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quarta-feira, 18 de abril de 2012

As Senhoras de Outrora e os atuais Senhores das Águas - Parte 3/3 - Final

18/04/2011 - NENHUM BEM DA TERRA PERTENCE A ALGUÉM
Antonio Fernando Araujo*

Parte 1: UM EXTENSO E SINUOSO FIO DA MEADA

Parte 2: MERCANTILIZAR A NATUREZA



Existem hoje no mundo cerca de 200 sistemas fluviais que cruzam a fronteira de dois ou mais países, além de 13 grandes rios que banham 4 ou mais países, compartilhados por 100 diferentes nações. As chances de conflito na gestão de tais recursos são elevadas. São cerca de 300 atualmente e, em quase todos, as corporações transnacionais ligadas à água estão presentes, seja interferindo diretamente ou através de governantes e empresas parceiras locais ou via organismos internacionais multilaterais.

Alguns daqueles sistemas foram utilizados até a sua exaustão ou quase isso, e muitos já não atendem mais às necessidades de seus antigos consumidores. O rio Amarelo, na China, o Ganges, na Índia, o Nilo, na África e até mesmo o nosso São Francisco, estão visivelmente abaixo de suas marcas históricas e o aumento do consumo pode exaurí-los em um espaço de tempo relativamente curto.

A coadjuvante indispensável para que possamos acompanhar aquela tão propalada cobiça, está presente nas estratégias dessas e de outras tantas empresas, instituições e corporações que vêm se constituindo nas últimas décadas, na Europa, nos EEUU e no Japão para oferecer serviços públicos ligados à gestão energética, de águas e de saneamento. (ver aqui em inglês)

Elas são distintas em tamanho e poder, mas todas objetivam, de alguma forma, influir nas decisões ou não raro se apossar dos recursos hídricos do planeta para gerenciá-los, processando, engarrafando, distribuindo e vendendo ao sabor de suas ambições, serviços e produtos ligados à água e ao tratamento de esgotos, mas sabendo de antemão que não há mais fartura de água doce de qualidade no hemisfério norte suficiente para atender todo o consumo da agricultura, da pecuária, da indústria e da população.

Por conta disso é que esse olhar estratégico se lança então sobre o hemisfério sul. Por conta de uma mãe-natureza que nos foi generosa foi nessa região que se constituiram as maiores jazidas de água potável do planeta, quase 50% de todas elas; por conta também, de um hemisfério onde se concentram quase todas aquelas economias que ao longo dos séculos de exploração colonial e mercantilista predatórias se tornaram as mais frágeis da Terra; por conta, finalmente, de governos - de um modo geral - que ainda não realizaram a travessia entre seus discursos de campanha e a prática de políticas públicas voltadas a democratizar o acesso a esses bens, sagrados para a população; e mesmo diante do pouco que alguns realizam, ainda assim é comum testemunharmos a mídia empresarial e corporativa se empenhando em levar ao cidadão comum a mensagem de que os governos são comprovadamente corruptos e ineficazes (alguns realmente o são) em gerir recursos tão preciosos, desfraldando assim uma bandeira perversa em que advogam que o certo seria entregar tudo à iniciativa privada, seus habituais anunciantes, antecipando dessa forma uma postura submissa, mas que desde logo lhes assegura uma futura receita, robusta e duradoura. Pois bem, essas são as características mais acentuadas dessa coadjuvante que nos diz respeito e que tem tudo a ver com a distribuição desigual desses recursos hídricos espalhados pela natureza mundo afora.

Quando os primeiros habitantes da antiga Mesopotâmia perceberam o valor da água se apressaram em eleger Nuliajuk, a deusa da água, como sua principal divindade, pois era dos mananciais em torno dos rios Tigre e Eufrates que provinha seu poder. Sabedoria sem dúvida, eram exclusivamente deles e de suas margens enfim, que se originavam quase todos os alimentos, a própria água, a vida e a civilização.

No Brasil uma outra Senhora da Água se tornou também um objeto de culto e assim, Iemanjá, presente nos rituais e no inconsciente coletivo de inúmeras comunidades, é a divindade das águas, tornada provedora da saúde e da riqueza associadas a todas as águas que nos abençoam, matam a sede e fertilizam nosso solo. Entretanto Iemanjá não deveria ser apenas a Senhora das Águas brasileiras. É simples imaginarmos que seu poder e magia bem que poderiam se estender além-fronteiras, aos países que nos cercam. Isso porquê, diante da mera constatação de que as nascentes do Amazonas estão fora do nosso território, o aquífero Guarani encontra-se - alem do Brasil - também sob territórios argentino, paraguaio e uruguaio e algo semelhante se pode afirmar do Pantanal e dos rios fronteiriços, não há crença alguma que possa ser contrária a uma felicidade que essa racionalidade nos proporcionaria, uma ventura que, como na antiga Mesopotâmia, visaria, antes de coisa alguma e de qualquer tumulto mais acirrado, prover harmoniosamente nossos povos de saúde e riqueza associadas as nossas águas, hoje em dia, tão ou mais disputadas do que fora outrora, como se estivéssemos nesse instante diante de uma remanescente atávica daquelas ambições, renascida agora com feições latino-americanas.


Eis então que surge mais uma oportunidade da América Latina mostrar ao mundo que, embora estejamos diante de possíveis conflitos fronteiriços por conta de temas ligados ao controle dessas fontes e mananciais somos perfeitamente capazes de perceber que a ameaça comum das grandes corporações capitalistas, sob o patrocínio de organismos ligados ao FMI e ao Banco Mundial, deve nos irmanar e fortalecer, para que nada nos impeça de proteger em escala sul ou latino-americana as zonas essenciais à preservação de nossos recursos hídricos.

Não através de um suspeito Conselho Mundial da Água, como propuseram aquelas transnacionais no 6º Fórum Mundial da Água, mas simplesmente através de um organismo regional que estabeleça uma governança exclusivamente sul ou latino-americana sobre nossos imensos recursos, obviamente contrária a internacionalização da água. Só assim elas nos encontrarão aptos a superar qualquer diferença porventura existente entre nós e através de ações coletivas com nossos vizinhos "hermanos" nos alinharmos com a ideia de que podemos estabelecer princípios de uma comunidade de interesses, justa e razoável, onde a soberania limitada desses valiosos territórios leve em conta principalmente o bem comum e o usufruto deles por suas populações.

Só assim a idéia de divindades compreensivas e materiais como Nuliajuk e Iemanjá, ligadas à natureza, à nossa determinação e às nossas carências, sinônimas de vida em processo eterno de renovação e evolução poderia fazer eco com o consenso harmonioso de nossos antepassados que nos legaram essa riqueza, com a razão e a lógica dos iluministas do século XVIII, como propugnaram por seus ideais os anarquistas do século XIX, com sonharam os hippies do século XX e, finalmente, com as palavras do geneticista e ensaísta francês Albert Jacquard, um cultuador da paz e da não-violência, quando brada que


"temos de dizer a todos, no mundo, que nenhum bem da Terra pertence a alguém."

(aqui em inglês: Water Privatization Conflicts)

O Brasil de Iemanjá já é o campeão mundial da água doce, portanto desperta muita sede: 12% dela é encontrada aqui, seja na superfície ou sob ela. Mantidia a proporção significa dizer que somos guardiões de pelo menos 8% de toda a água doce subterrânea do mundo. Sabendo disso, hoje em dia, mais da metade da água consumida por nós - no consumo doméstico, na indústria e na agricultura - é proveniente de aquíferos encontrados sob a terra em camadas rochosas recheadas de água, muita água. Nossa deusa é um oceano e nós somos suas gotas de água. Mas desse oceano que só existe por causa das gotas que o formam, não queremos que participem os hodiernos Senhores da Água, pelo menos enquanto formos capazes de nos danar, denunciando os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas), do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) e do Ministério do Meio ambiente que insistem em entregar as pesquisas e nossos recursos hidrícos à corporações estrangeiras. Essas denúncias da academia e dos pesquisadores brasileiros, principalmente da região Norte, citadas pelo Diário do Tapajós, de Santarém, Pará, em sua edição de 24 de junho de 2011, foram confirmadas no citado Fórum Mundial da Água.

São elas que também já falam dos grandes petroleiros, adaptados para transportar água que - como anotou Daniel Pearl Bezerra no Portal Luis Nassif -, na foz do Amazonas, enchem seus tanques e surrupiam nossa água doce, água essa que em seguida é tratada na Europa e comercializada no Oriente Médio e Norte da África, onde o preço de um barril já é superior ao de um de petróleo (ver aquiO mesmo se verifica na foz do rio Congo, na costa ocidental da África, do outro lado do Atlântico. Diante da inércia dos governantes, tanto dos de lá quanto o de cá, essa prática só tende a crescer, pois o custo de dessanilizar água do mar ainda é três vezes maior do que tratar a água doce roubada desses rios, como também denuncia em Belém, o prof. Matta. (ver aqui)

Façamos coro então com as entidades da sociedade civil internacionais e brasileiras que, nesse contexto, estão se mobilizando para inserir o tema Felicidade na agenda de debates da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, em junho próximo, no Rio, como sugeriu Alana Gandra, com o que deixaram escrito Maude Barlow e Tony Clarke, em seu "Ouro Azul" e transformemos a Rio+20 numa exuberante trincheira que repercuta à exaustão o que nos propuseram eles e algumas das resoluções do 6º Fórum de Marselha:

"Recomendamos que cada país assegure que o acesso a água potável e ao saneamento básico, em termos de qualidade, aceitabilidade, acessibilidade e custos, sobretudo para as populações mais vulneráveis, seja uma prioridade e que sejam alocados os recursos financeiros necessários em todos os níveis."

- que a água doce da Terra pertence à Terra e a todas as espécies e, portanto, não deve ser tratada como uma mercadoria particular a ser comprada, vendida e comercializada para lucro;

- que o valor intrínseco da água doce precede sua utilidade e valor comercial e, portanto, ela deve ser respeitada e salvaguardada por todas as instituições políticas, comerciais e sociais;

- que o suprimento de água doce do planeta é um legado compartilhado, um bem público e um direito humano fundamental e, portanto, uma responsabilidade coletiva.


*Antonio Fernando Araujo é engenheiro e colabora neste blog


terça-feira, 17 de abril de 2012

As Senhoras de Outrora e os atuais Senhores das Águas - Parte 2/3

17/04/2011 - MERCANTILIZAR A NATUREZA
Antonio Fernando Araujo*

Parte 1/3: UM EXTENSO E SINUOSO FIO DA MEADA


Um segundo componente desse cenário já apontamos anteriormente. Ele diz respeito e está minuciosamente descrito em um comunicado elaborado pela ONU aos participantes do 6º Fórum Mundial da Água, ocorrido em Marselha, França, em março último, onde a organização internacional deu destaque ao

"impacto da mudança climática na gestão da água: secas, inundações, transtornos nos padrões básicos de chuva, derretimento de geleiras, urbanização excessiva, globalização, hiperconsumo aliado ao desperdício, crescimento demográfico e econômico. Cada um destes fatores, constitui, para as Nações Unidas, os desafios iminentes que exigem respostas da humanidade."


Talvez porque viva ouvindo vozes dos personagens das suas pesquisas sobre a conturbada distribuição da água nos centros urbanos

é que o prof. Milton Matta, da UFPa, tenha se tornado um crítico irretorquível do modelo atual "... do uso racional desse bem e que passa por processos técnicos e operacionais de identificação de fontes na superfície, cuidados para evitar contaminações, de captação, de tratamento e termina em uma enorme rede de distribuição, associados aos indispensáveis serviços de manutenção, de administração e de cobrança, nos faz pensar que, postos agora diante desses enormes mananciais subterrâneos, onde a pureza da água é comprovadamente mais alta, pois está mais bem protegida de agentes contaminantes, apresenta melhor qualidade físico-química e bacteriológica, sofre menos evaporação, a captação é mais simples, o tratamento menos oneroso e a rede de distribuição infinitamente menos complexa, mais fáceis de construir e de manter, portanto mais econômica, pois cada poço abasteceria apenas algumas poucas unidades consumidoras, não temos dúvidas de que o modelo vigente começa a ser posto em cheque. Ainda nos resta um longo caminho até que esse "desenho" atual se veja completamente superado."


Matta é um estudioso das águas e em especial um pesquisador que há anos tenta identificar os contornos do enorme aquífero Alter-do-Chão, na Amazônia, provavelmente o maior do mundo em volume d'água, capaz, segundo ele, de abastecer a população mundial por três séculos. E quando comprovamos a aflitiva realidade do modelo vigente sua palavra se torna sagrada. (ver aqui)

Não fosse por todos esses desafios e exigências, a problemática estaria razoavelmente equacionada e não mais precisaríamos testemunhar a perversa realidade que “a cada três segundos condena à morte uma criança por falta de água”, como assegura Emmanuel Poilane, renomado estudioso da geopolítica da água e diretor da Fundação France Liberté, se, além daquilo, esses recursos hídricos do planeta estivessem igualitariamente distribuídos por cada um dos continentes e, dentro deles, por cada região ou país. Como sabemos que a natureza não é tão complacente assim, não é o que ocorre.

Entretanto, não é pelo fato de que em quase todos os casos, as grandes reservas de água na Europa e nos EUA padecerem de problemas que afetam sua qualidade que teremos de renunciar ao nosso direito soberano e a responsabilidade de zelar por nossos recursos de água doce, sozinhos ou em conjunto como nossos vizinhos. Na Europa, hoje, a água é um item de consumo semanal, constituindo-se item obrigatório nos supermercados. A grande poluição industrial – por exemplo, no Reno – ou a qualidade – no caso das águas calcáreas na França e na Alemanha – obrigaram a população a aceitar a água como mercadoria vendida em supermercados. Nos EUA a expansão da agricultura subsidiada consome a maior parte da água potável, além da poluição que avança sobre grandes reservatórios, como nos Grandes Lagos, fronteira com o Canadá. Além disso, a construção de cidades “artificiais”, muitas vezes em pleno deserto – como Las Vegas e Dubai – implica numa pressão crescente sobre os reservatórios existentes. "Ninguém perderia nada se se suprimisse Las Vegas", anotou o geneticista francês Albert Jacquard.

Pois bem. É nesse ambiente, meio catastrófico por um lado, mas promissor por outro que, nas últimas décadas, vimos surgir alguns personagens, suficientemente capazes de perceber que a humanidade caminha para se posicionar perante um inusitado dilema: a água doce é um bem precioso demais para que ele não possa também ser utilizado como uma fonte de riquezas para quem, antecipadamente, se apossar de suas jazidas ou, como o ar que respiramos, trata-se de um direito vital, portanto inalienável do ser humano, e assim, a ninguém pode ser concedido o direito de se tornar proprietário privado dele. Ainda mais quando sabemos que um bem público dessa natureza não oferece ao consumidor as alternativas habituais de um mercado competitivo onde você pode escolher o carro A ao invés do B na base da maior oferta.


No caso da água, a perspectiva de lucro mais considerável será aquela proveniente do conceito de escassez,

pois estamos tratando de um produto valioso e que, por essa razão não pode ser farto e muito menos vendido barato. Em outras palavras, os pobres não terão direito a esse "luxo". Portanto, nesse rastro não se visualiza apenas a questão da água, mas os indícios claros de que as corporações transnacionais almejam mercantilizar a natureza como um todo, da biodiversidade animal e vegetal à água e ao ar que respiramos.

Assim, se por um lado temos que ter em conta a preocupação com a não-poluição e a conservação das águas, com sua melhor distribuição, evitando seu consumo excessivo e os desperdícios, por outro constatamos com bastante fidelidade que cerca de 70% de toda a água doce posta à disposição do consumo é absorvida apenas pela agricultura, a mesma que ainda se utiliza de formas antigas de irrigação - quando o desperdício supera a casa dos 50% - ao invés de substitui-las por métodos que privilegiam o gotejamento. E quando nos vemos diante do fato de que 20% da água doce despendida no mundo vai para a indústria, onde a fabricação de um único automóvel emprega cerca de 400 mil litros de água, constatamos então que os gastos domésticos voltados para matar a sede e fazer a higiene se contentam com apenas 10% do gasto, mas que, inexplicavelmente, é nesse segmento onde se concentram as maiores campanhas para que se modere o consumo de água.

Ainda que façamos um esforço gigantesco nesse sentido, claro está que ele resultará pífio, pois a economia redundará em apenas algumas gotas no oceano. O mesmo não se daria se a agricultura conseguisse poupar apenas 10 dos 70% que hoje ela despende. A água seria farta e não haveria tanta pressão sobre a população e necessidade alguma de economia. Mas, do ponto de vista dos lucros privados, de que adiantaria? Essa providência não estaria assim alinhada com a ideia de que "água é produto escasso, portanto deve ser poupado porque é caro", tão ao sabor de empresas do porte de uma corporação francesa como a Vivendi que a vende, principalmente para o consumo doméstico.


Portanto, não é à toa que esse discurso está presente no "merchandising verde" da Coca-Cola (outra grande interessada nas bacias aquíferas), nas operações da também francesa Suez e fez parte ainda das inúmeras notas à imprensa da norte-americana Enron quando apostava na "exploração do movimento mundial a favor da privatização da água".

Sobre a Vivendi, para a qual poucas pessoas prestam atenção, basta dizer que a partir de 2000, tornou-se a maior fornecedora do mundo de serviços públicos ligados ao abastecimento de água com tentáculos espalhados em organismos multilaterais e em todos os continentes, Brasil e Argentina incluídos, além de ser "a dona do segundo maior conglomerado de comunicações do mundo, incluindo redes e canais a cabo de TV, jornais, editoras e operadoras de acesso à internet como a GVT, já em atividade no Brasil", como informa a jornalista e estudiosa, Zilda Ferreira. Tão atuante quanto a Vivendi é a Suez, presente em 130 países onde atende mais de 120 milhões de consumidores.

*Antonio Fernando Araujo é engenheiro e colabora neste blog

Próxima parte 3/3: As Senhoras de Outrora e os atuais Senhores das Águas
NENHUM BEM DA TERRA PERTENCE A ALGUÉM


segunda-feira, 16 de abril de 2012

As Senhoras de Outrora e os atuais Senhores das Águas - Parte 1/3

16/04/2011 - UM EXTENSO E SINUOSO FIO DA MEADA
Antonio Fernando Araujo*


Você sabia que é a água doce subterrânea e não a da superfície, a que se encontra mais disponível para o consumo da humanidade?


E a conta é simples, essa água invisível do subsolo representa nada menos do que 96% de toda a água doce do planeta.

E quando falamos de toda a água doce do planeta, na verdade estamos nos referindo a apenas 2,4% de toda a água existente na Terra, porque os restantes 97,6% é constituído de agua salgada ou salobra, inapropriadas para o consumo. Assim sendo, esses míseros 2,4% ainda dividem-se em uma parcela maior de 2,3% para as águas presentes no subsolo enquanto o 0,1% restante representa a soma de toda a água doce que costumamos encontrar nos rios, lagos, aquela congelada nas calotas polares, nos picos e geleiras das montanhas e a que percebemos sob a forma de vapor d'água na atmosfera.

É como se pudéssemos congelar toda a água da Terra - tanto a da superfície quanto a subterrânea - em 1.000 cubinhos. Um deles equivaleria a esse 0,1%, 23 deles corresponderiam às águas do subsolo e o restante, 976 cubinhos seriam as águas dos mares - tudo em números redondos.

Esse é o extenso e por vezes sinuoso fio da meada que alimenta com mais intensidade o discurso da escassez de água potável do planeta, discurso esse que ainda se nutre com ingredientes mais severos, como por exemplo os que dizem respeito ao crescimento da população humana e animal, à expansão das áreas agriculturáveis quando prejudicam ecossistemas hídricos de valor incalculável, à destruição das terras úmidas, das várzeas e matas ciliares que acompanham as margens dos rios, cercam e molduram os lagos e pântanos, ao aquecimento da atmosfera, ao aumento do consumo de água na indústria, ao crescimento das cidades, cimento e asfalto impermeabilizando o solo, à poluição das nascentes e lagos, à contaminação dos rios, lagos e lençois freáticos e ao impiedoso desmatamento das florestas e liquidação da biodiversidade existente.


De todo esse elenco de agressões, a grande verdade entretanto é que se não houvesse tanta poluição e contaminação a quantidade das águas disponíveis no planeta para o consumo humano e animal continuaria, como sempre foi, praticamente inalterada, uma realidade de centenas de milênios. E a razão é simples: a Terra não "exporta" água para outros planetas. Excluídos aqueles pontos acima e enquanto uma "parcela considerável" das águas do mar e dos continentes continuar a se evaporar, a formar nuvens e a voltar a cair sobre a terra na forma de chuva ou neve, a escorrer para os rios, lagos, lençois freáticos e aquíferos subterrâneos para logo em seguida voltarem ao mar, realizando seu ancestral "ciclo hidrológico" que ajuda a preservar o equilíbrio global do planeta, não haverá motivo algum para temermos a tão propalada escassez de água potável.

Mas eis que a ciência nos informa sobre uma realidade nova.


Essa "parcela considerável" é a única que, a rigor, deveria estar disponível para os humanos, a "água meteórica", apelidada assim por alguns autores, aquela que efetivamente circula pelos lençois freáticos e alimentam os rios, lagos e pântanos. É ela, a água da chuva, a mesma das deusas primitivas que, em última instância, ao longo do seu ciclo, assegura nosso suprimento de água doce a cada ano. E o planeta Terra, há centenas de milênios, rege o volume dessa "água meteórica", sempre da mesma maneira, praticamente sem alteração. O que significa dizer que, se precisarmos consumir água em quantidade acima do volume da "água meteórica" e que, portanto, ultrapasse o quinhão "estabelecido por Deus" para que a Terra efetue o "ciclo hidrológico" dessa tal "água meteórica", precisaremos então avançar sobre nossas reservas naturais, sejam elas superficiais ou subterrâneas, para que o abastecimento das espécies seja mantido. E como a natureza não é assim tão benigna, logo se nos apresenta uma perspectiva assustadora: assim como a "água meteórica" é finita as das reservas também o são.

Algo mudou então? Será que é isso tudo que está levando boa parte da comunidade acadêmica e científica a emitir sinais de alerta sobre o possível agravamento da escassez de água doce em futuro próximo, algo que já é real para cerca de 1/5 da humanidade, ou seja, 1,3 bilhões de pessoas? Por que a cada ano se torna mais agudo o clamor de entidades e organizações da sociedade civil alertando-nos sobre a necessidade de pouparmos esse bem, caso contrário esse número se multiplicará por 4 num prazo de 50 anos? O que tem levado alguns Estados a embutir em suas estratégias de desenvolvimento ou mesmo de sobrevivência o rigoroso controle das nascentes e de mananciais presentes em seu território ou no de países vizinhos, chegando ao ponto de se aproveitar das guerras para se apropriar deles como o fazem, entre outros, o Estado de Israel?

Hoje sabemos, que mesmo aquele modesto cubinho de 0,1% de água potável encontrada na superfície acrescido de outro cubinho equivalente de recursos hídricos subterrâneos são mais do que suficientes para abastecer com folga toda a necessidade atual de água do planeta, tanto para matar a sede quanto para o seu emprego na agricultura, indústria e ambientes urbanos e domésticos. Assim sendo, já não estamos mais falando de escassez de um produto e sim das maneiras como esse recurso é distribuído, dos meios que a população dispõe para acessá-lo e da necessidade de preservação, ou seja, da sua não-poluição e não-contaminação, tanto dele próprio quanto da natureza em volta.

*Antonio Fernando Araujo é engenheiro e colabora neste blog

Próxima parte 2/3: As Senhoras de Outrora e os atuais Senhores das Águas MERCANTILIZAR A NATUREZA


terça-feira, 3 de abril de 2012

A Centralidade da Água

29/03/2012 - Mônica Bruckman** - site América Latina em Movimento

A centralidade da água na disputa global por recursos estratégicos*


As grandes reservas hídricas como a bacia do Congo, Amazonas, o aquífero Guarani ou os grandes lagos de África central coincidem com a existência de grandes populações em expansão e fortes conflitos étnicos e religiosos. Além disso, grande parte dos países desta região se encontram fortemente pressionados pelo sistema financeiro internacional que tenta implantar uma gestão neoliberal dos recursos hídricos. (Monica Bruckman)



 ALAI AMLATINA - Duas visões contrapostas estão em choque na disputa global pela água. A primeira, baseada na lógica da mercantilização deste recurso, que pretende convertê-lo em uma commodity, sujeita a uma política de preços cada vez mais dominada pelo processo de financeirização e o chamado “mercado de futuro”. Esta visão encontra no Conselho Mundial da Água, composto por representantes das principais empresas privadas de água que dominam 75% do mercado mundial, seu espaço de articulação mais dinâmico.

O Segundo Fórum Mundial da Água, realizado em 2000 declarou, no documento final da reunião, que a água não é mais um “direito inalienável”, mas uma “necessidade humana”. Esta declaração pretende justificar, do ponto de vista ético, o processo em curso de desregulamentação e privatização deste recurso natural. A última reunião realizada com o nome de IV Fórum Mundial da Água, em março de 2009, em Istambul, ratifica esta caracterização da água. Um aliado importante do Conselho Mundial da Água foi o Banco Mundial, principal impulsor das empresas mistas, público-privadas, para a gestão local da água.

A outra visão se reafirma na consideração da água como direito humano inalienável. Esta perspectiva é defendida por um amplo conjunto de movimentos sociais, ativistas e intelectuais articulados em um movimento global pela defesa da água, que propõe a criação de espaços democráticos e transparentes para a discussão desta problemática a nível planetário. Este movimento, que não reconhece a legitimidade do Fórum Mundial da Água, elaborou uma declaração alternativa à reunião de Istambul, reivindicando a criação de um espaço de debate global da água nos marcos da ONU, reafirmando a necessidade da gestão pública deste recurso e sua condição de direito humano inalienável [1].

A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, em julho de 2010, a proposta apresentada pela Bolívia, e apoiada por outros 33 Estados, de declarar o acesso à água potável como um direito humano. Como previsto, os governos dos Estados Unidos, Canadá, Austrália e o Reino Unido se opuseram a esta resolução, fazendo que perdesse peso político e viabilidade prática, na opinião de Maude Barlow, ex-assessora sobre água do presidente da Assembleia Geral da ONU [2]. Estes quatro países, e suas forças políticas mais conservadoras, aparecem como o grande obstáculo. O perigo para os operadores da água é grande, certamente, um reconhecimento da água e do saneamento como direito humano limitaria os direitos das grandes corporações sobre os recursos hídricos, direitos consagrados pelos acordos multilaterais de comércio e investimento.

Os governos da América Latina estão avançando no reconhecimento da água como direito inalienável e na afirmação da soberania e gestão pública destes recursos. A Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia reconhece, em seu artigo 371, que o “a água constitui um direito fundamentalíssimo para a vida, no marco da soberania do povo”, estabelece também que “o Estado promoverá o uso e aceso à água sobre a base de princípios de solidariedade, complementaridade, reciprocidade, equidade, diversidade e sustentabilidade”.

Certamente, a disputa pela apropriação e o controle da água no planeta adquire dimensões que extrapolam unicamente os interesses mercantilistas das empresas transnacionais, colocando-se como um elemento fundamental na geopolítica mundial. Está claro que o planeta necessita urgentemente de uma política global para reverter a tendência do complexo processo de desordem ecológico que, ao mesmo tempo em que acelera a dinâmica de desertificação em algumas regiões, incrementa os fenômenos de inundação produto de chuvas torrenciais em outras. As consequências devastadoras que a degradação do meio ambiente está provocando e a gravidade da situação global que tende a se aprofundar colocam em discussão a própria noção de desenvolvimento e de civilização.

Os aquíferos e a preservação de ecossistemas
Há muito tempo as investigações hidrológicas dos ciclos globais da água vem demonstrando que 99% da água doce acessível do planeta se encontram nos aquíferos de água doce, visíveis nos rios, lagos e capas congeladas de gelo. Estas águas constituem sistemas hídricos dinâmicos e desenvolvem seus próprios mecanismos de reposição que dependem, fundamentalmente, das chuvas. Parte deste caudal se infiltra nas rochas subjacentes e se deposita debaixo da superfície, no que se conhece como aquíferos. Os aquíferos recebem reposição das chuvas, portanto são, em sua maioria, renováveis. 

Dependendo do tamanho e as condições climáticas da localização dos aquíferos, o período de renovação oscila entre dias e semanas (nas rochas cársticas), ou entre anos e milhares de anos tratando-se de grandes bacias sedimentares. Em regiões onde a reposição é muito limitada (como nas regiões áridas e hiperáridas) o recurso da água subterrânea pode ser considerado como "não renovável" [3].

Os aquíferos e as águas subterrâneas que os conformam, fazem parte de um ciclo hidrológico cujo funcionamento determina uma complexa inter-relação com o meio ambiente. As águas subterrâneas são um elemento chave para muitos processos geológicos e hidroquímicos, e tem também uma função relevante na reserva ecológica, já que mantém o caudal dos rios e são a base dos lagos e dos pântanos, impactando definitivamente nos habitat aquáticos que se encontram neles. Portanto, os sistemas aquíferos além de serem reservas importantes de água doce, são fundamentais para a preservação dos ecossistemas.

A identificação dos sistemas aquíferos é um requisito básico para qualquer política de sustentabilidade e gestão de recursos hídricos que permitam que o sistema continue funcionando e, do ponto de vista de nossas investigações, é imprescindível para uma análise geopolítica que procure pôr em evidência elementos estratégicos na disputa pelo controle e apropriação da água.

As grandes reservas hídricas como a bacia do Congo, Amazonas, o aquífero Guarani ou os grandes lagos de África central coincidem com a existência de grandes populações em expansão e fortes conflitos étnicos e religiosos. Além disso, grande parte dos países desta região se encontram fortemente pressionados pelo sistema financeiro internacional que tenta implantar uma gestão neoliberal dos recursos hídricos através de seu pessoal técnico para os quais as estações de tratamento de água, reciclagem e construção de mecanismos que evitem a contaminação dos aquíferos são gastos supérfluos [4].

Trata-se de um processo violento de expropriação e privatização do recurso natural mais importante para a vida. Apesar da centralidade da água potável para consumo humano, é necessário assinalar também a importância vital deste recurso para a agricultura, que afeta diretamente a soberania alimentar e para o processo industrial em seu conjunto.

Os maiores aquíferos da Europa se encontram na região euro-asiática, destacando-se, por sua dimensão, a bacia Russa, mais próxima à região polar. A Europa ocidental se vê reduzida a um único aquífero de médio porte, na bacia de Paris. Em quase todos os casos, as reservas de água da Europa padecem de problemas que afetam sua qualidade, o que ampliou drasticamente o consumo de água engarrafada, que se converteu em um item obrigatório na cesta de consumo familiar [5]. A Europa registra, proporcionalmente, a maior taxa mundial de extração de água para consumo humano: do total de água que se extrai, mais de 50% é utilizada pelos municípios, aproximadamente 40% se destina à agricultura e o resto é consumido pelo setor industrial.

A Ásia depende dos grandes aquíferos do norte de China e a Sibéria, mais próxima da região polar. Um dos casos mais graves é o da Índia, que junto com os Estados Unidos, tem uma das taxas mais altas de extração de água subterrânea do mundo.

A América do Sul possui três grandes aquíferos: a Bacia do Amazonas, a Bacia do Maranhão e o sistema aquífero Guarani, que mais parece um “mar subterrâneo” de água doce que se estende por quatro países do cone sul: Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. Pelo volume das reservas destes aquíferos e pela capacidade de reposição de água destes sistemas, a América do Sul representa a principal reserva de água doce do planeta.

As regiões mais críticas, por ter uma reposição limitada de água (menos de 5 milímetros de chuva por ano), são: o norte de África, na região desértica do Saara; a Índia; a Ásia central; grande parte da Austrália; a estreita faixa desértica que vai da costa peruana até o deserto de Atacama no Chile e a região norte do México e grande parte da região centro-oeste dos Estados Unidos. Nestas regiões, pode-se considerar a água como recurso não renovável. A África sub-saariana, o sudeste asiático, a Europa, os Bálcãs, a região norte da Ásia e a região nor-ocidental da América do Norte registram níveis moderados de reposição de água, entre 50 e 100 mm por ano.

A região de maior reposição de água do mundo é a América do Sul onde, em quase todo o território subcontinental, registram-se níveis de reposição de água maiores de 500 mm/ano, o que constitui o principal fator de abastecimento dos sistemas aquíferos da região. Esta altíssima capacidade de reposição de águas superficiais e subterrâneas é fundamental, não só para o abastecimento de água doce, mas também para a manutenção e reprodução dos sistemas ecológicos e da biodiversidade na região.

Notas:
[1] Ver: Mabel Faria de Melo. “Água não é mercadoria”. Em: ALAI, 3 de abril de 2009.
[2] Ver: Roberto Bissio. El derecho humano al agua. Disponível em http://alainet.org/active/39769
[3] Atlas of Transboundary Aquifers. Global maps, regional cooperation and local inventories. Paris: UNESCO, p. 16.
[4] TEIXEIRA, Francisco Carlos. Por uma geopolítica da água. 23 de janeiro de 2011. Disponível em http://www.tempopresente.org/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=77 ,
[5] Ibid.

** Monica Bruckmann é socióloga, doutora em ciência política, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil) e investigadora da Cátedra e Rede UNESCO/Universidade das Nações Unidas sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável - REGGEN.

* Ver texto original em: http://alainet.org/publica/473.phtml da revista “América Latina en Movimiento”, No 473, correspondente a março de 2012 e que tem como tema "Extractivismo: contradicciones y conflictividad”.

Matéria copilada do endereço: http://alainet.org/active/53475

[Nota da Equipe do blog Educom: ver na série de textos as matérias relacionadas com as pesquisas do professor Milton Matta, da UFPa, o maior estudioso do aquífero Alter-do-Chão, o maior do Brasil em volume dágua, cujo centro geográfico encontra-se nesse balneário às margens do rio Tapajós, 30 km ao sul de Santarém.


quinta-feira, 22 de março de 2012

Guerra da Água é silenciosa, mas já está em curso

19/03/2012 - Eduardo Febbro - Carta Maior
Tradução: Katarina Peixoto

"A guerra da água é silenciosa, mas é uma realidade: conflito em Barcelona causado pelo aumento das tarifas, quase guerra na Patagônia chilena por causa da construção de enormes represas e da privatização de sistemas fluviais inteiros, antagonismos em Barcelona e em muitos países africanos pelas tarifas abusivas aplicadas pelas multinacionais. A pérola fica por conta da Coca Cola e de suas tentativas de garantir o controle em Chiapas, México, das reservas de água mais importantes do país." (Eduardo Febbro - de Paris)



- Quanto vale a vida? “Para começar, um bom copo de água”,

responde com ironia Jerôme, um dos participantes do Fórum Mundial Alternativo de Água (FAME) que se reuniu na França, paralelamente ao muito oficial Fórum Mundial da Água (FME). Duas “cúpulas” e duas posturas radicalmente opostas que expõem até o absurdo o antagonismo entre as multinacionais privadas da água e aqueles que militam por um acesso gratuito e igual a este recurso natural cuja propriedade é objeto de uma áspera disputa nos países do Sul. Basta apontar a identidade dos organizadores do Fórum Mundial da Água para entender o que está em jogo: o Fórum oficial foi organizado pelo Conselho Mundial da Água. Este organismo foi fundado pelas multinacionais da água Suez e Veolia e pelo Fundo Monetário Internacional, incansáveis defensores da privatização da água nos países do Sul.

O mercado que enxergam diante de si é colossal: um bilhão de seres humanos não tem acesso à água potável e cerca de três bilhões de seres humanos carecem de banheiro. O tema da água é estratégico e tem repercussões humanas muito profundas. Os especialistas calculam que, entre 1950 e 2025 ocorrerá uma diminuição de 71% nas reservas mundiais de água por habitante: 18 mil metros cúbicos em 1950 e 4.800 metros cúbicos em 2025. Cerca de 2.500 pessoas morrem por dia por não dispor de um acesso adequado à água potável. A metade delas é de crianças. Comparativamente, 100% da população de Nova York recebe água potável em suas casas. A porcentagem cai para 44% nos países em via de desenvolvimento e despenca para 16% na África Subsaariana.

As águas turvas dos negócios e as reivindicações límpidas da sociedade civil, que defende o princípio segundo qual a água é um assunto público e não privado e uma gestão racional dos recursos, chocam-se entre si sem conciliação possível. Um exemplo dos estragos causados pela privatização desse recurso natural é o das represas Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, a oeste do Amazonas, no Brasil. As duas represas têm um custo de 20 bilhões de dólares e, na sua construção, estão envolvidas a multinacional GDF-Suez e o banco espanhol Santander. A construção dessas imensas represas provocou o que Ronack Monabay, da ONG Amigos da Terra, chama de “um desarranjo global”. As obras desencadearam um êxodo interior dos índios que viviam na região. Eles foram se refugiar em outra área ocupada por garimpeiros em busca de ouro e terminaram enfrentando-se com eles.

Deslocamento de populações, inundação de terras agrícolas e de matas e esgotamento de espécies aquáticas são algumas das consequências nefastas dessas megaestruturas”, denuncia Ronack Monabay. As represas se Santo Antônio e Jirau ameaçam também várias populações indígenas ao longo do rio Madeira: os Karitiana, os Karipuna, os Uru-eu-Wau-Wau e os Katawixi. Outros grupos como os Parintintin, os Tenharim, os Pirahã, os Jiahui, os Torá, os Apurinã, os Mura, os Oro Ari, os Oro Bom, os Cassupá e os Salamãi também estão ameaçados. Nenhuma destas populações indígenas foi consultada sobre a viabilidade dos projetos. Eles foram impostos a elas, juntamente com todos os males que os acompanham.

O exemplo do Brasil é extensivo a outros projetos similares em Uganda ou Laos, onde as multinacionais da água semeiam a destruição. O direito à água para todos foi reconhecido pelas Nações Unidas em 2010. No entanto, esse reconhecimento está longe de ter se materializado em fatos. Emmanuel Poilane, diretor da Fundação France Libertés, criada por Danielle Miterrand, falecida esposa do também falecido presidente socialista François Miterrand, lembra de um dado revelador: “dos 193 países que integram a ONU, só 30 deles inscreveram esse direito na Constituição. Mas esses 30 países são todos do Sul”. O Norte quer água privada para encher os caixas de seus bancos e pouco importa o custo humano que a escassez de água pode causar às populações destes países.

A este respeito, Emmanuel Poilane recorda que “a cada três segundos morre uma criança por falta de água”. A própria existência do Fórum Mundial da Água, organizado por um Conselho Mundial da Água composto por multinacionais e pelo FMI é uma aberração. A batalha entre público e privado se deslocou inclusive para o Senado francês. No curso de um debate, um dos senadores socialistas lembrou que esse fórum não é uma instância das Nações Unidas, mas sim um lugar onde “se fazem negócios privilegiados entre as multinacionais. É urgente que a água seja objeto de uma reapropriação cidadã”. Não é o caso. As instâncias internacionais estão ausentes porque os lucros à vista são colossais. A gestão da água foi confiscada pelos interesses privados.

Brice Lalonde, coordenador da Rio+20, cúpula da ONU para o Meio Ambiente, prometeu que a água será “uma prioridade” da reunião que será realizada no Rio de Janeiro em junho. O responsável francês destaca neste sentido o paradoxo que atravessa este recurso natural: “a água é uma espécie de jogo entre o global e o local”. E neste jogo o poder global das multinacionais se impõe sobre os poderes locais.

As ONGs não perdem as esperanças e apostam na mobilização social para contrapor a influência das megacorporações. Neste contexto preciso, todos lembram o exemplo da Bolívia. Jacques Cambon, organizador do Fórum Alternativo Mundial da Água e membro da ONG Aquattac, recorda o protesto que ocorreu na cidade de Cochabamba: “dezenas de milhares de pessoas manifestaram-se na rua em protesto contra o aumento da tarifa da água potável imposto pela multinacional norteamericana Bechtel”.

A guerra da água é silenciosa, mas existe: conflito em Barcelona causado pelo aumento das tarifas, quase guerra na Patagônia chilena por causa da construção de enormes represas e da privatização de sistemas fluviais inteiros, antagonismos em Barcelona e em muitos países africanos pelas tarifas abusivas aplicadas pelas multinacionais. A pérola fica por conta da Coca Cola e de suas tentativas de garantir o controle em Chiapas, México, das reservas de água mais importantes do país. Jacques Cambon está convencido de que “o problema do acesso à água é um problema de democracia. Enquanto não se garantir o acesso e a gestão da água sob supervisão de uma participação cidadã haverá guerras da água em todo o mundo”.

A senadora brasileira Katia Abreu (PSD), que também é presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), propôs durante o Fórum uma iniciativa para “proteger em escala mundial as zonas essenciais à preservação dos recursos de água”. As palavras, no entanto, se chocam com a dura realidade: a das multinacionais e a da própria natureza. A ONU apresentou na França um informe sobre o impacto da mudança climática na gestão da água: secas, inundações, transtornos nos padrões básicos de chuva, derretimento de geleiras, urbanização excessiva, globalização, hiperconsumo, crescimento demográfico e econômico. Cada um destes fatores, constitui, para as Nações Unidas, os desafios iminentes que exigem respostas da humanidade.

A margem de manobra é estreita. Nada indica que os tomadores de decisão estão dispostos a modificar o rumo de suas ações. A mudança climática colocou uma agenda que as multinacionais, os bancos e o sistema financeiro resistem a aceitar. Seguem destruindo, em benefício próprio e contra a humanidade. Ante a cegueira das multinacionais, a solidariedade internacional e o lançamento daquilo que se chamou na França de “um efeito mariposa” em torno da problemática da água são duas respostas possíveis para frear a seca mundial.