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segunda-feira, 17 de maio de 2010

Como se prepara uma conquista

Por Mauro Santayana

Desde que existem fronteiras, existem guerras. As guerras se fazem sobre as fronteiras, para que se abram aos invasores. Ao se abrirem, deslocam-se, em favor dos que vencem, cujo espaço se vê ampliado. Há as fronteiras físicas, eventualmente com suas fortalezas e seus obstáculos naturais, e há as fronteiras morais. O povo invadido não se defende apenas com as armas, por mais poderosas sejam; defendem-se com sua bravura, sua honra, seu sentimento de fraternidade.

É natural que os homens morram na defesa de suas ideias e de sua dignidade, mas para isso devem nelas acreditar como alguma coisa maior do que eles mesmos. Nenhuma outra ideia, nenhum outro compromisso, é maior do que a ideia de pátria, que aceita e amplia o sentimento de família. O homem que morre na defesa de sua pátria, morre na defesa de seus filhos e de todos os filhos, de todas as mulheres, de todos os anciões de seu povo.

Por isso, a defesa é mais poderosa do que o ataque – como temos visto em todas as guerras. A defesa se transforma em ataque, como ocorreu na Segunda Guerra Mundial. A resistência russa, nas portas de Moscou e na gesta desesperadora de Stalingrado, se converteu na cena orgulhosa do soldado que fixa a bandeira vermelha no alto do Reichstag, em Berlim.

As guerras não são fenômenos repentinos na História. Muitos estudiosos vão à mitológica Guerra de Troia, na versão de Homero, com seus paradigmas de astúcia, heroísmo, covardia e traições, para nela encontrar o exemplo clássico dessa patologia: todos os conflitos anteriores e todos os que se seguiram se explicam com a expedição de Agamenon, a astúcia de Ulysses, o inútil “corpo fechado” de Aquiles, com seu calcanhar vulnerável, a coragem de Ájax no confronto com Hector, a enigmática figura de Palamedes.

A guerra está presente em todas as comunidades humanas, seja na conquista ou na defesa. Um dia, se houver Deus, é possível que haja paz. Não tem havido paz. Assim, os agressores, mais do que pensar nas defesas físicas do presumido inimigo a ser conquistado, buscam atingir previamente sua armadura moral. Uma desmoralização fácil, e de que se valeram os nazistas, é a racial. Sendo diferente, o inimigo deve ser aniquilado: não faz parte da nossa espécie. Os mais velhos se lembram das histórias em quadrinhos americanas, nas quais os japoneses eram caricaturados como se fossem símios, e os alemães sempre obesos e embriagados. Para combatê-los, surgiu a nova mitologia dos super-homens, dos fantasmas-voadores, dos capitães-américa.

Depois de Avatar, de James Cameron, uma alegoria claramente identificada com a Amazônia, sua biodiversidade e seus minérios, a cineasta Kathryn Bigelow anuncia película a ser ambientada na Tríplice Fronteira. Alguns senhores, de curta inteligência ou de duvidoso patriotismo, saúdam a iniciativa, como promoção do turismo. Não percebem que se trata de abrir caminho a futura ocupação da área, anunciada durante o governo Bush, contra a soberania do Brasil, da Argentina e do Paraguai, a pretexto do “combate ao terrorismo”. Trata-se da construção de uma ideia da região, que nada tem a ver com a realidade, e da justificação subliminar para operações das Forças Armadas norte-americanas na área. Para isso, os ianques já construíram grande pista de pouso no Chaco paraguaio.

Os três governos atuam em conjunto para reforçar a vigilância nas fronteiras, contra o contrabando e o tráfico de drogas, além de outras formas do crime organizado. A eles cabe – e a ninguém mais – cuidar dos interesses comuns, na defesa da soberania de cada um de seus países e da paz para seus povos.

Os americanos se movem pela fé no Destino manifesto. Não se trata somente de política de Estado, mas de certa crença nacional, consolidada pelos meios de comunicação, a partir de Hearst e Pulitzer, e robustecida pela indústria cinematográfica, de que se imbuem cineastas como Cameron e Bigelow. Desde os gregos o entretenimento é instrumento de convencimento político. Temos todo o direito de recusar a entrada, em nossos países, dos que nos querem engambelar com a magia do cinema. Os colares de miçangas e os presentes de grego mudam de formato e de conteúdo, mas o propósito de conquista e domínio continua o mesmo.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Os dois pedaços de um mesmo pão

por Mauro Santayana, publicado no Jornal do Brasil em 26/1/10
Entre outras vozes que se levantaram, no Brasil, contra a nossa solidariedade para com o povo do Haiti, destacou-se a do senador Epitácio Cafeteira, do Maranhão. Sua excelência pertence às oligarquias daquele estado e, desde 1962, tem sido eleito pelo seu povo, um dos mais pobres do país. Homem rico, conforme a relação de seus bens divulgada pelo Senado – muitos deles imóveis valiosíssimos – Cafeteira dispõe de dois aviões e automóveis importados. No Senado, ao negar ao governo autorização para o envio de mais tropas brasileiras a Porto Príncipe, declarou comovente solidariedade com o povo brasileiro. Para ele, é necessário cuidar dos brasileiros, e não dos estrangeiros. E foi além: atribuiu à imprensa brasileira o destaque que se dá aos mortos do Haiti, em detrimento das vítimas nacionais das enchentes.

Nós poderíamos cobrar do senador solidariedade para com o seu povo mais próximo, o do Maranhão – como governador que foi do estado, e como parlamentar que o vem representando há quase cinco décadas. As mulheres quebradeiras de coco, os pescadores, os sertanejos e os caboclos maranhenses, castigados secularmente pela miséria, massacrados pelo latifúndio e, eventualmente, pelas cheias, estão esperando pela compaixão do senador. Cafeteira é um dos donos do Maranhão. Se houvesse nascido no Haiti, naturalmente pertenceria à elite mulata daquele pequeno país, e, morando na parte mais bem edificada de Porto Príncipe, não estaria necessitando da solidariedade dos outros. Estaria preocupado com seus aviões e seus automóveis e, provavelmente, com suas lanchas.

As seções de cartas dos jornais e alguns blogs da internet mostram que parcelas alienadas da classe média tornaram-se, repentinamente, também sensibilizadas com as enchentes e desabamentos em nosso país, e acusam o governo de se dedicar ao Haiti. Trata-se de um desvio singular da ação política. Animados pela hipocrisia, esses humanistas de última hora se esquecem de que, tanto como no Haiti, é a miséria que faz as nossas tragédias. É a falta de trabalho, de escolas, de saúde, de planejamento urbano, de reforma agrária, enfim, da dignidade que vem sendo negada aos pobres, desde que aqui chegaram os fidalgos ibéricos. Aqui – e na Ilha La Española, onde se encontra o Haiti. O subdesenvolvimento, causa de toda a miséria, não é maldição mas resultado de deliberado projeto de desigualdade. Quanto maior a miséria em torno, mais ricos se fazem alguns. Por isso impedem a reforma agrária e impedem a educação dos pobres. Sua filosofia é a de que só têm direito aos benefícios da civilização os que puderem pagar por eles.

Eles não sabem que uma das poucas alegrias das pessoas pobres é a do exercício da solidariedade. Não conhecem a felicidade dos trabalhadores que se organizam em mutirão a fim de reconstruir o barraco que desabou, ou de construir a moradia de dois cômodos para uma viúva e seus filhos. Os haitianos que perderam suas casas e seus familiares são seres humanos, exatamente iguais aos nossos pobres, que se veem nos olhos solidários dos soldados e dos voluntários civis brasileiros no Haiti.

O presidente Lula pode desagradar a muitas pessoas, por ter saltado etapas em sua realização pessoal. Ele deixou o chão da fábrica para liderar seus companheiros de classe e se tornou dirigente político e presidente da República. É um pecado imperdoável: não enfrentou o vestibular, não teve que cavar empregos seguros ou casamentos de conveniência para se tornar vitorioso: enfim, não serve de modelo para a formação de uma juventude alienada e consumista, instrumento para a segurança de parcelas das elites. É provável que, no caso do Haiti, o presidente reaja como o menino que enfrentou as cheias na periferia de São Paulo e conhece de perto a solidariedade dos pobres.

O Brasil, como um todo, não sendo ainda um país rico, age como seus pobres. Não há nenhum mérito em dar o que nos sobra. O mérito está em repartir o que temos e do que necessitamos. Poeta mais conhecido em Minas, Djalma Andrade resumiu este sentimento ao pedir a Deus que nunca o deixasse comer sozinho o pão que pudesse partir em dois pedaços.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A doença burguesa de Boris Casoy

por Gustavo Barreto, da revista Consciência.Net
São Paulo. Cidade Universitária, 1994. Fernando Braga da Costa, aluno do segundo ano de Psicologia da Universidade de São Paulo, tem uma tarefa: acompanhar, por um dia, o cotidiano de um grupo de trabalhadores. Ele escolheu os garis, que todos os dias varrem as calçadas e ruas e esvaziam as lixeiras do campus da maior universidade brasileira. Desde então o aluno, hoje psicólogo clínico e doutorando pela mesma universidade, se veste semanalmente de gari para ouvir os relatos de seus companheiros e sentir na pele a humilhação social sofrida por eles.


A experiência e as diversas histórias reunidas viraram tema de seu mestrado e chegaram aos leitores por meio do livro Homens Invisíveis: Relatos de uma Humilhação Social (Ed. Globo, 2004). Clique na foto da capa (ao lado) para acessar o livro no site Submarino.*

A reportagem abaixo, de Plinio Delphino, foi publicada originalmente em 2003 pelo jornal Diário de São Paulo e reproduzida pela Revista Consciência.Net dia 23 de abril daquele mesmo ano. Reproduzimos na íntegra e incluímos, abaixo, considerações sobre a profissão de gari e um banner comemorativo da prefeitura do Rio de Janeiro.

Fazemos este registro em resposta ao jornalista Boris Casoy, do Jornal da Band, que disparou todo o seu preconceito, em rede nacional, contra esta digna categoria de trabalhadores. Casoy disse em alto e bom som: “Que merda… Dois lixeiros desejando felicidades… do alto de suas vassouras… Dois lixeiros… O mais baixo da escala do trabalho”.

Fernando Braga da Costa conta como, uma vez reconhecida sua origem socioeconômica mais favorável, os garis se preocuparam em protegê-lo e passaram a tratá-lo melhor.

Após oito anos, na data da entrevista, o repórter pergunta a Fernando o que mudou na vida dele. “Acredito que essa experiência me deixou curado da minha doença burguesa. Esses homens hoje são meus amigos. Conheço a família deles, freqüento a casa deles nas periferias. Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber que eu sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um animal doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se fossem uma coisa.” Mais
*confira esta e outras sugestões de livros aqui