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domingo, 15 de dezembro de 2013

Uma década vencendo a fome

10/12/2013 - Por Luiz Inácio Lula da Silva (*) - Instituto Lula

O Brasil comemorou recentemente o 10º aniversário do Bolsa Família, um modelo para muitos programas recentes de distribuição de renda ao redor do mundo.

Por meio do Bolsa Família, 14 milhões de famílias, ou 50 milhões de pessoas – um quarto da população do Brasil – recebem uma renda mensal desde que mantenham as crianças na escola e que deem a elas assistência médica, incluindo todas as vacinações regulares.

Mais de 90% dos pagamentos são feitos para as mães.

Nesses dez anos desde o início do programa, aproveitamento escolar das crianças melhorou, as taxas de mortalidade infantil caíram e 36 milhões de pessoas saíram da extrema pobreza.

Os números são eloquentes, mas não bastam para expressar a transformação na vida de cada um.

Não existe estatística para medir a dignidade – e é disso que se trata quando a mãe e o pai podem oferecer aos filhos três refeições por dia.

Não há nos orçamentos uma rubrica chamada esperança – e é disso que se trata quando os pais veem as crianças frequentar a escola para ter um futuro melhor.

Por ter proporcionado essa mudança na vida das pessoas, o Bolsa Família está mudando o curso da História em meu país; as Nações Unidas o consideram o maior programa de distribuição de renda do mundo.

Muitos governos têm adotado a transferência de renda no combate à fome. Por isso é importante compreender as razões do êxito do Brasil e os obstáculos que ele enfrentou para colocar o Bolsa Família em prática.

Como em tantos países da América Latina, da África e da Ásia, durante muito tempo o Brasil foi governado só para uma pequena minoria de seus habitantes, a elite.

A maioria dos brasileiros era virtualmente invisível, vivendo em uma não-pátria, que desconhecia seus direitos e lhes negava oportunidades.

Nós começamos a mudar isso implementando um conjunto de políticas sociais combinado com a valorização do salário mínimo e a expansão ao crédito bancário.

Isso dinamizou uma economia que criou 20 milhões de empregos formais nos últimos 10 anos, finalmente integrando a maioria da população ao processo econômico e social.

O Bolsa Família ajudou a provar que sim, é possível acabar com a fome quando os governos têm vontade política para colocar os pobres no centro de suas ações.

Muitos achavam utópico esse objetivo.

Talvez não compreendessem que isso era absolutamente necessário para colocar o país na rota do desenvolvimento.

Alguns diziam, de boa fé, que para combater a fome o correto seria entregar alimentos às famílias, e não dinheiro.

Mas não basta receber alimentos para matar a fome. É preciso ter a geladeira para conservá-los, o fogão e o gás para cozinhar.

E as pessoas precisam se vestir, cuidar da higiene pessoal e da limpeza da casa.

As famílias não precisam do governo para dizer a elas o que elas devem fazer com o dinheiro. Elas sabem quais são suas prioridades.

Ainda hoje, certas reações ao Bolsa Família mostram que é mais difícil vencer o preconceito do que a fome.

A mais cruel dessas manifestações foi acusar o programa de estimular a preguiça.

Isso significa dizer que a pessoa é pobre por indolência, e não porque nunca teve uma chance real. Significa transferir, para o pobre, a responsabilidade por um abismo social que só favorece os ricos.

Na verdade, mais de 70% dos adultos inscritos no Bolsa Família trabalham regularmente, e complementam a renda com o dinheiro do programa.

O Bolsa Família constitui o apoio indispensável para começar a romper o ciclo da pobreza de pai para filho.

Críticos comparavam a transferência de renda a uma simples esmola, nada além de caridade.

Só quem nunca viu uma criança desnutrida, e a angústia da mãe diante do prato vazio, pode pensar dessa forma.

Para a mãe que o recebe, o dinheiro que alimenta os filhos não é caridade: é um direito de cidadania, do qual ela não vai abrir mão.

Um efeito de longo prazo do Bolsa Família é que ele dá poder a quem é pobre: eleitores que têm uma renda básica garantida não precisam mais pedir favores.

Eles não precisam trocar seus votos por comida ou por um par de sapatos, como era comum nas regiões mais pobres do Brasil.

Ele se torna mais livre, o que, para alguns, não é conveniente.

Há, por fim, os críticos que acusam o programa de elevar o gasto público. São os mesmos que dizem que cortar salários e destruir empregos é bom para a economia.

Mas dinheiro público aplicado em gente, em saúde e educação não é gasto: é investimento.

E o investimento no Bolsa Família está na raiz do crescimento do Brasil.

Cada 1 real – cerca de US$ 0,44 – investido no programa agrega 1,78 real ao PIB, de acordo estimativas do governo brasileiro.

O Bolsa Família movimenta o comércio e a produção dos bens consumidos pelas famílias.

Muito dinheiro, nas mãos de poucos, serve apenas para alimentar a especulação financeira e concentrar riqueza e renda.

O Bolsa Família mostrou que um pouco de dinheiro, nas mãos de muitos, serve para alimentar pessoas, impulsionar o consumo e a produção, atrair investimentos e gerar empregos.

O orçamento do Bolsa Família para este ano é de 24 bilhões de reais, cerca de US$ 10 bilhões, o que é menos de 0,5% do PIB brasileiro.

Desde 2008, Estados Unidos e União Europeia já gastaram US$ 10 trilhões para salvar bancos em crise.

Apenas uma fração desse dinheiro investida em programas como Bolsa Família poderia acabar com a fome no mundo e lançar a economia global numa nova era de prosperidade.

Felizmente, cada vez mais países estão escolhendo o combate à pobreza como caminho para o desenvolvimento.

Já é tempo de os organismos multilaterais estimularem isso promovendo a troca de conhecimento e o estudo das boas experiências de transferência de renda ao redor do mundo.

Seria um grande impulso para a vencermos a fome em todo o mundo.

(*) Luiz Inácio Lula da Silva é ex-presidente do Brasil e agora trabalha em iniciativas globais no Instituto Lula e pode ser acompanhado no facebook.com/lula.

Fonte:
http://www.institutolula.org/artigo-de-lula-uma-decada-vencendo-a-fome/#.UqlRPx0jLSs

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

sábado, 31 de agosto de 2013

Severinas: as novas mulheres do sertão

29/08/2013 - por Eliza Capai (*), para a Agência Pública (**)
- extraído do site Envolverde

Cada um tem que saber o seu lugar: a mulher tem qualidade inferior, o homem tem qualidade superior.”

É bem assim que fala, sem rodeios, um dos homens mais respeitados do município de Guaribas, no sertão do Piauí, pai de sete filhos (seis mulheres e um homem). “O homem é o gigante da mulher”, completa “Chefe”, como é conhecido Horacio Alves da Rocha na comunidade.

Para chegar a Guaribas são dez horas desde a capital, Teresina, até a cidadezinha de Caracol. Dali, 40 minutos de estrada de terra cercada de 
caatinga até o jovem município, fundado em 1997.

Titulares do Bolsa Família, as sertanejas estão começando a transformar seus papéis na família e na sociedade do interior do Piauí e se libertando da servidão ao homem, milenar como a miséria.

Em 2003, Guaribas foi escolhida como piloto do programa Fome Zero. Tinha então o segundo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil, 0,214 – para efeito de comparação, o país com pior IDH do mundo é Burundi, na África com índice 0,355.

Hoje, Guaribas tem 4.401 habitantes, 87% deles recebendo o Bolsa Família. São 933 famílias beneficiadas, com renda média mensal de R$ 182. 

O IDH saltou para 0,508.
Em todo o Brasil, o Bolsa Família atende a 13,7 milhões de famílias – sendo que 93,2% dos cartões estão em nome de mulheres. São elas que recebem 
e distribuem a renda familiar.

Eu vivi a escravidão”, diz Luzia Alves Rocha, 31 anos, uma das seis filhas de Chefe. Aos três meses, muito doente, ela foi dada pelo pai para os avós criarem. Quando eles morreram, uma tia assumiu a menina. “Achei que ela não ia aguentar aquela vida de roça: era vida aquilo?”, pergunta a tia Delci.

Luzia trabalhou na roça, passou fome, perdeu madrugadas subindo a serra para talvez voltar com água na cabaça. “Quando tinha comida a gente comia, se não, dormia igual passarinho”, diz. Trabalhava sem salário, sem nenhum direito trabalhista, sem saber como seria a vida se a seca não passasse e a chuva não regasse o feijão e a mandioca. Era “a escravidão”.

Luzia Alves Rocha, 31 anos, fez laqueadura depois do segundo filho: “Se não a vida ia ser mais pior”, explica. Num outro momento, ela comemora: “Minha filha hoje já alcançou coisas que eu não alcancei.

Quando a seca piorou, Luzia pensou em migrar para São Paulo. Foi então que chegou o programa social do governo: “Com esta ajudinha já consigo levar”, diz. Luzia decidiu ficar em Guaribas. Os filhos estudam. O marido e ela cuidam da roça.

A libertação da ‘ditadura da miséria’ e do controle masculino familiar amplo sobre seus destinos permite às mulheres um mínimo de programação da própria vida e, nesta medida, possibilita-lhes o começo da autonomização de sua vida moral. O último elemento é fundante da cidadania”, analisam os pesquisadores Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, da Universidade de Campinas e da Universidade Federal de Santa Catarina, no livro Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania.

Durante a pesquisa, eles ouviram beneficiários do programa observando as transformações decorrentes do Bolsa-Família – em especial na vida das mulheres. Chegaram à conclusão que a mudança é grande: “Quando você tem um patamar de igualdade mínimo, você muda a sociedade. Claro que as coisas não são automáticas. Isto não pode ser posto como salvação da nação, mas é um começo.

Luzia conseguiu realizar o sonho de diversas das mulheres ouvidas pela socióloga Walquiria Leão. Ela juntou R$ 50 e seguiu para o hospital da cidade vizinha, de São Raimundo Nonato para fazer laqueadura das trompas: “se tivesse mais filho a vida ia ser mais pior”.

Segundo Walquíria, o desejo de controlar a natalidade foi manifestado por diversas das mulheres que ela entrevistou entre 2006 e 2011 em Alagoas, Vale do Jequitinhonha, Piauí, Maranhão e Pernambuco.

Serena, uma das filhas de Luzia, tem 8 anos e está na terceira série. Ela ajuda a arrumar a casa, já sabe cozinhar, ajuda na roça. Mas não perde suas aulas. Logo depois de cantar o alfabeto e os números, diz que quer ser “advogada e médica”. Quando perguntada sobre casamento, a pequena afirma, com a mão na cintura: “eu não vou casar, vou ser sol-tei-ra…”, diz, demorando nas sílabas.

Em maio o valor do Bolsa Família de Luzia saltou de R$ 70 reais para R$ 212. A mãe comemora: “Agora já posso comprar as coisas para minha filha: a sandália dela arrebentou e pude comprar outra”. No pé da menima, o calçado que custou R$ 7,50. “Primeiro comprei para a menina, num outro mês compro pra mim”, explica Luzia, com os pés descalços.

“Minha sina”
Do outro lado do vale que liga o centro de Guaribas ao bairro Fazenda, Norma Alves Duarte, 44 anos, vive numa casa de dois quartos. Na sala, paredes mal rebocadas mostram as marcas da massa corrida. No canto, um pequeno móvel com uma TV.

A vida toda ela ajudou a mãe doente, quase não estudou – cursou até a segunda série. Como todas as mulheres dali, as atividades de criança incluíam colher feijão, pegar lenha e buscar água no olho d’água, que fica a dois quilômetros.

Norma Alves Duarte, 44 anos, depois de falar que é casada com homem vaidoso e bebedor, emenda: “Fazer o que né? Destino é destino: quem traz uma sina tem que cumprir.

Norma tem 12 irmãos, 2 filhos e vive com o segundo marido – o primeiro a abandonou depois de 20 dias. “Era pau e cachaça. Aí depois arrumei o pai 
destes meninos. É bom mas é doido, vaidoso o velho, bebedor… Ele é bruto demais, ignorante que só. Fazer o que né? Destino é destino: quem traz uma sina tem que cumprir.”

“Esta palavra, sina, faz parte do que nós chamamos de cultura da resignação e acho que ela foi de fato rompida com o Bolsa Família”, diz a socióloga Walquiria Leão.

No início do programa, Norma ganhava R$ 42 com seu cartão. Agora “tira” R$ 200. “Mudou, porque eu pego meu dinheirinho, compro minhas coisas, assim mesmo ele (o marido) xingando. Eu não dou ele, ele tem o dele. Ele não me dá nenhum real, bota para comer dentro de casa mas não me dá nem um real, nem dez centavos.”

Para Walquíria Leão, “a renda liberta a pessoa de relações privadas opressoras e de controles pessoais sobre sua intimidade, pois a conforma em uma função social determinada, permitindo-lhe mais movimentação e, portanto, novas experiências”.

Mais divórcios
Ao saírem da miséria, “da espera resignada pela morte por fome e doenças ligadas à pobreza”, nas palavras de Walquiria, estas mulheres começam a 
protagonizar suas vidas.

Elenilde Ribeiro, 39 anos, vive em Cajueiro, bairro de Guaribas onde a água ainda não chegou mas o Bolsa Família já: “Tiro R$ 134 no meu cartão mas para mim está sendo mil.”

No vilarejo de Cajueiro, a uma hora do centro de Guaribas por uma estrada de terra esburacada, a água ainda não chegou às casas. Elenilde Ribeiro, 39 anos, caminha com a sobrinha por um areial com a lata na cabeça, outra na mão. É ela quem cria a menina. “Não quero que ela sofra como eu sofri”, diz.

Chegando na casa, o capricho se mostra nos paninhos embaixo de copos metálicos, na estante com fotos de família, o brasão do Palmeiras, e um gato de louça ao lado da imagem de Jesus. Do lado de fora, o banheiro – onde se usa caneca e penico –, um pátio bem varrido, uma horta suspensa, e uma pilha de lenha que Elenilde mesma coleta e quebra, apontando: “está aqui meu botijão de gás”.

Os olhos de Elenilde marejam quando conta ter sido abandonada pelo marido há treze anos, mas seu tom de voz muda ao falar do papel da renda em sua vida. “Tiro R$ 134 no meu cartão Bolsa Família mas para mim está sendo mil. Porque com este dinheirinho eu tenho o dinheiro certo para comprar (na venda) e o dono me confia. E eu sei que com isso, com ele me confiar, eu já estou comendo a mais”, explica.

Elenilde também se livrou de trabalhar na roça dos outros em troca de uma diária de R$ 5. “Eu quando pego o meu dinheiro (do cartão) vou na venda, pago a conta mais velha e espero pela vontade do vindião, aí ele vai e me franqueia… E eu vou e compro de novo”.

Segundo Walquíria Leão, isso tem ajudado a mulher a conquistar um novo papel na comunidade. “A experiência anterior de vida era sempre de ser desrespeitada, desconsiderada porque ela não tinha dinheiro”.

No final da mesma rua, Domingas Pereira da Lima, 28 anos, não se arrepende de ter abandonado o marido. “Ele ficava namorando com uma e com outra e eu num resisti, vim embora”.

Prendendo o choro, ela continua: “Deixava eu com as crianças e se tacava no meio do mundo. A vida não é fácil mas vou levando a vida devagarzinho aqui.” Desde então, Domingas cuida dos quatro filhos com o apoio das irmãs e da mãe.

Em 2003, quando chegou o Fome Zero, foram solicitados 993 divórcios no Piauí. Em 2011 o número saltou para 1.689 casos. Dos casos não consensuais, 134 foram requeridos por mulheres em 2003; em 2011 esse número saltou para 413 – um aumento de 308%.

Ainda assim, na pequena Guaribas, a mulher ficar presa em casa em dias de festa, o alcoolismo e a infidelidade masculina são histórias contadas com naturalidade. “Vixi, aqui se conta nos dedos as mulheres que não apanham do marido”, é comum as mulheres dizerem.

Na delegacia da cidadezinha, o delegado explica que por ali o clima é sempre “muito tranquilo, sem nenhuma ocorrência. Só umas brigas de casal, coisa que a gente aconselha e eles voltam” diz.

Mirele Aline Alves da Rocha é uma das que se conta nos dedos. Aos 18 anos, a bonita jovem explica: “Apesar da minha idade já ser avançada para os daqui, eu não estou nem aí para o que eles falam. Eu quero é estudar”.

A maioria das amigas se casaram aos 13 anos. Já Mirele, solteira, cursa o 
terceiro ano do Ensino Médio na escola estadual de Guaribas, onde vive com a tia – os pais moram no município de Cajueiro.

O cartão do Bolsa Família está no nome da mãe, que recebe R$ 102 por Mirele e pelo caçula de nove anos. Ambos estudam. “Eu vejo a realidade da minha mãe e não quero seguir pelo mesmo caminho. Eu quero estudar para ter um futuro, para ser independente, para não ficar dependendo de um homem”, decreta a jovem.

No primeiro bimestre de 2013, em Guaribas, a frequência escolar atingiu o percentual de 96,23%, para crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos –
o equivalente a 869 alunos – e 82,29% para os jovens entre 16 e 17 anos, de um total de 175.

Mirele vai fazer o Enem e “ver o que dá”. Para cursar faculdade ela terá que sair de Guaribas mas planeja se graduar e voltar: “Gosto mesmo é daqui”.

Nunca é demais lembrar que nossa pobreza não é um fato contingente, mas deita raízes profundas na nossa história e na forma de conduzir politicamente as decisões estatais”, avalia Walquiria.

O Bolsa Família deveria se transformar em política publica, não mais política de um governo”.

É um processo, um avanço que mal começou. E ainda é muito insuficiente. Mas quem narra uma história tem que ser capaz de narrar todos os passos desta história”, finaliza.

(*) Eliza Capai é documentarista independente, autora do filme Tão Longe é Aqui. Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.

(**) Publicado originalmente no site Agência Pública.

Fonte:
http://envolverde.com.br/sociedade/severinas-as-novas-mulheres-do-sertao/

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Brasil combate a fome fora das fronteiras



por Fabiana Frayssinet, da IPS
35 Brasil combate a fome fora das fronteirasSalvador, Brasil, 9/11/2011 – O governo do Brasil avançou na luta contra a fome, desta vez no plano mundial, ao inaugurar um Centro de Excelência alimentar para estender suas experiências positivas a outros países em desenvolvimento, com ajuda de agências da Organização das Nações Unidas (ONU).
O centro, com sede em Brasília, foi apresentado no dia 7 pela diretora-executiva do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Josette Sheeran, e pelo diretor da Agência Brasileira de Cooperação, Marco Farani, com a presença de José Graziano da Silva, diretor-geral eleito da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). O centro já começou associações entre PMA, Brasil, Moçambique, Timor Leste e Haiti.
“Trabalhamos de maneira conjunta para desenvolver capacidades de cooperação técnica em países da África, América Latina e também da Ásia, para que possam conhecer algo da experiência brasileira de combate à fome e, a partir dela, desenvolver seus próprios programas de alimentação escolar e combate à pobreza”, disse à IPS o diretor do Centro, Daniel Balabán.
O “Centro de Excelência contra a fome para o desenvolvimento de capacidades em alimentação escolar, nutrição e segurança alimentar”, seu nome completo, contará com recursos financeiros, tecnológicos e operacionais dessas entidades brasileiras e da ONU. O objetivo, segundo Farani, é “disseminar boas práticas no campo da alimentação escolar”, lançando mão das experiências do PMA e do Brasil para o desenvolvimento, a execução ou expansão de programas escolares sustentáveis, além de apoiar outras iniciativas existentes.
“O Brasil tem uma rica experiência a ser compartilhada com os governos interessados em aprender como os brasileiros conseguiram esse êxito, e adaptar esse conhecimento aos seus países”, disse Sheeran na cerimônia de lançamento, em Salvador, Estado da Bahia. Será uma “ponte Sul-Sul única para a segurança alimentar”.
Diante de uma realidade na qual uma em cada sete pessoas no mundo não tem o que comer diariamente, as únicas reações possíveis são “se revoltar, migrar ou morrer”, disse Sheeran por ocasião da IV Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que acontece até amanhã na capital baiana. “O Brasil criou uma quarta opção, que é combater a fome dando esperanças à infância, que é o futuro”, acrescentou.
O Brasil promove no plano internacional seus êxitos neste campo, com a aplicação desde 2003 do programa Fome Zero, que combina medidas de emergência com políticas de criação de empregos e ampliação da renda familiar. Implantado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e continuado por Dilma Rousseff, o programa conseguiu reduzir a desnutrição infantil em 61%, multiplicar por oito o crédito para a pequena agricultura e reduzir a pobreza rural em 15%, segundo Graziano, um dos arquitetos destas iniciativas.
No contexto de um programa mais amplo contra a pobreza, o Bolsa Família, que entrega subsídios às famílias mais pobres, desde que vacinem seus filhos e os mantenham na escola, o Fome Zero contribuiu para tirar cerca de 28 milhões de pessoas da pobreza neste país de 192 milhões de habitantes.
A prioridade do Centro será uma iniciativa do Fome Zero: o programa de merenda escolar que no Brasil serve três refeições diárias para 47 milhões de crianças e adolescentes, considerado um modelo mundial. O programa também está vinculado à agricultura familiar e às compras locais de alimentos “combinados de maneira a dar de comer às crianças e estimular a produção local”, destacou Farani. “A ideia do Centro surgiu porque havia muita demanda por cooperação brasileira nessa área”, disse à IPS o coordenador de ações internacionais de combate à fome do Ministério das Relações Exteriores, Milton Rondó Filho.
“O que fizemos com a alimentação escolar foi buscar uma espécie de círculo virtuoso” de desenvolvimento. Em primeiro lugar, a preocupação com a nutrição da criança. Com melhor nutrição se tem maior capacidade de aprendizagem, e com isso, e comprando localmente alimentos, se promove o desenvolvimento local”, afirmou Rondó. Por lei, 30% dos alimentos para a merenda escolar devem ser comprados da agricultura familiar da mesma região onde fica a escola.
Além disso, a iniciativa intervirá também na desigualdade de gênero. Rondó mencionou o caso do oeste do Paquistão, onde o analfabetismo das meninas chega a 97%. “A ONU nos diz que se entrarmos com alimentação escolar ninguém reterá essas meninas em casa e também as enviarão para a escola”, afirmou. Segundo Rondó, “não é o caso de as escolas se transformarem em pequenos restaurantes, mas é um estímulo importante que, além da nutrição, melhora a assistência à aula e a capacidade de aprender. E se compramos produtos do mesmo lugar, é um motor enorme do desenvolvimento local”.
O anfitrião do encontro, o governador da Bahia, Jaques Wagner, destacou que, em seu Estado, a alimentação escolar dinamiza a economia local, “a quitanda, a feira, o mercado, porque é um programa de geração de renda de baixo para cima”.
O Centro não pretende repetir a fórmula brasileira, mas adaptá-la às circunstâncias geográficas, culturais e étnicas de cada país, explicou o vice-ministro de Educação de Moçambique, Augusto Jone Luís. Neste país, de 20 milhões de habitantes, onde o programa de merenda chega a seis milhões de alunos e se expandirá com ajuda do Centro, o sucesso se baseia em abordar a “alimentação escolar com um cunho pedagógico”, disse Luís.
Mais de dois mil participantes do Brasil e cem internacionais assistem a IV Conferência, na qual autoridades e organizações civis avaliam os avanços para garantir o direito à alimentação, que no ano passado alcançou status constitucional no Brasil. Contudo, o país ainda tem matérias pendentes: 16 milhões de pessoas – incluídas no programa Brasil Sem Miséria, lançado por Dilma – vivem com menos do equivalente a US$ 41 por mês. E não foram alcançadas metas de nutrição adequada.
A IV Conferência, organizada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, aborda essas lacunas bem como outros temas preocupantes: aumento da obesidade, degradação do solo, mudança climática e agrotóxicos.

Fonte: Envolverde/IPS

terça-feira, 26 de julho de 2011

Frente Nacional contra tentativas de privatizar a água



por Fabiana Frayssinet, da IPS
1293 Frente nacional contra tentativas de privatizar a água Rio de Janeiro, Brasil, 26/7/2011 – Para frear o que consideram um processo em curso de privatização da água na América Latina, organizações da sociedade civil começam a coordenar ações conjuntas na região. Elas denunciam a aplicação “de diversas formas sutis” que tendem a deixar este recurso fora do controle estatal. Mesmo admitindo que o diagnóstico sobre a situação do controle da água ainda não está claro, o fórum de organizações “trabalha nesse debate”, explicou à IPS o sacerdote Nelito Dornelas, assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) no Fórum Nacional de Mudanças Climáticas.
O que está claro é que há muitas situações pontuais em cada país inclinadas a esse fim, segundo os organizadores do Seminário Internacional: Panorama Político Sobre Estratégias de Privatização da Água na América Latina”, realizado nos dias 20 e 21, na sede da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “No Brasil está em curso com relação à água um processo semelhante ao que ocorreu com a energia elétrica quando, depois da privatização, as tarifas aumentaram cerca de 400%”, afirmou, como exemplo, o Movimento dos Afetados pelas Represas (MAB). “Temos de mobilizar a população em torno deste debates”, disse Dornelas.
Para os participantes do Seminário, é preciso convocar um referendo nos países da região, como o realizado em 2004 no Uruguai, que aprovou o controle social dos recursos hídricos do país, ou, mais recentemente, na Itália. Entre outros pontos submetidos a votação, 95% dos que participaram da consulta optaram pelo NÃO à privatização da água. “Queremos que o governo se ocupe do serviço de águas e do recurso, de modo geral”, destacou o MAB.
A América Latina tem hoje o maior controle e posse dos recursos naturais do planeta e, por isto, é importante começar a se mobilizar para preservar essa riqueza, explicou à IPS Rogério Hohn, da coordenação nacional do MAB. Nesse sentido, o seminário “buscou promover um amplo debate das organizações de cada país com vistas a soluções conjuntas”, acrescentou. Para o MAB, a privatização da água se expressa de diversas formas sutis, além do controle do serviço de abastecimento domiciliar.
Por exemplo, entregando aos Municípios a administração desse recurso para enfraquecer negociações em nível nacional, cobrando por seu uso ou apoiando-se em setores como agricultura, mineração ou das empresas de saneamento. “Inclusive as represas para geração de energia elétrica são uma forma de privatização da água, porque não se vende apenas energia, mas a água que está represada”, destacou Hohn.
A ministra do Meio Ambiente do Brasil, Izabella Teixeira, chamou a atenção para um aspecto do informe nacional sobre disponibilidade e qualidade de recursos hídricos, apresentado recentemente pela Agência Nacional de Águas (ANA). O estudo mostra que 69% dos recursos hídricos brasileiros são utilizados para a irrigação de cultivos e pastagens, e que mais de 90% deles vão para o setor privado.
“Temos de ver se essas áreas de irrigação estão em zonas vulneráveis em oferta de recursos hídricos no futuro, para que possamos garantir a produção agrícola com oferta de água, ou se é preciso redirecioná-las”, disse a ministra, ao se referir a uma eventual falta de água para o setor em algumas regiões. O informe, que o governo de Dilma Rousseff tomará como base para a implementação de políticas de administração de recursos, mostra que no setor agropecuário o consumo de água dos animais equivale a 12%, enquanto a demanda de cidades é de 10% e da indústria 7%.
O Brasil é considerado a grande reserva de água doce do mundo, já que possui 11,6% da disponibilidade no planeta e 53% da disponibilidade na América do Sul. Segundo o estudo da ANA, cada brasileiro teria à sua disposição 34 milhões de litros de água doce por ano. Oferta esta que pode baixar se avançarem os processos de privatização do setor, segundo Edson Aparecido da Silva, coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental.
Em entrevista à IPS, Edson explicou que no Brasil grande parte da operação de serviços de saneamento ainda é pública, atendendo quase a totalidade dos 190 milhões de habitantes do país. O setor privado responde por apenas nove milhões de pessoas, ressaltou. Entretanto, os privados já manifestaram “que em pouco tempo podem ampliar sua inserção na área do saneamento em cerca de 30% da população”. Isto significa “que convivemos o tempo todo com a ameaça de mais privatização”, alertou.
Esse processo vai na contramão do que ocorre em países como Argentina, Alemanha, França e Itália, onde os serviços de saneamento voltam ao poder do Estado, ressaltou Edson. Serviços “que eram privados e voltam a ser públicos porque os governos viram que ficavam caros para a população e, com isso, se excluía muitos cidadãos, sobretudo nos países mais pobres”, concluiu. Envolverde/IPS
(IPS)