segunda-feira, 16 de abril de 2012

As Senhoras de Outrora e os atuais Senhores das Águas - Parte 1/3

16/04/2011 - UM EXTENSO E SINUOSO FIO DA MEADA
Antonio Fernando Araujo*


Você sabia que é a água doce subterrânea e não a da superfície, a que se encontra mais disponível para o consumo da humanidade?


E a conta é simples, essa água invisível do subsolo representa nada menos do que 96% de toda a água doce do planeta.

E quando falamos de toda a água doce do planeta, na verdade estamos nos referindo a apenas 2,4% de toda a água existente na Terra, porque os restantes 97,6% é constituído de agua salgada ou salobra, inapropriadas para o consumo. Assim sendo, esses míseros 2,4% ainda dividem-se em uma parcela maior de 2,3% para as águas presentes no subsolo enquanto o 0,1% restante representa a soma de toda a água doce que costumamos encontrar nos rios, lagos, aquela congelada nas calotas polares, nos picos e geleiras das montanhas e a que percebemos sob a forma de vapor d'água na atmosfera.

É como se pudéssemos congelar toda a água da Terra - tanto a da superfície quanto a subterrânea - em 1.000 cubinhos. Um deles equivaleria a esse 0,1%, 23 deles corresponderiam às águas do subsolo e o restante, 976 cubinhos seriam as águas dos mares - tudo em números redondos.

Esse é o extenso e por vezes sinuoso fio da meada que alimenta com mais intensidade o discurso da escassez de água potável do planeta, discurso esse que ainda se nutre com ingredientes mais severos, como por exemplo os que dizem respeito ao crescimento da população humana e animal, à expansão das áreas agriculturáveis quando prejudicam ecossistemas hídricos de valor incalculável, à destruição das terras úmidas, das várzeas e matas ciliares que acompanham as margens dos rios, cercam e molduram os lagos e pântanos, ao aquecimento da atmosfera, ao aumento do consumo de água na indústria, ao crescimento das cidades, cimento e asfalto impermeabilizando o solo, à poluição das nascentes e lagos, à contaminação dos rios, lagos e lençois freáticos e ao impiedoso desmatamento das florestas e liquidação da biodiversidade existente.


De todo esse elenco de agressões, a grande verdade entretanto é que se não houvesse tanta poluição e contaminação a quantidade das águas disponíveis no planeta para o consumo humano e animal continuaria, como sempre foi, praticamente inalterada, uma realidade de centenas de milênios. E a razão é simples: a Terra não "exporta" água para outros planetas. Excluídos aqueles pontos acima e enquanto uma "parcela considerável" das águas do mar e dos continentes continuar a se evaporar, a formar nuvens e a voltar a cair sobre a terra na forma de chuva ou neve, a escorrer para os rios, lagos, lençois freáticos e aquíferos subterrâneos para logo em seguida voltarem ao mar, realizando seu ancestral "ciclo hidrológico" que ajuda a preservar o equilíbrio global do planeta, não haverá motivo algum para temermos a tão propalada escassez de água potável.

Mas eis que a ciência nos informa sobre uma realidade nova.


Essa "parcela considerável" é a única que, a rigor, deveria estar disponível para os humanos, a "água meteórica", apelidada assim por alguns autores, aquela que efetivamente circula pelos lençois freáticos e alimentam os rios, lagos e pântanos. É ela, a água da chuva, a mesma das deusas primitivas que, em última instância, ao longo do seu ciclo, assegura nosso suprimento de água doce a cada ano. E o planeta Terra, há centenas de milênios, rege o volume dessa "água meteórica", sempre da mesma maneira, praticamente sem alteração. O que significa dizer que, se precisarmos consumir água em quantidade acima do volume da "água meteórica" e que, portanto, ultrapasse o quinhão "estabelecido por Deus" para que a Terra efetue o "ciclo hidrológico" dessa tal "água meteórica", precisaremos então avançar sobre nossas reservas naturais, sejam elas superficiais ou subterrâneas, para que o abastecimento das espécies seja mantido. E como a natureza não é assim tão benigna, logo se nos apresenta uma perspectiva assustadora: assim como a "água meteórica" é finita as das reservas também o são.

Algo mudou então? Será que é isso tudo que está levando boa parte da comunidade acadêmica e científica a emitir sinais de alerta sobre o possível agravamento da escassez de água doce em futuro próximo, algo que já é real para cerca de 1/5 da humanidade, ou seja, 1,3 bilhões de pessoas? Por que a cada ano se torna mais agudo o clamor de entidades e organizações da sociedade civil alertando-nos sobre a necessidade de pouparmos esse bem, caso contrário esse número se multiplicará por 4 num prazo de 50 anos? O que tem levado alguns Estados a embutir em suas estratégias de desenvolvimento ou mesmo de sobrevivência o rigoroso controle das nascentes e de mananciais presentes em seu território ou no de países vizinhos, chegando ao ponto de se aproveitar das guerras para se apropriar deles como o fazem, entre outros, o Estado de Israel?

Hoje sabemos, que mesmo aquele modesto cubinho de 0,1% de água potável encontrada na superfície acrescido de outro cubinho equivalente de recursos hídricos subterrâneos são mais do que suficientes para abastecer com folga toda a necessidade atual de água do planeta, tanto para matar a sede quanto para o seu emprego na agricultura, indústria e ambientes urbanos e domésticos. Assim sendo, já não estamos mais falando de escassez de um produto e sim das maneiras como esse recurso é distribuído, dos meios que a população dispõe para acessá-lo e da necessidade de preservação, ou seja, da sua não-poluição e não-contaminação, tanto dele próprio quanto da natureza em volta.

*Antonio Fernando Araujo é engenheiro e colabora neste blog

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