma campanha que, para os ativistas xiitas, é “limpeza étnica”.

Em vez de alienar completamente os xiitas, a Arábia Saudita e o Bahrain teriam de negociar com eles um contrato social. Não o fazer levará a muitos anos de instabilidade, com resultados imprevisíveis. E nada garante que outros sauditas não sejam cooptados e estimulados pelos protestos dos xiitas, como já se viu acontecer em recente declaração-manifesto de liberais sauditas de todo o reino, denunciando a violência sectária contra os xiitas, em Qatif.

O ocidente teria de pressionar seus aliados, sobretudo a Arábia Saudita e o Bahrain, para que, de uma vez por todas, parem de matar e prender seus cidadãos xiitas, sempre os acusando de serem agentes a serviço do Irã e traidores. A alienação dos jovens xiitas cria perfeito caldo de cultura para que brote outro movimento xiita de oposição no Golfo, e reforça a posição relativa do regime iraniano. Mesmo sem qualquer ajuda externa aos manifestantes xiitas locais, a área está madura para uma volta à política tensa de relações sectárias dos anos 1980s.

Em seu próprio interesse e no interesse dos estados do Golfo, os EUA deveriam empenhar-se na direção de uma real reconciliação entre os xiitas do Bahrain e da Arábia Saudita e seus respectivos governos. Sem isso, o sectarismo acabará por dominar o Golfo, com prejuízo para todos.


* Toby Matthiesen é pesquisador associado em Estudos Islâmicos e do Oriente Médio, na Universidade de Cambridge, Inglaterra

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Nota dos tradutores [1] Leia em: “WikiLeaks: Saudi crackdown on Shiites has echoes in Bahrain” (http://www.mcclatchydc.com/2011/06/22/116306/wikileaks-saudi-crackdown-on-shiites.html#storylink=misearch)