sábado, 15 de fevereiro de 2014

Uma lei antiterrorismo útil aos EUA

13/02/2014 - "Lei antiterrorismo serve principalmente aos EUA"
- por Conceição Lemes - blog Viomundo

Tramitam no Congresso vários projetos de lei que visam regulamentar atos de terrorismo.

O mais conhecido é do senador Romero Jucá (PMDB-RR) [E] com contribuições do ex-deputado federal Miro Teixeira (PROS) [D].

Não podemos começar a Copa, as Olimpíadas, sem a lei regulamentada. A Constituição tem essa lacuna que precisa ser preenchida”, afirmou numa comissão mista do Congresso. ”A regulamentação dos atos de terrorismo será votada ainda este ano.”

Foi numa comissão mista do Congresso, realizada em 12 de agosto de 2013

No final do ano, os movimentos lançaram o Manifesto de repúdio às propostas de tipificação de crimes de terrorismo (na íntegra, abaixo).

Provavelmente essa pressão forte fez a iniciativa refluir e o projeto acabou não sendo votado.

A morte trágica de Santiago Ilídio Andrade [foto], repórter cinematográfico da TV Bandeirantes, fez com que os parlamentares de forma oportunista decidissem levar o projeto a votação.

Está na pauta do plenário e pode ser votado a qualquer momento. Numa decisão de líderes, os senadores nomearam o colega Eunício Oliveira como relator de plenário.

Mas os senadores Eduardo Suplicy (PT-SP) [E] e Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) [D] querem que antes o projeto passe por duas comissões.
Uma delas é a de Direitos Humanos.
Ou seja, há um impasse.

“Não há a menor necessidade de tipificar crime de terrorismo. E uma vez tipificado, você perde totalmente o controle sobre quem será punido”, alerta o advogado Patrick Mariano.

O filtro que será realizado para determinar se tal conduta é terrorismo ou não será dado por delegados, promotores, juízes e, é claro, pela mídia”.

Essa lei serve principalmente aos interesses norte-americanos, que querem nos impor a adoção das mesmas medidas antiterror que adotaram no pós 11 de setembro”, denuncia Mariano.

Se aprovado esse projeto de lei, o reflexo será menos democracia e mais sufocamento da participação social.”

Patrick Mariano [foto] é advogado, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – Renap.

Viomundo — É necessário tipificar o crime de terrorismo no Brasil?

Patrick Mariano — Não, em absoluto. O Brasil já dispõe de legislação penal suficiente para tanto.

Terrorismo é um conceito ideológico, uma quimera que serve à política dos EUA para justificar as desumanidades cometidas em Guantánamo e no pós 11 de setembro em todo o mundo.

Por aqui, serviu para justificar atrocidades e tortura nos anos de 1960 e 70, quando os militares davam as regras. Muitos quadros da esquerda brasileira foram torturados e mortos com base nesta justificativa.

Viomundo – O senador Romero Jucá justifica a necessidade da lei por conta da Copa e das Olimpíadas. O Brasil já não tem leis capazes de enquadrar qualquer eventual ação cometida em sede dos grandes eventos?

Patrick Mariano — Sem dúvida. Há legislação penal pra dar e vender. Basta lembrar, neste ponto, que a Lei de Segurança Nacional, editada na ditadura militar ainda está em vigor e serve, vez ou outra, para criminalizar movimentos sociais.

Viomundo — Quem são os pais da ideia no Senado e na Câmara?  No ano passado, eles estavam assanhados… Depois arrefeceram. Mas com o caso do Santiago voltaram a agir.

Patrick Mariano – Olha, na verdade, os verdadeiros pais são os americanos, que querem nos impor a adoção das mesmas medidas antiterror que adotaram no pós 11 de setembro e a venda de armas.

No Brasil, os pais são aqueles que servem aos interesses dessa ideologia. Quer por inocência, quer por afinidade. Existem vários projetos sobre o tema, o mais famoso dele é do Romero Jucá com contribuições do Miro Teixeira.

De fato, no ano passado, ocorreu um debate na Câmara dos Deputados. O inusitado é que os movimentos sociais não foram sequer convidados. Assim como agora ocorre no Senado Federal.

Ou seja, na “casa do povo”, este não entra. Lembrou a música de Cazuza “não me convidaram para esta festa pobre que os homens armaram para me convencer”.

Viomundo — O que está por trás dessa iniciativa de tipificar o crime de terrorismo no Brasil? É mais uma tentativa de criminalizar os movimentos sociais?

Patrick Mariano — Com certeza [Eugenio Raúl] Zaffaroni [foto], argentino e um dos maiores penalistas do mundo, diz que toda vez que aumentamos o estado policial, diminuímos o estado de direito.

Neste caso, seria uma tragédia para as lutas sociais a tipificação, um retrocesso democrático.

Recentemente, Obama justificou a espionagem que fez na presidenta Dilma com base no argumento de que era para combater o terrorismo.

Ou seja, se viola a intimidade de presidentes de países com base neste argumento!

O debate é ideológico. Implica dizer, seremos submissos a esta ideologia norte-americana?

mesma ideologia que “justifica” a tortura, a espionagem sorrateira, Guantánamo, Abu Ghraib e os campos de concentração relatados no filme Zero Dark Thirty (A Hora Mais Escura)?

Viomundo – A quem interessa, ideologicamente, tipificar o crime de terrorismo no Brasil?

Patrick Mariano – Como o termo “terrorista” é uma construção ideológica, funciona mais ou menos assim: você primeiro cria politicamente o termo e depois vai atrás daquilo que você entende que seja.

Somente para argumentar, imaginemos aquele terrorista dos filmes de Hollywood, ok? Se ele existe, nunca passou pelo Brasil ou pela maioria dos países.

Nosso País não entra em guerra há mais de 100 anos, temos um tradição, portanto, pacífica.

Outros países que tipificaram a conduta e aceitaram o jogo dos EUA, ao não encontrar aquele perfil que o Jack Bauer, do seriado 24 horas tem como inimigo, acabaram por criminalizar movimentos sociais.

Sim, porque uma vez tipificado, você perde totalmente o controle sobre quem será punido.

O filtro que será realizado para determinar se tal conduta é terrorismo ou não, será dado por delegados, promotores, juízes e, é claro, pela mídia!

Interessa ao pensamento ideológico de Bush no pós 11 de setembro. Pensamento tão forte politicamente, que nem mesmo Obama conseguiu refrear, embora houvesse prometido acabar com Guantánamo.

Viomundo — Quais os impactos da tipificação para os movimentos sociais, já que hoje, não é raro promotores enquadrarem as ações do MST na Lei de Segurança Nacional?

Patrick Mariano — São imprevisíveis. Seria a ampliação do estado policial ainda mais. O reflexo é menos democracia e mais sufocamento da participação social.

O recado dado seria uma sociedade ainda mais doente, com medo de falsos fantasmas criados para justificar atrocidades mundo afora.

Uma sociedade em que o medo é estimulado, abre mão de valores fundamentais para a vida em comunidade tais como a solidariedade, fraternidade e aceitação do outro.

Reforçaria preconceitos e atenderia à indústria de segurança, que é muito forte no mundo.

A Lei de Segurança Nacional é um bom exemplo que você deu.

Em pleno regime democrático, existem promotores que enxergam na atuação do Movimento dos Sem Terra um atentado à segurança nacional. Não só, ainda elaboram denúncias criminais contra esses trabalhadores, com base neste pensamento.

Como palpite, diria que estudantes, professores, sem terra e todos aqueles e aquelas que ousassem ir para as ruas reivindicar direitos sociais, seriam etiquetados como terroristas.

*****

Manifesto de repúdio às propostas de tipificação do crime de Terrorismo

Pelo presente manifesto, as organizações e movimentos subscritos vêm repudiar as propostas para a tipificação do crime de Terrorismo que estão sendo debatidas no Congresso Nacional, através da comissão mista, com propostas do Senador Romero Jucá e Deputado Miro Teixeira.

Primeiramente, é necessário destacar que tal tipificação surge num momento crítico em relação ao avanço da tutela penal frente aos direitos e garantias conquistados pelos diversos movimentos democráticos.

Nos últimos anos, houve intensificação da criminalização de grupos e movimentos reivindicatórios, sobretudo pelas instituições e agentes do sistema de justiça e segurança pública. Inúmeros militantes de movimentos sociais foram e estão sendo, através de suas lutas cotidianas, injustamente enquadrados em tipos penais como desobediência, quadrilha, esbulho, dano, desacato, dentre outros, em total desacordo com o princípio democrático proposto pela Constituição de1988.

Neste limiar, a aprovação pelo Congresso Nacional de uma proposta que tipifique o crime de Terrorismo irá incrementar ainda mais o já tão aclamado Estado Penal segregacionista, que funciona, na prática, como mecanismo de contenção das lutas sociais democráticas e eliminação seletiva de uma classe da população brasileira.

Nesta linha, o inimigo que se busca combater para determinados setores conservadores brasileiros, que permanecem influindo nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, é interno, concentrando-se, sobretudo, nos movimentos populares que reivindicam mudanças profundas na sociedade brasileira.

Dentre as várias propostas, destaca-se o Projeto de Lei de relatoria do Senador Romero Jucá, que em seu art. 2º define o que seria considerado como Terrorismo: “Art. 2º – Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa, por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial ou étnico: Pena – Reclusão de 15 a 30 anos”.

Trata-se, inicialmente, de uma definição deveras abstrata, pois os dois verbos provocar e infundir são complementados pelos substantivos terror e pânico. Quem definiria o que seria terror e pânico? Como seria a classificação do terror e pânico generalizado? Ora, esta enorme abstração traz uma margem de liberdade muito grande para quem vai apurar e julgar o crime.

Além disso, esse terror ou pânico generalizado, já de difícil conceituação, poderia ser causado, segundo a proposta, por motivos ideológicos e políticos, o que amplia ainda mais o grau de abstração e inconstitucionalidade da proposta.

É sabido que as lutas e manifestações de diversos movimentos sociais são causadas por motivos ideológicos e políticos, o que, certamente, é amplamente resguardado pela nossa Constituição

Assim, fica claro que este dispositivo, caso seja aprovado, será utilizado pelos setores conservadores contra manifestações legítimas dos diversos movimentos sociais, já que tais lutas são realmente capazes de trazer indignação para quem há muito sobrevive de privilégios sociais.

Também a proposta do Deputado Miro Teixeira revela o caráter repressivo contra manifestações sociais, evidenciada em um dos oito incisos que tipifica a conduta criminosa: “Incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado”. Verifica-se,  portanto,  que  as  propostas são construídas sobre verdadeiros equívocos políticos e jurídicos, passando ao largo de qualquer fundamento ou motivação de legitimidade.

Agregue-se, ainda, o cenário de repressão e legislação de exceção paulatinamente instituídos pela agenda internacional dos grandes eventos esportivos, solapando a soberania política, econômica, social e cultural do povo brasileiro, e a fórmula dos fundamentos e motivações da tipificação do crime de terrorismo se completa, revelando a sua dimensão de fascismo de estado, incompatível com os anseios de uma sociedade livre, justa e solidária.

Já contamos quase 50 anos desde o Golpe de 64 e exatamente 25 anos desde a promulgação da ‘Constituição Cidadã’.

Nesse momento, diante da efervescência política e da bem-vinda retomada dos espaços públicos pela juventude, cumpre ao Congresso Nacional defender a jovem democracia 
brasileira e rechaçar projetos de lei cujo conteúdo tangencia medidas de exceção abomináveis como o nada saudoso ‘AI-5’.

Desta maneira, repudiamos veementemente estas propostas de tipificação do crime que, sobretudo, tendem muito mais a reprimir e controlar manifestações de grupos organizados, diante de um cenário já absolutamente desfavorável às lutas sociais como estamos vendo em todo o Brasil.

ASSINAM:
- Actionaid Brasil
- Anarquistas Contra o Racismo – ACR
- Assembleia Nacional dos Estudantes – Livre – ANEL
- Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo – ABEA
- Associação dos Especialistas em Políticas Públicas do Estado de São Paulo AEPPSP
- Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB
- Associação Juízes Para a Democracia – AJD Associação Missão Tremembé – AMI
- Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP
- Bento Rubião – Centro de Defesa dos Direitos Humanos Cearah Periferia
- Central de Movimentos Populares – CMP
- Centro de Assessoria à Autogestão Popular – CAAP
- Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social – CENDHEC
- Coletivo de Artistas Socialistas – CAS
- Coletivo Desentorpecendo a Razão – DAR Comboio
- Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da - - Associação Brasileira de Imprensa – ABI
- Comissão de Direitos Humanos do Sindicato dos Advogados de São Paulo
- Comitê Pela Desmilitarização
- Comitê Popular da Copa de SP
- Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro
- Conectas
- Confederação Nacional de Associações de Moradores – CONAM
- Conselho Federal de Serviço Social – CFESS
- Conselho Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de Campinas
- Consulta Popular
- Coordenação do Fórum Nacional de Reforma Urbana Escola de Governo
- Espaço Kaleidoscópio – Criciúma-SC
- Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE
- Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenharia – FISENGE
- Federação Nacional das Associações de Empregados da Caixa Econômica – FENAE
- Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas – FNA
- Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil FENEA
- Fórum da Amazônia Oriental/ GT Urbano – FAOR
- Fórum Nordeste de Reforma Urbana – FneRU
- Fórum Sul de Reforma Urbana
- Fórum Urbano da Amazônia Ocidental – FAOC
- Frente de Resistência Urbana
- Grupo Lambda LGBT Brasil Grupo Tortura Nunca Mais – RJ
- Grupo Tortura Nunca Mais – SP Habitat para a Humanidade
- Identidade – Grupo de Luta pela Diversidade Sexual Instituto Brasileiro de Administração Municipal – IBAM
- Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE
- Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM

Fonte:
http://www.viomundo.com.br/denuncias/patrick-mariano-4.html

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Os ucranianos não querem essa guerra

05/02/2014 - “A grande maioria dos ucranianos não quer esta nova guerra civil”
- Jean-Marie Pestiau - Correio da Cidadania

A Solidaire, semanário do Partido do Trabalho da Bélgica, entrevistou Jean-Marie Chauvier [foto] para melhor compreender a situação atual da Ucrânia.

Ele é um jornalista e ensaísta belga, especialista em Ucrânia e ex-União Soviética. Conhecendo esses países e a língua russa há muito tempo, colabora hoje para o Le Monde Diplomatique e em diversos outros jornais e sites de internet.

- Quais são os problemas econômicos mais prementes enfrentados pela população ucraniana, principalmente os trabalhadores, os pequenos camponeses e os desempregados?

Jean-Marie Chauvier
Desde o desmembramento da União Soviética, em 1991, a Ucrânia passou de 51,4 milhões a 45 milhões de habitantes. Esta diminuição se explica por uma baixa taxa de natalidade e um aumento da mortalidade devido, em parte, ao desmantelamento dos serviços de saúde.

A emigração é muito forte; 6,6 milhões de ucranianos vivem atualmente no estrangeiro. Numerosas são as pessoas do leste da Ucrânia que foram trabalhar na Rússia, onde os salários são sensivelmente mais elevados, enquanto que aqueles do oeste se dirigiram em sua maioria para a Europa ocidental, por exemplo, para as serras da Andaluzia ou para o setor de construção civil em Portugal. A emigração faz entrar, anualmente, 3 bilhões de dólares na Ucrânia.

Enquanto o desemprego é oficialmente de 8% na Ucrânia, uma parte importante da população vive abaixo da linha da pobreza: 25%, segundo o governo, até 80% segundo outras estimativas. A extrema pobreza, acompanhada de subalimentação, é estimada entre 2% a 3% até 16%.

O salário médio é de U$ 332 dólares por mês, um dos mais baixos da Europa. As regiões mais pobres são as regiões rurais a oeste. As alocações de desemprego são baixas e limitadas no tempo.

Os problemas que mais pressionam acentuaram-se pelos riscos ligados à assinatura de um tratado de livre comércio com a União Europeia (UE) e à aplicação de medidas preconizadas pelo FMI.

Existe, portanto, a perspectiva de fechamento de empresas industriais, sobretudo no leste. Ou a recuperação, reestruturação e desmontagem das multinacionais.

No que diz respeito às terras férteis e à agricultura, vê-se no horizonte a ruína da produção local, que é assegurada atualmente pelos pequenos camponeses e pelas sociedades por ações herdeiras dos kolkhoses [foto] e a chegada de grande número de multinacionais da agro-alimentação.

A compra maciça de terras férteis se acelerará. Desse modo, Landkom, um grupo britânico, comprou 100.000 hectares (ha) de ricas terras e um fundo de reserva russo, Renaissance, comprou 300.000 hectares de terras (este número representa um quinto das terras agrícolas da Bélgica).

Para as multinacionais, há, portanto, bons pedaços a tomar: certas indústrias, os oleodutos e gasodutos, as terres férteis e a mão de obra qualficada.

Quais seriam as vantagens e desvantagem de uma aproximação com a União Europeia?

Jean-Marie Chauvier
Os ucranianos – a juventude antes de tudo – sonham com a UE, com a liberdade de viajar, com as ilusões de conforto, bons salários, prosperidade etc., a respeito dos quais os governos ocidentais especulam.

Mas, na realidade, não se trata da adesão da Ucrânia à UE. Não se trata da livre circulação de pessoas.

A UE propõe poucas coisas a não ser o desenvolvimento do livre comércio, da importação massiva de produtos ocidentais, da imposição de padrões europeus nos produtos suscetíveis de serem exportados para a UE, o que levanta temíveis obstáculos à exportação ucraniana.

A Rússia – em caso de acordo com a UE – ameaça fechar seu mercado aos produtos ucranianos. O mercado russo já está fechado.

Moscou ofereceu compensações como a redução de um terço do preço do petróleo, uma ajuda de 15 bilhões de dólares, união aduaneira com a própria, com o Cazaquistão, com a Armênia...

Putin [foto] tem um projeto euro-asiático que engloba a maior parte do antigo espaço soviético (inclusive os países bálticos), reforçando os laços com um projeto de coopeeração industrial com a Ucrânia e integrando as tecnologias em que a Ucrânia era performática desde os tempos da URSS: aeronáutica, satélites, armamento, construções navais, modernização dos complexos industriais.

É, evidentemente, a parte leste da Ucrânia que está mais interessada nessa perspectiva.

O senhor poderia nos explicar as diferenças regionais da Ucrânia?

Jean-Marie Chauvier
Não há um Estado-Nação homogêneo na Ucrânia. Há uma diversidade de Ucrânias. Há contradições entre as regiões. Há uma diversidade de história. 

Rússia, Bielorrússia e Ucrânia têm um berço comum: o Estado dos eslavos orientais (séculos 9 a 11), a capital Kiev, que é chamada “Rous”, “Rússia” ou “Ruthenia”.

Além disso, seus cursos se diferenciaram: línguas, religião, pertencimentos a Estados.

O oeste foi ligado muito tempo ao Grande Ducado da Lituânia, aos reinos poloneses, ao Império Austro-Húngaro.

Depois da revolução de 1917 e da guerra civil, nasceu a primeira formação nacional chamada “Ucrânia”, co-fundadora em 1922 da URSS.

A parte ocidental anexada notadamente pela Polônia foi “recuperada” entre 1939 e 1945, pois, ao território atual da Ucrânia, agregou-se ainda a Crimeia, em 1954.

O leste da Ucrânia é mais industrializado, mais operário, mais de língua russa, enquanto que o oeste é mais rural, camponês, língua ucraniana.

O leste é ortodoxo, ligado ao patriarcado de Moscou, enquanto que o oeste é ao mesmo tempo grego-uniate, católico e ortodoxo, ligado ao patriarcado de Kiev desde a independência em 1991.

A igreja uniate Católica, notadamente a oeste na Galícia, foi tradicionalmente germanófila, muitas vezes em conflitos com a igreja católica da Polônia.

O centro da Ucrânia, com Kiev, é uma mistura de correntes do leste e do oeste. Kiev é, muito majoritariamente, de língua russa, suas elites são pró-oposição e muito ligadas aos ultraliberais de Moscou.

A Ucrânia, portanto, foi dividida – historicamente, culturalmente, politicamente – entre o leste e o oeste, e não há sentido algum em jogar uma parte contra a outra, sob o risco de provocar a sua divisão, ou seja, a guerra civil, o que está, sem dúvida, no cálculo de alguns.

A força de provocar a ruptura, como fazem os ocidentais e seus soldadinhos atuais, pode bem chegar ao momento em que a UE e a OTAN obterão “sua parte”. Mas também a Rússia pegará a sua!

Não seria o primeiro país em que se haveria feito, deliberadamente, explodir. 

Ninguém deve ignorar também que a escolha europeia será igualmente militar: a OTAN seguirá e logo se colocará a questão da base russa de Sebastopol na Crimeia, majoritariamente russa e estrategicamente crucial para a presença militar no mar do Norte. [Negro]

Pode-se imaginar que Moscou não deixará instalar uma base norte-americana nesse lugar!

O que pensa da maneira pela qual o atual conflito está sendo apresentado pela nossa mídia?

Jean-Marie Chauvier
É um faroeste! Os bons “pró-europeus”, os maus “pró-russos”.

É maniqueísta, parcial, ignorante da realidade da Ucrânia. Na maior parte do tempo, os jornalistas entrevistam as pessoas que pensam como eles, que dizem o que os ocidentais têm vontade de ouvir, que falam inglês ou outras línguas ocidentais. E, ademais, existem mentiras por omissão.

Primeiro, houve uma notável ausência: o povo ucraniano, trabalhadores, camponeses, submetidos a choques de capitalismo, à destruição sistemática de todas as suas conquistas sociais, os poderes da máfia de todos os lados.

Há em seguida a ocultação ou a minimização de um fenômeno que se qualifica de nacionalista e que é, de fato, neofascista, ou seja, claramente nazista.

É principalmente (mas não unicamente) localizado no partido SVOBODA, seu chefe Oleg Tiagnibog [foto abaixo, a esquerda do senador norte-americano John McCain, a quem coube supervisionar a "Revolução Laranja", de 2004, a mesma de Ioulia [Julia] Timochenko, e que visava desestabilizar o país] e a região ocidental que corresponde à antiga “Galícia Oriental” polonesa. 

Quantas vezes tenho visto, escutado, lido na mídia, citações deste partido e de seu chefe como “opositores”, sem qualificação?

Fala-se de jovens simpáticos, “voluntários da autodefesa”, vindos de Lviv (Lwow, Lemberg) à Kiev, quando se trata de comandos formados pela extrema-direita nessa região (Galícia) que é a sua fortaleza.

Pesada é a responsabilidade daqueles – políticos, jornalistas – que jogam este jogo a favor de correntes xenófobas, russofóbicas, antissemitas, racistas, celebrando a memória do colaboracionismo nazista e da Waffen SS, do qual a Galícia (não toda a Ucrânia!) foi a pátria.

E enfim, a mídia omite as múltiplas redes financiadas pelo ocidente (EUA, UE, Alemanha) para a desestabilização do país, as intervenções diretas de personalidades políticas ocidentais.

Imaginemos a zona neutra em Bruxelas ocupada durante dois meses por dezenas de milhares de manifestantes, exigindo a demissão do rei e do governo, tomando de assalto o Palácio Real, e aclamando ministros russos, chineses ou iranianos na tribuna!

Imagina-se isto em Paris ou em Washington? É o que se passa em Kiev, na praça Maïdan.

Meu espanto aumenta a cada dia ao constatar a diferença entre as “informações” dadas por nossa mídia e as que posso coletar nas mídias ucranianas e russas. As violências neonazistas, as agressões antissemitas, as tomadas de assalto das administrações regionais: na nossa grande mídia, nada disso! Só se ouve um ponto de vista: os opositores de Maïdan. O resto da Ucrânia não existe!

Quais são os principais atores atuais? Quem são os manifestantes em Kiev e em outros lugares? O que é que os federaliza? Qual é a natureza do poder atual?

Jean-Marie Chauvier. A oligarquia industrial e financeira, beneficiária das privatizações, está dividida por grupos rivais entre a Rússia e o Ocidente. 

Viktor Ianoukovitch [foto] e seu Partido das Regiões representam os clãs (e a maior parte das populações) do leste e do sul.

O Partido das Regiões ganhou as eleições presidenciais e parlamentares no outono de 2013.

Há igualmente fortes disputas políticas no oeste, na Transcarpatia (também chamada Ucrânia subcarpática), uma região multiétnica que resiste ao nacionalismo.

Mas a crise atual, as hesitações e fraquezas do presidente podem lhe custar muito caro e desacreditar o seu partido.

O poder atual é altamente responsável pela crise social que favorece a extrema-direita e as enganadoras sirenes da UE e da OTAN. Poder impotente, de fato, defensor de uma parte da oligarquia, e não da “pátria” a que diz pertencer. Ele favoreceu a extensão da corrupção e das práticas mafiosas.

Diante dele, três formações políticas que têm sua base, sobretudo, no oeste e também no centro da Ucrânia.

Há, primeiramente, o Batkivschina, “Pátria”, cujo dirigente é Arseni Iatseniouk. Ele sucedeu Ioulia [Julia] Timochenko [foto], doente e prisioneira.

Em seguida, o partido Oudar (Partido Democrático das Reformas), cujo líder e fundador é o ex-boxeador Vitali Klitschko [foto abaixo].

É o queridinho de Angela Merkel e da UE. Os quadros do seu partido são formados pela fundação Adenauer.

Por fim, o partido neofascista Svoboda (“Liberdade”) dirigido por Oleg Tiagnibog.

O Svoboda filia-se diretamente à Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) – fascista, o modelo de Mussolini –, fundado em 1929 na Galícia oriental, então sob o regime polonês.

Com a chegada de Adolf Hitler em 1933, tomou contato com o mote “nós nos serviremos da Alemanha para avançar nossas reinvidicações”.

As relações com os nazistas foram algumas vezes tumultuosas – porque Hitler não queria uma Ucrânia –, mas todos estavam firmemente unidos no seu objetivo comum de eliminar os comunistas e os judeus e de sujeitar os russos.

Os fascistas ucranianos opõem o caráter “europeu” da Ucrânia àquele “asiático” da Rússia.

Em 1939, Andriy Melnyk [foto] dirigia o OUN, com o apoio de Andriy Cheptytskyi, da Igreja Greco-católica (uniate), germanófila, “líder espiritual” da Galícia, que caiu em 1939 sob o regime soviético.

Em 1940, o radical Stepan Bandera abriu uma dissidência: seu OUN-b forma dois batalhões da Wehrmacht, Nachtigall e Roland, a fim de tomar parte na agressão da Alemanha e seus aliados contra a Rússia, no dia 22 de junho de 1941. Imediatamente, desata uma onda de pogroms.

Após muitos escrutínios, após a “revolução laranja” de 2004, a influência do Svoboda aumenta na Galícia e em todo o oeste da Ucrânia, compreendendo-se aí as grandes cidades com 20% a 30% dos votos. Para o conjunto da Ucrânia, o Svoboda conta com 10% dos votos. O Svoboda foi “ultrapassado” por grupos neonazistas ainda mais radicais do que ele.

As três formações políticas, Batkivschina, Oudar e Svoboda, apoiadas pelo ocidente, reclamam após dois meses a derrubada do governo e do presidente da República. Eles exigem novas eleições. O Svoboda os leva mais longe, organizando um golpe de Estado num nível local, lá nos lugares em que fez reinar seu regime de terror. O Svoboda proibiu o Partido das Regiões e o Partido Comunista ucraniano.

O Partido Comunista ucraniano chama à razão já há várias semanas.

Coletou mais de 3 milhões de assinaturas para exigir um referendo que deveria decidir se a Ucrânia quer um tratado de associação com a UE ou uma união aduaneira com a Rússia.

A situação insurrecional diz respeito não somente aos três partidos da oposição, mas também ao poder oferecido do país e do povo “de bandeja” aos diregentes da pseudo-oposição, aos grupos de extrema-direita neonazis, às organizações nacionalistas violentas, aos políticos estrangeiros que conclamam as pessoas a “radicalizar os protestos” e a “lutar até o fim”.

O PC destaca os problemas sociais. Ele tem a posição mais democrática entre os partidos políticos. Mas sua influência limita-se à parte leste e ao sul da Ucrânia.

Que papel jogam as grandes potências (EUA, União Europeia, Russia) no enfrentamento atual? O que buscam?

Jean-Marie Chauvier
Zbigniew Brzezinski, célebre e influente, geoestrategista estadunidense, de origem polonesa, traçou nos anos 1990 a estratégia estadunidense para comandar a Eurásia e instalar duravelmente a hegemonia do seu país, tendo a Ucrânia como elo essencial.

Para ele, havia os “bálcãs mundiais”, de um lado, a Eurásia e, do outro, o Oriente Médio.

Esta estratégia deu seus frutos na Ucrânia com a “revolução laranja” de 2004. Ela instalou uma rede tentacular de fundações estadunidenses – como Soros e a Fundação Nacional para a Democracia (NED) –, que remuneraram milhares de pessoas para “fazer progredir a democracia”. Em 2013-2014, a estratégia foi diferente.

Sobretudo, a Alemanha de Angela Merkel [foto] e a UE estão no comando, ajudados por políticos estadunidenses, como McCain.

Eles discursam para as massas a respeito de Maidan e de outros com uma grande irresponsabilidade: para atingir facilmente seu objetivo de atrair a Ucrânia para o campo euro-atlântico, donde a OTAN se apoia nos elementos mais antidemocráticos da sociedade ucraniana.

Mas este objetivo é irrealizável sem dividir a Ucrânia entre leste e oeste e com a Crimeia, que se juntará novamente à Russia, como sua população deseja.

O parlamento da Crimeia declarou: “não viveremos jamais sob um regime bandeirista (fascista)”.

E para Svoboda e outros fascistas, é a revanche de 1945 que eles vivem.

Eu creio que, apesar de tudo, o que a grande maioria dos ucranianos não quer é esta nova guerra civil nem a divisão do país, mas, sem dúvida, a sociedade está para ser reconstruída!

Para saber mais:
- Jean-Marie Chauvier, Euromaïdan ou a batalha da Ucrânia, 25/01/2014
http://www.mondialisation.ca/euroma... e Ucrânia: que posição?

Mais:
- A política antissocial revelada pelo Wikileaks

Viktor Pynzenyk [foto], antigo ministro das finanças e hoje membro do partido de oposição, ou OUAR, de Vitali Klitchko, explicou em 2010 ao embaixador dos EUA o que ele desejava para a Ucrânia:

“- Aumento da idade da aposentadoria entre dois e três anos;
- A limitação das pensões dos aposentados que trabalham;
- Triplicação do preço do gás de cozinha;
- Aumento de 40% no preço da eletricidade;
- Anulação da Resolução governamental que exige o consentimento dos sindicatos para aumentar o preço do gás;
- Anulação da Disposição Legislativa que proibe os fornecedores comunais de cortar as reservas ou de punir os consumidores em caso de não pagamento dos serviços comunais;
- A privatização de todas as minas de carvão;
- O aumento dos preços dos transportes, a anulação de todas os subsídios;
- A abolição das ajudas governamentais para os nascimentos, comida e livros escolares gratuitos (está escrito: as famílias devem pagar);
- Anulação de isenção de IVA sobre produtos farmacêuticos;
- Aumento da gasolina e aumento de 50% de impostos sobre os veículos;
- O pagamento de seguro desemprego, após um período mínimo de 6 meses trabalhados;
- O não aumento do salário mínimo vital (introduzindo, entretanto, pagamento suplementar aos necessitados)."

Fonte do Wikileaks: Cabo diplomático revelado por Wikileaks
http://www.cablegatesearch.net/cabl...;;q=elections+ukraine

Fonte do artigo:
http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9308:submanchete050214&catid=72:imagens-rolantes

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

As duas facetas da grande mídia

11/02/2014 - A alteridade cínica da grande mídia
Venício A. de Lima - de Brasília - Jornal Correio do Brasil

A Rede Globo de Televisão recomendou a seus jornalistas, inclusive os que trabalham em suas 122 (cento e vinte e duas) emissoras afiliadas, “que a Copa e a seleção brasileira são uma paixão nacional, mas que irregularidades deverão ser denunciadas e ‘pautas positivas’ deverão ser evitadas, a não ser que ‘surjam naturalmente’."

"Reportagens que mostram como a Copa está beneficiando grupos de pessoas, como os comerciantes vizinhos a estádios, já não estão sendo produzidas para o Jornal Nacional” (ver aqui, e aqui a resposta da Globo).

No telejornal SBT Brasil, a âncora fez aberta apologia de “justiceiros” vingadores que espancaram, despiram e acorrentaram pelo pescoço um suspeito adolescente, de 15 anos, a um poste no Flamengo, no Rio de Janeiro (ver aqui).

A recomendação da Globo e a posição defendida no SBT – concessionárias do serviço público de radiodifusão – teriam alguma relação com o aumento da violência urbana?

Mídia e violência

Em artigo recente, neste Observatório [da Imprensa], comentei a “pauta negativa” do jornalismo regional em Brasília que chamei de “jornalismo do vale de lágrimas” (ver "O vale de lágrimas é aqui").

O que me traz de volta ao tema é, especificamente, a alteridade cínica do jornalismo do vale de lágrimas na cobertura da violência urbana.

Esse tipo de jornalismo “faz de conta” de que a mídia não tem qualquer responsabilidade em relação ao que ocorre na sociedade brasileira.

Ela seria apenas uma observadora privilegiada cumprindo o seu papel de tornar pública a violência e cobrar mais policiamento dos governos local e federal – como se a solução da violência fosse um problema apenas de mais ou menos policiamento.

Por várias vezes tratei dessa alteridade cínica neste Observatório [da Imprensa], sobretudo em função das evidências acumuladas ao longo de anos de pesquisa em vários países que relacionam a violência ao conteúdo da programação da mídia, sobretudo da televisão (ver “A violência urbana e os donos da mídia“, “A responsabilidade dos donos da grande mídia“, “As lições do caso Santo André“, “A liberdade de comunicação não é absoluta“, “A mídia e a banalização da violência“ e “A lógica implacável da mercadoria“).

Ainda na década de 1990, em palestra que fez na Universidade de Brasília, Jo Groebel [foto] – professor da Universidade de Utrecht, na Holanda, e representante da Sociedade Internacional de Pesquisa sobre Agressão nas Nações Unidas – não deixou dúvidas sobre a existência de uma relação entre a predominância da violência na programação da televisão e a tendência para a agressividade de jovens e adultos.

Baseado em mais de 20 anos de pesquisa ele afirmou que a televisão “faz com que as pessoas pensem que a violência é normal” e que “quanto mais desigual a estrutura da sociedade maior o impacto da violência mostrada na TV”.

Nos Estados Unidos, os “National Television Violence Studies”, financiados pela National Cable Television Association (NCTA), também realizados nos anos 1990 por um pool de grandes universidades – Califórnia, Carolina do Norte, Texas e Wisconsin –, confirmaram as conclusões de Groebel e geraram uma série de recomendações sobre o conteúdo da programação para a indústria de entretenimento.

Em 2008, foram divulgados os primeiros resultados de uma longa pesquisa realizada por professores da Rutgers University, nos EUA, que vincula violência na mídia e agressividade em jovens.

No estudo, foram entrevistados 820 adolescentes do estado de Michigan. Destes, 430 eram alunos do ensino médio de comunidades rurais, suburbanas e urbanas.

Outros 390 eram delinquentes juvenis detidos em instituições municipais e estaduais, distribuídos equilibradamente entre os sexos masculino e feminino. Pais ou guardiões de 720 deles também foram entrevistados, assim como os professores ou funcionários que lidavam com 717 dos jovens.

A pesquisa revelou que mesmo considerando outros fatores como talento acadêmico, exposição à violência na comunidade ou problemas emocionais, a “preferência por mídia violenta na infância e adolescência contribuiu significativamente para a previsão de violência e agressão em geral”. 

E conclui: “você é o que assiste”, quando se trata da população jovem.

Certamente outras pesquisas atualizam e confirmam esses resultados, além de incluir também o cinema e os videogames, estes últimos um fenômeno mais recente.

Será que a presença maciça da violência na programação de entretenimento da mídia eletrônica e da televisão brasileira (aberta e paga), em especial, não é um dos fatores que contribui para o aumento da violência urbana?


A mídia e a Constituição
Um dos artigos não regulamentados da Constituição de 1988, o 221, reza:

A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:

I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;

III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;

IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Será que praticando o jornalismo do vale de lágrimas, excluindo a pauta positiva e defendendo os “justiceiros” vingadores, a grande mídia brasileira está cumprindo a Constituição de 1988?

A quem cabe a fiscalização dos contratos de concessão desse serviço público?

Com a palavra o Ministério Público e o Ministério das Comunicações.

(*) Venício A. de Lima, é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado)

Fonte:
http://correiodobrasil.com.br/noticias/opiniao/a-alteridade-cinica-da-grande-midia/684148/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=b20140212

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Um inferno siderúrgico na Amazônia

10/2/2014 - Terramérica - por Mario Osava (*) - Envolverde

Florêncio de Souza Bezerra [foto] aponta com o pé um punhado de carvão pulverizado, perigosamente inflamável, na sarjeta de uma rua de Piquiá de Baixo. Fotos: Mario Osava/IPS

Piquiá de Baixo, Brasil, 10 de fevereiro de 2014 (Terramérica)

- “Meu sobrinho tinha oito anos quando pisou na ‘munha’ (carvão pulverizado) e queimou as pernas até os joelhos”, conta Angelita Alves de Oliveira neste pedaço da Amazônia brasileira transformado em armadilha mortal para seus habitantes.

O tratamento em hospitais distantes não conseguiu salvar a criança, porque “seu sangue ficou intoxicado, segundo o médico. Minha irmã jamais voltou a ser a mesma mulher. Perdeu seu filho mais novo”, disse a professora Oliveira.

Seu marido também foi vítima dessas queimaduras, como comprovam as cicatrizes em suas pernas.

A munha ou “moinha”, segundo o dicionário siderúrgico português, é o pó de carvão vegetal resultante da produção de ferro gusa, material intermediário na obtenção de aço, que fez de Piquiá de Baixo, na faixa oriental da Amazônia brasileira, um caso trágico de contaminação industrial.

Trata-se de um bairro da zona rural de Açailândia, município do Maranhão, que nasceu com os acampamentos de operários que se instalaram em 1958 para construir a rodovia Belém-Brasília, um eixo centro-norte de desenvolvimento e integração do Brasil, que gerou muitos desastres ambientais e sociais.

A ferrovia [foto] inaugurada em 1985 para transportar minério de ferro da gigantesca mina na Serra de Carajás, selou o destino de Açailândia como entroncamento e polo siderúrgico.

Piquiá de Baixo ficou cercado por cinco unidades produtoras de ferro gusa, pelos trilhos e por grandes armazéns de minérios.

Enquanto isso, o carvão vegetal para alimentar as caldeiras siderúrgicas se somava à pecuária para fazer de Açailândia um foco de desmatamento e trabalho escravo.

Essas chagas diminuíram diante da repressão estatal e diferentes pressões. Mas a contaminação em Piquiá se agravou, segundo testemunhos colhidos para esta reportagem.

O resíduo pulverizado de carvão continua ameaçador. A secura o torna inflamável a um ligeiro toque. Isso custou a vida do sobrinho de Angelita em 1993, quando poucos conheciam o quanto é letal esse pó negro.

As pessoas ficaram cautelosas e os acidentes menos frequentes, mas não acabaram. Outra criança, de sete anos, se queimou até a cintura em 1999 e agonizou durante três semanas.

Um inferno siderúrgico na Amazônia

Uma família sorri para a câmera enquanto se protege do calor à sombra de uma árvore. A estrada a separa da indústria de ferro gusa, que torna impossível a vida no bairro.

Vi gado incinerado”, disse Florêncio de Souza Bezerra, que foi camponês e agora é membro ativo da Associação Comunitária de Moradores de Piquiá, onde vive há dez anos com nove filhos e dois netos, em uma casa grande de madeira e amplo quintal.

Os montículos de munha podem ser vistos nas ruas por onde passam os caminhões das siderúrgicas [foto] e em pelo menos um depósito a céu aberto no qual este repórter entrou sem encontrar nenhum controle [foto abaixo].

Porém, a queixa mais frequente dos moradores é contra o ar envenenado. 

Há pouco mais de um ano morreu uma menina com pó de ferro nos pulmões e câncer, depois de 15 dias na terapia intensiva”, recordou Florêncio.

Na pequena praça do bairro, o ativista vai apontando as casas cujos moradores morreram de doenças respiratórias.

Angelita contou que um “exame mostrou manchas em meus pulmões há um ano, e o médico me acusou de fumar quando jovem, mas nunca coloquei um cigarro na boca”.

Ela deseja dar “uma esperança de vida” às suas netas, que vivem aqui “ingerindo contaminação 24 horas por dia”.

Já vivi bastante, mas minhas netas não”, afirmou, aos 61 anos de idade, mais de 30 dedicados ao ensino.

Sua casa fica ao lado da Gusa Nordeste, uma das cinco unidades produtoras de ferro gusa.

A situação se agravou “há dois anos”, quando a empresa começou a produzir cimento, segundo ela, lançando um pó negro que suja tudo em segundos e, em algumas madrugadas, torna impossível ver sua casa da estrada, a apenas 30 metros de distância.

Para a empresa foi um avanço, porque se trata de aproveitar a escória do alto forno como matéria-prima, evitando uma volumosa quantidade de dejeto e abastecendo o mercado local da construção com um produto que antes era preciso trazer de longe.

A Gusa Nordeste destaca sua responsabilidade ambiental porque emprega a munha como combustível, economizando carvão granulado, e o gás derivado da produção de ferro gusa é usado para gerar toda a energia elétrica que a empresa precisa.

Um inferno siderúrgico na Amazônia

Uma rua de Piquiá de Baixo danificada pela erosão, e as habituais casas deterioradas. Os moradores esperam por um demorado reassentamento em uma área expropriada pela justiça.

Porém, a realidade reconhecida pela justiça, por várias autoridades e inclusive pela indústria, é que a contaminação do ar, da água e da terra torna inviável manter Piquiá de Baixo no local onde nasceu, há mais de 40 anos.

Já há uma proposta aprovada pela justiça e pela câmara municipal para reassentar as 312 famílias que restam em Piquiá de Baixo, em um terreno de 38 hectares a seis quilômetros da atual.

Em dezembro, a justiça ordenou a expropriação da área e fixou seu valor no equivalente a US$ 450 mil, mas o dono exige quatro vezes essa quantia, e assim se prolonga a agonia para os moradores de Piquiá.

A própria comunidade elaborou um projeto urbanístico, que inclui casas, escola, praça, lojas e igrejas, explicou Antonio Soffientini, membro da Justiça Nos Trilhos, uma rede de dezenas de organizações que apoiam a população afetada pelo “sistema Carajás”.

Na Serra de Carajás, a empresa Vale, que foi privatizada em 1997, extrai cerca de 110 milhões de toneladas anuais de minério de ferro, que percorrem 892 quilômetros em trem até o porto Ponta da Madeira, em São Luis, capital maranhense, para ser exportado.

Uma pequena parte fica em Açailândia. Como provedora da indústria local de ferro gusa, a Vale tem responsabilidade direta na contaminação, acusa a organização Justiça Nos Trilhos.

Poderia suspender a entrega do minério até a indústria instalar filtros e pôr fim ao drama de Piquiá”, opinou Antonio, missionário italiano do movimento católico comboniano.

Isso geraria uma crise de desemprego em Açailândia, advertiu Zenaldo Oliveira, diretor global de Operações Logísticas da Vale.

Este polo siderúrgico já vive uma queda de atividades desde 2008.

Os seis mil empregos que oferecia nessa época caíram para 3.500 atuais, segundo Jarles Adelino, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Açailândia.

Ele se queixa dos altos preços que a Vale impõe à matéria-prima, que representam metade dos custos do ferro gusa.

No entanto, isso não se reflete na cidade, que exibe hotéis e sinais de prosperidade.

É que várias obras próximas oferecem trabalho temporário, explicou Jarles, e cada emprego em uma produtora de ferro gusa gera dez postos indiretos. 

(Envolverde/Terramérica)

(*) O autor é correspondente da IPS.

Fonte:
http://envolverde.com.br/ambiente/terramerica-um-inferno-siderurgico-na-amazonia/

Leia também:
- Um povo cercado por um anel de ferro - Fabíola Ortiz