sábado, 19 de janeiro de 2013

A cara do Rio que se mobiliza

                                        19/01/2013 - Antonio Fernando Araujo (*)

Mais uma vez o Rio de Janeiro volta a se movimentar.

Em defesa da Aldeia Maracanã foram milhares os que, no último dia 13/01 se viram compelidos a sair em defesa dos índios dessa aldeia urbana.

Um batalhão de choque da PM cercou a aldeia e só não concretizou mais uma de suas ações porque encontrou reação de militantes e movimentos sociais”, escreveria mais tarde o professor de História, Antonio Elias Sobrinho, o que deixaria a todos assombrados buscando encontrar explicações sobre o porquê de tanta voracidade do governo sobre duas dezenas de brasileiros que, num prédio em ruínas, ali se encontram há mais de uma década tangenciando a miséria a que foram relegados, e, ainda assim, procuram manter intactas suas tradições e sua cultura já semidestroçadas pelo forçado convívio urbano com uma grande metrópole.

No entanto, como prossegue o autor, “a compreensão dessa realidade deve servir para que todas as forças sociais que se opõem” entendam ser “necessário a união e a ação do maior número de pessoas possíveis, não só para se opor a esta ordem como também para tentar construir um projeto que seja alternativo”. 

Em tudo semelhante a construção de um projeto alternativo, foi como percebemos em um primeiro momento, a convocação que ontem iluminou as redes sociais e até o próximo dia 30 vai se espalhar pela mídia alternativa de todo o país e, quiçá, do exterior.

O Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, com sede em São Paulo, em conjunto com Blogueiros e Internautas Progressistas do Rio de Janeiro, conhecidos por sua sigla RioBlogProg e apoiados pela Central Única dos Trabalhadores, também do Rio, lançaram uma ampla CONCLAMAÇÃO – CONVITE, subtitulada, EM DEFESA DA DEMOCRACIA - QUEREMOS UM JULGAMENTO SEM ERROS.

O anúncio de um Abaixo-assinado em que pedem a realização de um novo julgamento, em decorrência dos erros que alegam ter encontrado ao longo do processo que condenou praticamente todos os réus da AP 470, a do chamado “mensalão petista”, serve de epígrafe para um “JOGO DOS SETE ERROS” que por sua vez antecipa aquilo que só mais adiante nos permitirá compreender, ao menos em parte, as razões que se ocultam por detrás desse processo e como seu desenrolar deixou nítidas as pegadas de um dos erros mais clamorosos praticados por uma instituição jurídica que, garantem, querem ver preservada acima de tudo, pelo bem de uma Democracia que ainda engatinha.

E eles não parecem estar falando à toa quando asseguram:

O julgamento da Ação Penal 470 apresentou erros.
Erros graves, porque ocorreram principalmente naquilo que sustentou a tese condenatória do relator juiz Joaquim Barbosa. Na lista abaixo nós os identificamos integralmente. Daí a razão deste Abaixo-Assinado.

Não pleiteamos aqui a absolvição dos réus.

O que queremos é um novo julgamento, de forma correta, rigorosamente assentado nos documentos constantes dos Autos, coisa que, no nosso entender, não foi feito, ou as falhas aqui apontadas não teriam sido detectadas. Ei-las, no que chamamos de:

O JOGO DOS SETE ERROS NO JULGAMENTO DA AÇÃO PENAL 470

1. Erro 1: Considerar que o dinheiro do Fundo Visanet era público.
Não era; não pertencia ao Banco do Brasil (BB). Pertencia à empresa privada Visanet, controlada pela multinacional Visa Internacional, como comprovam os documentos.

2. Erro 2: Considerar que o Banco do Brasil colocava dinheiro na Visanet.
O BB nunca colocou dinheiro na Visanet. A multinacional Visa Internacional pagava pelas campanhas publicitárias realizadas por bancos brasileiros que vendessem a marca VISA.

3. Erro 3: Considerar que houve desvio de dinheiro e que as campanhas
publicitárias não existiram.
Não houve desvio algum. Todas as campanhas publicitárias, com a marca VISA foram realizadas pelo BB, fiscalizadas e pagas pela Visanet. Toda a documentação pertinente encontra-se arquivada na Visanet e o Ministro relator teve acesso a ela.

4. Erro 4: Omitir ou, no mínimo, distorcer informações contidas em documentos. 
A Procuradoria Geral da República/Ministério Público Federal falseou e omitiu informações de documentos produzidos na fase do inquérito para acusar pessoas. Exemplo de omissão: somente representantes autorizados do Banco do Brasil tinham acesso ao Fundo Visanet.

5. Erro 5: Desconsiderar e ocultar provas e documentos.
Documentos e provas produzidos na fase da ampla defesa foram desconsiderados e ocultados. Indícios, reportagens, testemunhos duvidosos, relatórios preliminares da fase do inquérito prevaleceram. No entanto foram desconsiderados todos os depoimentos em juízo que favoreciam os réus.

6. Erro 6: Utilizar a “Teoria do Domínio Funcional do Fato” para condenar sem provas.
Bastaria ser “chefe” para ser acusado de “saber”. O próprio autor da teoria desautorizou essa interpretação: "A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ‘ter que saber’ não basta".

7. Erro 7: Criar a falsa tese de que parlamentares foram pagos para aprovar leis. 
Não existe prova alguma para sustentar esta tese. De qualquer forma, não faria sentido comprar votos de 7 deputados, que já eram da base aliada, dentre 513 integrantes da Câmara Federal, quando 257 votos eram necessários para se obter maioria simples.












Resta ainda considerar alguns outros equívocos:

* O duplo grau de jurisdição para réus é uma exigência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ao não garanti-lo, o STF violou o Pacto de São José da Costa Rica.

* Assim, 35 dos 38 réus não tiveram direito à segunda instância. Por decisão do Supremo, o julgamento de todos foi apenas em uma instância, o STF, embora 35 não tivessem direito ao chamado foro privilegiado.

* O uso da dupla-função. Quem preside a fase de investigação não pode depois participar do julgamento, porque nesse caso cumpre os papéis de investigador e de juiz;

* “O Supremo deu grande relevância à prova indiciária, até então considerada a mais perigosa de todas”, como disse o juiz Murilo Kieling. Tal prova é perigosa porque pode permitir a manipulação dos indícios por juízes inescrupulosos ou a serviço de interesses políticos ou econômicos.

Considerando o exposto, pode-se entender como os Procuradores, primeiro Antonio Fernando de Souza e em seguida Roberto Gurgel, junto com o Ministro Joaquim Barbosa, construíram a tese da acusação. A partir dessa construção desenrolaram a trama que condenaria praticamente todos os réus.

Foi desta forma que a AP 470, a ação penal do chamado "mensalão petista", se tornou a mais eficaz e sedutora arma que a grande mídia, liderada pela poderosa Família GAFE da Imprensa (Globo/Abril/Folha/Estadão), conseguiu construir desde 2002 para finalmente empunhá-la em 2012. Seu alvo é o projeto de nação que há 10 anos o Partido dos Trabalhadores concebeu e vem construindo, um projeto dificílimo de ser derrubado nas urnas.

O que esse projeto tem de mais?
Ele bate de frente com interesses vitais do chamado “mercado financeiro", aquele dos capitalistas e investidores do mundo dos negócios privados não-produtivos, em estreita sintonia com o empresariado ligado às exportações de commodities (agropecuária e minérios) assentados no topo da pirâmide socioeconômica, lugar das corporações e megacorporações nacionais e, principalmente, internacionais.

E a Família GAFE da Imprensa - centrada no Rio e em São Paulo - é a porta-voz desse povo. Nela, apenas essa gente e seus interesses - com o endosso da classe média alta - têm direito a voz. Ela atua diretamente através de seus próprios órgãos de divulgação ou por meio dos veículos do seu partido, o PIG (Partido da Imprensa Golpista), composto por seus afiliados em todas as redações desse Brasil afora. Seu Instituto, o Millenium, com sede no Rio, funciona como o cérebro pensante. É, principalmente, de lá que saem as teses defensoras dos privilégios dessa classe alta.

Para elas o país é visto apenas como um celeiro de oportunidades de negócios para que seus membros se tornem, a cada ano, ainda mais ricos e poderosos, aqui ou no exterior.

No caso deste julgamento, todavia, algo se tornou ainda mais preocupante.

Nos golpes recentes ocorridos em Honduras e Paraguai, vimos a Corte Suprema e Parlamentares desses países funcionarem como legitimadores da quebra da ordem institucional e contando sempre com o apoio da mídia empresarial local.





No instante em que testemunhamos aqui nosso Supremo Tribunal Federal (STF), conscientemente ou não, pondo-se a serviço desse poder hegemônico, representado, como vimos, pela mídia-empresa, num país em que a democracia ainda engatinha, assombra-nos o risco enorme que ela corre.

Sim, tememos que um golpe semelhante, também institucional, ocorra entre nós, lembrando que em 1964 já tivemos essa mesma Família GAFE apoiando e saudando com júbilo o advento do golpe militar quando as Reformas de Base que Jango propunha “ameaçavam” suprimir, em especial das elites do campo, alguns poucos privilégios.

Devem-se apurar os supostos desvios, processar e julgar os eventuais denunciados nessa AP 470. Mas quando isso se transforma, nas mãos do que existe de mais egoísta e retrógrado no país, em uma arma que visa unicamente torpedear um projeto de nação voltado à redução das desigualdades sociais e ao crescimento sustentável e que implica apenas em uma tênue redução dos privilégios dos 1% do topo da pirâmide, não estamos mais diante de alternativas. É nosso dever e missão contribuir para reduzir o poder desse monstro midiático que desde 2002 voltou a nos ameaçar.

Entendemos ser nossa obrigação fazer o que estiver ao nosso alcance para que o STF seja preservado como uma Instituição soberana à salvo de interesses outros que não os da Justiça.

“Costuma-se dizer que decisão judicial não se discute, cumpre-se. De fato, devem ser cumpridas, sob pena de caos institucional. Mas, sempre que se entender apropriado, devem ser discutidas. Contestadas, criticadas e corrigidas. Pois é isso que faz toda instituição crescer e vicejar - inclusive o Judiciário, que não é um poder absoluto", escreveu um dos condenados, José Dirceu. E é isso que queremos.

Por conta dessa ameaça, nossa luta contra a poderosa Família e seus tentáculos adquiriu um emblema especial em 2012 e deve ser objeto de muitas batalhas neste 2013. Esta é apenas uma delas: neutralizar ou destruir, ainda que parcialmente, os erros cometidos no julgamento da AP 470.

E é também pelo mesmo motivo que nos recusamos a aceitar a ‘tese’ de que esse julgamento é uma "página virada". Muito pelo contrário. Que esta campanha e este evento que se anunciam como partes dessa luta sejam percebidos como um enfrentamento tático de um combate mais amplo, voltado contra os superpoderes da mídia empresarial tornada um imenso e poderoso oligopólio no Brasil.

Por conseguinte, desta AP 470 só deve restar aquilo que, comprovadamente, se configurar como um delito, sujeito, portanto, às penas da lei, tal e qual rezam nossa Constituição, o Código Penal, as garantias processuais, ritos e jurisprudências.






















Só então poderemos anunciar que nesta batalha lutamos pela Democracia e nos impusemos vitoriosamente sobre essa mídia que, segundo avaliamos, pode muito bem estar à espreita de um possível golpe ao qual possa atribuir, também, ares de legalidade.

Assim, realizaremos no Rio de Janeiro, no próximo dia 30/01, um debate do mais alto nível, tendo como foco os erros cometidos pelo STF ao julgar os réus da Ação Penal.

Esperamos poder contar com expressiva parcela da sociedade civil e de personalidades profundamente conhecedoras dos meandros desse processo e de suas implicações políticas e jurídicas.

Para isso estamos empenhados em uma ampla mobilização para a qual queremos não só sua participação pessoal, mas também a do seu círculo social e profissional. Seu apoio, sua parceria enfim e até mesmo sua ajuda, serão imprescindíveis para que este acontecimento fique registrado como algo representativo da sociedade como um todo, um êxito dos mais retumbantes.

O anúncio do Abaixo-Assinado com o qual abrimos esta CONCLAMAÇÃO-CONVITE dará a partida nesta mobilização para que ela atinja a dimensão de um brado enorme contra os erros cometidos nesse processo. Em seguida virão folders, mensagens e entrevistas em rádios, charges, filminhos, jornais de bairro, etc. Sinta-se à vontade para também produzir outros, envie-nos que os divulgaremos.

Imaginamos assim que uma ampla rede de comunicadores estará montada e voltada para esse objetivo, o de pleitear a correção desse julgamento e o de convocar a sociedade civil para estar presente no evento do dia 30, cujo local, hora e componentes da Mesa divulgaremos em um comunicado específico, tão logo estejam todos definidos.”

Essa é a cara alegre do Rio, a mesma que assume, sempre que se vê diante de qualquer autoritarismo, ainda mais quando exibem com mais relevo seus ares de injustiça.

As feições de um Rio alegre e solidário que volta a se mobilizar estão estampadas em cada um desses gestos que de tempos em tempos revelam o quanto de recusa de submissão à vontade de outrem, atos com os quais, historicamente, os cidadãos desta cidade se contrapõem, em especial quando esses outros são os que “jogam um peso enorme, inclusive usando a violência, para afastar todos os sinais de resistência”, exatamente como deixou escrito o professor, Elias Sobrinho.


(*) Antonio Fernando Araujo é engenheiro. Articulista, colabora neste blog.

Leia também:
- A encenação do mensalão - Revista Retrato do Brasil - ed. 65
- STF: Mais um erro? - Megacidadania
- A verdade o absolverá - Lia Imanishi e Raimundo Pereira

Nota:
A inserção de algumas imagens, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

Caravanas da Cidadania: há uma pedra no meio do caminho


O ex-presidente Lula anunciou 2013 como o ano da retomada das ruas. E que logo liderará a segunda etapa das Caravanas da Cidadania, que percorreram pela primeira vez o país entre 1993 e 1994. Ativistas como o jornalista Beto Almeida convocam para o mesmo período as Caravanas da Informação Democrática (confira os links no pé do post). Mas a mídia hegemônica já decidiu que vai de tudo fazer para neutralizar os efeitos dessa nova etapa de mobilizações sociais. (R.B, Equipe do EDUCOM)

Do Blog das Frases, na Carta Maior*
Antes que o PT esboçasse o roteiro das caravanas que Lula planeja realizar este ano o dispositivo midiático iniciou a sua.

Reportagens publicadas nos últimos dias pelo 'Estadão' e 'O Globo' revisitaram marcos do governo petista. 

Alguns títulos pinçados desse primeiro arranque :

'Dez anos depois, população pobre do Brasil permanece refém de programas de renda'; 

'Berço’ do Fome Zero não muda com programas sociais'; 

'Em Guaribas, 87% da população vive do Bolsa Família';

'PT tira milhões da pobreza, mas abandona responsabilidade fiscal'

Vai por aí a coisa.

As referências de partida às cidades pobres de Guaribas (PI) e Itinga (MG), recheiam o propósito de alvejar por antecipação os símbolos previsíveis de um roteiro petista.

Ambas estão associadas ao Fome Zero, o primeiro programa lançado por Lula no primeiro ato, do primeiro dia, do seu primeiro governo, em 3 de janeiro de 2003.

Emerge dos textos a ordem unida que deve afinar a desconstrução desse ciclo incômodo.

Na superfície, benevolência: milhões deixaram a pobreza, mas...

Na costura, a lógica desidrata a dinâmica social negando a emergência de qualquer sujeito histórico capaz de afrontar o veredito do fracasso irremediável.

'O modelo é insustentável' , arremata em pedra e cal o sociólogo tucano Bolívar Lamounier, na última linha do texto do O Globo. 

Foi nisso que deu a luta contra a miséria. 

Para todos os efeitos, o Brasil é reduzido a uma fila de seres vegetativos alimentados pela sonda infatigável do populismo. 

O fato de a demanda colecionar 16 trimestres seguidos de expansão, num momento em que o planeta estrebucha em anemia, é um acidente de percurso.

A caravana conservadora tira isso de letra. Literalmente

É só ouvir 'especialistas ' especializados em alvejar o PT. 

No atacado ou no varejo? O cliente é quem manda.

A varredura atinge por extensão o 13 de fevereiro próximo, quando o partido comemora 33 anos de fundação, ademais de acumular munição para 2014 e cumprir a missão imediata: colocar uma pedra no meio do caminho da mobilização de resistência acenada pelos dirigentes .

Não qualquer pedra. 

Mas aquela capaz de suscitar a dúvida: de que adianta Lula afrontar a pauta da criminalização e da desqualificação se a narrativa da nova caravana da cidadania caberá ao monopólio midiático?

Nos anos 90, as redações foram pegas de surpresa pela iniciativa original. Num primeiro momento, cederam à repercussão diante do efeito contagiante por onde comitiva petista passava. 

Organizadas entre 1993 e 1996, as Caravanas da Cidadania percorreriam mais de 40 mil quilômetros. Ao todo, foram seis expedições que vasculharam os quatro cantos do território nacional. 

A primeira, de 24 dias, partiu de Garanhuns, interior pernambucano; finalizou em Vicente de Carvalho (SP).

Reeditou o percurso de um pau de arara que em 1951 levaria Lula, a mãe e irmãos até São Paulo e daí para o litoral, fugindo da seca, da fome e da pobreza.

A imagem de um novo 'cavaleiro da esperança' a escancarar a realidade do país como o seu melhor argumento, rapidamente acendeu o farol vermelho nas redações.

A tolerância inicial cedeu lugar então às cobranças. Duras. Repórteres escalados para cobrir as viagens eram intimados a entregar a encomenda. 
Às favas com fatos, pessoas e paisagens.

O jornalista Ricardo Kotscho acompanhou de perto aquela aventura como assessor de imprensa de Lula. 

Em depoimento à Fundação Perseu Abramo, em 2006, revela detalhes da operação desmonte acionada pelas chefias de redação para sufocar o comício ambulante do líder metalúrgico. Continue lendo

Relacionadas:
Feliz Ano Novo: Lula reabre o calendário das ruas
Sarney defende veto a candidaturas de ex-presidentes
2013: última chance para derrubar Dilma
O Brasil que dá certo x mídia
Caravana da informação

*crédito da imagem: ABr/arquivo

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

"Especialistas" em economia, não os leve tanto a sério

12/01/2013 - A opinião econômica particular vendida como de interesse geral
- J. Carlos de Assis (*) - Carta Maior

O jornalismo econômico brasileiro, a exemplo do norte-americano, está dominado pela opinião de economistas de bancos e de grandes corporações.

Eventualmente, aparece um professor ou um especialista independente para fazer algum comentário, mas em tempo ou espaço suficientemente curtos para não permitir mais do que legitimar a presença dominante dos primeiros nos noticiários de jornal e televisão.

Com isso a sociedade acaba com uma visão distorcida da economia política, mascarada que fica pelo viés dos negócios de curto prazo.


Galbraith, com sua fina ironia, costumava dizer que, em matéria econômica, não se devia levar muito a sério a opinião de quem tem interesse próprio em jogo.

Ainda há pouco assisti no Jornal da Globo a uma “especialista” culpando o intervencionismo do Governo pela queda das ações das empresas do setor elétrico: ela estava visivelmente indignada com a decisão governamental de reduzir as tarifas elétricas, afetando a rentabilidade das empresas do setor, e não fez qualquer menção ao que isso representava de positivo para a sociedade e a economia.

Claro, ela ou sua empresa certamente tem ações das elétricas!

Sou de um tempo em que, no jornalismo econômico, se separava claramente negócios de economia política.

Fui subeditor de economia do Jornal do Brasil na segunda metade dos anos 70, e, depois, repórter de economia da Folha na primeira metade dos anos 80: não me lembro de uma única vez, nesses dois jornais, em que, por iniciativa própria ou por instrução da direção, tenha entrevistado um economista de banco.

É verdade que, na cobertura de bolsa, havia repórteres que se referiam a “fontes” não identificadas para empurrar ações para cima ou para baixo.

Mas isso não era economia política. Era corrupção mesmo.

Em 1978, meu editor no JB era Paulo Henrique Amorim. Ele tirou as greves do ABC das páginas de Polícia e as trouxe para a Economia. Fui encarregado de editá-las.

Foram 40 dias e 40 noites de greve, o tempo das chuvas de Noé, em plena ditadura. A gente sentia que era algo importante, mas não podíamos adivinhar que ali estava o início do fim do autoritarismo.

Quais eram os nossos entrevistados na época?
Empresários com liderança no setor, líderes trabalhistas, economistas independentes, professores, ex-ministros, autoridades etc etc.

Não se ouvia economista de banco que viesse a defender como se fosse de interesse geral assunto de seu interesse.

Na imprensa norte-americana, quando alguém que tem interesses específicos trata de assuntos econômicos de interesse geral, é costume identificá-lo como interessado imediato. Há um certo escrúpulo em misturar as duas coisas.

Claro, ninguém põe em dúvida que um jornal de direita, como Wall Street Journal, ou liberal, como The New York Times, defendam no essencial os interesses capitalistas.

Mas isso é feito abertamente, nas páginas editoriais, e não de forma camuflada numa entrevista ou num artigo vendido como de interesse geral. Nesse último caso, prevalece a opinião dos ideólogos, não dos economistas de mercado.

Há uma diferença sutil entre as duas formas de jornalismo: uma coisa é deduzir o interesse específico do interesse geral, e outra, bem diferente, é inferir o interesse geral a partir do interesse específico.

No primeiro caso, há uma justificação ideológica de princípio do interesse particular no contexto mais amplo do capitalismo. É a forma padrão americana.

Noutro, há uma racionalização do interesse geral a partir do particular. Trata-se de um jornalismo econômico mais primitivo que se traduz por uma manipulação ideológica disfarçada já que evita apresentar-se como defesa pura e simples do sistema capitalista.

Há um nível de manipulação ideológica menos disfarçado, sobretudo em televisão, quando âncoras de noticiário assumem, eles próprios, a interpretação” das notícias dando-lhes maior ou menor ênfase de acordo com seu juízo subjetivo.

Sabemos que aquilo é um teatro, pois tudo foi preparado e escrito previamente, mas da forma como aparece na tela o teatro sugere o mundo real.


Aqui, de novo, é o Jornal da Globo (tardio, portanto mais dedicado às elites) que me vem à mente: ao noticiar a inflação do ano passado, William Waack (foto abaixo), que pessoalmente não parece entender nada de economia (sei disso porque trabalhamos um curto espaço de tempo juntos, no passado), fez um editorial agressivo contra o Governo, como se tivesse havido total descontrole dos preços.

No entanto, como se sabe, a inflação esteve perfeitamente dentro da normalidade em função das margens da meta.


A diatribe não passou de uma agressividade gratuita em relação a uma política econômica que, se não está totalmente correta, pode ser consertada numa direção que, por certo, não é a direção que William Waack quer.

(*) J. Carlos de Assis, é economista, professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus”, editado pela Civilização Brasileira.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21491

Nota:
A inserção de algumas imagens, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Um beabá para a al-Qaeda


12/12/2012 - EUA e al-Qaeda: estranhos companheiros de cama?
- original em 10/12/2012 por Hassan N. Gardezi, no blog Countercurrents
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

(...) there is no other shelter hereabout. Misery acquaints a man with strange bedfellows.
(...) Não há outro abrigo à vista, para mim. A miséria nos apresenta a bem estranhos companheiros de cama...
[Trinculo, em The Tempest, William Shakespeare, ato II, cena 2 [*]]

Introdução
Há guerra, nos dias que correm, ainda, entre uma coalizão de estados liderada pelos EUA, e al-Qaeda, que já entra na segunda década.

Um dos lados em Guerra, os EUA, dispensa introdução. Depois do colapso da União Soviética, passou a ser a única superpotência e é conhecida nos quatro cantos do mundo como a nação mais poderosa em termos políticos, militares, econômicos e socioculturais.

A al-Qaeda (acima), contudo, não é vista assim tão claramente como força global e exige definições e alguma introdução.

A al-Qaeda surgiu da jihad dos anos 1980s contra o Partido Popular Democrático do Afeganistão [orig.Peoples Democratic Party of Afghanistan
(PDPA)] em Kabul. Essa jihad foi mobilizada pelos EUA, [1] em colaboração com a realeza saudita e o ditador militar paquistanês, general Zia. Os sauditas financiaram abundantemente a jihad com a riqueza advinda de seu petróleo, mas a contribuição dos sauditas que, ao final, revelou-se a mais decisiva, foi Osama bin Laden, cuja chegada ao Afeganistão foi acertada entre a CIA e o chefe do serviço secreto saudita, príncipe Faisal al Turki (foto).

Depois que a União Soviética retirou suas tropas do Afeganistão, em 1989, Osama, figura encarnada do guerreiro jihadista perfeito, e alguns de seus companheiros árabes fundaram a organização chamada al-Qaeda, com o objetivo de prosseguir sua jihad contra o “infiel” norte-americano, o qual, para eles, desnaturava a terra santa do Islã com seus soldados já se implantando na Arábia Saudita, no início da primeira Guerra do Golfo.

Mas, depois do início, a organização passara por modificações na constituição, na esfera geográfica de atividade e nas crenças e objetivos. A al-Qaeda que há hoje, seja como constructo político brotado de dentro do establishment norte-americano, seja como realidade existencial, reúne, por laços fluidos de associação, uma pluralidade de grupos e indivíduos, que operam num plano transnacional, com missão partilhada e táticas comuns a todos, com vistas a cumprir aquela missão. Os grupos associados à al-Qaeda hoje vão do Talibã afegão e paquistanês, aos grupos Ansar al Sharia da Líbia e Frente Al Nusra síria.

A missão da al-Qaeda e a Guerra ao Terror
A principal missão da al-Qaeda é dominar o mundo, em particular o mundo muçulmano, impondo sua específica griffe de ordem sociopolítica baseada nas leis da Xaria sunita-salafista da Arábia Saudita. Assim, a al-Qaeda pôs-se em conflito com os EUA, que também têm projeto para dominar o mundo, embora por razões diferentes que, no caso dos EUA, têm a ver com posse e controle imperiais. A al-Qaeda não tem qualquer interesse em domínio imperial, nem no fenômeno imperial, porque crê que não alcançará seu objetivo de dominar o mundo sem superar os “inimigos do Islã”, definidos, em primeiro lugar, como infiéis. Os EUA, na posição de potência global líder, é o principal dos inimigos infiéis da al-Qaeda.

George W. Bush (foto) declarou formalmente sua Guerra ao Terror, em 2001, em retaliação contra a declaração, pela a-Qaeda, de que seu alvo passava a ser os EUA, “inimigo do Islã”.

A “guerra ao terror”, apesar da denominação ambígua, é essencialmente guerra de dominação, como as duas guerras mundiais anteriores, embora com alguns trações anômalos específicos. A primeira e principal anomalia dessa guerra é o fato de que um dos combatentes não é entidade estatal: é uma entidade transnacional denominada al-Qaeda. Como o presidente Obama gosta de repetir, o objetivo da guerra ao terror é “desmontar, desmantelar e derrotar a al-Qaeda”. Embora, com sua política para o “Af-Pak” [Afeganistão-Paquistão], Obama tenha expandido o teatro da guerra para incluir o Paquistão com o Afeganistão, as operações da al-Qaeda não se limitam a esses dois países.

Nenhum continente ou país parece hoje livre de ataques reais ou potenciais dos guerreiros flutuantes da al-Qaeda. O problema complica-se imensamente, quando os EUA passam a entender, como hoje, que seria necessário fazer pactos com a chamada al-Qaeda inimiga quando parece conveniente aos EUA – exatamente o que se viu acontecer na Líbia e está acontecendo hoje, novamente, na Síria.

O pesadelo líbio
Dia 15/2/2011, houve em Benghazi, no leste da Líbia, uma manifestação pacífica de opositores ao regime de Gaddafi (foto). Enquanto o regime movia-se para dispersar a manifestação, o Conselho de Segurança da ONU entrava em ação com espantosa agilidade: dia 26/2/2011 já aprovava a primeira resolução que congelava, em bancos ocidentais, bens de Gaddafi e de vários membros de seu governo, e os impedia de viajar ao exterior; e o regime foi acusado de usar força excessiva contra os manifestantes em Benghazi.

Rapidamente, dia 17/3/2011, o Conselho de Segurança aprovou sua segunda resolução, dessa vez implantando uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia, depois do que os países da OTAN, liderados pelos EUA, obtiveram condições ideais para usar suas forças aéreas para atacar a Líbia.

Os canais globais de notícias, entre os quais Al-Jazeera, que tem sede no Qatar, e que, antes, criara a esperança de ser algum rosto emergente de alguma via alternativa à propaganda imperialista, pôs-se imediatamente a repetir que os ataques explicavam-se perfeitamente, e que seriam efeito de uma “preocupação humanitária” pela segurança do povo líbio.

Dia 28/3/2011, o presidente Obama falou à nação, para dizer, dentre outras coisas, que:

"Confrontado por repressão brutal e crise crescente, ordenei que navios americanos posicionem-se no Mediterrâneo. Aliados europeus declaram-se desejosos de aplicar recursos para fazer parar as mortes. A oposição líbia e a Liga Árabe apelaram ao mundo, que salve vidas na Líbia. Sob meu comando, os EUA lideraram o esforço com nossos aliados no Conselho de Segurança da ONU, para aprovar a resolução histórica que autorizou a zona aérea de exclusão para deter os ataques do regime pelo ar, e autorizar todos os meios necessários para proteger o povo líbio." [2]

É citação extraordinariamente reveladora, da fala do presidente dos EUA. Aí está bem claro que os EUA controlavam e conduziam as reuniões do Conselho de Segurança; e as resoluções para a intervenção militar na Líbia foram aprovadas bem pouco tempo depois que acontecera, em Benghazi, a primeira manifestação pacífica.

Além disso, a história que Obama conta, sobre Gaddafi estar provocando “as mortes” entre seu próprio povo, e sobre “os meios necessários para proteger o povo líbio” soa, de fato, como replay da história que Bush contou sobre as “armas de destruição em massa” do Iraque. Mas, se Obama bem pode ter contado a verdade sobre mensagens que diz que recebeu dos aliados e da Liga Árabe, a referência que fez a uma “oposição líbia”, essa, sim, tem de ser examinada mais a fundo.

Desde o início dos confrontos armados, a mídia estatal líbia sempre insistiu que a oposição a Gaddafi era liderada por impiedosos agentes de operação da al-Qaeda. Mas fontes dos EUA e da OTAN ou desmentiram ou, simplesmente, não comentaram. Os seus aviões continuaram a atacar furiosamente as forças de defesa líbias, derrubaram as defesas de Gaddafi, enquanto milícias de uma oposição pesadamente armada marchava em direção a Trípoli, deixando pelo caminho um rastro de sangue e destruição.

Finalmente, dia 20/10/2011, imagens horrendas de um Muamar Gaddafi linchado até a morte, por assassinos que gritavam allah-o-akbar (Deus é grande) explodiram pelas redes globais de televisão. A narrativa dizia que estaria tentando escapar de sua cidade natal, Sirte, quando o comboio em que viajava foi atacado por aviões da OTAN, ataque que deu às milícias em terra a oportunidade para capturar Gaddafi e matá-lo.

A reação da secretária de Estado Hillary Clinton (foto abaixo), que se vê em vídeo que circulou por todo o mundo, reflete, ao que parece, correta e eloquentemente o estado de espírito de todo o establishment nos EUA ante a notícia do assassinato de Gaddafi.

A gentil e boa senhora acabava de sentar-se para uma entrevista a uma rede de televisão norte-americana em Kabul, quando lhe deram a notícia. Ela fez um segundo de silêncio e irrompeu em sonora gargalhada. Foi quando disse, sacudindo os braços no ar: “Viemos, vimos, ele está morto”.

A morte horrível de Gaddafi talvez tenha servido como alerta a outros ditadores, sobretudo aos interessados em se opor à única superpotência mundial. Mas, com certeza, não ajudou a fazer alguma paz na Líbia, nem a introduzir ali qualquer democracia.
Depois da queda do regime, alguns ministros renegados de vários gabinetes de Gaddafi, que, antes, se haviam reunido para constituir o Conselho Nacional de Transição [orig.National Transition Council (NTC)] em Benghazi, assumiram o poder na Líbia. Mas não duraram muito.

Dia 9/8/2012, o governo da Líbia, já então fragmentado em muitos subgrupos tribais e regionais, e já naufragado em lutas entre as milícias que matavam e torturavam, foi entregue a outro corpo provisório – o Congresso Nacional Geral [orig. General National Congress (GNC)], recém inventado, composto de 200 membros. Esse Congresso elegeu como presidente Mohammed Magarief, político pró-Fraternidade Muçulmana; como presidente dos Irmãos na Líbia, Magarief viveu muitos anos nos EUA e sempre fizera oposição ao regime de Gaddafi. Esse Magarief continua no posto de presidente de uma Líbia onde já não há praticamente nenhuma lei, nenhum estado e nenhuma ordem.

A conexão al-Qaeda
Já não é segredo para ninguém que a principal milícia ativa em campo na Líbia, que liderou a oposição num processo violento de “mudança de regime” foi o Grupo de Combate Islâmico Líbio [orig. Libyan Islamic Fighting Group (LIFG)]. São velhos conhecidos do establishment nos EUA, desde que surgiram, dos mujahideen que partiram para o Afeganistão para combater na jihad patrocinada pela CIA nos anos 1980s. De volta à Líbia, depois daquela guerra santa, decidiram derrubar o regime secularista de Gaddafi, para substituí-lo por um estado islâmico.

Ao mesmo tempo, o LIFG cuidou de separar-se rapidamente dos patrocinadores norte-americanos, associando-se diretamente à al-Qaeda. Em 2004, os EUA formalmente declararam o LIFG “Organização Terrorista Estrangeira” [orig. Foreign Terrorist Organization (FTO)].

Depois do 11/9, foi banido pelo Conselho de Segurança da ONU. E a CIA também passou a manter vigilância ativa sobre os membros do grupo; os que fossem detidos por suspeita de associação nas atividades terroristas da al-Qaeda eram entregues à Líbia, na política já conhecida de “entregas especiais” [orig. special rendition].

Um dos que foram presos (na Malásia) e entregues à Líbia, depois de ter sido mantido durante algum tempo numa prisão secreta da CIA, foi Abdel Hakim Belhaj (foto).

Belhaj também combatera na Jihad afegã dos aos 1980s patrocinada pela CIA; adiante, se uniu à al-Qaeda. Entregue à Líbia pela CIA, Belhaj permaneceu preso; mas acabou sendo libertado, depois de algum tipo de acordo de reconciliação, no final de 2010.

Retomou então suas atividades políticas, e assim estava quando, dia 15/2, aconteceu a primeira manifestação pacífica em Benghazi, contra Gaddafi; seguida imediatamente pela intervenção militar dos EUA-OTAN.

Já então no comando de uma grande milícia pesadamente armada do LIFG, Belhadj marchou sobre Trípoli, com a cobertura dos ataques aéreos da OTAN e ocupou a capital líbia, dia 23/8/2011. Para todos os propósitos práticos, foi o fim do longo período de Gaddafi no governo da Líbia. Belhadj se autoinstalou como comandante militar de Trípoli. 

Com a mudança de regime consumada nos dois meses seguintes ao assassinato de Gaddafi, Belhadj partiu para a Síria, já planejando, com o Exército Sírio Livre, a derrubada do governo de Assad.

Mas os negócios da al-Qaeda na Líbia ainda não estavam encerrados. Em 2012, no aniversário do 11/9, outra milícia associada à al-Qaeda, autodenominada Ansar al Sharia, associada a membros destacados do LIFG, atacaram o consulado dos EUA em Benghazi e executaram o embaixador dos EUA, Chris Stevens; três membros de sua equipe morreram na mesma ação.

De início, o governo Obama tentou apresentar a morte do embaixador como ato espontâneo de muçulmanos enfurecidos por causa de um filme islamófobo que circulara nos EUA. Mas, sob feroz escrutínio, em ano eleitoral, o governo de Obama foi obrigado a admitir, pelo menos, que o embaixador fora vítima de ato planejado por grupo terrorista.

O pesadelo sírio
As primeiras manifestações contra o regime de Bashar al Assad (foto) na Síria surgiram em meados de março de 2011. Podem-se listar várias razões para os protestos, dentre as quais um efeito de contágio da chamada “primavera árabe” contra o longo domínio pelo Partido Baath, liderado pela família Assad, de uma seita alawita, minoritária. Mas não se pode ignorar um importante fator: as reformas econômicas de cunho neoliberal, que tornaram excepcionalmente difíceis as condições de sobrevivência para os trabalhadores sírios mais pobres.

Nesse contexto, é preciso lembrar que, antes das tais reformas, em meados dos anos 1990s (e reformas às quais Bashar al Assad aderiu, em passo acelerado, depois de assumir o poder em 2000), o estado sírio tinha setor público consideravelmente amplo e estável, que patrocinava inúmeros programas sociais básicos. As reformas neoliberais implicaram rápida privatização das grandes empresas estatais e o desmantelamento dos programas sociais – dentre os quais preços subsidiados para alimentos e combustível. Assim se criaram graves dificuldades de sobrevivência para grande maioria dos cidadãos sírios.

Os problemas econômicos são, sem dúvida, fator subjacente que precipitou os protestos; e potências estrangeiras, além de interesses econômicos específicos que elas também representam, rapidamente cuidaram para converter a agitação popular em luta mortal por dominação política.

Os mesmos pactários europeus da OTAN e as petromonarquias da Liga Árabe, liderados pelos EUA, que haviam trabalhado para derrubar o regime de Gaddafi começaram a sabotar o governo de Bashar na Síria. Financiaram pesadamente islamistas sírios, islamistas de outros países e grupos armados da al-Qaeda, para matar e destruir, sob a hipótese de que a matança e a destruição salvariam a Síria e a converteria – dependendo de quem interprete a matança em andamento – ou numa democracia ou num califado islâmico.

Mais uma vez, o governo Obama “liderou o esforço”, dessa vez por trás das cortinas, para arrancar do Conselho de Segurança da ONU uma resolução contra o regime de Bashar al Assad, depois da qual o embuste líbio poderia ser reencenado na Síria.

A partir de junho de 2011, várias propostas de resoluções foram encaminhadas às reuniões do Conselho de Segurança, sempre em condenação contra o regime sírio, ou criando sanções internacionais contra o país; todas aquelas propostas foram rejeitadas.

Não só porque Rússia e China vetaram, mas, também, porque estados importantes com longa tradição de governos democráticos, como Índia, Brasil e África do Sul, opuseram consistentemente contra aqueles movimentos.

Todos que se opuseram a resoluções antirregime pensavam, sobretudo, por algo que a imprensa-empresa nos EUA e em vários países ocidentais fizeram de tudo para meter por baixo do tapete: a flagrante manipulação, pelos EUA e seus aliados, do Conselho de Segurança da ONU – até arrancar dali a resolução que criou a zona aérea de exclusão que viabilizou o assassinato de Gaddafi e a derrubada violenta do governo líbio. Como disse um membro de uma missão da ONU: “O fantasma da Líbia assombra a questão Síria”. [3]

Mas nem as repetidas derrotas no Conselho de Segurança da ONU conseguiu deter os EUA e seus aliados, que se mantêm agarrados ao objetivo de derrubar Bashar al Assad do governo, não importa por quanto tempo o povo sírio tenha de sofrer.

Servindo-se dos aliados árabes, em particular da Arábia Saudita e do Qatar, os EUA conseguiram garantir suprimento constante de petrodólares e armamento pesado, incluindo mísseis antiaéreos portáteis, que se disparam do ombro, às milícias sírias; assim, os EUA conseguem manter ativa a guerra por procuração que faz na Síria, como mantêm sempre alto o número de sírios mortos. [4]

De fato, o centro de atividade anti-Síria liderado pelos EUA mudou, das salas da ONU em New York, para Doha, no Qatar. Ali, no conforto de hotéis de luxo, houve uma reunião, no início de novembro de 2012, para planejar a estratégia para obter mudança violenta de regime e para ocultar a ação de milícias islamistas, armadas e violentas, da al-Qaeda, na Síria. Ao final daquela conferência, amplamente divulgada pela imprensa-empresa global dominante, foi anunciada a formação de um corpo unificado para derrubar Assad, sob a denominação, muito pretensiosa, de “Coalizão Nacional das Forças Revolucionárias Sírias de Oposição” [orig. National Coalition for Syrian Revolutionary Opposition Forces].

Ao mesmo tempo, continuam a morrer civis sírios, outros são arrancados de casa por explosões de suicidas-bombas e de carros, explosões que, todas, levam a impressão digital da Frente Al-Nusra e da al-Qaeda.

Desde a conferência de Doha a imprensa-empresa global tem sido inundada de noticiário sobre os sucessos dos combatentes das milícias, que já teriam chegado aos subúrbios da capital síria, Damasco. A BBC tem noticiado explosões também nos subúrbios de Damasco, com alto número de vítimas; o responsável seria, sempre, Bashar, pela fúria com que se recusaria a abandonar o poder. E, caso nenhum desses atos de guerra e ações terroristas conseguir derrubar o governo sírio, sempre algum novo pretexto está em produção, a favor de intervenção do tipo que se viu na Líbia, também na Síria...

Dia 3/9/2012, vários gigantes da imprensa-empresa mundial, o New York Times, a rede CNN e outros grupos passaram a divulgar novos relatos “de inteligência”, segundo os quais Bashar al Assad estaria planejando usar armas químicas contra a oposição; na sequência, surgiram imediatamente ameaças de retaliação, partidas do presidente Obama e de sua secretária de Estado, Hillary Clinton.

Dia 3/12 a BBC dos EUA até apimentou a narrativa: disse aos telespectadores que Hafez al Assad [pai de Bashar - foto] haveria, sim, usado armas químicas contra a oposição; dia seguinte, teve de desmentir-se, quando, afinal, surgiu informação correta sobre o tal “evento”. [5]

Análise
Os EUA são a principal potência hoje engajada em guerra longa e caríssima contra a al-Qaeda no Afeganistão. No contexto dessa guerra em curso, não parece razoável que os mesmos EUA estejam hoje em colusão com a al-Qaeda na Líbia e na Síria. Mas a guerra do Afeganistão tem de ser vista na perspectiva da política externa geral dos EUA, nos termos em que evoluiu desde meados dos anos 1940s.

No final da IIa. Guerra Mundial, os EUA emergiram como superpotência que entendeu oportuno lançar programa imperial mais ambicioso de dominar o mundo politicamente e economicamente, política que imediatamente pôs os EUA em contexto de intensa rivalidade com a segunda superpotência, a União Soviética. Essa rivalidade produziu a Guerra Fria, cujas repercussões globais de longo alcance são bem conhecidas hoje.

O que não parece ser muito bem conhecido no ocidente é que, nos interstícios da Guerra Fria, emergiu também outro obstáculo que se opunha às forças do imperialismo, obstáculo regional, mas nem por isso insignificante ou desimportante: o movimento conhecido como nacionalismo panárabe, que floresceu nos anos 1950s e 60s.

O nacionalismo panárabe foi dominado, no campo político, pela personalidade de Gamal Abdel Nasser (foto); e visava a unificar a vasta região do Oriente Médio e Norte da África de língua árabe, que se estende do Mar da Arábia ao Oceano Atlântico – povos que, além da língua comum, tem história, ancestrais e até religião comuns.

Em termos ideológicos, o nacionalismo panárabe foi secular e anti-imperialista, com ênfase na modernização, no progresso, na igualdade social socialista e na propriedade nacional dos recursos naturais da região, para que beneficiassem o povo árabe.

Além de Nasser do Egito, outros chefes de Estado também se identificaram com o movimento, em graus diferentes; o projeto nacionalista panárabe reuniu Ben Bella da Argélia; Houari Boumediene da Tunísia; Gaafar Nimeiry do Sudão; Hafez al-Assad e Bashar al-Assad da Síria; Saddam Hussein do Iraque; e Muammar Gaddafi da Líbia.

Para todos os objetivos práticos, o movimento do nacionalismo panárabe dos anos 1950s e 60s entrou em colapso, confrontado com a incansável oposição de grupos islamistas, como a Fraternidade Muçulmana (acima); e sob o impacto da devastadora Guerra Israel-árabes de 1967.

Mas a memória vestigial daquele movimento e o temor de que renasça sob uma ou outra forma, por iniciativa e sob a liderança de uma geração de políticos árabes cosmopolitas, mais jovens e mais letrados, continua a aterrorizar dois grandes grupos: todos os islamistas que se reúnem no projeto guarda-chuva chamado al-Qaeda; e o establishment nos EUA.

Por isso, precisamente, os EUA e a al-Qaeda, embora estejam em guerra no Afeganistão, consideram oportuno e recomendável unirem-se e formarem gangue unificada – uma espécie de derradeira trincheira, a partir da qual entendem que podem continuar a combater os inimigos de ambos, que ainda haja na Líbia e na Síria.

Notas de rodapé
[*] Epígrafe acrescentada pelos tradutores, para explicar um título que inclui comentário/ citação ao qual estão habituados os leitores de inglês, mas não os leitores brasileiros (NTs).
[1] Zbigniew Brzezinski, entrevista a Le Nouvel Observateur, 15-21/1/1998.
[2] Citado em The Atlantic, 28/9/2012
[3] 2/2/2012, The Huffington Post.
[4] 14/10/2012, The New York Times.
[5] Sobre isso, ver 8/12/2012, Robert Fisk, “Bashar al-Assad, Síria e a verdade sobre armas químicas” (em português) [NTs].

[Comentário do leitor Saiyed Danish no rodapé da versão original em inglês:
"Bold Piece! But one thing needs a re-evaluation and that is the story of the genesis of Al-Qaeda. Jason Burke, in his book Al-Qaeda, writes that it was not Osama or his affiliates who formed Al-Qaeda but the name Al-Qaeda was designed by the US only in a Manhattan court while dealing with a defector of Osama who was ready to "accept" and "confess" everything in lieu of money and green card, whatever story the US authorities would make up. Hence, based on his "confessions", the US prepared the entire picture of a global terrorist organization named Al-Qaeda, where in fact there no such organization even in the knowledge of Osama! He was only seen as a common funding guy to various terror groups which would show up at his residences and hideouts. The footage of Osama moving with his dozens of gun brandishing cohorts was were also largely deceptive for in reality they used to be the members other splinter groups walking him for their own ends. Osama was just a felicitating body of various terror groups, he was himself more of a mercenary, just a bit exalted than others. Even Osama did not know that he US authorities had decided to give his actions and network the name of Al-Qaeda but when he heard he definitely worked hard to capitalize on it. Here is also a link of a BBC documentary, Power of Nightmares, Part 3, 
http://www.youtube.com/watch?v=qATc5jRbVOA watch the entire Part 3 or begin from 23.00 minute and go on watching for another ten minutes." Thanks.] (Equipe Educom)

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/12/eua-e-al-qaeda-estranhos-companheiros.html

Leia também:
- Síria: paraíso "jihadi" - Pepe Escobar

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.