Laerte Braga


A primeira eleição disputada pelo ex-presidente Itamar Franco foi em 1958. Candidato a vereador pelo extinto PTB de João Goulart. Vinha de lutas estudantis no Diretório Acadêmico da Faculdade de Engenharia, antes mesmo de JK criar a Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1960.

Perdeu a eleição.

O diretório municipal do PTB de Juiz de Fora começava a despontar como um dos mais importantes do País. Nascia ali a liderança de Clodesmith Riani, líder sindical e presidente do primeiro embrião de uma central de trabalhadores. Presidente da CNTI – CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA INDÚSTRIA –, a mais poderosa organização sindical do Brasil, criou com outros lideres o CGT – COMANDO GERAL DOS TRABALHADORES –, logo desdobrado em comandos estaduais e comandos municipais.

Clodesmith Riani, vivo e ativo até hoje, atraiu para o PTB boa parte das lideranças estudantis da época (as que não estavam no PCB) e muitos intelectuais. Peralva de Miranda Delgado, anos depois de cassado pela ditadura militar alcançou expressivas funções na Universidade Gama Filho, no Rio. Nilo Álvaro Soares, juiz do trabalho, jornalista, Sebastião Marsicano Ribeiro, mais tarde reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora e nessa tentativa de construir um partido à esquerda juntando movimento sindical – do qual era líder inconteste em sua cidade e no País – acabou levando Itamar para o PTB.

Em 1962, dois anos antes do golpe militar de 1964, Itamar disputou a vice-prefeitura. As eleições de prefeito e vice prefeito eram distintas. Tornou a ser derrotado, mas começou a construir ali e a partir dali o conceito de administrador sério e competente.

Ademar Resende Andrade, um engenheiro eleito pela segunda vez para a Prefeitura de Juiz de Fora levou Itamar para um setor que cuidava da água da cidade e o ex-presidente criou o DEPARTAMENTO DE AGUA E ESGOSTO, hoje CESAMA – COMPANHIA DE SANEAMENTO E MEIO AMBIENTE – proporcionando um processo de modernização e planejamento para o futuro.

E foi como prefeito, eleito em 1966, que construiu a segunda adutora e dali para a frente outras quatro cinco por outros prefeitos, a um ponto tal que a totalidade de Juiz de Fora tem água potável (apesar das tentativas de privatização do setor pelo bandido que atualmente ocupa a Prefeitura, um tucano).

A morte do ex-presidente pode facilitar o caminho. Pois o que havia de honestidade pessoal em Itamar não existe em algumas figuras do seu grupo, inclusive o prefeito atual e o ex-presidente da COPASA (companhia estadual de águas) e ex-presidente Itaipu, pai do possível candidato do grupo a prefeito, o deputado estadual Bruno Siqueira.

A eleição de Itamar para a Prefeitura de Juiz de Fora foi uma espécie de marco. Sepultou-se um ciclo em que se revezavam no governo o engenheiro Ademar Andrade e o empresário Olavo Costa.

E a candidatura de Itamar só foi possível, em 1966, numa sublegenda – artifício criado pela ditadura – por conta do apoio de Tancredo Neves junto ao diretório estadual então sob a presidência do senador Camilo Nogueira da Gama, oriundo do antigo PTB.

Foi Tancredo quem viabilizou a sublegenda. A esquerda do MDB não aceitava a outra candidatura e enxergou em Itamar a perspectiva de vitória. Lideranças sindicais como Laís Veloso, Onofre Corrêa Lima, figuras do porte de Murílio Avelar Hingel, acabaram por sensibilizar Tancredo e mostrar-lhe a necessidade de uma sublegenda para assegurar a vitória nas eleições municipais.

O governo de Itamar significou o início da história do planejamento na administração municipal em Juiz de Fora. E de tal ordem alcançou êxito, que Mário Andreazza (então ministro dos Transportes do governo militar) fez de tudo para levá-lo para a ARENA.

À época a lei que extinguiu o antigo IMPOSTO SOBRE VENDAS E CONSIGNAÇÕES e criou o IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS – ICM, o s veio depois) acabou beneficiando prefeituras em todo o País, os recursos eram mais abundantes e isso possibilitou a Itamar a realização de obras de infra estrutura e avanços na educação até então desconhecidos de grande parte da população juizforana.

O êxito foi tanto que acabou elegendo o seu sucessor com mais votos que todos os demais candidatos juntos, tanto da ARENA, como do MDB. O engenheiro Agostinho Pestana, já falecido e pai do atual deputado tucano Marcus Pestana.

O mandato era de dois anos, a ditadura queria acabar com a coincidência entre eleições municipais e eleições estaduais e federais e arbitrariamente mudou a lei. José Sarney, a lamentável figura que preside o Senado e é proprietário do Maranhão, quer coincidir tudo para ter vereadores como cabos eleitorais gratuitos, na reforma de brincadeira que estão chamando de reforma política..

Dois anos depois tarde Itamar Franco volta à Prefeitura de Juiz de Fora numa das mais dramáticas eleições da história da cidade. O favoritismo absoluto vai caindo com o curso da campanha e vence a eleição por pouco mais de 300 votos num universo total de mais de cem mil eleitores (à época, hoje 340 mil) e derrota um então desconhecido Mello Reis, vereador da ARENA.

Em 1974 Tancredo Neves, decisivo também na vitória de 1972 – onde surge a liderança do então deputado estadual Tarcísio Delgado que carrega a campanha nas costas junto com Murílio Hingel, mais tarde ministro da Educação, seduz Itamar com a candidatura ao Senado contra José Augusto da ARENA e que havia assumido a vaga na morte de Milton Campos.

Itamar vacila até o último minuto sobre se aceita ou não e ficou célebre o episódio do relógio atrasado (o presidente da Câmara Municipal, vereador Valdecir de Oliveira manda atrasar o relógio por dez minutos antes da meia noite, para dar mais tempo a Itamar para decidir se renunciava ou não para disputar o Senado).

Itamar renuncia e começa sua escalada nacional. É eleito em meio à enxurrada de vitórias do MDB em todo o País (dezessete ao todo).

Começa a afastar-se de Tancredo de olho numa eventual eleição direta para o governo do Estado em 1978. A ditadura afasta essa hipótese, transfere as diretas para 1982 e com o fim do bipartidarismo Itamar permanece no PMDB, vira candidato a governador enquanto Tancredo funda o PPP – PARTIDO POPULAR PROGRESSISTA – e com apoio de seu arqui adversário Magalhães Pinto torna-se candidato ao governo. Elizeu Resende era o candidato da ARENA, então transformada em PDS.

Ao perceber que divisão do antigo MDB favorecia a ditadura Ulisses e Tancredo vão ao STF – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – e fundem os dois partidos, MDB e PPP. A decisão fora tomada depois do governo federal vincular o voto de cabo a rabo, manobra do ministro Leitão de Abreu.

Itamar a duras penas é convencido a tentar a reeleição para o Senado. Faz exigências que são aceitas e gera um episódio que entra para o folclore da política mineira e brasileira. Não queria outro candidato em sublegenda, acabou aceitando e impôs ser o mais votado na convenção do PMDB. Simão da Cunha, um ex-deputado da UDN é o mais votado e Renato Azeredo (íntegro, o contrário do pústula Eduardo Azeredo, seu filho), pergunta a Tancredo “como vamos fazer?” Tancredo responde – “coloque os votos do Simão para o Itamar na ata e os do Itamar para o Simão que eu converso e resolvo tudo” –. Dito e feito.

Ao perceber que suas chances para o governo estadual eram mínimas em 1990, havia sido derrotado por Newton Cardoso (quadrilheiro que fez plantão na política mineira), que a reeleição para o Senado seria duvidosa, num gesto surpreendente aceita ser vice de Collor de Mello nas eleições presidenciais de 1989.

Pela primeira vez é derrotado em Juiz de Fora. Lula vence as eleições no segundo turno na cidade de Itamar.

Vira vice-presidente e em meio à crise deflagrada com as acusações ao louco que ocupava a presidência, Collor de Mello, acaba também uma grande incógnita que José Sarney, seu ex-inimigo resolve. Pega Itamar pelo braço, leva-o à casa de Roberto Marinho (criador de Collor e proprietário do tresloucado) no Cosme Velho no Rio, oferece garantias que nada será mudado nas comunicações e no dia seguinte a GLOBO joga Collor no lixo, em poucos dias Itamar vira presidente.

Sendo um homem honesto, nunca meteu a mão no bolso de ninguém e nem em dinheiro público, não tinha base política sólida, mas um grupo complicado de figuras leais e íntegras e outras nem tanto assim, pelo contrário, na verdade um grupo de amigos, muitos deles de infância e juventude, acaba seduzido pelo maior cínico da política brasileira Fernando Henrique Cardoso, uma espécie de câncer que continua corroendo o País e hoje é objeto de adoração do simulacro de presidente, Dilma Roussef.

Itamar foi íntegro, mas não conseguiu mais que ser um projeto pessoal. Orientava-se a partir de sua própria bússola, seus instintos políticos apurados e foi responsável também por um episódio que deixou ACM com as calças às mãos.

Antônio Carlos Magalhães (outro pústula da política brasileira) governava a Bahia e fez denúncias de corrupção no governo Itamar. O então presidente o desafiou a apresentar as provas num encontro do Planalto. ACM foi e quando chegou às portas do gabinete presidencial estavam abertas, os ministros lá estavam jornalistas e possesso ACM não conseguiu mais que apresentar recortes de jornais, acabou desmontada uma das muitas farsas que protagonizou na política.

FHC foi um episódio dramático para Itamar. O ex-presidente tinha consciência do caráter de transição de seu governo e tentou reunir figuras consideradas de grande porte na política nacional em seu Ministério, além de outras de seu grupo pessoal. Chamou FHC para o Itamaraty, levou-o ao Ministério da Fazenda e o tucano, que sequer seria candidato à reeleição ao Senado (míngua de votos), mas deputado federal, no seu veneno insidioso, seu caráter deformado, sua absoluta falta de dignidade, apropriou-se do Plano Real, virou candidato a presidente num acordo que previa a candidatura de Itamar em 1998 e meteu-lhe a faca pelas costas, coisa que faz rotineiramente com quem se oponha a seus poderes divinos.

No final de sua carreira, a volta ao Senado, fica uma sensação inexplicável do apoio a José Serra no segundo turno e a virulência das críticas a Lula e ao governo de Dilma nesses seis primeiros meses (embora o governo seja uma lástima). Ligado a Aécio, foi eleito arrastado pelo ex-governador de Minas, havia feito criticas duras a FHC e Serra, capitulando no segundo turno.

Acredita-se que um dos bandidos que integraram o esquema de seu governo na Câmara, Roberto Freire, ex-pernambucano e agora paulista, tenha sido o responsável por isso. Freire foi seu líder de governo.

Em 1998, por pouco não complica o golpe de FHC, a reeleição comprada a peso de ouro, ao tentar ser o candidato do PMDB. FHC pagou um preço absurdo – dinheiro mesmo, cargos, etc – a bandidos notórios como Iris Resende, Michel Temer, etc.

E em janeiro de 1999, eleito governador de Minas decreta a moratória das dívidas do Estado e coloca em risco, mais uma vez, todo o processo neoliberal de FHC.

Como disse um jornalista o ex-presidente leva mágoas em sua morte, mas paga o preço do caráter solitário, do temperamento difícil. O exemplo que deixa é o da honestidade pessoal.

A frase “este rapaz é um bom moço, mas tem o hábito de guardar o ódio no congelador”, foi pronunciada por Tancredo Neves, logo após ser eleito governador em 1982 e ao receber as indicações para alguns cargos no governo do então senador reeleito Itamar Franco. Tancredo olha os nomes, vê apenas amigos de Itamar, o restrito círculo de Juiz de Fora, pede-lhe nomes de expressão e Itamar furioso diz aos jornalistas que Tancredo faltara com a verdade nos acordos firmados antes das eleições.

Não foi bem assim.

Em 1984 Itamar mostra sua mágoa com Tancredo e anuncia que não pretende votar no mineiro para presidente, mantém-se fiel à decisão de não aceitar eleições indiretas. A disputa entre Tancredo e Maluf estava ainda indecisa e a certa altura, quando Tancredo arremata a eleição, mostra que vai vencer, Itamar pede a Hélio Garcia que marque um encontro onde possa declarar seu voto a Tancredo.

O encontro foi marcado no aeroporto da Pampulha em Belo Horizonte e Tancredo chega cinco minutos antes do seu vôo. Cumprimenta Itamar, agradece o apoio e diz que tem que sair correndo para embarcar. Dá o troco à sua maneira.

Numa certa medida Itamar foi um solitário na política brasileira. E benfazeja lhe foi a sorte, mas muito também seus instintos.

Os escândalos de cumprimentar uma atriz sem calcinha num desfile carnavalesco no Rio, namoros, etc, foram superdimensionados pela mídia sempre à cata de besteiras para distrair a manada do principal. O governo de FHC foi tranquilamente uma espécie de Sodoma e Gomorra e a imprensa se calou, devidamente comprada.

Itamar era isso, nada além disso.