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terça-feira, 5 de julho de 2011

Trabalho infantil: liberdade e barbárie no Brasil



por Leonardo Sakamoto*


Teresina – Preciso elevar meu conceito de barbárie porque ele está desatualizado.

Esta semana, em um post sobre a morte de um operário de 16 anos durante o desabamento de uma obra em São Paulo, reclamei do absurdo daquilo reunindo à história dele sete outras envolvendo crianças em condições insalubres. Cheguei a pensar se não havia pegado pesado demais. Nesta sexta, aqui no Piauí, cheguei à conclusão que não.
155 Trabalho infantil: liberdade e barbárie no BrasilUm auditor fiscal do trabalho me relatou um caso bizarro. Em uma operação, libertou uma jovem de 14 anos que, durante o dia, cuidava do barracão onde estavam alojados outros dez trabalhadores – todos em condição de escravidão, inclusive ela. Arrumava as coisas dos peões, responsabilizava-se pela alimentação, era a empregada do local. À noite, assumia jornada dupla e tornava-se a diversão sexual de todos – isso mesmo, todos – os trabalhadores. Entregava-se “pão e circo” a um grupo de espoliados, no intuito de que esquecessem suas tragédias e reclamassem menos. Não é assim conosco em escala nacional com alguns esportes e festas?
Anteontem, durante uma palestra no Congresso de Jornalismo Investigativo da Abraji, perguntaram-me qual a pior situação que encontrei pelas andanças que tive. Cobri guerras, me meti nos piores buracos, acho que já vi muita coisa. Mas o que sistematicamente me tira do sério é me deparar com crianças completamente alijadas de sua dignidade, que, para sobreviver, emulam uma maturidade que não têm a fim de segurar a barra em um mundo de desgraça. Um amadurecimento incompleto, em que, de noite, se prostituem em boleias de caminhão por alguns reais e, de dia, penteiam bonecas de pano.
(Aí eu ligo a TV e uma socialite diz com a boca cheia de dentes que apoia o “social”. Que dá dinheiro para uma instituição de crianças, pois acha importante ter a caridade no coração. Mais um pouquinho, se ela dissesse que tratava as filhas das suas criadas como suas, me enforcava no quarto do hotel com o lençol.)
Boa parte dessas barbáries são decorrência de nosso modelo de desenvolvimento perverso, que forçam crianças a trabalhar desde cedo e nas piores formas de serviço. E que, para justificar o injustificável, cria todo um discurso de que trabalhar é bom, pois forja o caráter. Barbáries que não vão se resolver com medidas paliativas, como caridade, mas com ações estruturais. O problema é que lutar pela implementação de políticas públicas efetivas ou pela aprovação de leis pode não servir para deixar a consciência mais leve na cama à noite no curto prazo.
A jovem de 14 anos do caso acima trabalhava em uma área destinada à produção de leite. Mas como não nos importamos em saber de onde vêm os produtos que consumimos e o caminho de impactos negativos que alguns deles vão gerando pelo caminho para suprir nossa demanda, ela simplesmente não existe. Ou melhor, existe, mas é um dano colateral necessário.
Trago o poeta inglês John Donne, citado em “Por Quem os Sinos Dobram”, de Ernest Hemingway:
“Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado / Todo homem é um pedaço de um continente, uma parte da terra / Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa de teus amigos ou a tua própria / A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. / E por isso não perguntes por quem os sinos dobram: eles dobram por ti.”
Em outras palavras, o sofrimento de qualquer pessoa me diminui, pois sou parte da humanidade: nunca procure saber por quem os sinos dobram, pois eles dobram por você também.
Se o problema é do filho ou filha do outro, do desconhecido distante, então que se dane. A verdade é que defendemos liberdades coletivas quando estas nos dizem respeito individualmente. Será que vamos, um dia, conseguir defender o outro simplesmente porque ele é (ou deveria ser) semelhante a mim em direito e dignidade?
* Publicado originalmente no Blog do Sakamoto.
(Blog do Sakamoto)

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Atlas revira entranhas do trabalho escravo no Maranhão

Elaborado pelo Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) de Açailândia (MA), Atlas Político-Jurídico do Trabalho Escravo Contemporâneo no Maranhão reúne informações e análises preciosas para entender o fenômeno

Bianca Pyl, do Repórter Brasil
Apreendidos durante as fiscalizações, os cadernos com anotações de débitos servem normalmente para comprovar sistemas de servidão por dívidas existentes nos casos de trabalho escravo contemporâneo. Não foi diferente na operação trabalhista que libertou 27 pessoas submetidas à escravidão na Fazenda Sagrisa, em Codó (MA), que pertence ao Grupo Maratá, com sede em Lagarto (SE). Em novembro de 2005, os auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que estiveram no local encontraram oito cadernos na cantina da propriedade no interior do Maranhão.

Além dos registros de dívidas relativas a itens de alimentação, de higiene e até de ferramentas de trabalho, um dos cadernos trazia uma anotação diferente: "um dia de deixação de comer". Desesperado com a situação de endividamento a qual estava submetido, um dos trabalhadores preferiu cortar a própria alimentação para tentar "poupar" recursos e minimizar o tamanho da mordida dos "descontos" no fim do mês.

Entre os libertados, quatro eram adolescentes com idade inferior a 18 anos e uma criança de apenas 11 anos foi também flagrada trabalhando no local. Em depoimento, uma das vítimas declarou que nada recebeu pelo trabalho na Fazenda Sagrisa. Os próprios administradores da propriedade fiscalizada afirmaram na ocasião que os filhos do empresário José Augusto Vieira, dono do Grupo Maratá, administram parte do patrimônio do conglomerado, mas o próprio José Augusto "mantém o controle das decisões".

À Justiça, o "gato" (aliciador de mão de obra) Raimundo Nonato Pereira chegou ainda a confirmar que, quando necessário, comprava ferramentas aos trabalhadores e depois descontava dos salários dos mesmos, ratificando a prática de servidão por dívida. Segundo Raimundo, a água dos empregados realmente era a mesma utilizada pelo gado.

Mesmo com todas essas evidências colhidas pela fiscalização e compiladas pelo Ministério Público Federal do Maranhão (MPF/MA), o fazendeiro José Augusto Vieira e o "gato" Raimundo, conhecido como "Anão", foram absolvidos da acusação de crime de trabalho escravo. De acordo com a sentença da 1a Vara Federal de São Luís (confira histórico do processo) publicada em 2009, "a instrução processual não logrou demonstrar com grau de certeza necessária para estribar uma sentença condenatória".

Para a Justiça Federal do Maranhão, "os depoimentos prestados em juízo pelos fiscais [que atuaram nas libertações da Sagrisa] também não apresentam aptidão para darem ensejo a uma condenação, pois apenas confirmam o teor do relatório, o qual não é suficiente para demonstrar a efetiva existência das supostas condições aviltantes de trabalhos".

Uma das justificativas complementares apresentadas pelo Judiciário para absolver o empresário José Augusto foi a extensão do grupo. "O fazendeiro reside no estado de Sergipe e tem mais de doze fazendas no Maranhão o que torna quase impossível a sua presença constante em todas elas", salienta a sentença. O Grupo Maratá mantém empreendimentos nos setores agropecuário (pecuária, sucos, café e tabaco), alimentício, de embalagens e também de educação (Faculdade e Colégio José Augusto Vieira). Só a Fazenda Sagrisa tem cerca de 20 mil hectares.

O MPF/MA recorreu da decisão. Para o órgão, "a decisão de primeiro grau desprezou completamente a palavra das vítimas, que é essencial nessa espécie de delito, bem como a palavra dos fiscais que confirmaram em juízo todo um teor das autuações que lavaram". Por conta da operação, José Augusto Vieira entrou para a chamada "lista suja" do trabalho escravo, cadastro de infratores mantido pelo MTE, em dezembro de 2006. O nome do empresário do Grupo Maratá permaneceu até dezembro de 2007, quando o Judiciário concedeu liminar judicial para a retirada da relação.

Realidades, como a acima retratada, fazem parte do Atlas Político-Jurídico do Trabalho Escravo Contemporâneo no Maranhão, elaborado pelo Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) de Açailândia (MA). O documento foi lançado na última quinta-feira (27), como parte dos diversos eventos da Semana Nacional de mobilizações, por ocasião do Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (28 de janeiro).

Inédito, o Atlas traz sete capítulos que partem do histórico da região sudoeste do Maranhão até avaliações críticas das políticas direcionadas ao combate à escravidão. A obra contém estudos específicos sobre as vítimas, sobre os empregadores proprietários das terras e sobre os "gatos" intermediários. Há ainda análises das fiscalizações, de processos em andamento no Poder Judiciário e de conexões existentes entre a escravidão e o poder político.

O Atlas compila dados e informações (que constam no acervo do CDVDH e que foram captadas junto a diferentes órgãos públicos), bem como depoimentos de vítimas da escravidão contemporânea que procuraram a entidade.

"Nós entendemos que esse material não deve estar restrito aos militantes de direitos humanos. É preciso divulgar, expor que o Judiciário, o Legislativo e o Executivo deixam a desejar no combate ao trabalho escravo", explica Nonato Masson, advogado do CDVDH e um dos autores do trabalho.

A comparação entre a quantidade de trabalhadores libertados do trabalho escravo nos últimos anos com o baixíssimo número de condenações criminais aparece com destaque no documento. O Atlas Político-Jurídico radiografou apenas 11 sentenças judiciais, com apenas 4 condenações, sendo duas de "prestação de serviço à comunidade". "Essa comparação ilustra bem a morosidade da Justiça. E quando há sentença, ela não é executada porque tramita em primeiro grau", emenda Nonato.

A radiografia da escravidão identificou ainda diversas ameaças aos defensores de direitos humanos e descaso em relação às medidas judiciais por parte dos réus. As vítimas do trabalho escravo, por seu turno, relataram ter medo de se apresentar aos tribunais para confirmar seus depoimentos, em função das ameaças e violências que sofreram.

"A conclusão que chegamos é que não há política de Estado e de governo que de fato mude a vida dos peões. Não há um enfrentamento concreto", opina o advogado do CDVDH. "O Judiciário precisa ser mais rápido e efetivo na eliminação de entraves judiciais para a aplicação da lei com mais celeridade, por se tratar de um crime contra a humanidade; o Executivo precisa ser mais operacional no sentido de fazer avançar a construção de políticas publicas fazendo com que seus planos ganhem efetividade prática. Estes não podem ser apenas intenções políticas", aponta o documento. Leia o post completo e fique antento aos links

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Costureiras são resgatadas de escravidão em ação inédita

Fiscalização da SRTE/SP (Superintendência Regional do Ministério do Trabalho e Emprego em São Paulo) encontrou duas bolivianas na condição de trabalho escravo e providenciou abrigo às vítimas. Submetidas a uma rotina de violências físicas e morais, elas costuraram exclusivamente para a marca 775, que tem como garoto-propaganda o nadador Cesar Cielo. Do Repórter Brasil.

Por Bianca Pyl e Maurício Hashizume
Pela primeira vez, o Estado brasileiro concluiu uma fiscalização trabalhista que resultou no resgate efetivo de imigrantes submetidos à escravidão em ambiente urbano. Em nenhuma das operações anteriores com flagrante de trabalho escravo de estrangeiros nas cidades, houve a retirada dos trabalhadores dos locais em que foram encontrados. Desta vez, a decisão dos agentes públicos foi pelo resgate para proteger os direitos das vítimas.

Atraídas pela tentadora promessa de bons salários, duas trabalhadoras bolivianas atravessaram a fronteira e acabaram obrigadas a enfrentar um cotidiano de violações à dignidade humana, que incluía superexploração, condições degradantes, assédio e ameaças.

A fiscalização coordenada pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP) assim definiu o que encontrou: cerceamento à liberdade de ir e vir (por meio de ameaças de deportação, com o intuito claro de inibir eventuais denúncias do que estava ocorrendo), coerção e violência morais (a fim de pressionar pelo aumento da carga de trabalho), salários aviltantes e condições precárias, além de jornada exaustiva.

A oficina em que as bolivianas foram criminosamente exploradas confeccionava peças de roupa da marca de moda jovem Sete Sete Cinco (775). "As carteiras de trabalho foram emitidas, as rescisões foram integralmente pagas, o Seguro Desemprego [do Trabalhador Resgatado] liberado e sacado. As trabalhadoras foram encaminhadas para o abrigo do Estado e para a requalificação profissional para futura reinserção no mercado de trabalho", descreve Renato Bignami, da SRTE/SP. "Buscamos, dessa maneira, devolver um pouco da dignidade que foi roubada dessas trabalhadoras ao serem traficadas e escravizadas na oficina de costura que trabalhava para a 775".

A libertação ocorreu em 11 de agosto e a investigação durou até o dia 27 do mesmo mês. A fiscalização da SRTE/SP fez parte de uma operação mais ampla. No mesmo dia, um complexo de oficinas que costuravam para diversas marcas e grandes magazines foram fiscalizados - incluindo o caso de outra oficina que produziu os coletes usados pelos recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Segundo relato das vítimas que trabalharam no estabelecimento improvisado, precário e apertado de Mario Hilari Condori, apenas peças da 775 foram por elas costuradas durante o período em que lá estiveram. A oficina era uma das subcontratadas da intermediária W&J Confecções Ltda. que, apenas formalmente, mantinha um contrato de licenciamento de aparências com a Sete Sete Cinco Confecções Ltda. Não por acaso, a W&J tem como sócia Ivaneide Gomes dos Santos, que foi funcionária da Induvest, empresa-mãe da 775 durante a década de 1990. Mais

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Leonardo Sakamoto: "O trabalho escravo está inserido na economia brasileira"

por Aldrey Riechel, do Amazônia.org.br
O debate sobre trabalho escravo nunca deixou de ser pautado no Brasil e principalmente na Amazônia, onde se encontra o maior número de trabalhadores libertados. Neste mês dois fatos ajudaram a divulgar o assunto: a atualização da Lista Suja do Trabalho Escravo, que mostra as empresas que foram flagradas utilizando mão de obra escrava e a divulgação do Programa Nacional de Direitos Humanos, que tenta consolidar a meta de erradicar esse crime.

Leonardo Sakamato, jornalista e coordenador da organização Repórter Brasil, defende que as duas ações são positivas. A Lista Suja, segundo ele é um importante instrumento de combate à prática, já que funciona como um bloqueio econômico para estas empresas que constam na lista. Sakamato afirma que as pessoas usam trabalho escravo porque dá lucro, "então se o trabalho escravo começar a gerar prejuízo, elas vão repensar antes de usá-lo", explica.

Já o Programa de Direitos Humanos, se for cumprido, pode ser um importante instrumento para que se mude o modelo de desenvolvimento no país. Sakamoto afirma que os que criticam o plano são "as forças retrógradas" da sociedade: militares, ruralistas e setores conservadores da igreja nacional, que conjecturam, segundo ele, "como manter a alma e o corpo dos trabalhadores e dos seres humanos, em constante privação".

Confira a entrevista exclusiva:

Amazônia.org.br - A Amazônia é a região que concentra a maior parte das empresas que usam mão-de-obra escrava. Na lista editada pelo Ministério do trabalho e Emprego, aponta que dos 164 casos enumerados, cem deles (61%) ocorreram em Estados que pertencem à Amazônia. Por que nesta região tem tantas ocorrências?

Leonardo Sakamoto - Está diretamente relacionado ao fato do trabalho escravo ser muito usado no Brasil como um instrumento de expansão agropecuária. Trabalho escravo e fronteira agrícola são duas coisas que caminham de mãos dadas. Durante o processo de implantação de um empreendimento agropecuário, você tem muitas vezes, um fazendeiro que não está capitalizado ou, na maioria das vezes, que não quer botar a mão no bolso. E para uma atividade periférica da fazenda, ampliação da fazenda, por exemplo, ele acaba se valendo de formas ilegais e vai fazer o que já é conhecido: vai grilar terras, vai desmatar além da conta e vai usar trabalho escravo, ou seja, para poupar dinheiro. Dinheiro que ele não tem ou que ele não quer gastar em um momento de expansão agropecuária.

Dessa forma, ele pode competir no mercado de uma forma mais rápida sem esses gastos de investimentos. Isso eu estou falando de uma forma geral. O trabalho escravo é utilizado para ampliar a fronteira, para expandir a área agrícola, para expandir a fronteira agrícola.

Amazônia.org.br - No caso da Amazônia, a impunidade também auxilia?

Sakamoto - Trabalho escravo no Brasil é sustentado por um tripé: impunidade, pobreza e ganância. Ganância que leva as pessoas a quererem obter lucros fáceis, por meio de uma concorrência desleal e através do sofrimento humano. A pobreza que empurra esse pessoal para fora, longe de suas casas e cidades e que facilita o fato deles serem traficados, do nordeste até a Amazônia, por exemplo. E a impunidade, que dá aquela certeza de que pode usar trabalho escravo e depois não vai acontecer nada. É claro que para combater o trabalho escravo estamos tentando reverter esse tripé que sustenta o problema.

Amazônia.org.br - Você disse que trabalho e fronteira agrícola trabalham de mãos dadas. É possível dizer que o trabalho escravo gera economia?

Sakamoto - Vou até refazer essa sua colocação: o trabalho escravo está inserido na economia brasileira. Ele não é fundamental, e por isso pode ser erradicado. A Repórter Brasil, desde 2003, realiza estudo de cadeia produtiva. Já rastreamos mais de 500 fazendas e, em todas elas, eles entram nessas chamadas "redes comerciais globais". Você tem fazendas vendendo para grandes frigoríficos que exportam produção ou vendem aqui, em território nacional. Tem usinas com trabalho escravo produzindo etanol para o mercado nacional e internacional, açúcar também, algodão, soja, o milho, o arroz, o tomate, a madeira, o carvão vegetal para a siderurgia, para minério de alto valor... Então você tem o trabalho escravo sendo usado como uma ferramenta para gerar competitividade. Tem gente que usa isso para crescer, existir e começar um negócio.

Agora, trabalho escravo não é necessário para a economia, então ele pode ser cortado. Basta para isso que a gente mude o modelo de desenvolvimento. O trabalho escravo não é em nenhum momento uma doença, é uma febre. Febre é sintoma. Sintoma de que alguma coisa está ruim no corpo e o trabalho escravo é o sintoma de que alguma coisa está com problema no corpo, no caso o nosso modelo de desenvolvimento que é extremamente predatório, excludente e destruidor em todos os sentidos.

Amazônia.org.br - Isso significa que é preciso uma reforma em todo o sistema produtivo e econômico...

Sakamoto - É claro que as pessoas falam assim: "poxa! Tem que acabar com o capitalismo para acabar com o trabalho escravo?" A discussão é longa, mas na verdade se você mudar o modelo de desenvolvimento, se combater impunidade, ganância e pobreza, você reduz drasticamente o trabalho escravo.

Olha a diferença: você vai atuando na questão da pobreza, da dignidade e da ganância, e, se você conseguir mudar o modelo de desenvolvimento, que é isso que nós defendemos, e é isso que as entidades que trabalham com a questão socioambiental defendem, nós vamos acabar com o trabalho escravo. Por quê? Porque é uma forma de exploração que está relacionada com uma maneira de ver o meio ambiente e a sociedade como meros instrumentos de lucro e não como elementos que devem estar em harmonia.

Amazônia.org.br - A atualização da Lista Suja do Trabalho Escravo foi feita há pouco tempo, onde foram incluídas 12 empresas e excluídos 10 nomes. Você acredita que a divulgação das empresas por meio dessa relação é uma medida que ajuda a punir aquelas que usaram mão-de-obra escrava? Essa é uma medida que traz resultados?

Sakamoto - Traz muitos resultados sim. A Lista Suja do Trabalho Escravo, que foi criada em 2003 pelo governo federal é, em nossa opinião, um dos mais importantes instrumentos de combate ao trabalho escravo do Brasil. O pacto nacional pela erradicação do trabalho escravo, que foi criado pela repórter Brasil, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), pelo Instituto Ethos e depois também foi abraçado pelo Instituto de Observatório Social, é um instrumento que se baseia na lista suja, ou seja, mais de 200 empresas e associações, que fazem parte do pacto, são obrigadas a checar a Lista Suja antes de fechar negócio. Empresas públicas, privadas, bancos públicos e bancos privados são obrigados a checar a lista suja antes de fechar negócio. E também o próprio governo federal já deixou claro que Banco Público Federal não emprestará para quem estiver na Lista Suja.

Se você consegue evitar que essas empresas consigam escoar sua produção, tenham compradores, clientes e que também evitem créditos para esse pessoal, você vai atuar naquela ganância. O pessoal usa trabalho escravo porque gera lucro. Não é porque alguém é malvado.

Então se o trabalho escravo começar a gerar prejuízo, elas vão repensar antes de usá-lo. A lista suja, além de ser um instrumento de publicização, de transparência do combate ao trabalho escravo, é uma forma de atuar diretamente no combate a esse problema, por meio das empresas que são signatárias do pacto.

É uma medida que é usada para bloqueio comercial. O objetivo da criação dela foi a transparência e é um instrumento corajoso do governo e das instituições que fazem parte da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, elas apóiam, sem sombras de dúvida, a lista suja.

Amazônia.org.br - Você acredita que o Programa Nacional de Direitos Humanos, recém- lançado pelo governo, pode contribuir na luta contra o trabalho escravo?

Sakamoto - O programa, ao buscar a redução da pobreza, a validação dos direitos humanos, combater a negação dos direitos humanos, garantiu uma série de ações que bate de frente com impunidade, bate de frente com a pobreza e age contra essa ganância desmensurada. Então é claro que o Plano Nacional, vai ser um instrumento importante.

Ele tem um capítulo sobre trabalho escravo, que a gente [Repórter Brasil] ajudou a confeccionar. O programa prevê reforçar a adoção do Plano Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que existe e está à disposição de qualquer um.

Agora é importante que se diga o seguinte: num Brasil onde os direitos Humanos não valem nada, o trabalhador é tratado como bicho, indígenas são tratados como descartáveis, quilombolas, ribeirinhos e outras pessoas pobres do campo são tratados como ninguém é de admirar que a área de direitos humanos tenha conseguido avançar gerando um terceiro programa.

O trabalho escravo é uma das piores formas de exploração humana. Porque não mexe apenas com direitos trabalhistas, mexe com vários direitos fundamentais: ele também é a ausência do tratamento digno, do direito humano, do aceso a terra, de acesso a alimentação e ao trabalho descente. Um plano que eleva o patamar da dignidade dos trabalhadores do campo é um plano que ajuda a combater o trabalho escravo. E se fosse adotado, é claro que o modelo de desenvolvimento no Brasil seria outro.

Tanto é que veja as forças retrógradas que não defenderam o plano: militares, ruralistas e setores conservadores da igreja nacional, mantendo um padrão semelhante ao padrão do Brasil: é o padre, o delegado é o coronel. São os três conjecturando sobre como manter a alma e o corpo dos trabalhadores e dos seres humanos em constante privação. Até pelo antagonismo de quem atacou o plano, você sabe que o plano é um instrumento que deve ser defendido.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Futebol europeu (até a mídia brasileira!) usa mortes na Cabinda para atacar África

por Rodrigo Brandão, Equipe do Blog EDUCOM
Começou neste domingo, 10 de janeiro, a 27ª Copa Africana de Nações, reunindo as 16 melhores seleções de futebol do continente negro. Infelizmente, uma tragédia já marcou para sempre esta CAN. Na sexta, 8, um ônibus que transportava a delegação de Togo, do Congo – onde os togoleses se prepararam – a Angola, país-sede da competição foi metralhado por guerrilheiros da Frente de Libertação do Estado da Cabinda (FLEC), que há quase 35 anos luta pela independência do enclave angolano, situado entre o Congo e a República Democrática do Congo.

Três homens não sobreviveram aos disparos – o motorista congolês, além de um dos auxiliares técnicos e do assessor de imprensa da seleção de Togo – e o goleiro Kodjovi Obialé está internado em estado grave, correndo risco de sequelas motoras. Nossos sentimentos às famílias das vítimas e nossos melhores pensamentos com a delegação de Togo, que desistiu de jogar a CAN a pedido de seu governo. Chocante que os nomes das vítimas fatais não apareçam nos jornais e sites.

O que não se pode aceitar é que alguns se aproveitem do trágico atentado para atacar a imagem da África e do futebol daquele sofrido continente, como se um incidente como esse não pudesse ocorrer em qualquer parte do mundo, afetando um evento esportivo de tal magnitude. Por acaso na Grã-Bretanha e na Espanha também não há violentas lutas separatistas? Então como as Copas do Mundo de 1966 e 1982 puderam ser realizadas – em épocas nas quais as guerrilhas do IRA e do ETA eram mais atuantes, sendo ainda coadjuvadas por outros grupos igualmente violentos – e, tem mais, com vários jogos, no caso da Espanha, em cidades então turbulentas, como Bilbao e Barcelona? Como as Olimpíadas de 1972, em Munique, continuaram mesmo após a morte de dezenas de atletas israelenses feitos reféns por ativistas palestinos?

Clubes da Inglaterra, ao que parece, dão de ombros para esse chamado à coerência. Chelsea F.C e Portsmouth, que somados cederam sete jogadores a diferentes seleções classificadas para a CAN Angola-2010, pasmem, exigiram a devolução de “seus” atletas, os mesmos que, em sua maioria, foram comprados como mercadoria na feira ainda na pré-adolescência – quando algumas centenas de dólares são suficientes para seduzir famílias famintas – por essas megamultinacionais da bola. Vale lembrar que mais de 90% dos jogadores inscritos na Copa Africana de Nações são contratados de clubes europeus. E o que dizer da imprensa européia, se apressando em questionar até mesmo a realização da Copa do Mundo na África do Sul? Acaso a Europa esqueceu-se da enorme (enorme? Infinita!) parcela de responsabilidade na tragédia de violência, miséria e fome em que se transformou o continente onde praticamente nasceu a humanidade?

E, lamentável, setores da imprensa brasileira – até mesmo aquele canal de esportes que se orgulha de ser independente, politicamente correto e crítico, a ESPN Brasil – parecem ter comprado a tese de que africano não tem que se meter a organizar evento internacional! Ou no mínimo reproduzem as críticas fáceis, esquecendo de fazer o devido resgate histórico e as obrigatórias contextualizações.

Vamos contar uma historinha para, quem sabe, refrescar a memória dessa gente, talvez acometida da mesma doença que vitimou o jornalista Boris Casoy. Até o século 19, os atuais Congo, República Democrática do Congo (que um dia já foi Zaire) e o enclave angolano da Cabinda eram todos parte do histórico Reino do Congo, já então invadido e espoliado por franceses, belgas e portugueses. Num belo dia de 1885, quando as pressões da industrializada Grã-Bretanha já haviam obrigado à abolição do tráfico negreiro África-Américas, as potências colonizadoras européias resolveram se reunir em Berlim e formalizar uma “partilha” do continente africano, para iniciarem uma nova etapa de exploração, talvez mais sofisticada. Nos salões perfumados da capital alemã, o antigo Congo foi dividido em Congos Francês, Belga e Português. O Congo Português é a Cabinda. Poucos anos depois da partilha, os belgas exigiram um litoral para seu Congo “Kinshasa” – assim os portugueses cederam parte de seu litoral (a franja sul do território) e isolaram para sempre a atual Cabinda de Angola (veja mapa). Em 1975, com a vitória das forças libertadoras da África Portuguesa sobre as tropas de Lisboa na Guerra do Ultramar, o MPLA, movimento libertador de Angola, conseguiu reunir a Cabinda ao território da nova República de Angola. Desde então, os cabindenses lutam por sua independência contra o exército angolano, motivo pelo qual, provavelmente, aconteceu o terrível atentado do dia 8.

Jornalistas brasileiros, acordem! Essa crise tem as impressões digitais do colonialismo e do imperialismo europeus, mas há quem insista em negar. Mesmo quando se sabe que a Europa, através de seu futebol explorador do trabalho infantil, associado a patrocinadores como Adidas e Nike, que fabricam material esportivo através de mão-de-obra barata ou precária (adivinhem onde?), quando não com trabalho escravo mesmo, continua a reproduzir na África a lógica espoliadora de todas as etapas do imperialismo: a primeira etapa colonialista (marcada pelo Pacto Colonial e pela escravidão dos negros), o pós-Conferência de Berlim (com o acúmulo de capital das metrópoles via empobrecimento das colônias) e a conjuntura atual, de submissão dos interesses locais às transnacionais sediadas nas antigas metrópoles. Pobre Mãe África...



Repare no mapa. A Cabinda não faz fronteira com Angola, o que motiva a luta pela soberania da região. O Zaire é a atual República Democrática do Congo

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Fiscalização constata alto índice de trabalho escravo também no Sudeste

por Robson Braga, jornalista da Adital
As fiscalizações do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para identificação de trabalho escravo no Brasil foram, em 2009, além das regiões Norte e Nordeste e possibilitaram perceber que essa forma de exploração humana está diluída por toda a nação. Dos 4.051 trabalhadores/as libertados da condição de escravo em todo o país de janeiro a novembro deste ano, 39% eram explorados no Sudeste, sendo que, em 2008, esse percentual foi de 10%. Os dados foram compilados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Em 2009, 20% das pessoas libertadas da escravidão estavam no Nordeste; 18%, no Norte; 15%, no Centro Oeste; e 8%, no Sul. Por Estado, 749 trabalhadores foram libertados no Rio de Janeiro (Sudeste), 388 em Tocantins (Norte), 386 no Espírito Santo (Sudeste), 379 em Pernambuco (Nordeste), 364 em Minas Gerais (Sudeste) e 288 no Pará (Norte).

Esses valores não significam, entretanto, que o número de casos aumentou ou diminuiu nas regiões brasileiras, e sim, que as fiscalizações focaram mais a região Sudeste, para a qual menos se atentava antes.

Esses valores "não são novidades, o que tivemos de diferente este ano foi o holofote da fiscalização, que se voltou mais para [a região] Sudeste, [os Estados do] Paraná, Santa Catarina, Mato Grosso", considerou o frei Xavier Plassat, coordenador da campanha de erradicação do trabalho escravo, da CPT.

Um fator que vem permitindo, desde 2007, uma maior atuação do governo federal nas investigações é a participação das superintendências estaduais do Ministério do Trabalho nas investigações. De 2003 - quando foi lançado o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo - até 2007, o país contava apenas com a fiscalização do grupo móvel do MTE.

"Este ano, metade das investigações foi feita pelas superintendências e a outra, pelo grupo móvel. Essa divisão de trabalho permitiu que mais ações pudessem ser desenvolvidas simultaneamente", explicou Xavier.

Para o frei, a fiscalização do governo federal para erradicar o trabalho escravo não dá conta do problema, "que é estrutural". "Libertar escravos não elimina a escravidão, porque devolve o libertado para a mesma condição", afirmou.

Apesar da crítica, Plassat destacou a iniciativa da superintendência do MTE em Mato Grosso, que tem oferecido capacitação profissional às vítimas retiradas do trabalho escravo.

Na avaliação dele, entretanto, o problema da escravidão só será sanado "quando o campo tiver um campesinato consciente, uma agricultura familiar forte e uma reforma agrária de verdade", disse.

Mesmo as fiscalizações - principal ponto da estratégia governamental - "são insuficientes", enfrentam um déficit de equipes, de grupos policiais e "impasses nas concepções do trabalho", acrescentou Xavier. Dos 74 casos verificados no Pará em 2009, por exemplo, apenas 34 foram fiscalizados. Dos 28 no Maranhão, somente dez foram vistoriados.

Os dados também mostram que, dos 4.051 libertados, 47% eram explorados na cana-de-açúcar, 18% em outras lavouras, 14% na pecuária e 6% no carvão. Dos 207 empreendimentos onde se constatou mão-de-obra escrava no país em 2009, 50% compunham o setor pecuarista; 11%, ligados ao carvão; 7%, canaviais; e 14%, outras lavouras.

Condenações

As punições criminais de exploradores de mão-de-obra escrava, que antes eram pontuais, podem ser ampliadas, devido à condenação penal de 28 fazendeiros pela Justiça Federal em Marabá, no Pará. A avaliação foi feita pelo frei Xavier Plassat.

"A condenação é muito emblemática, porque antes não se sabia ao certo de quem era a competência para julgar esses crimes, se a Justiça Federal ou a Estadual. A decisão do STF [Supremo Tribunal Federal] em 2007 atribuiu a competência à Justiça Federal", explicou o frei.

Para Plassat, a "queda de braço" entre os que lutam contra o trabalho escravo e os que o promovem se acentuou em 2009. "O agronegócio faz uma pressão enorme, tentando desqualificar a fiscalização do Ministério do Trabalho. Eles dizem que a política devia ser educativa, e não punitiva, pra deixar o setor em paz", criticou.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

'Musa do trabalho escravo' comanda golpe contra camponeses em Tocantins

por Leandro Fortes, da Carta Capital
Em dezembro passado, a senadora Kátia Abreu, do DEM de Tocantins, assumiu a presidência da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA) com um discurso pretensamente modernizador. Previa uma nova inserção social dos produtores rurais por meio de “rupturas” no modo de se relacionar com o mercado, o consumidor, o governo e a economia global. Pretendia, segundo ela mesma, “remover os preconceitos” que teriam isolado os ruralistas do resto da sociedade brasileira e cravado neles a pecha de “protótipos do atraso”. Diante de uma audiência orgulhosa da primeira mulher a assumir o comando da CNA, Kátia concluiu: “Somos o que somos e não quem nos imaginam (sic)”. Foi efusivamente aplaudida. E tornou-se a musa dos ruralistas.

Talvez, em transe corporativo, a plateia não tenha percebido, mas a senadora parecia falar de si mesma. Aos 46 anos, Kátia Abreu é uma jovem liderança ruralista afeita à velha tradição dos antigos coronéis de terras, embora, justiça seja feita, não lhe pese nos ombros acusações de assassinatos e violências outras no trato das questões agrárias que lhe são tão caras. A principal arma da parlamentar é o discurso da legalidade normalmente válido apenas para justificar atos contra pequenos agricultores.

Com a espada da lei nas mãos, e com a aquiescência de eminências do Poder Judiciário, ela tem se dedicado a investir sobre os trabalhadores sem-terra. Acusa-os de serem financiados ilegalmente para invadir terras Brasil afora. Ao mesmo tempo, pede uma intervenção federal no estado do Pará e acusa a governadora Ana Júlia Carepa de não cumprir os mandados de reintegração de posse expedidos pelo Judiciário local. O foco no Pará tem um objetivo que vai além da política. A senadora, ao partir para o ataque, advoga em causa própria. Foram ações do poder público que lhe garantiram praticamente de graça extensas e férteis terras do Cerrado de Tocantins. E mais: Kátia Abreu, beneficiária de um esquema investigado pelo Ministério Público Federal, conseguiu transformar terras antes produtivas em áreas onde nada se planta ou se cria. Tradução: na prática, a musa do agronegócio age como os acumuladores tradicionais de terras que atentam até contra a modernização capitalista do setor rural brasileiro.

De longe, no município tocantinense de Campos Lindos, a mais de 1,3 mil quilômetros dos carpetes azulados do Senado Federal, ao saber das intenções de Kátia Abreu, o agricultor Juarez Vieira Reis tentou materializar com palavras um conceito que, por falta de formação, não lhe veio à boca: contrassenso.

Expulso em 2003 da terra onde vivia, graças a uma intervenção política e judicial capitaneada pela senadora do DEM, Reis rumina o nome da ruralista como quem masca um capim danado. Ao falar de si mesmo, e quando pronuncia o nome Kátia Abreu, o camponês de 61 anos segue à risca o conselho literal da própria. Não é, nem de longe, quem ela imagina.

Em 2003, Reis foi expulso das terras onde havia nascido em 1948. Foi despejado por conta de uma reforma agrária invertida, cuja beneficiária final foi, exatamente, a senadora. Classificada de “grilagem pública” pelo Ministério Público Federal de Tocantins, a tomada das terras de Reis ocorreu numa tarde de abril daquele ano, debaixo da mira das armas de quinze policiais militares sob as quais desfilaram, como num quadro de Portinari, o agricultor, a mulher, Maria da Conceição, e dez filhos menores. Em um caminhão arranjado pela Justiça de Tocantins, o grupo foi despejado, juntamente com parte da mobília e sob um temporal amazônico, nas ruas de Campos Lindos. “Kátia Abreu tem um coração de serpente”, resmunga, voz embargada, o agricultor, ao relembrar o próprio desterro.

Em junho de 2005, Reis reuniu dinheiro doado por vizinhos e amigos e foi de carona a Brasília, a fim de fazer, pessoalmente, uma reclamação na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Na capital federal, alojou-se na casa de amigos, no miserável município goiano de Águas Lindas, e se alimentou de restos de almoços servidos em uma pensão da cidade. Aos técnicos da comissão apresentou documentos para provar que detinha a posse da terra em questão, de 545 hectares, desde 1955, parte da fazenda Coqueiros, de propriedade da família, numa região conhecida como Serra do Centro. De acordo com a documentação apresentada pelo agricultor, uma ação de usucapião da fazenda havia sido ajuizada em 8 de agosto de 2000.

Após esse ajuizamento, um vizinho de Reis, o também agricultor Antônio dos Santos, ofereceu-lhe para venda uma área contígua de 62 hectares, sob sua posse havia onze anos, cuja propriedade ele alegava ser reconhecida pelo governo de Tocantins. O negócio foi realizado verbalmente por 25 mil reais, como é costume na região, até a preparação dos papéis. Ao estender a propriedade, Reis pretendia aumentar a produção de alimentos (arroz, feijão, milho, mandioca, melancia e abacaxi) de tal maneira a sair do regime de subsistência e poder vender o excedente.

Ele não sabia, mas as engrenagens da máquina de triturar sua família haviam sido acionadas uns poucos anos antes, em 1996, por um decreto do então governador de Tocantins Siqueira Campos (PSDB). O ato do tucano, mítico criador do estado que governou por três mandatos, declarou de “utilidade pública”, por suposta improdutividade, uma área de 105 mil hectares em Campos Lindos para fins de desapropriação. Protocolada na comarca de Goiatins, município ao qual Campos Lindos foi ligado até 1989, a desapropriação das terras foi tão apressada que o juiz responsável pela decisão, Edimar de Paula, chegou à região em um avião fretado apenas para decretar o processo. O magistrado acolheu um valor de indenização irrisório (10 reais por hectare), a ser pago somente a 27 produtores da região.

Do outro lado da cerca ficaram 80 famílias de pequenos agricultores. A maioria ocupava as terras a pelo menos 40 anos de forma “mansa e pacífica”, como classifica a legislação agrária, cujas posses foram convertidas em área de reserva legal, em regime de condomínio, sob o controle de grandes produtores de soja. Na prática, os posseiros de Campos Lindos passaram a viver como refugiados ilegais nessas reservas, torrões perdidos na paisagem de fauna e flora devastadas de um Cerrado em franca extinção. Sobre as ruínas dessas famílias, o governador Siqueira Campos montou uma confraria de latifundiários alegremente formada por amigos e aliados. A esse movimento foi dado um nome: Projeto Agrícola Campos Lindos.

Em 1999, 47 felizardos foram contemplados com terras do projeto ao custo de pouco menos de 8 reais o hectare (10 mil metros quadrados), numa lista preparada pela Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins (Faet). A federação teve o apoio da Companhia de Promoção Agrícola (Campo), entidade fundada em 1978, fruto do acordo entre consórcios que implantaram o Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer) em parceria com o Banco do Brasil e com cooperativas de produtores.

Escrúpulos às favas, os dirigentes de ambas as instituições se esbaldaram nas posses de Campos Lindos. À época, a presidente da Faet era ninguém menos que Kátia Abreu, então deputada federal pelo ex-PFL. No topo da lista, a parlamentar ficou com um lote de 1,2 mil hectares. O irmão dela, Luiz Alfredo Abreu, abocanhou uma área do mesmo tamanho. O presidente da Campo, Emiliano Botelho, também não foi esquecido: ficou com 1,7 mil hectares.

Dessa forma, um ambiente de agricultura familiar mantido ao longo de quase meio século por um esquema de produção de alimentos de forma ecologicamente sustentável foi remarcado em glebas de latifúndio e entregue a dezenas de indivíduos ligados ao governador Siqueira Campos. Entre elas também figuraram Dejandir Dalpasquale, ex-ministro da Agricultura do governo Itamar Franco, Casildo Maldaner, ex-governador de Santa Catarina, e o brigadeiro Adyr da Silva, ex-presidente da Infraero. Sem falar numa trupe de políticos locais, entre os quais brilhou, acima de todos, a atual presidente da CNA.

O resultado dessa política pode ser medido em números. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a produção de soja em Campos Lindos cresceu de 9,3 mil toneladas, em 1999, para 127,4 mil toneladas, em 2007. Um crescimento de 1.370% em apenas oito anos. O mesmo IBGE, contudo, revela a face desastrosa desse modelo de desenvolvimento. No Mapa da Pobreza e Desigualdade, divulgado também em 2007, o município apareceu como o mais pobre do País. Segundo o IBGE, 84% da população vivia na pobreza, dos quais 62,4% em estado de indigência.

No meio das terras presenteadas por Siqueira Campos a Kátia Abreu estava justamente o torrão de Reis, a fazenda Coqueiro. Mas, ao contrário dos demais posseiros empurrados para as reservas do Cerrado, o agricultor não se deu por vencido. Tinha a favor dele documentos de propriedade, um deles datado de 6 de setembro de 1958 e originário da Secretaria da Fazenda de Goiás, antes da divisão do estado. O documento reconhece as terras da família em nome do pai, Mateus Reis, a partir dos recibos dos impostos territoriais de então. De posse dos papéis, o pequeno agricultor tentou barrar a desapropriação na Justiça. A hoje senadora partiu para a ofensiva. Mais

Kátia Abreu tem se notabilizado por defender "nobres" causas, como o direito da Cutrale de fazer agronegócio em terras da União, griladas pela fábrica de sucos assim como ela faz no Tocantins com as terras de pequenos lavradores