domingo, 18 de março de 2012

Augusto Boal e o Teatro do Oprimido - No palco, soluções para a vida real

15/03/2012  - Atividades homenageiam Augusto Boal e o Teatro do Oprimido
Da redação - Brasil de Fato

Dramaturgo completaria 81 anos nesta sexta-feira, 16/03/2012

Diversas atividades celebrarão, a partir desta sexta-feira (16), o Dia Mundial do Teatro do Oprimido. A escolha da data é uma homenagem ao criador do Teatro do Oprimido, o carioca Augusto Boal, que completaria 81 anos em 2012.

Nascido em 16 de março de 1931, o diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta dedicou a vida e obra em favor das lutas sociais. Baseadas em uma estética preocupada com as questões políticas e sociais, as técnicas e práticas do dramaturgo foram difundidas em todo o mundo.

No Centro de Teatro do Oprimido (CTO), as atividades iniciam às 19h, com a apresentação de pouporrit musical do espetáculo Coisas do Gênero, com elenco do CTO. A exibição do documentário "Augusto Boal e o Teatro do Oprimido", do cineasta Zelito Viana, mostrará a trajetória de vida e obra do dramaturgo. O Centro do Teatro do Oprimido fica na Avenida Mem de Sá, 31, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro.

A programação também contará com a apresentação de performance internacional com elenco da Guatemala, Argentina, Bolívia, Chile, Uruguai, Peru, França, Alemanha, Espanha, Itália e Brasil, e com o lançamento do livro "A Estética de Boal – Odisséia pelos Sentidos", de Flávio Sanctum.

Já no dia 17, haverá apresentação do Grupo de Teatro do Oprimido do Complexo da Maré – GTO Maré, às 15h no Museu da Maré. O grupo formado por adolescentes criou a peça "Quem pode leva", que levanta a discussão sobre o preconceito que os jovens sofrem por morarem na favela. O Museu da Maré está localizado na Avenida Guilherme Maxwell, 26, em frente ao PSF – Programa de Saúde da Família – Augusto Boal, uma homenagem da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.

Ainda nesta sexta-feira (16), será lançado o Projeto Centro Interuniversitário de Memória e Documentação (CIM), locado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A proposta, financiada pelo Ministério da Educação, é criar um espaço para a divulgação de acervos artísticos e científicos que potencialize ações e políticas de preservação do patrimônio material e imaterial brasileiro.

A data de lançamento foi escolhida em homenagem a Boal, já que a restauração e divulgação de seu acervo são projetos-piloto do CIM, em parceria com a Faculdade de Letras (FL), a Casa da Ciência, a Reitoria da UFRJ e o Instituto Augusto Boal.

De 16 a 23 de março serão realizados diversos eventos para resgatar a trajetória do artista, falecido em 2009. No último dia, será concedido a ele o título de doutor honoris causa (post mortem) pela Faculdade de Educação (FE) da UFRJ. A programação completa pode ser conhecida aqui.

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05/05/2009 - Reeditamos a entrevista: "No palco, soluções para a vida real"
concedida a Nestor Cozetti, do Rio de Janeiro (RJ) - Brasil de Fato

Mais importante do que assistir a um filme, diz o dramaturgo, é que as pessoas pensem também ser capazes de fazer filmes Augusto Boal inovou e reinventou o teatro”, já disse sobre ele o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Mais importante do que assistir a um filme, diz o dramaturgo, é que as pessoas pensem também ser capazes de fazer filmes. Ou que as pessoas que recebam um livro para ler sejam também incentivadas a escrever livros elas mesmas. Essas afirmações definem não apenas Boal como todo o seu trabalho, mais que conhecido – praticado nos cinco continentes. Criador do Teatro do Oprimido, ele foi o diretor artístico do Festival Nacional do Teatro Legislativo, que aconteceu entre os dias 25 e 30 de outubro, no Rio de Janeiro.

Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Boal fala de seu trabalho e conta que a primeira lei brasileira de proteção às testemunhas de crimes importantes surgiu a partir de um projeto do Centro do Teatro do Oprimido, no qual os grupos populares apresentavam espetáculos em que o público é convidado a entrar em cena, substituir o protagonista e buscar alternativas para o problema encenado.

Brasil de Fato – O que é o Teatro Legislativo?
Augusto Boal – O Teatro Legislativo foi a necessidade que nós sentíamos, antes de eu ser vereador, de transformar em lei aquilo que era um desejo manifestado pela população do Teatro Fórum. Neste, você apresenta o problema, e não as soluções possíveis. Por exemplo, o Shakespeare tem uma peça, Hamlet, em que ele fala que o texto deve ser um espelho, e esse espelho deve refletir a realidade como ela é: com nossos vícios e nossas virtudes. Isso é a opinião dele, o teatro é um espelho. Eu acho isso bonito e tudo. Mas ao mesmo tempo acho que a gente não tem que pensar só em compreender a realidade. Tem que procurar transformar a realidade. Esta sempre deve ser passível de uma transformação e vai necessitar sempre da transformação. Então, eu gostaria que o teatro fosse um espelho mágico, no qual você penetra e, não gostando da imagem que ele reflete, você vai lá dentro e lá modifica essa imagem. A gente sentiu que estava tendo idéias muito boas e tudo isso, mas na realidade a gente precisava de alguma lei. Mesmo que a gente saiba que as leis não são respeitadas no Brasil, é melhor tê-las ao nosso lado do que contra, contra nós. Então a gente começou a pensar na idéia de transformar em lei, entrando para a Câmara dos Vereadores. E eu fui candidato, fui eleito, por quatro anos.

BF – Por qual partido?
Boal – Pelo Partido dos Trabalhadores. Durante quatro anos a gente criou quase 20 grupos, no Rio de Janeiro inteiro, fazendo o Teatro Fórum. De 1993 a 1996. Chegamos a produzir quase 50 projetos de lei. Desses, 13 foram aprovados e hoje são leis. Algumas foram leis bastante localizadas.

BF – Projetos de lei surgiram dessas encenações?
Boal – Sim, com a platéia entrando em cena, havendo a discussão contraditória. Quer dizer, a peça trazia um problema, mas o primeiro espectador não achou uma solução boa, contra o segundo, o terceiro, o quinto. Então, fazendo muito o Teatro Fórum, a gente chegou a poder dizer: bom, o que eles estão querendo é uma lei nesse sentido. E eu apresentava essa lei. Entre elas, a primeira lei brasileira de proteção às testemunhas de crimes. Não havia nenhuma lei que protegesse as testemunhas. Nós fizemos durante meio ano, nas ruas, nas igrejas, nos sindicatos, nas escolas,em toda parte a gente ia, levava as peças e depois fazia a discussão teatral, com o espectador entrando em cena e dando sugestões. E aí, essa foi a primeira lei brasileira, que depois se transformou em uma lei estadual no Espírito Santo. E passou também a ser a base da lei federal.

BF – Fruto de uma encenação do Teatro do Oprimido?
Boal – Sim, de vários grupos, sobre o mesmo tema. Claro que depois o tema foi para Brasília, se ampliou enormemente, porque as possibilidades federais são bem maiores que as municipais. Quando eu saí (da Câmara de Vereadores) a gente continuou fazendo isso. Tem agora três ou quatro leis aprovadas depois que eu saí, porque é muito mais difícil manter a lei, sem ter um vereador ou deputado, assim totalmente empenhado.

BF – Como nasceu o Teatro do Oprimido?
Boal – Em 1970,quando eu trabalhei uma forma chamada Teatro Jornal, eram doze técnicas para ajudar as pessoas a transformarem notícias de jornal em cena teatral. Foi aí a semente do Teatro do Oprimido. O que aconteceu é que a gente não podia mais fazer teatro, tinha censura, invasão da polícia, prisões e tudo. Aí a gente falou: em vez de dar o produto acabado, vamos dar os meios de produção, a platéia produz o seu teatro.

BF – Um meio de produção cultural?
Boal – Sim, e teatral. Depois eu fui exilado, em 1971. Antes fui preso, torturado, aquela coisa “normal” da época. Fui banido, expulso do país. Na Argentina, comecei a desenvolver formas de teatro, como, por exemplo, o Teatro Invisível, em que agente vai para a rua e faz uma cena, e não revela que é teatro, para que todo mundo participe. Depois, no Peru, é que eu comecei com o Teatro Fórum, em que agente apresenta o problema, o espectador entra em cena e mostra alternativas. Então fui para Portugal, de lá passei a trabalhar em quase todos os países da Europa.

BF – E nesses países ficaram frutos de seu trabalho?
Boal – Sim, até hoje e cada vez mais. Na internet existe uma página internacional do Teatro do Oprimido.

BF – Qual o endereço?
Boal – O nome é em inglês, porque a página é holandesa: www.theatreoftheoppressed.org/en. Então, você acessando aí vê que tem um mapa-mundi e aí você clica em qualquer continente e aparecem todos os países onde se pratica o Teatro do Oprimido. São, setenta, oitenta países. É o primeiro método da América Latina, de um continente do Hemisfério Sul, que é praticado no mundo inteiro.

BF – Por que você e o Teatro do Oprimido são excluídos da grande mídia?
Boal – Eu acho que todos aqueles artistas que fazem alguma coisa que é extremamente útil para a população e tudo, mas que não tem um gancho, como por exemplo, um ator de televisão conhecido, ou algum outro evento que individualize as pessoas, esses são excluídos. Não é o Teatro do Oprimido, nem eu. É qualquer artista que não fizer assim. É excluído mesmo. Em geral, a mídia se interessa pela individualidade, só. E o que nós estamos tentando é fazer com que o Teatro do Oprimido seja usado em todo o tecido social. Não é ver, por exemplo, onde estão os talentos da favela da Maré. Nós não queremos transformá-los em atores de televisão, não é isso. Agora estamos lançando um projeto novo, que é a Estética do Oprimido. Nosso objetivo não é descobrir qual é o melhor poeta de Jacarepaguá, ou qual é o melhor pintor de tal lugar.

BF – Então, o que vocês querem não é o produto final, mas o processo de elaboração.
Boal – Sim, o processo estético é mais importante que o produto artístico. Agora, para quê agente quer isso, não é um capricho, não é? É que a gente vive na Terceira Guerra Mundial, clara, e estamos perdendo. E essa guerra mundial que estamos perdendo é a guerra da informação. Liga a televisão, hoje, e você vai ver somente filmes estadunidenses, e só de violência. Você nota se o filme é estadunidense ou não, de inspiração em Hollywood ou não, se em cada cinco minutos tem um soco, um tiro, ou uma explosão. Aí isso é estadunidense. O filme europeu raramente tem isso.

BF – E o Teatro do Oprimido, também por não fazer isso não sai na mídia?
Boal – Não sai. Porque a gente quer é o contrário, quer que as pessoas em vez de ficar assimilando, produzam, produzam. Então elas vão questionar, inclusive, as informações recebidas. Se você é obrigado a escrever um poema, depois você se anima, porque os poetas se animam. Entre as domésticas, tem uma que não pára de escrever. Atola a gente de poemas.

BF – Essa é a Estética do Oprimido?
Boal – É isso, é fazer com que as pessoas se apropriem da arte. Não sejam massacradas pela informação.

BF – E como é o seu trabalho com os movimentos sociais?
Boal – Com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o trabalho é muito bom, mas seria melhor se a gente tivesse meios para isso. Há alguns anos, eles começaram a vir ao Rio de Janeiro, do Brasil inteiro. Trabalharam com a gente durante algum tempo, e passamos para eles o que podemos. Depois eles voltaram para seus Estados, Rio Grande do Sul, Pará, Pernambuco etc., e lá eles começaram a desenvolver o Teatro o Oprimido.

BF – São dificuldades logísticas?
Boal – E econômicas. Mas a gente trabalha com eles. E também com os sindicatos dos bancários, dos professores. E estamos trabalhando com dez grupos da periferia. Nas prisões, em seis ou sete Estados brasileiros. Com um projeto de um ano e meio, com o Ministério da Justiça apoiando. E sai caro, porque você imagina ir daqui para Recife e voltar.

BF – Trabalho com os prisioneiros?
Boal – Fazemos as duas coisas. Desta vez tentamos fazer com os funcionários, para que se sintam também participantes desse processo. Quer dizer, que eles entendam que são oprimidos também, e que não resolvem a opressão deles oprimindo outros.

BF – E o que é para o senhor a democratização da cultura e meios de produção cultural?Boal – Democratização da cultura é uma expressão que está sendo muito usada, mas num sentido que não me agrada. Porque é como se dissessem assim: existem algumas pessoas excepcionais, que são os produtores de cultura. Então, esses produtores de cultura vão democratizá-la levando a um maior número de pessoas. Mas o maior número é entendido como de consumidores, e não como de produtores de cultura. Acho mais importante ainda que as pessoas que recebem o filme sejam também capazes de poder pensar em fazer filme. Ou as pessoas que recebem um livro para ler sejam também incentivadas a escrever elas mesmas.

Gonzaguinha e Marlene - Projeto Pixinguinha

BF – É o que acontece com a democratização da comunicação, também queremos democratizar os meios de fabricar o jornal. 
Boal – É, se você só democratizar a leitura, a exibição e tal, e transformar os outros somente em consumidores, é ruim. Mas tem que ser complementado com dizer: bom, nós viemos mostrar a vocês esses poemas. Agora escrevam vocês mesmos, vocês têm que escrever também. Democratizar a cultura é permitir que as pessoas criem cultura. É democratizar os produtores de cultura e não apenas da produção terminada. Senão se está criando mercados, e criar mercados não é o objetivo da cultura. E na informação é a mesma coisa, a gente tem que criar meios de informar, de contra-informar, de se opor informações para que dessa confrontação, para que dessas dúvidas, inclusive, nasçam certezas. E é isso o que a gente está tentando fazer.

sábado, 17 de março de 2012

"Privatizar a água é como vender ar em sacos de plástico"

17/03/2012 - Esquerda.net - publicado por Carta Maior (*)

A eurodeputada Marisa Matias denunciou no plenário do Parlamento Europeu que os processos de privatização da água que estão ocorrendo nos países europeus fazem utilização de um bem público através de um processo que equivale "a vender ar em sacos de plástico". Resolução da ONU, de 2010, reconhece o direito à água potável como um direito humano e apela aos Estados para que intensifiquem os esforços de modo a garantir a água potável e o seu fornecimento limpo, seguro e acessível.
Esquerda.net

Assista Marisa Matias aqui:

Os processos de privatização da água que estão ocorrendo nos países europeus fazem utilização de um bem público através de um processo que equivale "a vender ar em sacos de plástico". A declaração foi feita em Estrasburgo num debate perante a comissária Connie Hedegaard, a propósito do Fórum Mundial da Água, realizado em Marselha.

Marisa Matias, membro do Grupo da Esquerda Unitária (GUE/NGL) eleita pelo Bloco de Esquerda, tomou como exemplo na sua intervenção a situação em Portugal, onde um recurso público e financiado pelo Estado é privatizado. "É um exemplo claro", disse, "do que fazemos errado: tratar a água como uma mercadoria. Não é uma mercadoria, é um bem público e um recurso escasso; o que se passa é que os povos são obrigados a pagar para ter acesso à água, o que equivale a vender ar em sacos de plástico".

Nas suas intervenções durante o debate, os eurodeputados do GUE/NGL declararam o apoio ao fórum alternativo sobe a água, que ocorre igualmente em Marselha, e no qual estão em destaque as políticas ambientais para poupar e gerir a água em benefício dos povos e não do lucro.

Um escândalo na União Europeia
João Ferreira, deputado do GUE/NGL eleito pelo PCP [Partido Comunista Português], lembrou a resolução das Nações Unidas de Junho de 2010 que reconhece o direito à água potável como um dos direitos humanos. "A resolução", recordou, "apela aos Estados e às organizações internacionais para que intensifiquem os esforços de modo a garantir a água potável e o seu fornecimento limpo, seguro, acessível e abordável". O escândalo, assinalou João Ferreira, é que alguns Estados europeus vetaram inicialmente estes cuidados e "abstiveram-se mesmo na votação final". O eurodeputado português concluiu dizendo que "a propriedade pública e a gestão deste recurso precioso é a única maneira de proteger este direito".

A habitual receita público-privada
A eurodeputada francesa Marie-Christine Vergiat declarou que "as derivas das parcerias público-privadas são dramáticas nos nossos países, onde a água é cada vez mais cara sem que a qualidade melhore". De acordo com esta representante do GUE/NGL, a União Europeia tem largas responsabilidades nesta situação; ao mesmo tempo felicitou-se pelo facto de numerosas autarquias francesas terem decidido retomar em mãos a gestão da água das suas regiões.

(*) Artigo originalmente publicado no portal do Bloco de Esquerda no Parlamento Europeu - The Week (http://www.beinternacional.eu/pt/the-week/3029-qprivatizar-a-agua-e-como-vender-ar-em-sacos-de-plasticoq)

sexta-feira, 16 de março de 2012

A água novamente entre a vida e a morte

14/03/2012 - Elizabeth Peredo Beltrán(*) - Alai-Amlatina - Carta Maior
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
(No final ver Nota da Equipe Educom)

"O Conselho Mundial da Água, liderado por empresas como Veoliam, Suez, Coca Cola, Monsanto e outras grandes transnacionais desenvolveu uma visão muito sofisticada da água, uma visão que está fundamentada no conceito de que ela é um bem mercantil necessário para a vida e a ecologia, funcional aos direitos humanos e à sobrevivência e, portanto...um grande negócio. Como é possível que o Fórum Mundial da Água negue-se a reconhecer o direito humano à água e ao saneamento?"
O artigo é de Elizabeth Peredo Beltrán
  

Passaram-se já 15 anos da primeira edição do Fórum Mundial da Água e 20 da Declaração do Rio. Durante esses anos, o Conselho Mundial da Água, liderado por empresas como Veoliam, Suez, Coca Cola, Monsanto e outras grandes transnacionais desenvolveram uma visão muito sofisticada da água, uma visão que está fundamentada no conceito de que água é um bem mercantil necessário para a vida e a ecologia, funcionais aos direitos humanos e à sobrevivência e, portanto...um grande negócio.

Em todo esse período, ao invés de melhorar o cuidado com as fontes e aquíferos em todo o mundo a situação piorou substancialmente. Os equilíbrios ecológicos necessários para a sobrevivência e a fluidez do ciclo hidrológico foram rompidos como nunca havia acontecido, devido aos processos de agroindústria em larga escala, contaminação mineradora e projetos de energia baseados na construção de enormes hidroelétricas, entre outras causas. As empresas, por sua vez, estão buscando cada vez ganhar mais terreno da gestão pública e seguem ocorrendo debates entre gestores públicos e empresários diplomáticos corporativistas que tentam nos convencer de que o papel do setor privado é absolutamente necessário para a gestão da água.

Nestes debates e acordos de governança global da água pretende-se deslegitimar a gestão pública e fortalecer o conceito que foi desenvolvido pelo Consenso de Washington: o desenvolvimento e o cumprimento dos objetivos do Milênio só serão possíveis se existir um forte investimento privado; portanto, o desenvolvimento, os direitos humanos e os equilíbrios ecológicos estão ligados à sorte do mercado.

Este princípio permitiu construir um sistema especulativo de alto voo que agora é reforçado com o desenvolvimento da economia verde que é mais do mesmo, mas concebido para criar mercados especulativos coloridos com uma tinta verde acrescentada para dar a sensação de que se está protegendo o planeta e com a intenção de mercantilizá-lo todo; não só a água que tomamos e até o ar que respiramos, mas inclusive o futuro do planeta. Ainda que pareça ficção científica, isso é possível assim como foi possível que desde este Fórum tenham surgido soluções técnicas e corporativas escandalosas há alguns anos e que agora estão sendo colocadas em prática.

Em Haia, o Fórum Mundial da Água de 2003 se propôs incentivar a criação de sementes transgênicas para “poupar água”, sob o diagnóstico de que a agricultura é a atividade que consome mais água em todo o mundo. Na época, os ativistas da água reclamaram que esta solução podia se constituir em um crime que poderia afetar a saúde de todo o mundo e lançaram campanhas para evitar as sementes transgênicas e incluir o princípio de precaução nestas tecnologias. Hoje, as sementes transgênicas são parte do comércio mundial de alimentos e suas tecnologias e insumos. Nesta semana a Argentina apresentou ao mundo com orgulho o patenteamento de uma nova semente transgênica capaz de “poupar” água na produção de trigo, milho e soja em nível mundial.

As coisas vão mal porque deixaram as decisões mais importantes sobre a vida e sobre o planeta nas mãos das corporações e de governos poderosos e desenvolvimentistas que, baseados no princípio de que tudo se compra, se paga, se vende ou se repara pagando, levaram até os limites a impossibilidade de construir uma sociedade solidária, protetora do meio ambiente e, sobretudo, respeitosa de um bem sagrado para a vida como é a água.

O Fórum Mundial da Água se negou sistematicamente a apoiar em suas declarações o Direito Humano à Água e ao Saneamento. No Fórum Mundial da Água do México, em 2006, foram apenas quatro os países que assinaram uma declaração minoritária exigindo o direito humano à água, entre eles Uruguai e Bolívia. No entanto, nas Nações Unidas, há dois anos não houve nem um só voto contra a Resolução 64/292 declarando o Direito Humano à Água e ao Saneamento. Os países que se opunham a ela só puderam se abster de votar, mas não explicitar sua negativa a um evidente consenso gerado pelos povos e pelos países que sabem que esse é um direito inalienável para a humanidade.

Como é possível que, sistematicamente, o FMA se negue a reconhecer esse direito e que, na ONU, ele tenha sido aprovado sem oposição há dois anos?

Sendo que são os mesmos países que fazem parte das declarações ministeriais, por um lado, e das resoluções e conferências, por outro. Por que é que agora que ocorreu esse passo tão importante na ONU, o FMA não avança, mas, ao contrário, busca retroceder e diminuir as possibilidades de implementação do direito humano à água, favorecendo os processos de privatização? Mais do que isso, agora o FMA está decididamente disposto a incluir a água em “todas as suas dimensões econômicas, sociais e ambientais em um marco de governança, financiamento e cooperação”...como afirma sua declaração emitida ontem, apesar do protesto de alguns países.

Enquanto isso, milhares, senão milhões de experiências e iniciativas de gestão social e solidária, experiências exitosas de gestão pública, são implementadas com base no conceito de que água é um bem comum, um bem não mercantil para a vida.

As políticas e visões promovidas pelo Fórum Mundial da Água não estão à altura dos desafios colocados diante do planeta e da humanidade. Pelo contrário, estão condenando a gestão da água a seu manejo pelos poderes corporativos incapazes de priorizar a vida, preocupados mais em extrair lucros de qualquer parte, por sistemas financeiros, especulativos e sistemas de litígios corporativos cobiçados nas instituições financeiras internacionais.

Considerando o extremo esgotamento dos recursos e o desequilíbrio ecológico produzido no planeta é indispensável que a governabilidade da água fique fora das mãos do Conselho Mundial da Água e seja construída a partir de consensos dos cidadãos, dos povos e do interesse público. É por isso que os movimentos sociais reunidos em Marselha estão propondo que a ONU convoque um Fórum Global da Água que possibilite escutar as vozes das pessoas para pensar a água como um bem para a vida. As organizações sociais estão pedindo que sejam reforçados os sistemas locais e que se contribua para um exercício de vigilância social para assegurar que seu manejo seja social, democrático e solidário.

Diz-se, não sem razão que “milhares viveram sem amor, mas ninguém viveu sem água” (Auden). Nós acrescentamos, a partir deste Fórum, “sem amor, empatia e solidariedade, será impossível assegurar que a água chegue limpa e pura para todos”.


(*) Elizabeth Peredo é psicóloga social, escritora e ativista pela água, cultura e contra o racismo. Escrito para o Fórum Alternativo Mundial da Água, Marselha, 2012 (http://www.fame2012.org/fr/)

Nota: a posição da Equipe Educom com relação a este assunto aproxima-se mais das colocações postas aqui por Elizabeth Peredo Beltrán. Ainda assim, sugerimos que o leitor tome conhecimento da percepção deste assunto por parte de um órgão governamental brasileiro, no caso o CPRM ou Serviço Geológico do Brasil, através das entrevistas que a jornalista Maria Lúcia Martins efetuou junto a dirigentes e pesquisadores desse órgão, divulgadas neste blog em 15/03/2012, logo aí abaixo, no link  ou na matéria sob o título "Amazônia, fronteira da água".

quarta-feira, 14 de março de 2012

ONU prova que a mídia é contra a democracia e a liberdade de expressão

29/01/2012 - Enviado ao You Tube pelo leitor jorbacdc

Este vídeo  mostra o que se esconde por trás dos ataques sistemáticos da mídia brasileira contra a presidenta da Argentina, Cristina Kirchner.

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Para entender o jogo da mídia contra o que chamam de "kirchnerismo" é importante contextualizar a situação. Antes, vamos usar uma analogia metafórica.


Você mora numa grande cidade em que três padarias controlam a qualidade, a variedade e o preço dos pães que você consome. E uma antiquada lei diz que só os políticos podem liberar concessões para novas padarias. E a maioria dos políticos (responsáveis pela tal lei) são donos das padarias; ou amigos destes; ou representantes dos mesmos.

Daí, um governante assume a responsabilidade para criar uma nova lei que visa quebrar o cartel, dificultar o monopólio e facilitar o surgimento de novas padarias.

O que faz o sindicato dos donos das padarias?
Começa a espalhar panfletos dizendo que o governante quer controlar a produção de pães na cidade e ameaça a sua liberdade de escolher o pão que você vai comer. Agora, imagine se, em vez de mandar imprimir panfletos, os donos das padarias fossem donos de todos os meios de comunicação (jornal, rádio, tv etc) disponíveis. E tente imaginar se, em vez de pãezinhos, os produtos em questão fossem as notícias que influenciam a vida de todos na cidade.


Uma vez exposta esta metáfora, vamos conhecer um pouco a história da imprensa na Argentina para entender o que isto tem a ver com o Brasil.


Na Argentina, a grande mídia privada era tradicionalmente "chapa-branca", principalmente a partir de 1978 - quando o ditador Rafael Videla praticou de forma criminosa a expropriação da empresa Papel Prensa, que detinha o monopólio da produção de papel no pais. Videla cedeu a Papel Prensa para três grupos: Clarin, La Nacion e La Razion (Hoje com prevalência do Clarin e do La Nacion).

A contrapartida para tal "caridade" era clara: os grupos teriam que ter um "objetivo comum", ou seja, dar vazão ao "projeto" de um governo ditatorial, corrupto, violento e entreguista. Com tal golpe, os grupos empresariais passaram a controlar toda a imprensa escrita e adquiriu um poder extraordinário, cartelizando o setor e esmagando a concorrência. Inclusive, correm hoje na justiça da Argentina processos que cuidam de julgar graves acusações de crimes - seqüestros, assassinatos etc - cometidos por conta do golpe na Papel Prensa.

Ante o nebuloso passado, não é difícil entender o porquê de os grupos Clarin e La Nacion terem assumido, até o governo Duahlde (antecessor de Nestor Kirchner), uma postura "chapa-branca". Pois qualquer governante que ousasse pôr a mão no vespeiro da sórdida história por trás dos poderosos barões da mídia, obviamente perderia a "simpatia" dos mesmos.

Foi o que fez Nestor Kirchner
Sua sucessora, Cristina Kirchner, foi mais além: deu amplo apoio à reformulação das antiquadas leis das comunicações que davam suporte às injustiças; ao monopólio. É a chamada Ley de Médios - uma revolução na democratização das comunicações -, reverenciada pela maioria dos jornalistas argentinos e que o relator da ONU para a liberdade de expressão, Frank La Rue, definiu como "a mais avançada legislação em favor da liberdade de expressão da América Latina e um exemplo para o mundo".

  
Assim, é tremenda má-fé dizer que Cristina Kirchner estaria cerceando a liberdade de imprensa porque a grande mídia faz oposição ao governo dela. Porque se você raciocinar bem, para o "kirchnerismo" seria muito mais cômodo deixar tudo como está: a grande imprensa elogiando o governo de um lado e a histórica injustiça assombrando de outro lado, com a prevalência do jornalismo chapa-branca monopolizando as verbas publicitárias e sufocando a maioria representada pelos milhares de outros periódicos "não-alinhados" à oligarquia; as rádios não-comerciais etc.

No Brasil
Após sistemáticas críticas dos organismos internacionais contra as capengas leis das telecomunicações (permitindo, por exemplo, o clientelismo na distribuição das concessões de rádios e tevês), em 1998 o governo de FHC resolveu fazer uma reformulação "meia-boca" na legislação. Mas cerca de 70% dos parlamentares que formularam e aprovaram tal legislação eram donos de rádios e tevês ou estavam a serviço destes, ou seja, criou-se uma lei que veio muito mais para restringir do que democratizar o setor.

Em suma: criaram uma nova lei que ainda traz graves reflexos dos tempos da ditadura. A nova lei em estudo no Congresso Nacional visa acabar com as vergonhosas barreiras para a distribuição de concessões de rádios e TVs e coibir o monopólio nas comunicações. Mas o jogo é duríssimo. Para barrar tal lei, a chamada "grande mídia" brasileira bolou um fantasma chamado "ameaça contra liberdade de imprensa" na imagem da "ditatorial" presidenta da Argentina e quase todos os dias martela tal "ameaça" nos seus noticiosos.


terça-feira, 13 de março de 2012

Unesco questiona métodos da Repórteres Sem Fronteiras

12.03.2012 - Gianni Carta - Carta Capital

Não causa nenhuma surpresa a notícia de que a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) retirou de sua lista de ONGs associadas a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) na quinta 8.

A Unesco julgou os métodos utilizados pela RSF incompatíveis com os valores éticos do jornalismo.


Também não vale a pena ficar chocado com o fato de a mídia canarinho ter preferido não abordar o tema que recebeu ampla cobertura na Europa.

O motivo?
A RSF, desde a sua fundação pelo “jornalista” francês Robert Ménard, em 1985, é financiada por, entre outros, o Departamento de Estado dos Estados Unidos.

E o trabalho da RSF, com sede em Paris, é fazer propaganda contra principalmente os países progressistas da América Latina. A CIA, óbvio, é uma das agências a infiltrar na RSF, como reportado escassos anos atrás por CartaCapital, num texto de autoria do acima assinado intitulado “O Caixa-2 das ONGs”.

Como sabemos, a vasta maioria dos jornalões, revistas e redes de tevê do Brasil não perdem oportunidades para criticar governos como os da Bolívia, Equador, etc. Por aqueles bandas nunca ocorre nada de positivo. Muitas vezes a pauta a difamar cubanos é oriunda da inconfiável RSF.

De fato, devido às suas “tentativas que visam desqualificar certo número de países”, a Unesco já havia retirado o estatuto da RSF de co-patrocinadora do Dia pela liberdade da Internet, em 12 de março de 2008.

De jornalismo, aliás, a RSF não entende patavinas. Entende, isso sim, de espionagem. “Alimentada, em grande parte, por dólares de Washington, a RSF realiza atividades secretas em numerosos países”, lê-se no artigo “O Caixa-2 das ONGs”.

Hernando Calvo, o jornalista colombiano, lembra que o ex-secretário-geral da RSF, Robert Ménard, reconheceu ter recebido financiamento do Centro por uma Cuba Livre, fundação dirigida por Frank Calzón, agente da CIA. Ménard, de 58 anos, é, diga-se, um homem com posições políticas no mínimo nebulosas. O que talvez explique a opacidade da RSF.

Ex-integrante do Partido Socialista Francês, após cultivar elos com a CIA, Ménard deixou a RSF em setembro de 2008. Em seguida, assinou um contrato milionário para dirigir um centro de defesa pelos direitos da mídia em… Qatar.

Ménard descobriu que os direitos de livre expressão inexistem em Qatar (o “jornalista” precisou ir até lá para descobrir isso), e, assim, pediu demissão.

De volta à França, ele se associou à legenda de extrema-direita, a Frente Nacional do clã Le Pen. Ano passado celebrou o sucesso de Marine Le Pen em eleições locais, e publicou o livro Vive Le Pen! (Mordicus, 2011).

Talvez fosse o caso de Ménard usar seu talento para escrever Vive Les Reporters Sans Frontières!


Original publicado em CartaCapital

segunda-feira, 12 de março de 2012

Síria: até onde o mundo se deixará enganar?

8/3/2012, Alastair Crooke*, Asia Times Online - “Syria: Straining credulity?”
sexta-feira, 9 de março de 2012 - redecastorphoto
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


O secretário-geral da ONU manifestou-se dia 3 de março, para dizer que havia recebido “notícias sombrias” de que as forças do governo sírio estariam executando arbitrariamente, prendendo e torturando pessoas em Homs, depois de terem retomado o controle, no distrito de Baba Amr. Acreditará realmente no que disse?

Uma das bifurcações que definirão o futuro será o conflito entre os senhores da informação e as vítimas da informação”, escreveu o funcionário dos EUA encarregado pelo vice-chefe da inteligência de definir o futuro da guerra, no Quarterly do War College dos EUA, em 1997.
“... porque nós já somos os senhores da guerra de informação

Mas não temam”, escreveu adiante, no mesmo artigo, “porque nós já somos os senhores da guerra de informação (...)" Hollywood está “preparando o campo de batalha” (...) A informação destrói os empregos tradicionais e as culturas tradicionais; ela seduz, trai e, mesmo assim, permanece invulnerável. Como alguém algum dia conseguiria contra-atacar a máquina de guerra da informação, que outros giram, apontam e comandam?” [1]

“... escrevendo os roteiros, produzindo os vídeos e recolhendo os royalties”.

Nossa sofisticação no uso da máquina de guerra da informação nos capacitará a deslocar e superar todas as culturas hierárquicas (...). Sociedades que temem ou não conseguem administrar o fluxo de informação não podem, simplesmente, ser competitivas. Conseguirão dominar as tecnologias para assistir aos vídeos, mas nós estaremos escrevendo os roteiros, produzindo os vídeos e recolhendo os royalties. Nossa criatividade é devastadora.

A guerra de informação não estará contida na geopolítica, o autor sugere, mas será “disseminada” – como qualquer drama de Hollywood – mediante emoções nuas. “Ódio, ciúme e ganância – emoções, mais que estratégias – definirão os termos das lutas na guerra de informação.”

Não só o exército dos EUA, mas ao que parece toda a grande mídia ocidental insiste em que a luta na Síria deva ser narrada em imagens emotivas e declarações moralistas que sempre – como o artigo do War College diz corretamente – triunfam sobre a análise racional.

A Comissão do Conselho de Direitos Humanos da ONU condena o governo sírio por prática de crimes contra a humanidade, mas só considera o que diz a oposição, e sem nada investigar dos “crimes” da oposição: e imediatamente assesta acusações contra o governo sírio, baseando o processo em mera “suspeita razoável”. Será que acreditam no que escreveram, ou dedicam-se só a “redigir o roteiro”? [2]

Já esquecida do que os Marines dos EUA fizeram a Fallujah em 2004 (6.000 mortos e 60% da cidade destruída), quando insurgentes armados também buscavam estabelecer ali um “Emirado” salafista – toda a mídia ocidental em Homs dá voz a gritos indignados de “algo tem de ser feito” para salvar o povo de Homs de “um massacre”. A questão de a que finalidade exatamente aquele “algo” – seja intervenção militar ou entregar armamento pesado aos insurgentes – deveria servir, e a que consequências pode levar, desaparece completamente de vista. Os que cometam a temeridade de se interpor no caminho dessa “narrativa”, argumentando que qualquer intervenção externa será desastrosa, são imediata e completamente condenados como cúmplices dos crimes do presidente Assad contra a humanidade.

O mau jornalismo do “falamos diretamente da Síria
Essa escola de jornalismo – o Guardian e Channel Four são bons exemplos dessa reportagem em tons de “falamos diretamente do local” – que dá ênfase ao repórter como participante e, de fato, também como co-sofredor entre os atacados, dos indizíveis sofrimentos emocionais da guerra, usa imagens emocionais precisamente para sublinhar aquele mesmo “algo tem de ser feito imediatamente, na Síria”.

Ao reproduzir imagens de corpos mutilados e mulheres em prantos, todos dizem e determinam que o conflito tem de ser visto como evento moralmente simplíssimo – um caso de agressores e vítimas.

De Baba Amr. Revoltante. Não posso entender como o mundo suporta isso. Vi um bebê morrer hoje. Estilhaços: os médicos nada puderam fazer. O peitinho subia e descia, até que parou. Senti-me impotente.” [3]

Os que argumentam que qualquer interferência ocidental só exacerbará a crise, são confrontados com a irrespondível evidência de bebês mortos – literalmente. Como o artigo do War College diz tão claramente: como alguém conseguiria contra-argumentar nesse tipo de “guerra de informação” desfechada contra o governo sírio, que está no polo receptor dos que “escrevem os roteiros, produzem os vídeos e recolhem os royalties”?

Eu também vi cenas terríveis no Afeganistão nos anos 1980s: claro que criam um abismo emocional pelo qual o espectador desarmado desliza; mas será que esses jornalistas e repórteres convertidos em ‘cruzados’ sabem que os inocentes e as crianças nem sempre são as únicas vítimas dos conflitos? Será que acreditam mesmo que o próprio sofrimento pessoal dos jornalistas e repórteres é tão essencialmente “correto”, “perfeito”, “ético”, que justificaria condenar ao silêncio, não comentar, fingir que não há todas as complexidades e todas as outras possibilidades e interpretações? Mas... como, afinal, mais guerra poderia, algum dia, ser resposta à terrível morte de uma criança?

Esse ardor emocional reducionista do jornalismo não passa de forma clandestina de propaganda – que em nada difere de “guerreiros” da informação como AVAAZ, que ajudam a escrever e produzir muitos desses vídeos da infoguerra. [4]

Apesar de ninguém endossar abertamente esse “jornalismo de imersão”, não parece haver dúvidas de que essa abordagem triunfou em inúmeras redações de jornais e televisões. E a coisa parece ainda pior que isso: cada dia mais se veem diplomatas ocidentais agindo como se fossem “ativistas” e participantes de lutas internas nos estados aos quais são mandados e dos quais fala o tal “jornalismo de imersão”. Mas... que tipo de informação, afinal, estão construindo, para começar, para seus próprios governos?

Sabe-se que a oposição armada, que levou a Homs os jornalistas ocidentais – e depois insistiu em evacuá-los pela rota mais perigosa, via o Líbano, em vez de aceitar os serviços do Crescente Vermelho, decisão que custou muitas vidas – foi motivada por interesses políticos. Mas e os jornalistas?

Os jornalistas terão sido motivados pelos mesmos interesses, e divulgaram e repetiram os mesmos argumentos, sem saber, sem sequer suspeitar, que os tais corredores humanitários a serem abertos até Homs, impostos do exterior, não passariam jamais de pretextos para a intervenção? Em outras palavras, os jornalistas não sabem?!

Será possível que os jornalistas sequer suspeitem de que são atores, são partícipes, em outras palavras, são cúmplices, da construção de uma encenação, a favor de certo tipo de intervenção externa? Alguma solução à Kosovo fará melhorar alguma coisa na Síria?

O que mais chamou a atenção em toda essa operação é que, além de essa “guerra de informação” já ter tido o efeito provável de demonizar para sempre aos olhos do ocidente o presidente Assad, teve também o efeito de “desancorar” de lá a política externa dos EUA e da União Europeia. Tudo na Síria parece passar-se como se EUA e UE não tivessem qualquer interesse na Síria. Como se estivessem absolutamente distanciadas de qualquer real conflito geoestratégico naquele país.

O que, por sua vez, levou a uma situação na qual os líderes europeus e norte-americanos passaram a comportar-se como se estivessem sendo “convencidos” – por aquele “jornalismo” lá “imerso”, que só fazia “revelar” números crescentes de mortos, dia a dia – quase como se estivessem sendo praticamente “obrigados”, a “fazer alguma coisa”. Como se estivessem reagindo exclusivamente porque pressionados pelas “notícias”, ante a necessidade de reagir àquelas explosões emocionais que se repetiam incansavelmente pela imprensa contra o presidente Assad e suas “mãos sujas de sangue”.

Na Síria, o ocidente já virou refém de sua própria guerra de (des)informação
Por tudo isso, em certo sentido, o ocidente acabou por ficar refém de sua própria guerra de (des)informação: o ocidente fechou-se, ele mesmo, numa compreensão simplória, preso a um significado “único”: uma espécie de meme simplificado de vítima-e-agressor, para o qual a única saída possível seria derrubar o agressor.

A Europa, por essa via, acabou por afastar-se completamente de todas as demais opções –, precisamente porque o tema ‘humanitário’, que muitos supuseram que bastaria para facilmente derrubar Assad, impede hoje que se analisem quaisquer outras vias, dentre as quais, por exemplo (e jamais antes sequer considerada!), uma saída negociada para o impasse.

Mas quem, afinal, algum dia realmente acreditou que os objetivos de EUA e europeus na Síria fossem puramente humanitários?
Estaremos ante a estranha (e perigosa) situação – dado o rumo que vão tomando os eventos no Oriente Médio – de já ser quase impossível (ou, de talvez, já ser completamente impossível, porque seria insuperavelmente ridículo!), para o ocidente, admitir agora, de repente, abertamente... que a guerra de informação que o próprio criou jamais teve coisa alguma a ver com reformar ou democratizar a Síria?! Que tudo sempre visou exclusivamente à “mudança de regime” na Síria, e que esse objetivo já estava decidido desde antes de o primeiro protesto irromper em Dera'a?

Em recente entrevista a Jeffrey Goldberg da revista Atlantic, [5] que o presidente Obama concedeu antes do discurso que faria na reunião anual do AIPAC, Obama foi perguntado, dentre outras questões, sobre a Síria. Sua resposta foi muito clara:


GOLDBERG: O senhor pode falar sobre a Síria como questão estratégica? A questão humanitária, OK, também existe. Mas me parece que um modo para isolar e enfraquecer ainda mais o Irã é remover Assad, que é o único aliado árabe que restou ao Irã.

PRESIDENTE OBAMA: Trata-se disso, precisamente.

Será que algum dos militantes do intervencionismo ocidental e dos seus jornalistas propagandistas realmente acreditam que o massacre que o ocidente impôs à Síria seria efeito de luta por democracia e reformas? Se algum dia acreditaram nisso, podem esquecer. Obama já disse, claramente: na Síria, “trata-se precisamente” do Irã.

E, com Europa e EUA cada vez mais postos como coadjuvantes de um frenesi de que foram tomados os qataris e sauditas, para derrubar a qualquer preço outro líder árabe, será que esses jornalistas e repórteres acreditam que aquelas duas monarquias absolutas realmente partilham dos desejos do jornal Guardian ou da rede Channel Four [6] , que acalentam as mais humanitárias aspirações para o futuro da Síria?

É acreditável que jornalistas e repórteres realmente creiam que os insurgentes e mercenários que os estados do Golfo estão financiando e armando seriam, realmente, bons, pacíficos e bem-intencionados reformadores, arrastados para a violência pela intransigência de Assad? É possível que um ou outro realmente acredite nessa fantasia. Mas quantos, ao “noticiar” aquelas “notícias” como as “noticiam”, só fazem, de fato, ativamente, minar cada vez mais o mesmo campo de batalha que, há tempos, estão preparando?

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Notas dos tradutores
[1] Constant Conflict, “Parameters”, Summer 1997, pp. 4-14. (http://www.carlisle.army.mil/usawc/parameters/Articles/97summer/peters.htm)

[2] The United Nations Accuses Síria of “Crimes against Humanity”. (http://www.informationclearinghouse.info/article30714.htm)

[3] 27/2/2012, “The danger of reporters becoming ‘crusaders’” [O drama dos repórteres convertidos em “cruzados”]. (http://www.spiked-online.com/index.php/site/printable/12159/)

[4] 3/3/2012, ver “How AVAAZ Is Sponsoring Fake War Propaganda From Síria” [Como AVAAZ está patrocinando guerra de falsa propaganda contra a Síria]. (http://www.moonofalabama.org/)

[5] 2 /3/2012, The Atlantic em: “Obama to Iran and Israel: 'As President of the United States, I Don't Bluff'” [Obama a Irã e Israel: ‘Como presidente dos EUA, não blefo’”], (http://www.theatlantic.com/international/archive/2012/03/obama-to-iran-and-israel-as-president-of-the-united-states-i-dont-bluff/253875/)

[6] 5/3/2012, em: “Syria’s inconvenient thruth” (http://blogs.channel4.com/snowblog/syrias-inconvenient-truth/17322)


* Alastair Crooke é fundador e diretor do Conflicts Forum. Foi conselheiro do ex-ministro de Relações Exteriores da União Europeia, Javier Solana, de 1997-2003.