por Mauro Santayana, publicado no Jornal do Brasil em 26/1/10
Entre outras vozes que se levantaram, no Brasil, contra a nossa solidariedade para com o povo do Haiti, destacou-se a do senador Epitácio Cafeteira, do Maranhão. Sua excelência pertence às oligarquias daquele estado e, desde 1962, tem sido eleito pelo seu povo, um dos mais pobres do país. Homem rico, conforme a relação de seus bens divulgada pelo Senado – muitos deles imóveis valiosíssimos – Cafeteira dispõe de dois aviões e automóveis importados. No Senado, ao negar ao governo autorização para o envio de mais tropas brasileiras a Porto Príncipe, declarou comovente solidariedade com o povo brasileiro. Para ele, é necessário cuidar dos brasileiros, e não dos estrangeiros. E foi além: atribuiu à imprensa brasileira o destaque que se dá aos mortos do Haiti, em detrimento das vítimas nacionais das enchentes.
Nós poderíamos cobrar do senador solidariedade para com o seu povo mais próximo, o do Maranhão – como governador que foi do estado, e como parlamentar que o vem representando há quase cinco décadas. As mulheres quebradeiras de coco, os pescadores, os sertanejos e os caboclos maranhenses, castigados secularmente pela miséria, massacrados pelo latifúndio e, eventualmente, pelas cheias, estão esperando pela compaixão do senador. Cafeteira é um dos donos do Maranhão. Se houvesse nascido no Haiti, naturalmente pertenceria à elite mulata daquele pequeno país, e, morando na parte mais bem edificada de Porto Príncipe, não estaria necessitando da solidariedade dos outros. Estaria preocupado com seus aviões e seus automóveis e, provavelmente, com suas lanchas.
As seções de cartas dos jornais e alguns blogs da internet mostram que parcelas alienadas da classe média tornaram-se, repentinamente, também sensibilizadas com as enchentes e desabamentos em nosso país, e acusam o governo de se dedicar ao Haiti. Trata-se de um desvio singular da ação política. Animados pela hipocrisia, esses humanistas de última hora se esquecem de que, tanto como no Haiti, é a miséria que faz as nossas tragédias. É a falta de trabalho, de escolas, de saúde, de planejamento urbano, de reforma agrária, enfim, da dignidade que vem sendo negada aos pobres, desde que aqui chegaram os fidalgos ibéricos. Aqui – e na Ilha La Española, onde se encontra o Haiti. O subdesenvolvimento, causa de toda a miséria, não é maldição mas resultado de deliberado projeto de desigualdade. Quanto maior a miséria em torno, mais ricos se fazem alguns. Por isso impedem a reforma agrária e impedem a educação dos pobres. Sua filosofia é a de que só têm direito aos benefícios da civilização os que puderem pagar por eles.
Eles não sabem que uma das poucas alegrias das pessoas pobres é a do exercício da solidariedade. Não conhecem a felicidade dos trabalhadores que se organizam em mutirão a fim de reconstruir o barraco que desabou, ou de construir a moradia de dois cômodos para uma viúva e seus filhos. Os haitianos que perderam suas casas e seus familiares são seres humanos, exatamente iguais aos nossos pobres, que se veem nos olhos solidários dos soldados e dos voluntários civis brasileiros no Haiti.
O presidente Lula pode desagradar a muitas pessoas, por ter saltado etapas em sua realização pessoal. Ele deixou o chão da fábrica para liderar seus companheiros de classe e se tornou dirigente político e presidente da República. É um pecado imperdoável: não enfrentou o vestibular, não teve que cavar empregos seguros ou casamentos de conveniência para se tornar vitorioso: enfim, não serve de modelo para a formação de uma juventude alienada e consumista, instrumento para a segurança de parcelas das elites. É provável que, no caso do Haiti, o presidente reaja como o menino que enfrentou as cheias na periferia de São Paulo e conhece de perto a solidariedade dos pobres.
O Brasil, como um todo, não sendo ainda um país rico, age como seus pobres. Não há nenhum mérito em dar o que nos sobra. O mérito está em repartir o que temos e do que necessitamos. Poeta mais conhecido em Minas, Djalma Andrade resumiu este sentimento ao pedir a Deus que nunca o deixasse comer sozinho o pão que pudesse partir em dois pedaços.