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quarta-feira, 16 de maio de 2012

Água Não Se Nega a Ninguém - Parte 2/5


Algumas razões da desordem ecológica vista a partir das águas
Carlos Walter Porto-Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes

O malthusianismo como se sabe exerce, ainda, uma forte influência no debate ambiental e, como já salientamos, faz parte de um discurso do medo, do pânico [3], em nome do que se tenta convencer os outros da validade de suas propostas, quase sempre, o controle da população.

Também com relação aos recursos hídricos, a mesma cantilena é aduzida como se os problemas derivassem do crescimento da população.

Entretanto, e aqui mais uma vez, a questão parece ser mais complexa do que esse reducionismo, até porque se a população mundial cresceu 3 vezes desde os anos 50, a demanda por água cresceu 6 vezes, segundo nos informa o diretor da Agência Nacional de Águas do Brasil, Sr. Jerson Kelman. No Canadá, entre 1972 e 1991, enquanto a população cresceu 3% o consumo de água cresceu 80%, segundo a ONU (GEO-3). Considerando-se o nível de vida da população canadense, os dados acima quando comparados com o crescimento da população mundial e a demanda global por água vemos claramente que é o crescimento exponencial de populações com o nível de vida europeu e norte americano que está aumentando a pressão sobre esse e outros recursos naturais de modo insustentável. Assim, a demanda por água cresce mais que o crescimento demográfico, indicando que devemos buscar em outro campo as razões do desequilíbrio hidrológico.

A urbanização se coloca como um componente importante dessa maior demanda por água. Um habitante urbano consome em média 3 vezes mais água do que um habitante rural assim como, já o vimos, a pegada ecológica, água incluída, entre os habitantes do primeiro mundo e os do terceiro mundo é extremamente desigual. Segundo Ricardo Petrella, "um cidadão alemão consome em média nove vezes mais água do que um cidadão na Índia” (entrevista à Agência Carta Maior durante o 1º Fórum Alternativo da Água em Florença - 2003).

Além disso, as cada vez maiores aglomerações urbanas exigem captação de água a distâncias cada vez maiores, para não nos referirmos à energia que por todo lado implica mudar o uso e o destino (e os destinatários, não nos esqueçamos) da água, não só quando é produzida enquanto hidrelétrica, como também nas termelétricas e nas usinas nucleares, onde a água é amplamente utilizada para fins de resfriamento das turbinas. Segundo a ONU, somente nos últimos 50 anos, entre 40 e 80 milhões de habitantes, quase sempre camponeses e populações originárias, foram atingidos por inundação de suas terras para fins de construção de diques e barragens (GEO-3: 151). Dos 227 maiores rios do mundo, 60% foram barrados por algum dique nesse mesmo período e, ainda em 1998, estavam sendo construídos nada menos que 349 diques com mais de 60 metros de altura em diferentes países do mundo, em grande parte financiados pelo Banco Mundial.

Roberto Melville e Claudia Cirelli nos dão uma boa caracterização de todo esse processo quando nos dizem que “os blocos capitalista e comunista em que estava dividido o mundo até pouco tempo tinham muitos pontos de controvérsia ideológica, mas ambos coincidiam em sua admiração pelo desenvolvimento técnico e competiam para mostrar avanços nesse terreno. Sob esta mentalidade, se empreenderam projetos em grande escala, com armazenamentos de água atrás de represas de concreto, com dispositivos para geração de energia, controle de inundações e derivados para a irrigação agrícola. Podemos assinalar alguns exemplos destas obras monumentais. Nos Estados Unidos, a represa Hoover no rio Colorado, ou a cadeia de represas construída na bacia do rio Tennessee. Na União Soviética, o projeto Dnipropertovsk na Ucrânia representou um vigoroso impulso para a industrialização socialista. Mais tarde, ambas potências difundiram seus modelos sociopolíticos e de desenvolvimento tecnológico em suas respectivas áreas de influência. No rio Nilo, a União Soviética fez replicar sua capacidade tecnológica na construção da represa de Assuan (no Egito). No México, com apoio financeiro internacional, a Comissão Federal de Eletricidade construiu a represa Chicoasén, uma das 10 maiores represas do mundo”. (Roberto Melville e Claudia Cirelli, La crisis dela água. In http://www.memoria.com.mx/, 9 de junio de 2000).

No Brasil, foi construído um complexo sistema nacional integrado de energia com base na construção de grandes hidrelétricas, que contou com apoio do Banco Mundial. Urubupungá, binacional Itaipu, Balbina, Tucuruí e Xingó são alguns dos grandes projetos com enorme impacto socioambiental por todo lado.

O crescimento da população urbana e da industrialização, com a conseqüente expansão da economia mercantil que lhe acompanha e impulsiona [4], estão impondo mudanças significativas no modo de organização do espaço em todo o mundo. As monoculturas passam a predominar nas paisagens rurais visando abastecer os centros urbanos tanto no interior dos diferentes países, como para garantir o fluxo de matéria entre os países, fluxo esse sobretudo dirigido aos países hegemônicos, sem o que os valores de uso concretos não podem ser produzidos e o usufruto da riqueza tangível, implicado num estilo de vida consumista tão ciosamente induzido pelos meios de comunicação de massas, possa ser praticado. Não sem razão, a irrigação e a captação de águas subterrâneas se generaliza, tanto para fins agrícolas como de abastecimento urbano-industrial, com o uso crescente em todo o mundo, sobretudo nos últimos 30 anos, de bombas a diesel e de poços artesianos. O problema da água, literalmente, se aprofunda.

Assim, numa outra escala geográfica, agora global, a lógica industrial volta a se encontrar com a água, relação essa que esteve presente já nos inícios da revolução industrial com a máquina a vapor (d’água). Ali, o carvão viera substituir a madeira no aquecimento da água, haja vista a escassez de madeira para esse fim. Pouco a pouco os motores foram se transformando e se tornando mais eficientes em termos energéticos sem, entretanto, deixar de consumir água. Afinal, maior eficiência energética implica maior capacidade de transformação da matéria e, com isso, maior consumo de água, maior dissipação de energia sob a forma de calor (2º princípio da termodinâmica) e, nas turbinas concretamente, maior necessidade de água para resfriamentos.

Assim, a maior eficiência que se obtém numa escala micro ao se generalizar torna possível a maior transformação global da matéria e, assim, acelera a transformação global da natureza do que o efeito estufa e as mudanças climáticas globais são uma demonstração, assim como a desordem ecológica global que vimos assinalando.

Assim, as soluções encontradas à escala micro para resfriar as turbinas, ou o termostato que desliga automaticamente a máquina quando atinge certo grau de aquecimento, não são transplantáveis para a escala do planeta como um todo e que pudesse amenizar o aquecimento global provocado pelo efeito estufa. Como se vê, a água flui por meio da agricultura, da indústria, do nosso estilo de vida e a pressão sobre seu uso está longe de ser explicada pelo crescimento da população, simplesmente, como quer a matriz malthusiana de pensamento.

Hoje, com o motor a diesel se busca água no subsolo e, com isso, introduz-se no nosso léxico cotidiano novas expressões como aqüíferos, já que as águas superficiais e mesmo os lençóis freáticos já não se mostram suficientes, pelo menos na hora e no lugar desejados.

Cada vez é maior o saque aos aqüíferos e, deste modo, introduz-se um componente novo na injustiça ambiental generalizada no mundo e em cada país com a expansão da racionalidade econômico-mercantil engendrada pelo capitalismo. Afinal, a captação de água à superfície era, de certa forma, mais democrática na medida que a água estava ao alcance de todos, literal e materialmente. Com a captação de águas nos subterrâneos os meios de produção, as bombas a diesel, se tornam sine qua non conditio e como nem todos dispõem desses meios a injustiça ambiental ganha novos contornos por meio do desigual acesso aos recursos hídricos.

Nos anos 90, na América do Norte 50% de todo o consumo dos habitantes foi obtido em águas subterrâneas, segundo a ONU (GEO-3). Na China também é cada vez maior a proporção de águas captadas subterraneamente.

Se, de um lado, com a irrigação podemos aumentar a área de terras para a agricultura é preciso considerar os vários lados dessa prática. Cerca de 20% dos solos irrigados no mundo estão hoje salinizados e, assim, impraticáveis para a agricultura (GEO-3). Em Madras na Índia, a captação de águas subterrâneas levou a um rebaixamento de tal ordem do lençol freático que a águas salgadas avançaram pelo subsolo cerca de 10 quilômetros continente adentro trazendo sérios problemas de abastecimento (ONU-GEO-3).

Consideremos, ainda, que essa expansão generalizada da economia mercantil vem avançando sobre áreas como manguezais e outros humedales, áreas riquíssimas do ponto de vista das cadeias alimentares da vida, assim como sobre áreas florestais que, como vimos com o exemplo da Amazônia, abrigam enorme quantidade de água nelas mesmas. Essas áreas, em particular as florestas tropicais, cumprem um papel importantíssimo para o equilíbrio climático global pela umidade que detém e, assim, contribuem para que as amplitudes térmicas, as diferenças entre as temperaturas máximas e as mínimas diárias e anuais, não aumentem ainda mais como vem ocorrendo, em grande parte pelo próprio desmatamento.

Relembremos que com a aplicação aos próprios meios de transportes do princípio da máquina a vapor, o deslocamento da matéria se tornou possível numa proporção que não mais dependia dos ventos e das calmarias, das marés e correntes marinhas, e tampouco dos braços escravos que moviam as embarcações com seus remos. Com isso, a injustiça ambiental se generaliza ainda mais, na medida que as matérias ao se deslocarem no sentido geográfico que as relações sociais e de poder determinam, escrevem uma geografia desigual dos proveitos e dos rejeitos. Afinal, a água circula não só pelos rios, pelo ar, com as massas de ar, ou pelos mares e correntes marinhas, mas também sob a forma social de mercadorias várias - tecidos, automóveis, matérias primas agrícolas e minerais - enfim, sob a forma de mercadorias tangíveis e, só assim, podemos entender o desequilíbrio hidrológico impulsionado pela lógica de mercado generalizada. Afinal, para se produzir um quilo de qualquer grão, seja de milho ou de soja, se demanda, com as atuais técnicas agrícolas, 1.000 litros de água! Um quilo de frango consome 2000 litros de água!


Fixemos a imagem de um caminhão frigorífico em plena Rodovia Transamazônica transportando frango produzido em Chapecó, Santa Catarina, para termos uma idéia do custo energético e hídrico desse frango para a sociedade brasileira e o planeta como um todo!

E isso para não falar do que significa para as populações locais dos lugares que importam esse frango que, por essa lógica, não servem nem para criar galinha! A racionalidade econômico mercantil não poderia ganhar um exemplo mais radical de ineficiência ambiental global.

Não olvidemos que quando exportamos frango para a Europa e Oriente Médio, e o fazemos até mesmo de avião, estamos exportando energia e água. Não é demais repetir: 1 quilo de frango consome 2.000 litros de água! Quando essas regiões exportadoras estiverem implicadas em algum stress hídrico, como soem estar cada vez mais, como recentemente esteve Santa Catarina no sul do Brasil, devemos ter em conta as limitações de qualquer especialista para dar conta dessa problemática que, embora se manifeste em cada local de modo específico está, na verdade, submetida a um processo global de desenvolvimento desigual mas combinado, como estamos vendo.

Basta se multiplicar por mil as milhões de toneladas de grãos de milho, de soja, de girassol para sabermos a quantidade de água que está sendo importada pelos países para onde as relações sociais e de poder dirigem o fluxo dessas matérias. O mesmo raciocínio pode ser feito com o alumínio, o papel, a celulose. As indústrias e plantações altamente consumidoras de água, ou que nela lançam muitos rejeitos, como são os casos das indústrias de papel e celulose ou de bauxita-alumínio (no caso do alumínio, para cada 1 tonelada de bauxita deixa-se no ambiente 15 toneladas de uma lama vermelha altamente poluidora), vêm se transferindo, desde os anos 70, para os países ricos em matérias brutas – energia, minerais, solos, Sol, água – de onde exportam o proveito e deixam os rejeitos.

A ideologia do desenvolvimento abençoa essa lógica, para o que muito vêm contribuindo os organismos multilaterais (FMI, Banco Mundial e a OMC) com suas políticas de ajuste, fomento, ajuda e apoio.

Um exemplo concreto pode nos ajudar a fixar a tese central: a separação do minério de cobre numa jazida implica abandonar cerca de 99,5% da matéria revolvida como rejeito! Relembremos que, cada vez mais, trabalha-se com minerais raros e o nome traz em si mesmo a proporção do que é útil e do que é rejeito, afinal são raros! Separar os minerais raros exige água em proporções enormes e, assim, a revolução nas relações sociais e de poder implicada na nanotecnologia com sua desmaterialização e transmaterialização, implica mais água por todo lado. A água é por todo lado um meio amplamente usado e, diferentemente de qualquer commoditty, é insubstituível. Pode-se melhorar a eficiência de seu uso mas não se pode prescindir dela. Daí todo o significado de se considerar a vida como um outro estado da água e de tomar a sociedade com todas as suas contradições como parte do ciclo da água.

No Brasil, o avanço do agronegócio, sobretudo no Planalto Central com suas chapadas extensas e planas, não teria o sucesso econômico de curto prazo que vem obtendo não fossem desenvolvidas as técnicas de captação de água em grandes profundidades que tornaram possível agricultar aquelas regiões antes ocupadas pelos cerrados [5].

Quase sempre se vem destacando a inegável contribuição da Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - no desenvolvimento de sementes e de todo um pacote tecnológico para a expansão do agronegócio nos cerrados. Recusemos aqui o mau raciocínio do ou isso ou aquilo, e chamemos a atenção para o fato de que sem a água, nenhum cultivo é possível e esse se constituía num dos principais fatores limitadores do cultivo nas chapadas do Planalto Central. O sucesso que vem obtendo esse modelo agrário-agrícola deverá ser melhor avaliado num tempo outro, médio e longo, e não somente sob a lógica do curto prazo para saldar a dívida eterna. O aumento de áreas abandonadas pelo cultivo por desequilíbrio ecológico, como formação de ravinas e voçorocas, perda de solos por erosão, são maus indícios da insustentabilidade desse modelo. Não olvidemos que os cerrados onde hoje reina o agronegócio herdaram as maiores reservas hídricas do Brasil, bastando observar que é de lá que partem importantes rios para diferentes bacias hidrográficas brasileiras.

No dizer de Guimarães Rosa [6], o cerrado é ‘uma caixa d’água’.

Um dos conflitos ambientais mais intensos vividos nessas regiões do Planalto Central está relacionado à questão da água não pela sua escassez, haja vista ser abundante, mas sim aos conflitos de classe por apropriação e expropriação de terras e de águas.

Ali, a água captada nas chapadas pelos pivôs centrais [7] rebaixa o lençol freático fazendo secar rios, lagoas, brejos e ‘pantamos’, onde toda uma rica e diversificada (agri)cultura camponesa se desenvolve historicamente.

O exemplo dos cerrados (savanas) do Planalto Central brasileiro é um caso emblemático das implicações socioambientais das demandas por água que se vem colocando em todo o mundo com a expansão da economia mercantil nesse período neoliberal. A água, como se infiltra em tudo – no ar, na terra, na agricultura, na indústria, na nossa casa, em nosso corpo - revela nossas contradições socioambientais talvez melhor que qualquer outro tema. Afinal, por todo lado onde há vida há água.

Atentemos, pois, que a vida deve ser entendida para além de sua dimensão estritamente biológica, posto que a água está presente na sociedade por todo lado – na agri-cultura, no artesanato e na indústria.

Nosso modo de comer, mesmo nas cidades, está em grande parte condicionado pelo modo como nossos alimentos são produzidos nos campos; nosso próprio abastecimento depende de barrar rios e mudar o destino e os destinatários da água (inclusive, para fins de energia).

A questão da água, vê-se, urbaniza o debate sobre o sistema agrário-agrícola e por meio da questão ambiental põe em xeque todo o estilo de vida alimentado por um modo de produção que o estimula para acumular riqueza virtual – dinheiro – e, com isso, pondo em risco a riqueza da água, da terra, do solo, da vida, na sua concretude.

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

[3] Explosão demográfica, bomba populacional, baby boom, eis alguma dessas expressões de um verdadeiro terrorismo demográfico.

[4] O espaço urbano é o locus por excelência da economia de mercado. Afinal, o ambiente urbano torna praticamente impossível a chamada economia natural, isto é, aquela que não requer a mediação mercantil. Assim, a economia gerada pelo expansão da população urbanizada introduz a mediação do ilimitado nas relações sociedade-natureza por meio do dinheiro. A tensão entre o simbólico, o dinheiro, e a materialidade do mundo se instaura enquanto questão ambiental.

[5] Jogou ainda um papel importante nesse avanço do agronegócio o fato dessas regiões de chapada estarem, até muito recentemente, nos anos 70, em grande parte com um uso extensivo para fins de pastagens para gado e para fins de extrativismo (de pequi, de baru, de fava d’anta, entre tantas espécies) num sistema de uso da terra que combinava uso familiar da terra, no fundo dos vales, com uso comum das chapadas conhecidas em muitos lugares como gerais [6]. O fato de serem terras de uso comum, gerais, muito facilitou a grilagem, quando não a concessão pelo Estado para os grandes empresários em detrimento dos camponeses, quilombolas e indígenas que, hoje, vêm se mobilizando para recuperar seus direitos a essas terras e aperfeiçoar seu modo de vida em condições menos limitadas do que as que vêm sendo submetidos. Afinal, na tradição do direito romano, terra que não tem um dono, não tem dono e, com isso, ignora-se as diferentes modalidades de apropriação coletiva, comunitária e de uso comum dos recursos naturais muito mais generalizadas no Brasil do que se tem admitido, como bem destacam Alfredo Wagner, Nazareno de Campos e Porto-Gonçalves entre outros.

[6] Uma leitura possível do título da obra maior de Guimarães Rosa – “Grande Sertões, Veredas” – dá conta dessa unidade na diversidade de paisagens que compõem os Cerrados: o Grande Sertão, os Gerais, sendo as chapadas, e Veredas onde os camponeses têm suas casas, as baixadas nos fundos de vales.

[7] - Inclusive com baixíssima eficiência no seu uso, haja vista o enorme desperdício que, avalia-se, em 70% a perda por evaporação.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]

Próxima Parte: 3/5 - Águas Para Quem? Do Interesse Privado e do Público

sexta-feira, 16 de março de 2012

A água novamente entre a vida e a morte

14/03/2012 - Elizabeth Peredo Beltrán(*) - Alai-Amlatina - Carta Maior
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
(No final ver Nota da Equipe Educom)

"O Conselho Mundial da Água, liderado por empresas como Veoliam, Suez, Coca Cola, Monsanto e outras grandes transnacionais desenvolveu uma visão muito sofisticada da água, uma visão que está fundamentada no conceito de que ela é um bem mercantil necessário para a vida e a ecologia, funcional aos direitos humanos e à sobrevivência e, portanto...um grande negócio. Como é possível que o Fórum Mundial da Água negue-se a reconhecer o direito humano à água e ao saneamento?"
O artigo é de Elizabeth Peredo Beltrán
  

Passaram-se já 15 anos da primeira edição do Fórum Mundial da Água e 20 da Declaração do Rio. Durante esses anos, o Conselho Mundial da Água, liderado por empresas como Veoliam, Suez, Coca Cola, Monsanto e outras grandes transnacionais desenvolveram uma visão muito sofisticada da água, uma visão que está fundamentada no conceito de que água é um bem mercantil necessário para a vida e a ecologia, funcionais aos direitos humanos e à sobrevivência e, portanto...um grande negócio.

Em todo esse período, ao invés de melhorar o cuidado com as fontes e aquíferos em todo o mundo a situação piorou substancialmente. Os equilíbrios ecológicos necessários para a sobrevivência e a fluidez do ciclo hidrológico foram rompidos como nunca havia acontecido, devido aos processos de agroindústria em larga escala, contaminação mineradora e projetos de energia baseados na construção de enormes hidroelétricas, entre outras causas. As empresas, por sua vez, estão buscando cada vez ganhar mais terreno da gestão pública e seguem ocorrendo debates entre gestores públicos e empresários diplomáticos corporativistas que tentam nos convencer de que o papel do setor privado é absolutamente necessário para a gestão da água.

Nestes debates e acordos de governança global da água pretende-se deslegitimar a gestão pública e fortalecer o conceito que foi desenvolvido pelo Consenso de Washington: o desenvolvimento e o cumprimento dos objetivos do Milênio só serão possíveis se existir um forte investimento privado; portanto, o desenvolvimento, os direitos humanos e os equilíbrios ecológicos estão ligados à sorte do mercado.

Este princípio permitiu construir um sistema especulativo de alto voo que agora é reforçado com o desenvolvimento da economia verde que é mais do mesmo, mas concebido para criar mercados especulativos coloridos com uma tinta verde acrescentada para dar a sensação de que se está protegendo o planeta e com a intenção de mercantilizá-lo todo; não só a água que tomamos e até o ar que respiramos, mas inclusive o futuro do planeta. Ainda que pareça ficção científica, isso é possível assim como foi possível que desde este Fórum tenham surgido soluções técnicas e corporativas escandalosas há alguns anos e que agora estão sendo colocadas em prática.

Em Haia, o Fórum Mundial da Água de 2003 se propôs incentivar a criação de sementes transgênicas para “poupar água”, sob o diagnóstico de que a agricultura é a atividade que consome mais água em todo o mundo. Na época, os ativistas da água reclamaram que esta solução podia se constituir em um crime que poderia afetar a saúde de todo o mundo e lançaram campanhas para evitar as sementes transgênicas e incluir o princípio de precaução nestas tecnologias. Hoje, as sementes transgênicas são parte do comércio mundial de alimentos e suas tecnologias e insumos. Nesta semana a Argentina apresentou ao mundo com orgulho o patenteamento de uma nova semente transgênica capaz de “poupar” água na produção de trigo, milho e soja em nível mundial.

As coisas vão mal porque deixaram as decisões mais importantes sobre a vida e sobre o planeta nas mãos das corporações e de governos poderosos e desenvolvimentistas que, baseados no princípio de que tudo se compra, se paga, se vende ou se repara pagando, levaram até os limites a impossibilidade de construir uma sociedade solidária, protetora do meio ambiente e, sobretudo, respeitosa de um bem sagrado para a vida como é a água.

O Fórum Mundial da Água se negou sistematicamente a apoiar em suas declarações o Direito Humano à Água e ao Saneamento. No Fórum Mundial da Água do México, em 2006, foram apenas quatro os países que assinaram uma declaração minoritária exigindo o direito humano à água, entre eles Uruguai e Bolívia. No entanto, nas Nações Unidas, há dois anos não houve nem um só voto contra a Resolução 64/292 declarando o Direito Humano à Água e ao Saneamento. Os países que se opunham a ela só puderam se abster de votar, mas não explicitar sua negativa a um evidente consenso gerado pelos povos e pelos países que sabem que esse é um direito inalienável para a humanidade.

Como é possível que, sistematicamente, o FMA se negue a reconhecer esse direito e que, na ONU, ele tenha sido aprovado sem oposição há dois anos?

Sendo que são os mesmos países que fazem parte das declarações ministeriais, por um lado, e das resoluções e conferências, por outro. Por que é que agora que ocorreu esse passo tão importante na ONU, o FMA não avança, mas, ao contrário, busca retroceder e diminuir as possibilidades de implementação do direito humano à água, favorecendo os processos de privatização? Mais do que isso, agora o FMA está decididamente disposto a incluir a água em “todas as suas dimensões econômicas, sociais e ambientais em um marco de governança, financiamento e cooperação”...como afirma sua declaração emitida ontem, apesar do protesto de alguns países.

Enquanto isso, milhares, senão milhões de experiências e iniciativas de gestão social e solidária, experiências exitosas de gestão pública, são implementadas com base no conceito de que água é um bem comum, um bem não mercantil para a vida.

As políticas e visões promovidas pelo Fórum Mundial da Água não estão à altura dos desafios colocados diante do planeta e da humanidade. Pelo contrário, estão condenando a gestão da água a seu manejo pelos poderes corporativos incapazes de priorizar a vida, preocupados mais em extrair lucros de qualquer parte, por sistemas financeiros, especulativos e sistemas de litígios corporativos cobiçados nas instituições financeiras internacionais.

Considerando o extremo esgotamento dos recursos e o desequilíbrio ecológico produzido no planeta é indispensável que a governabilidade da água fique fora das mãos do Conselho Mundial da Água e seja construída a partir de consensos dos cidadãos, dos povos e do interesse público. É por isso que os movimentos sociais reunidos em Marselha estão propondo que a ONU convoque um Fórum Global da Água que possibilite escutar as vozes das pessoas para pensar a água como um bem para a vida. As organizações sociais estão pedindo que sejam reforçados os sistemas locais e que se contribua para um exercício de vigilância social para assegurar que seu manejo seja social, democrático e solidário.

Diz-se, não sem razão que “milhares viveram sem amor, mas ninguém viveu sem água” (Auden). Nós acrescentamos, a partir deste Fórum, “sem amor, empatia e solidariedade, será impossível assegurar que a água chegue limpa e pura para todos”.


(*) Elizabeth Peredo é psicóloga social, escritora e ativista pela água, cultura e contra o racismo. Escrito para o Fórum Alternativo Mundial da Água, Marselha, 2012 (http://www.fame2012.org/fr/)

Nota: a posição da Equipe Educom com relação a este assunto aproxima-se mais das colocações postas aqui por Elizabeth Peredo Beltrán. Ainda assim, sugerimos que o leitor tome conhecimento da percepção deste assunto por parte de um órgão governamental brasileiro, no caso o CPRM ou Serviço Geológico do Brasil, através das entrevistas que a jornalista Maria Lúcia Martins efetuou junto a dirigentes e pesquisadores desse órgão, divulgadas neste blog em 15/03/2012, logo aí abaixo, no link  ou na matéria sob o título "Amazônia, fronteira da água".

domingo, 4 de dezembro de 2011

Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte final 6/6

Parte 1/6 - "DEPENDE DE NÓS, SE ESSE MUNDO AINDA TEM JEITO"
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que.html

Parte 2/6 - NÃO SÃO SÓ ELES OS VILÕES
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_02.html

Parte 3/6 - CHUVA E ÁGUAS ÁCIDAS EM TERRAS MOLHADAS
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_5205.html

Parte 4/6 - DO ENCONTRO DAS ÁGUAS AMAZÔNICAS COM O MUNDO GLOBALIZADO
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_03.html

Parte 5/6 - NÃO FIZEMOS A TRAVESSIA DO DISCURSO À ADOÇÃO DE PRÁTICAS
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_04.html


UM JOGO EM QUE NEM TODOS TRAPACEIAM

Antonio Fernando Araujo*

O esforço que se faz hoje para distribuir entre as oligarquias políticas e as elites empresariais ambiciosas a abundância de terras e a vastidão mineral do Carajás ao grupo de homens e instituições poderosas associadas ao clã Sarney encontra um paralelo perfeito quando nos referimos às riquezas da bacia do rio Tapajós, das margens da rodovia Cuiabá-Santarém, da eletricidade que virá de Belo Monte e, principalmente, desse mundo de águas subterrâneas sob Alter-do-Chão, alvos grandiosos e insubstituíveis da cobiça do clã Barbalho. Delineia-se assim o quadro da avidez dos que pretendem fatiar o Pará criando mais dois Estados: Carajás e Tapajós. Nesse jogo de ardilosos políticos e homens de negócios perde a população, perde o Estado, perde a Amazônia e perde o Brasil, a cobiça internacional sempre vê com bons olhos a divisão do adversário a ser, primeiro, politicamente derrotado, depois, economicamente conquistado. Portanto, não se trata daquela submissão feita a partir das armas, como faziam os velhos corsários, mas aquela dos ardis e da astúcia típica de veteranos trapaceiros que a vida consagrou, compartilhada com o indispensável conluio com seus aliados locais.

Talvez, por estar trilhando uma daquelas inúmeras possibilidades futuras de uma atividade econômica reconhecidamente promissora e de longo alcance e que ainda possa servir como modelo para o desenvolvimento local da população, Matta, apontando para algumas ilhas em volta de Belém, começou a descrever-me entusiasmado seu projeto mais recente. Quer integrar a população que habita em algumas delas, em diversos empreendimentos de caráter sustentável, todos, por ora, voltados apenas para a agricultura. O contraste entre o meio ambiente ainda preservado naquelas 39 ilhas do entorno de Belém e a degradação ambiental que vimos presente às margens da rodovia Belém-Mosqueiro assume outras feições quando se constata que a canoa é o meio de transporte mais comum utilizado pelos moradores para alcançar a metrópole. "A estrada é o ponto de partida do processo de degradação da natureza", aponta o estudioso Leonardo Coutinho em seu blog. "Mais de 80% das queimadas acontecem perto das rodovias", enfatiza. E isso vale tanto para as minúsculas trilhas vicinais escondidas sob a capa da floresta quanto para uma imensa Cuiabá-Santarém que se quer asfaltar o quanto antes para, não apenas melhorar as condições do percurso, mas também para que a valorização de suas margens ganhe um novo impulso.


As crianças e adolescentes dessas ilhas cursam a escola no continente. Como seus pais, quando precisam ir à cidade, fazem a travessia do rio Guamá ou da baía de Santo Antonio ou da de Guajará remando suas "montarias" e indo ao encontro de uma realidade absolutamente distinta daquela quase primitiva onde habitam. O diagnóstico preciso e as conseqüências advindas desse choque cultural, dessa realidade que parece pecar contra as regras do saber viver, é um desafio diante de Matta, levando-se em conta que esses jovens despendem um dia inteiro nesse ir e vir deslizando nas águas e de frequentar aulas como se fazia no princípio do mundo.

Mas o projeto do professor se enquadra no esforço de inseri-lo na economia local, longe de qualquer ideia de justificar o extrativismo vegetal puro e simples, consciente de que a "síndrome extrativa foi importante para chamar a atenção para a Amazônia e para uma mudança de mentalidade da sociedade brasileira quanto ao processo de desenvolvimento que vinha sendo seguido." E mais: que "a economia extrativa contribuiu fortemente para a formação histórica, econômica, social e política da região e, também, para o processo de pauperização secular", como anotou Homma. Ao contrário, através do estabelecimento de parcerias, como, por exemplo, com a Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu, no sentido desta fornecer para as ilhas mudas de cacau, cupuaçu e açaí, prover assistência técnica aos agricultores, viabilizar a comercialização dos produtos oriundos desses plantios e em troca assegurar-se que um fornecimento sistemático lhe garantirá a possibilidade de contratos firmes com os distribuidores de Belém, exportadores nacionais e importadores internacionais fez com que Matta percebesse esse momento como o passo inicial de um plano que prevê, agregar valor a esses produtos, seja através de um beneficiamento primário ou, numa etapa mais adiante, vê-los envolvidos nas utopias que cercam as pesquisas, testes e fabricação de fitoterápicos e cosméticos, ainda que sujeitos a rigorosa legislação dos países desenvolvidos para onde serão exportados.

Esse é um tipo de atividade de fato sustentável que ele defende para alguns dos projetos amazônicos. Pouco ou nada tem a ver com as mentiras que contam sobre sustentabilidade, um modismo que hoje transparece em "cada produto que você compra nesta loja, plantamos 5 árvores”. Esse "marketing verde" que respira bondade ecológica por todos os poros e propõe o "consumo consciente" não passa de mais uma manipulação de quem, como dissemos, pratica com maestria o ofício de não sentir remorsos por seus crimes, desse capitalismo sem freios que esmaga e distorce as boas idéias praticando uma obsolescência programada, onde os prazos são cada vez mais curtos, sem levar em conta que, tecnicamente é possível produzir uma geladeira que dure 60 anos e uma lâmpada 100 ao invés de apenas 1 ano e, ainda assim, ir embutindo na velha carcaça os avanços tecnológicos produzidos a cada geração, como sucede com os ônibus espaciais e as estações orbitais. Ser sustentável, portanto, tem unicamente a ver com o respeito ao ritmo do planeta se regenerar e, para isso o consumo de qualquer produto, independentemente de sua origem, é para ser norteado apenas pelo necessário, o econômico, o consumir menos, em suma, e não consumir mais os produtos ditos "sustentáveis", mesmo que a roupa nova, mas desnecessária, que se compra porque está na moda, tenha sido produzida com fibras "sustentáveis". Da mesma forma que o celular que se troca simplesmente porque saiu um modelo novo, fará com que o aparelho velho seja despejado como lixo eletrônico na costa da África, embora todos seus componentes tenham sido produzidos com dispositivos "ecológicos".

Nesses trapaceios em que os poderosos se unem para levar adiante seus interesses, quase sempre contrários aos da população, pelo menos a voz do governador do Pará, Simão Jatene, em uma mensagem oficial sobre a divisão do Estado, no que ela contém de oportuno, denunciou que "a insegurança é maior quando sabemos que o projeto de divisão em pauta não foi fruto de qualquer estudo prévio que procurasse definir o perfil de cada novo Estado. Quais os municípios que deveriam integrar esse ou aquele Estado para que se tivesse um melhor equilíbrio econômico, social e político, para que o povo fosse efetivamente beneficiado. Não, a população em todo esse processo, lamentavelmente, não teve seus interesses considerados. Foi apenas 'um detalhe'. 'Detalhe' que, agora, tem a responsabilidade de decidir diante de um 'prato feito', sem poder mudar mais nada. Até que seja provado o contrário, os parcos estudos existentes não fundamentam uma proposta de divisão, quando muito tentam justificar, ou não, uma divisão baseada num elevado grau de aleatoriedade e subjetividade."

Só assim projetos como o de Matta para as ilhas da região metropolitana de Belém tem um sentido histórico, coerente com o conceito amplo de sustentabilidade global, tornada socialmente cúmplice das melhorias de vida da população. No instante em que essa gente se vê inserida no mercado de consumo, por ter galgado um patamar de renda que lhe permite "ir às compras", em algum lugar do mundo as pessoas precisarão reduzir seu próprio consumo, norteadas pela concepção de que a sustentabilidade do planeta exige exatamente isso, a redução do desperdício, do desnecessário, do que pode ser postergado, para permitir então que os moradores das ilhas de Belém passem a consumir algo acima da linha da miséria e comecem a se beneficiar dos confortos da civilização e sonhado equilíbrio ecológico do planeta não seja por demais afetado, o velho passado e o futuro, agora dando as mãos. Essa é a utopia que norteia a exata noção, agora tornada universal, de desenvolvimento sustentável. Visto dessa forma não há fraudes e os interesses difusos como os que se abrigam nesse arsenal de falsas maravilhas que ora tentam vender à população, camuflados em algumas das propostas de divisão do Estado do Pará, tem mais a ver com a ambição de políticos e empresários mancomunados para, apenas em benefício próprio, se apossarem com mais facilidade das riquezas da região, como fizeram e fazem corsários e piratas, do que com projetos que, como os de Matta, desde cedo impõem um compromisso com a prosperidade das gentes desta região.

E o professor vai mais adiante. Se por um lado a proposta de contenção do consumo de bens industrializados permeia o discurso do desenvolvimento sustentável esse pensamento se prolonga até o consumo da água potável, a qual já há algum tempo insiste em desaparecer das torneiras, mundo afora, por sua vez, esse mundão de águas presente nesta região pode facilmente nos fazer pensar que, pelo menos aqui, não há o que temer. Ora, garante Matta, nada é tão falso quanto isto, embora esteja evidente a contradição. De fato, não temos escassez de água, tanto no solo quanto, agora, também no subsolo. Entretanto, o modelo atual do uso racional desse bem e que passa por processos técnicos e operacionais de identificação de fontes na superfície, cuidados para evitar contaminações, de captação, de tratamento e termina em uma enorme rede de distribuição, associados aos indispensáveis serviços de manutenção, de administração e de cobrança, nos faz pensar que, postos agora diante desses enormes mananciais subterrâneos, onde a pureza da água é comprovadamente mais alta, pois está mais bem protegida de agentes contaminantes, apresenta melhor qualidade físico-química e bacteriológica, sofre menos evaporação, a captação é mais simples, o tratamento menos oneroso e a rede de distribuição infinitamente menos complexa, mais fáceis de construir e manter, portanto mais econômica, pois cada poço abasteceria apenas algumas poucas unidades consumidoras, não temos dúvidas de que o modelo vigente começa a ser posto em cheque. Ainda nos resta um longo caminho até que esse "desenho" atual se veja completamente superado.

Daí porque, com o olhar voltado para a baía, prosseguiu: - 70% da água potável usada no mundo está voltada para a agricultura; 20%, para as indústrias e apenas 10%, para o abastecimento público. Quer dizer que estamos nos esforçando para economizar apenas um percentual desses 10%. Comparativamente, sabemos que 60% do total de água utilizado na agricultura é desperdiçado e, de acordo com dados da ONU, se baixássemos esse nível de desperdício para 50%, esses 10% economizados seriam suficientes para abastecer o dobro da população humana mundial. Há muitos mitos girando em torno desse tema. O mais contundente deles alerta que se não alterarmos radicalmente a forma como usamos nosso recursos hídricos, em 2050, quase a metade da população mundial não terá água para necessidades básicas. Atualmente, existem 1,1 bilhão de pessoas sem acesso à água doce. Em 40 anos, poderá atingir 10 bilhões de indivíduos.

- Não é nada disso, contesta o mesmo Matta, existe sim água para abastecer a população mundial sem a necessidade de racionamento. O problema da crise da água no mundo é de gerenciamento e de distribuição. As pessoas acham que a água vai acabar porque consideram para o abastecimento apenas a água superficial, porque cultivamos uma cultura do desperdício e finalmente porque não cessa a contaminação dos cursos d´água. Embora a maior parte da superfície da Terra seja coberta por água, 97,5% dela é salgada e encontra-se nos mares e oceanos; 1,7% está sob a forma sólida em geleiras e calotas polares deixando apenas 0,8% disponível para o consumo humano. Desse total de água potável no mundo, cerca de 4% estão sobre a superfície, em lagos, rios ou, ainda, na forma de vapor. Os outros 96% estão debaixo dos nossos pés, nas águas subterrâneas.

O aquífero de Alter-do-Chão é um deles, o maior desses mananciais gigantes como as Mães dos Deuses que ainda reinam na selva. Lá do fundo recusam-se a reproduzir a voz dos desertos, daquelas terras cada vez mais extensas, pouco a pouco tornadas sedentas na superfície.


Referências e fontes:
- Meio Século de Mineração Industrial na Amazônia e suas Implicações para o Desenvolvimento Regional - Maurílio Abreu Monteiro - Estudos Avançados - 2005
- Ciência e Democracia na Amazônia - Alain Ruellan - 2009
- Questão Agrária e Macro Políticas para a Amazônia - Francisco de Assis Costa – Estudos Avançados - vol. 19, nº 53 - Dossiê Amazônia Brasileira I - 2005;
- Vale do Rio Doce: Hora da Mudança - Mineração x Petróleo. Os Royaltes Nossos de Cada Dia - Luiz Begazo - Revista Valor Econômico - jan/2011;
- Amazônia: Como Aproveitar os Benefícios da Destruição? - Alfredo Kingo Oyama Homma - Estudos Avançados - vol. 19, nº 54 - Dossiê Amazônia Brasileira II - 2005;
- Pará e Minérios - Movimento da Receita: Sonegação e Desvio - Lúcio Flávio Pinto – Jornal Pessoal - mar/2011;
- O Desmatamento na Amazônia e a Importância das Áreas Protegidas - Leandro Valle Ferreira, Eduardo Venticinque e Samuel Almeida - Estudos Avançados, vol. 19, nº 53 - 2005;
- Governo Planeja Laboratório Oceanográfico em Alto-Mar Para Garantir Domínio Territorial - Roberto Maltchik e Eliane Oliveira - O Globo - 09/jan/2011.

Agradecimentos ao:
- Dr. Edilson Pereira, Secretário Municipal de Coordenação Geral do Planejamento e Gestão da Prefeitura Municipal de Belém que através de seu Diretor Geral, geólogo Herbert de Almeida, nos facilitou o acesso ao NAEA e aos professores João Batista Ribeiro, Evaldo Pinto da Silva, Francisco de Assis de Abreu e Estanislau Luczynski;
- Engenheiro José Octávio Jatene, ex-Secretário Adjunto de Indústria, Comércio e Mineração do Governo do Pará que propiciou o encontro com o professor Taylor Collyer, em Marahú;
- Jornalista Zilda Ferreira, administradora do blog Educom quem idealizou este trabalho e forneceu os contatos do professor Milton Matta, em Belém.

* Antonio Fernando Araujo é paraense, engenheiro, residente no Rio, colabora em blogs e é um apoiador de Movimentos ligados a popularização da comunicação e da cultura. Para a elaboração deste trabalho passou um mês em Belém e arredores.

Belém do Pará, outubro/2011

Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte 5/6

Parte 1/6 - "DEPENDE DE NÓS, SE ESSE MUNDO AINDA TEM JEITO"
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que.html

Parte 2/6 - NÃO SÃO SÓ ELES OS VILÕES
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_02.html

Parte 3/6 - CHUVA E ÁGUAS ÁCIDAS EM TERRAS MOLHADAS
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_5205.html

Parte 4/6 - DO ENCONTRO DAS ÁGUAS AMAZÔNICAS COM O MUNDO GLOBALIZADO
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_03.html


 NÃO FIZEMOS A TRAVESSIA DO DISCURSO À ADOÇÃO DE PRÁTICAS

Antonio Fernando Araujo

Piratas foram intrépidos, aventureiros, alguns sedutores, outros até românticos. Ainda assim, teme-se que ocorra aqui algo semelhante ao que sucedeu no passado com aquelas cidades da Carolina do Norte e Caribe e o que vem sucedendo no presente na costa da Somália. Lá, embarcações - como os velhos corsários, contam, ainda que de forma velada, com algum tipo de proteção de um Estado, de uma corporação ou de uma nação - de frotas pesqueiras vindas da Europa ocidental (principalmente da Espanha e França) e Ásia, quase sempre sob "bandeiras de conveniência" compradas pela internet em alguns minutos e por menos de 500 euros, há anos, fazem do mar territorial daquele país miserável um celeiro gratuito de onde surrupiam toneladas de atum e outros peixes sem pagar um centavo e, pior, retirando da população a maior e talvez única fonte de proteínas de que dispõe. Ao se rebelarem - depois de inúmeras e inócuas queixas formuladas à ONU -, atacando esses modernos saqueadores, são os pescadores somalis os que receberam, da mídia internacional, a alcunha de piratas para, em seguida, serem vítimas da chamada "Operação Atalanta", organizada e financiada por Espanha e França que deslocaram seus vasos de guerra para a região para dar apoio aos seus próprios piratas enquanto reprimia os "piratas" somalis.

Que fique viva a lição da Somália. Ainda estamos longe de realizar aqui a travessia entre o discurso e a adoção de práticas que nos permitam evitar o surrupio da nossa fauna, da flora, das águas e dos minérios. Faríamos isso se - armado com garras nucleares - nosso combate à biopirataria propusesse a necessidade de investimentos maciços no esforço de transformar a imensa biodiversidade dessa região na geração de renda e emprego e não apenas apoiar o procedimento tradicional de coleta extrativa ou, quando nada disso der certo, acionar a Marinha, o IBAMA e a Polícia Florestal, já que não dispomos ainda daqueles armamentos que poderiam nos emprestar mais dignidade. A adoção de práticas que impliquem em uma contínua atividade de pesquisa e identificação de recursos genéticos e seus componentes, de consumar a domesticação das espécies mais valiosas e através de plantios racionais prover a extração dos princípios ativos seguido do respectivo patenteamento se for o caso, implicaria na criação de um parque produtivo local que, entre outros benefícios, contribuiria não apenas para evitar que nossos produtos oriundos da biodiversidade amazônica sejam patenteados como já o foram nos Estados Unidos, Japão e União Européia e que marcas com os nomes de frutas amazônicas, como cupuaçu e açaí, sejam registradas e, acima de tudo, para desestimular que outros países efetuem plantios semelhantes.

Torna-se mais visível quando sabemos que as chamadas reservas extrativistas - ainda que louváveis quando se pensa em apenas ganhar tempo enquanto não surgem alternativas econômicas mais rentáveis - apresentam apenas raras possibilidades futuras de servir como modelo para o desenvolvimento local da população, limitadas que são no objetivo de atender ao crescimento do mercado e quando se tem a plena convicção de que elas não são inesgotáveis. E quando se pensa em mercado, nosso olhar não se detém apenas "nos chás, infusões e garrafadas que se apóiam somente na disponibilidade dos recursos naturais, ainda que sejam eles que integram a lida diária das vendedoras da formidável feira do Ver-o-Peso, em Belém do Pará e em outros locais parecidos, atraente, sem dúvida, porém, mais como um saboroso apelo folclórico e turístico do que como uma atividade econômica reconhecidamente promissora e de longo alcance". O alcance que se pretende aqui visa também "sua inserção com a economia nacional, procurando equilibrá-la com as regiões mais desenvolvidas do país. A aparente prioridade que tem sido estabelecida na Amazônia não acompanha a magnitude do desafio e da propaganda que fazem dela, tanto do governo, das empresas privadas quanto dos organismos internacionais", como escreveu Homma. "A fronteira científica e tecnológica na Amazônia, prosseguiu, a despeito dos grandes avanços, ainda não provocou o impacto e as transformações que a sociedade aguarda." Como um corolário desse pensamento conclui Monteiro: "Trata-se de uma possibilidade. Todavia, distante de ser uma realidade, uma vez que isto implica confronto com interesses econômicos, visões de mundo, com o tradicionalismo de diversas ordens e instituições etc., o que requer firmeza e clareza estratégica dos dirigentes políticos, a edificação de uma institucionalidade pública na Amazônia que seja permeável à pluralidade de forças que expressam a sua diversidade social e cultural, e, sobretudo, a ampla mobilização dos diversos segmentos sociais comprometidos com um novo tipo de desenvolvimento regional."

A pirataria é tão antiga quanto a navegação e no que tem de deletéria e no interesse deste texto, ela já é visível no lado amazônico do litoral do Amapá e em dezenas de outros sítios desta região. Como se denuncia agora, ela também se exibe nos barris de resíduos tóxicos, radioativos e hospitalares despejados nos litorais desguarnecidos de alguns países africanos, além dos da própria Somália, também nos da Costa do Marfim, Nigéria, Congo e Benim, transformados em vertedouros tóxicos pelos países industrializados. Portanto, não se trata mais de uma profecia ainda que calcada numa espécie de "roteiro" futurível bastante persuasivo, mas de uma constatação dolorosa que também pode nos atingir no futuro. Só em 2011 chegaram à costa da África 600 mil toneladas desses resíduos. E aos portos brasileiros do Rio Grande e do Suape alguns "containers" mais do que suspeitos foram flagrados ao desembarcarem em 2010 e 2011 acomodando todo tipo de lixo e resíduos hospitalares norte-americanos, surpreendendo-nos com uma excêntrica "mercadoria" que até então nunca houvera sido listada entre nossos itens de importação. Quem são os que se encontram nos extremos e no meio dessa aparente cadeia de trapaceiros?


UM JOGO EM QUE NEM TODOS TRAPACEIAM