sábado, 10 de março de 2012

'Ministra fraca leva Código a um desastre'

 04/03/2012 - Entrevista com o Professor José Eli da Veiga* - USP
por Pablo Pereira

Professor critica texto da nova lei ambiental que está na Câmara e diz que Dilma está mal assessorada sobre o tema.

A tramitação do Código Florestal com ministro de Meio Ambiente fraco é um desastre.

A avaliação é do professor do Instituto de Relações Institucionais da USP, José Eli da Veiga. Acompanhando o processo de feitura no Congresso da nova legislação ambiental do País, em análise na Câmara, ele acredita que a presidente Dilma Rousseff está mal assessorada no assunto, diz que a ministra Izabela Teixeira é a" politicamente e acrescenta que o Planalto pode acabar aprovando uma lei que vai causar prejuízos ambientais, econômicos e institucionais ao País. Segundo Veiga, o texto contém avanços em relação ao que foi aprovado no ano passado, mas precisa de mais discussão. Leia trechos da entrevista:

Qual é a sua impressão sobre esse movimento na Câmara sobre o texto do novo Código Florestal?
Já não é mais uma impressão. Está absolutamente confirmado que o governo, o Executivo, com acordo do principal partido, o PT, queria que aquilo que foi aprovado no Senado já se tivesse promulgado. O grande atropelo, na verdade, foi no Senado. E foi uma pena porque o Senado acabou melhorando e muito, mas com atropelamentos que acabaram por anular os avanços. E o Senado atropelou muito porque a ordem era que o Congresso liquidasse a fatura até dezembro. Mas houve surpresa na Câmara. Os ditos ruralistas racharam e acabaram não aprovando em dezembro. Tudo ficou para a retomada, que ocorre agora.

O governo mudou de posição?
O governo continua exatamente na mesma posição. Diz que o substitutivo do Senado não é a melhor das coisas, mas que é o possível neste momento. E que tem de aprovar agora. A nova ordem é que o assunto não pode entrar no mês de abril.

Por que a pressa?
Por causa da Rio+20. Há um grande temor que o Brasil tenha seu desempenho prejudicado na Rio+20 pela reação que pode haver por parte de todos os que, de fato, já assumiram essa cultura do desenvolvimento sustentável. A reação não se restringe aos movimentos socioambientais brasileiros. Então há o temor de que isso possa desmoralizar o compromisso do Brasil com o desenvolvimento sustentável. E o Itamaraty está muito apreensivo com esse risco. O Itamaraty vem dizendo à presidente que esse assunto é perigoso para o desempenho no Brasil na Rio+20.

E qual é a sua opinião?
Será muito melhor para a democracia brasileira se houver mais tempo para um exame bem mais cuidadoso dos imensos riscos, incertezas e desastres embutidos no texto aprovado pelo Senado. Mas, se continuar no atropelo, por força de um jogo complexo de interesses muito mesquinhos e também pelo fato de a matéria ser muito complexa, será uma tragédia. Como não chegou a se formar uma opinião pública sobre questões tão difíceis quanto delicadas, há alto risco de que, inadvertidamente, os deputados voltem a votar sem conhecimento de causa. Em vez de tomarem conhecimento da matéria, os deputados do PMDB podem apostar no "quanto pior melhor" só por estarem muito insatisfeitos com o PT, principalmente devido ao rolo da eleição municipal da cidade de São Paulo, mas também pela nomeação do senador Crivella para o ministério do "pesque e pague" sem qualquer consulta ao vice-presidente Michel Temer. Pior, a presidente está sendo confundida e iludida. Principalmente pela ministra do Meio Ambiente, que é muito fraca, e que tem um assessor que afirma exatamente o contrário do que dizem os principais especialistas, como mostram os posicionamentos da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) em conjunto com a ABC (Agricultural Biotechnology Center). Além disso, o Código Florestal vai ser substituído por uma lei que nem será mais Código.

Como assim?
Na verdade, o Código é de 1934. Em 1965 foi aprovado o "Novo Código". Tanto o projeto da Câmara quanto o substitutivo do Senado preveem sua revogação sem que seja substituído por outro.

O que é colocado no lugar?
A nova lei tratará única e exclusivamente das regras de conservação da vegetação nativa dentro das propriedades privadas. Essa é a diferença. Os códigos não se restringem a uma parte. Código de Trânsito, Penal etc, não são pedaços. Tratam do conjunto das regras. Os dois códigos florestais (1934 e 1965) incluíam todas as regras de conservação florestal. Agora, não. Florestas públicas e terras indígenas, por exemplo, serão tratadas por outras leis. Não haverá mais Código Florestal, por mais que se diga que ele está sendo reformado".

Isso é um equívoco? O País deve ter um Código?
Não. Mas é preciso entender que essa lei só trata do que toca às fazendas. E, nisso, há um triplo retrocesso no substitutivo do Senado. Infelizmente. Embora tenha havido avanços. Mas no que sobrou, é retrocesso ambiental, retrocesso econômico brutal, e, talvez o pior,
retrocesso institucional. É incrível que muitas pessoas não estejapresidente está muito mal informada. Particularmente pela ministra, que é muito fraca. E a própria ministra está sendo iludida por gente que faz avaliação de que, apesar de tudo isso, a reconstituição de algumas coisas que já foram desmatadas, quando se calcula a área a ser regenerada, em termos de hectares, isso seria muito. Falam de recuperação de 18 milhões de hectares. E como muito poucos países têm essa possibilidade de recuperar 18 milhões de hectares, pode até parecer bom.
m percebendo. Como é assim, a única interpretação que posso ter é que a

Mas, veja, a Itália fez imensa recuperação florestal nas últimas décadas. Muita gente nem sabe disso. Mas, mesmo que a Itália recuperasse todo seu território, seria impossível fazer comparações de tamanho com o Brasil. Por isso, qualquer comparação desse tipo teria que ser em percentuais. E aí, em percentuais, a cantilena do MMA (Ministério do Meio-Ambiente) é uma farsa. Vejamos só uma questão: as Áreas de Preservação Permanente (APP). É unânime entre técnicos e cientistas que as APPs são algo, a palavra talvez nem seja apropriada, mas APP deve ser entendida como sagrada. As APPs são santuários da prudência econômico-ecológica. Quanto mais avança o conhecimento científico, mais evidências confirmam essa já antiga constatação.

E a reserva legal?
Reserva legal é bem diferente. É outra discussão: se é conveniente ou não, que tipo, qual é a porcentagem, por bacia ou por bioma, com e critérios, etc. Há uma série de questões discutíveis. Mas entre pessoas que têm o mínimo de formação nas ciências naturais, todos concordam que não deve haver transigência quando se fala de APP. E é brutal a redução de APP que vai haver com a aprovação de qualquer dos projetos até agora aprovados pela Câmara e pelo Senado. Há imagens claríssimas, elaboradas pelo departamento técnico do Ministério Público. Imagens que comparam como são as atuais APPs e como elas ficariam se as regras previstas nesses projetos se tornarem lei. Todas têm reduções brutais e algumas simplesmente desaparecem. E mais uma questão muito séria: a presidente Dilma, entre o primeiro e segundo turno da eleição, mandou uma carta para a então senadora Marina Silva. Há um parágrafo sobre o Código Florestal que diz que ela não toleraria redução de áreas de preservação permanente, redução de reserva legal e, com muita ênfase, não aceitaria nenhum tipo de anistia para desmatadores. Agora, o substitutivo do Senado reduz APP, reduz reserva legal e, pior do que anistia, dá indulto a crimes cometidos a partir da lei de crimes ambientais.

Mas a presidente poderia vetar esses pontos no substitutivo e recuperar aquela intenção manifestada na carta?
Tudo indica que isso será impraticável. O texto está montado de tal forma que não vejo como ela poderá exercer vetos cirúrgicos. Não é o caso de um ou outro artigo. Pelo seguinte: veja uma das questões-chave, a tal data que separa o passivo do que vai vigorar a partir das novas regras, julho de 2008. É a data daquele decreto que desencadeou a grande revolta. E quero falar disso também porque muitas vezes as reclamações são legítimas. Tenho receio de que as pessoas subestimem a bronca dos agricultores, sem distinguir entre o que é legítimo e os oportunismos enfiados nos dois projetos. O que era legítimo foi muito bem aproveitado e desvirtuado pelas lideranças que se dizem ruralistas. Essas lideranças manipularam uma espécie de rebelião contra o decreto. A data é um retrocesso institucional porque ignora a Lei de crimes ambientais, que foi uma lei duríssima de ser aprovada. A rigor, até a Constituição, quem desmatou ilegalmente tem de ser perdoado. Pelo seguinte: apesar do Código, desde 65, todos os governos, na ditadura militar, mais os patéticos Sarney e Collor, incentivavam o agricultor a desmatar, com crédito, até com competição. Quem foi levado para as áreas de fronteira agrícola, agricultores que migraram para Rondônia, Acre, Mato Grosso, foram muitas vezes quase obrigados a desmatar ilegalmente, tanto as APPs como o que deveria ser reserva legal.

Então, até 88 é justificável?
Não porque a Constituição foi forçosamente muito genérica e previa regulamentação. Ela tramitou durante dez anos. Só em 98 é que foi promulgada a Lei de Crimes Ambientais. Não é possível que uma lei nova simplesmente ignore a existência dessa lei. Quem desmatou sem licença a partir de 99 cometeu crime. E aí não se deve usar nem a palavra anistia, que é resgate, uma coisa positiva. Neste caso é indulto, muito pior. Esse é um dos aspectos do retrocesso institucional. No caso de eventual veto, que estávamos tratando, no caso da data, que aparece em vários artigos, mesmo que ela vetasse os artigos, não poderia colocar outra data. A data correta seria 99. Mas não seria possível introduzi-la, pois veto só suprime, não acrescenta.

E não pode haver emenda agora, na Câmara, que ajuste esses pontos, como a questão da data da anistia?
Não. Os deputados só podem mudar com emendas de redação. Esse é um ponto incontornável. Se fizerem a desgraça de mandarem esse texto para a presidente, vão emparedá-la. Ela vai ser encurralada.

Qual seria a solução? A ideia de aprovar o que tem e rever daqui a cinco anos?
Também não, porque os estragos aumentariam tanto nesses cinco anos que teríamos uma revisão ainda mais complicada, como está acontecendo com a Rússia neste momento. Os cientistas que foram desprezados quando a Rússia flexibilizou sua legislação de conservação florestal passaram a ser vistos como heróis nacionais depois dos inúmeros incêndios que eles previram. O melhor seria, como fazem com muita frequência os técnicos do basquete: pedir um tempo. Precisamos de uma parada como apelo à sensatez. Uma parada para recomeçar a discussão no Congresso a partir do texto do Senado, que avançou, mas para rever as questões que estou levantando, e outras. A saída seria uma Medida Provisória que garantisse completa segurança jurídica aos agricultores, mas não aos especuladores, e que fosse muito mais enxuta do que o imenso e bizantino substitutivo do Senado. Com isso, os parlamentares das duas casas teriam tempo para estudar o assunto com mais calma em vez de votarem outra vez apenas por disciplina partidária, sem um mínimo conhecimento de causa.

Então o tema ficaria para o segundo semestre?
O trabalho técnico não precisaria esperar, pois ele é feito pelas assessorias. Quanto à decisão final, provavelmente será impossível antes das eleições, mas poderia ocorrer, com maturidade e sensatez, logo depois, ainda neste ano. O que não é razoável é que se faça de afogadilho uma lei que vai ter repercussão ambiental, econômica, institucional por muitas décadas, quando se sabe que o texto será um triplo retrocesso, com devastadoras consequências econômicas e socioambientais. O relator Paulo Piau repete 'ad nauseum' que só divulgará seu relatório na véspera da votação. Como é possível, em matéria complexa, que os deputados votem sem terem tempo de conhecer o texto? Foi o que aconteceu na Câmara com a desgraça de maio 2011. Os deputados votaram sem conhecer o texto. Foi uma vitória incrível, mais de 80% dos deputados votaram a favor. Eu procurei deputados aqui de São Paulo, que tinham votado a favor, para perguntar por que votaram e eles não souberam me dizer por que votaram. Eles não sabem. E mais: pelo regimento da Câmara, o relator pode reformular o relatório até durante o processo de votação. É absolutamente antidemocrático, embora possa ser regimental. O prazo de votação tinha de ser marcado em função do conteúdo do relatório. Com um tempo para que as assessorias dos deputados possam dar ao menos uma olhada. Só então avisarem os líderes que a votação seria viável.
 
Como está encaminhado, isso não vai acontecer?
Não. Vai ser uma derrota da democracia. Mais uma vez.

Quais seriam os prejuízos econômicos?
Se for aprovado como está, será um tremendo prêmio à especulação, imobiliária ou fundiária, e não à produção. Veja, se você tem um terreno na cidade de São Paulo, você pode montar uma empresa, uma atividade produtiva, no terreno. Você estaria usando o terreno para produzir, não estaria especulando. Os economistas calculam aí o que se chama de custo de oportunidade. Por exemplo, tenho que levar em conta que o aluguel, se ele não estiver sendo utilizado. É um custo da minha empresa. Mas se eu não quero ter atividade no terreno. Vou alugar, arrendar, para um estacionamento porque estou de olho na valorização imobiliária. Imagine se fosse na Vila Madalena. A gente sabe da valorização. Então, vou dar então esse terreno para estacionamento, para vender lá na frente, ou até deixar para meus filhos venderem. O lucro patrimonial que será obtido no momento da venda supera muitas vezes o lucro que possa ter em qualquer empreendimento que use o terreno. Isso é especulação imobiliária. O que aconteceu no Brasil foi que grande parte da fronteira agrícola, do Centro-oeste e do Norte, tem essa lógica. Por que o pessoal do mercado financeiro tem tanta fazenda na Amazônia? São produtores agrícolas?

É reserva de valor.
A expressão reserva de valor é insuficiente. Pode significar apenas proteção contra a inflação. Mas não é só isso. Quando se compra terra com intuito de segurá-las por 20 anos, está-se mirando no lucro patrimonial. O que interessa é o lucro patrimonial obtido com a valorização fundiária, muito mais que os rendimentos obtidos com eventuais atividades produtivas. O grosso da agricultura tem muito mais lucro patrimonial do que rendimentos da atividade econômica. E nas chamadas fronteiras agrícolas, essa lógica especulativa chega a ser dominante. Então, respeitar as APPs sempre constituiu uma séria limitação para esse mercado de grandes domínios. Se há que se respeitar as APPs, os compradores vão preferir procurar as que estejam mais livres desse tipo de condicionamento. Isto é, será premiada uma imensa fatia dos 44 milhões de supostas "pastagens" que invadiram áreas de APP. Áreas que o substitutivo do Senado considera "consolidadas". São cálculos feitos na Esalq com ajuda de imagens de satélite. Sumiram 55 milhões de hectares de APPs. Pouco mais de 10 milhões são de agricultura, e aí não tem tanto problema, porque embora tenham desrespeitado as APPs, o verdadeiro agricultor tende a ser muito cuidadoso. É o caso do arroz, no Rio Grande do Sul. Grande parte de lá está em área de APP. Mas está lá há muitas décadas, com práticas conservacionistas que garantem a própria sobrevivência da atividade. O arrozeiro não vai deixar assorear.

Isso é completamente diferente da maior parte das pastagens de uma imaginária pecuária de corte, que foram formadas somente com olho na especulação. Na verdade são terras travestidas de pastagem. Qualquer pessoa que viajou por estas regiões de avião nem vê boi. O que vê é pastagem tão degradada que mais parece uma coleção de erosões e voçorocas. Os proprietários só estão esperando a valorização. E a lei vai valorizar brutalmente estas terras. Vai haver um brutal aumento no preço da terra, que favorecerá quem teve essa iniciativa especulativa nos melhores momentos e agora torce para que seja aprovado algum dos dois projetos. Claro, de tabelinha, em princípio também favorece agricultores, pois um dia também serão realizados os seus lucros patrimoniais. A diferença é que os agricultores estão interessadíssimos na rentabilidade corrente de seus empredimentos. Não apostam apenas na valorização patrimonial. Para o verdadeiro produtor, isso interessa menos. Isso só é prêmio mesmo para o especulador. Principalmente para aquele que se fazem passar por pecuaristas de corte. Não é o caso dos pecuaristas de leite. Esses são heróis, que muitas vezes nem alcançam a rentabilidade corrente média dos negócios agrícolas. E ainda tem outro prêmio para a especulação: é o que assimila a agricultura familiar a todos os imóveis com até quatro módulos fiscais. Também é retrocesso institucional porque há uma lei da agricultura familiar. E tem ainda a questão do imóvel rural e do estabelecimento agrícola.

Qual a diferença?
Uma coisa é o imóvel rural, outra é o estabelecimento agrícola. No estabelecimento agrícola, quem faz o censo é o IBGE. Se você se declara produtor agrícola, ele te pergunta sobre a sua atividade. Pode ser sua propriedade, arrendada etc. Vai falar da empresa. Imóvel rural é completamente diferente. É terreno, que não está na zona urbana. Pois bem, os dois projetos tratam de imóveis em vez de estabelecimento agrícola. O corte é o imóvel de até quatro módulos. É imensa a diferença entre a área dos estabelecimentos de agricultores familiares e a área dos imóveis rurais de até quatro módulos. É um hiato de 56 milhões de hectares, dos uns 40 milhões não abrigam empreendimentos produtivos. E não são grandes propriedades. São áreas para sítios, que têm, em média, uns 100 hectares. Isso vai aquecer brutalmente o mercado dos sítios de recreio. Então, com intuito de favorecer ou proteger a agricultura familiar, usaram esse dispositivo de falar em imóvel e usar os tais quatro módulos de tamanho. Isso vai premiar a especulação em mercado bem diferente daquele dos grandes domínios. Como a presidente é economista, queria fazer uma aposta: ela certamente faria o papel do técnico que pede tempo se viesse a ser informada de que os projetos do Congresso premiam muito mais os especuladores do que aliviam os agricultores. Coisa que certamente não ouviu dos assessores que até podem entender muito de meio ambiente, mas que não entendem nada de economia. O pessoal da Fazenda, que eventualmente poderia chamar a atenção dela para essas coisas, nem se interessa por Código Florestal. E os técnicos do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) que estudam estas questões não têm acesso às altas esferas do poder. Então, vamos ter prejuízo econômico brutal por falta de assessoramento da presidente na área da economia agroambiental.


Paulo Piau

Professor, o senhor me falava da questão da segurança jurídica.
É. Tem também essa questão. Entendo que muitos agricultores não vão concordar comigo quando peço mais calma, mais tempo, porque eles estão aflitos, há muito tempo, com isso. Eles estão ansiosos por uma segurança jurídica, que uma nova lei pode dar. Esse é o grande ponto que favoreceu que eles fossem manipulados pelo pessoal da especulação imobiliária. Foi oportunismo no processo no Senado, inclusive de muitos parlamentares que descaradamente estão legislando em causa própria. Só alguns devem ter grandes domínios no Centro-Oeste e no Norte, mas a grande maioria possui imóveis rurais de até quatro módulos que não são estabelecimentos agrícolas. Não querem respeitar as APPs, como são hoje obrigados.

O que o senhor espera da presidente?
Pelo pouco que conheço dela, de sua trajetória, tenho imenso respeito. Li o livro do Ricardo Amaral, um livro maravilhoso, e qualquer pessoa que ler esse livro só poderá nutrir ainda mais respeito por ela. Mas, infelizmente, na questão do Código Florestal, ela está muito mal informada, muito mal assessorada. Se procurasse ouvir os economistas do IPEA, em vez de confiar cegamente na equipe do MMA, já teria percebido o perigo que está correndo em deixar que haja essa atropelada votação prevista para os próximos dias. Para piorar, o PT está subestimando muito a armação dos especuladores. Então, a presidente será encurralada a promulgar um "monstrengo" que contraria os três compromissos que ela própria assumiu na carta-resposta que enviou à ex-senadora e ex-ministra Marina Silva pouco antes do segundo turno das eleições de 2010. O "monstrengo" reduz brutalmente as APPs, também reduz muito as reservas legais, além de conceder indulto generalizado a todos os que desmataram ilegalmente depois de 1999.

O senhor diz que há também prejuízos ambientais. Não há nada de bom no substitutivo?
Eu acho que o principal prejuízo é de APPs. Tem a questão da beira rio, áreas úmidas. E a dos manguezais, os apicuns. É uma formação muito específica que fica na foz dos cursos d´água. Você tem os manguezais e os apicuns, uma formação que aflora, que normalmente seria uma ilha, que é usada para a criação de camarão ou salinas. A ciência diz que há um conjunto, um ecossistema. Não se pode tratar o dito apicum, ou salgueiro, como se fosse separável do manguezal. A contaminação vai afetar o manguezal. Isso foi golpe no Senado. Foi na calada da noite. O nobre deputado Paulo Piau me disse isso. Na calada, com a votação confusa, os assessores entram e fazem o que eles, na gíria, chamam de "foi feito no tapa", quer dizer, ninguém sabe direito o que foi votado e aí os assessores legislativos é que fazem o texto. Mas o mais grave nem é isso. Quem enfiou no texto essa barbaridade dos apicuns foi um senador que nunca tinha aparecido em nenhuma discussão sobre o Código Florestal, que é do Rio Grande do Norte e líder de seu partido, o nobre senador Agripino Maia. Em dado momento fez um panegírico sobre a questão dos apicuns, sobre a qual os demais senadores presentes provavelmente nunca tinham ouvido falar. Como os relatores precisavam de aliados na oposição para conseguir votar até novembro, concordaram em acomodar essa questão, que acabou constituindo principal pérola da incompetência de técnica legislativa que também é a marca do apressado substitutivo. É bom lembrar que esse senador foi exatamente o que chamou a presidente de mentirosa. Há um vídeo na internet que precisa ser revisitado. Ela, ainda como ministra, foi fazer depoimento em comissão do Senado e ele abriu a sessão perguntando se valeria a pena
ouvi-la, já que era uma reconhecida mentirosa, pois tinha mentido sob tortura. É belíssimo, porque a atual presidenta deu uma grande aula de ética ao justificar sua atitude de não ter entregado seus companheiros à repressão ditatorial. Ao senador Agripino Maia, por incrível que pareça, nem havia ocorrido o grau de heroísmo que foi mentir em tais circunstâncias.

E tem coisa boa?
Sim, tem uma série de coisas boas. A SBPC lançou uma segunda carta aberta na segunda-feira, 27 de fevereiro, que começa com uma lista dos avanços no Senado. Por exemplo, no tal texto aprovado na Câmara em maio, que é chamado por deputados de "monstrengo", os manguezais deixaram de ser APP. Sempre foram, e ainda são. Mas o tal "monstrengo" tentou liberar todos os manguezais de qualquer restrição conservacionista. Um grande crime, quando se sabe que esses ecossistemas são absolutamente fundamentais para uma série de funções ecológicas, além de serem essenciais para a regulação do clima. O Senado reintroduziu os manguezais nas APPs. Mas não há várias outras coisas positivas. No primeiro relatório do senador Luiz Henrique, ex-governador de Santa Catarina, que foi relator de três comissões, coisa muito rara, repetiu o tal "monstrengo" com poucas alterações. Mas houve uma importante audiência de juristas. Estava lá ministro Nélson Jobim, contratado para dar parecer de inconstitucionalidade. E também o ministro Herman Benjamin, do STJ, que talvez seja no Brasil a pessoa da área jurídica que mais entende da questão ambiental. Então, o senador Luiz Henrique ali na audiência foi convencido a mudar várias coisas fundamentais. Para começar, no texto da Câmara havia uma transferência de competência aos estados. Os estados é que iriam legislar. O ex-ministro Jobim alertou: isso vai criar uma guerra ambiental parecida com a guerra fiscal. E o senador Luiz Henrique imediatamente percebeu que estava errado. Houve aí um grande ganho. A lei que sair, seja qual for, será federal. Os estados têm de respeitar e adaptar.

Foi um avanço, então?
Com certeza. Depois, o ministro Herman Benjamin disse que um dos principais defeitos do texto era de que ele misturava disposições transitórias com definitivas. Ou seja, criava uma confusão entre o passivo e as novas regras, algo péssimo em termos de técnica legislativa. E também convenceu. O senador Luiz Henrique pediu tempo, apesar da pressão para que o Senado resolvesse tudo antes de Novembro. Era um problema, mas ele pediu adiamento. E reapresentou um relatório que separa o passivo das regras para o futuro, além de retirar a questão da autonomia estadual, que ele próprio, como governador, até tentou impor na marra. Dois avanços imensos, portanto.

E no caso dos rios? O tal debate da metragem.
O ideal seria que não tivesse regra fixa de metragem. Quando foram feitos em 1934 e 1965, o conhecimento não tinha avançado o suficiente para dizer que há como mapear as áreas a serem preservadas. No entanto, hoje se dispõe de instrumentos rápidos, graças a novas tecnologias de interpretação das imagens de satélite. Basta ir ao INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e consultar o pesquisador Antonio Donato Nobre sobre o sistema que monitora para prever enchentes. Pode-se prever até onde a água irá, até em cheias excepcionais. Todavia, como os parlamentares preferiram a inércia institucional, seus projetos insistem em critérios métricos fixos, que até eram razoáveis em 1934 e 1965, mas que hoje não passam de pura burrice. Então, ao menos deveriam ter considerado como referencia o registro da cheia máxima, ou, ao menos, uma média das cinco maiores cheias. Mas hoje nem isso é necessário. O INPE  tem condições de mapear qual é a área inundável e essa área, em princípio, é APP. Se quisessem escutar a ciência, teríamos zoneamento agroecológico para demarcar as APPs em vez dessas regrihas burras. Com as regras fixas de metragem, a lei pode estar exagerando para mais do que necessário ou para menos. Mas isso a gente está dizendo há mais de ano. E ninguém quer ouvir.

Então não seria melhor fazer passar logo a lei e depois aprimorar? Ou o prejuízo é irrecuperável?
Se a ideia fosse estabelecer um mínimo de regras que garantam a segurança jurídica para depois discutir com calma essas complicações técnicas, eu até estaria de acordo. Mas não disso que se fala em Brasília. E não estão percebendo que a aprovação de algum dos projetos das duas casas do Congresso certamente aumentará os conflitos no campo. O exemplo mais escandaloso é o dos manguezais, mas há muitos outros. Vai ser uma loucura para o fiscal, do Ibama, ou do órgão estadual, saber o que deve ser considerado legal ou ilegal. Pior: vai aumentar a farra dos advogados. Nada disso quer dizer, é claro, que os dispositivos do Código não precisem de modernização. Não tenho a menor dúvida de que tem de modernizar. A lei é de 65 e houve alterações, várias vezes por medidas provisórias. Não pode ficar como está. Se fosse para ouvir a ciência, elaborar um texto enxuto, e depois regulamentar, seria o melhor dos mundos. Mas aconteceu está ocorrendo exatamente o contrário. O texto do Senado é seis vezes maior do que o da Câmara. Vai ser camisa de força, aumentar os conflitos e expandir a farra dos advogados.

Porque o senhor diz que a ministra é fraca?
Os ministros anteriores tinham mandato. Foram eleitos por terem reconhecida militância política nessa área. É o caso de Marina Silva e de Carlos Minc, mas também Zequinha Sarney, por exemplo. Na tramitação do Senado, por exemplo, teriam evitado muitos desastres, pois não se intimidariam frente às chantagens dos especuladores, dando assim um bom suporte aos vários senadores mais ligados às questões da sustentabilidade. Ocorreu exatamente o contrário. Os senadores comprometidos com as causas socioambientais ficaram, várias vezes, "pendurados na brocha", como se diz. Por incrível incapacidade da atual ministra. Em vez de alertar os relatores para as manobras oportunistas dos especuladores, ela, ao contrário, foi muito conivente com eles. Favorecendo a banda podre do Senado, em vez de enfrenta-la, como teriam feito os três ex-ministros já citados. Houve um momento, por exemplo, que a proteção das encostas havia sido muito bem disciplinada pelo relator final. Assim que soube, a senadora Kátia Abreu, lá da sede da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), fez uma forte chantagem ao governo. Se tal dispositivo não fosse retirado, os ditos ruralistas iriam obstruir votações, tanto na Câmara, como no Senado, de projetos que eram fundamentais e urgentes para o governo. Era um "super-blefe", mas que gerou recuo imediato do MMA. Nem é preciso dizer o resto. A manobra surtiu efeito, já que os senadores e a assessoria palaciana deixaram de ter razões para "pagar para ver".

A ministra da pasta não teve força para manejar a aliança de sustentação do governo neste ponto, é isso?
É mais do que isso. Ela não tem a capacidade de interlocução com os senadores. É diferente do Minc, da Marina ou do Zequinha. Quando um parlamentar fala com outro parlamentar é uma coisa totalmente diferente de quando fala com um simples mortal, como nós dois. Nós não temos o tal "cacife". Então, é inteiramente diferente quando falam com um ministro que tem. Até a tramitação do Código Florestal, eu não tinha má impressão da ministra. Conheço um pouco a história porque sou muito amigo do Minc e sei como ele a escolheu. Era secretária executiva dele. Foi um desastre o Código Florestal tramitar num contexto em que o MMA é conduzido por um suposto bom técnico. É como querer usar um gato em "briga de cachorro grande".

*José Eli da Veiga, 63, é professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ).

Fonte: site da Fundação Getúlio Vargas - SP (http://www.ces.fgvsp.br/index.php?r=noticias/view&id=231598#), publicado originalmente no "O Estado de São Paulo"

sexta-feira, 9 de março de 2012

ELEIÇÕES MUNICIPAIS

8 de março de 2012 - Laerte Braga - original no blog Juntos Somos Fortes

Qualquer um de nós acorda na cidade, na sua cidade. E depois então no seu estado e no Brasil. A cidade é a realidade imediata de cada um de nós. Estados e União são ficções jurídicas.


O modelo político brasileiro inverte essa lógica e cidades cada vez mais dependem dos estados e da União. Em todos os sentidos. O resultado disso é perverso com os trabalhadores. E essa perversidade fica mais acentuada no sistema capitalista. União e governos estaduais decidem boa parte das políticas ambientais de cada município brasileiro. A legislação sobre licitações, por exemplo, tem abrangência nacional e afasta as empresas locais de obras públicas, gerando o aparecimento de grandes monstros nos setores de coleta de lixo, transportes coletivos, obras do setor de urbanismo, isso sem que câmaras municipais (adereços desnecessários) possam interferir no processo, mesmo porque lhes cabe a tarefa de propor leis e fiscalizar o Executivo e nem isso fazem. Submetem-se.

Como não temos uma estrutura do Judiciário, como acontece em vários países, com juizados municipais, ficamos à mercê de um processo lento, moroso e em boa parte corrupto que se define fora dos limites da cidade. Limites e interesses.


Todos nós e cada um de nós nascemos nas cidades. Nas nossas cidades. É ali que além de nascer, crescemos, nos formamos, constituímos família e vendemos a nossa força de trabalho no modelo que temos.

As decisões, em nenhum momento, passam pelo cidadão. Pelo conjunto de cidadãos. Falar em representatividade popular de câmaras municipais é acreditar em contos da Carochinha.

A febre de atrair grandes empresas, como se fossem a solução para todos os problemas, na prática gera distorções absurdas em cada cidade, seja pelos incentivos concedidos (custo transferido ao cidadão), seja pelos privilégios que as colocam acima da lei.

Sem entrar no mérito do sistema capitalista, nas cidades as pequenas e médias empresas são os verdadeiros suportes do emprego e da estabilidade.

Há anos ouvi que um determinado prefeito cuidava em demasia das praças. Eram floridas e limpas. Hoje ouço que as praças estão sujas e abandonadas.

Millôr Fernandes afirmou que quando colocaram a tevê na sala, tiraram a cadeira das portas das casas e mataram a vida, a individualidade.

As redes nacionais de tevê fazem com que os cidadãos se vistam rigorosamente iguais em qualquer canto do País e que cheirem o mesmo Avon em sua imensa e esmagadora maioria.

A despersonalização do indivíduo transformado em objeto. A alienação como forma deliberada do capitalismo de gerir esse objeto/trabalhador/mercadoria.

A própria mídia, nas cidades, longe de cumprir qualquer papel informativo, educativo, torce e distorce os fatos ao sabor dos interesses dos chefes políticos, das grandes empresas (às quais muitas vezes se associam), ou são extensões dessas empresas lato senso.

Não há como fugir dessa realidade se não for desconstruída outra realidade. O capitalismo. Nas cidades, nas comunas, é essencial a organização popular, a formação e a consciência políticas como instrumentos para reagir a essa transformação das nossas cidades em grandes currais de interesses políticos e econômicos.

Para que eleger um vereador que não representa coisa alguma, até porque, se assim o quiser, será sempre minoria?

Por que não conselhos comunitários, conselhos de categorias, de setores da administração pública municipal e um grande conselho para deliberar sobre prioridades, sobre tarefas, sobre questões que digam respeito ao município?

Um dos argumentos dos que entendem que câmaras representam o interesse popular está no custo dessa estrutura legislativa em termos de relação com o orçamento. É estupidamente mais caro esse custo, que a participação popular.

É a partir das cidades que vão ser feitas as grandes transformações indispensáveis a que um País como o Brasil mude o seu perfil de entreposto do capital estrangeiro, do capital internacional, do modelo cruel de globalização que temos e que nos sujeita a um papel secundário, por mais que falem em crescimento econômico.

Não temos sequer um carro brasileiro. São todos de montadoras estrangeiras. Abrimos mão da busca de tecnologia em setores essenciais para importá-las. Pouco a pouco vamos regredindo ao século XIX e início do século XX, nos submetendo a situação de exportadores de matérias primas.

Perdemos o direito ao nosso subsolo com as privatizações feitas pelo governo FHC. Com as concessões feitas pelo poder da União e dos estados (no caso de Minas Gerais é um escândalo e só não estão presos os responsáveis por absoluta omissão das autoridades, o que é resultado das políticas de alianças).

Riquezas incomensuráveis como a água são instrumentos de pressão de grandes corporações para que sejam privatizadas.

Que tipo de mecanismo de controle do Poder Público existe de fato em se tratando dos municípios? O Ministério Público? É estadual. A instância última a decidir nunca será a dos cidadãos, ou na própria cidade.

A Constituição de 1988 mudou um determinado princípio. Tínhamos na Carta Magna de 1946 e depois na polaca da ditadura militar, uma única Lei Orgânica para todos os municípios. A de 1988 permitiu a cada município ter sua própria Lei Orgânica, mas dentro de parâmetros pré-estabelecidos pela própria Constituição Federal e pelas constituições estaduais. Mudou pouco, nos foi dada a madeira e a corda para que fizéssemos nosso próprio patíbulo e forca.

O processo de descaracterização das cidades brasileiras em função de interesses de grandes empresas acobertadas pelos poderes públicos (federal e estaduais) se acentua com tal velocidade que cidades vão aos pouco perdendo o que há de mais essencial em cada uma, a alma, a história.

Somos parte de um todo padronizado ao sabor do sistema capitalista e dentro da lógica perversa e cruel do capitalismo.

O que é um prefeito? Em minha cidade as obras públicas são feitas por empresas de outra cidade, ligadas ao partido do prefeito. Não há discussão sobre a conveniência ou não dessas obras, só promessas de obras quiméricas e um culto acendrado ao automóvel como deus dos tempos contemporâneos. As ruas cheias de carros/poluição e um trânsito gerador de doenças, mortes, mazelas que muitas vezes não percebemos, até pela ufania estúpida de achar que ruas congestionadas são sinais de progresso, ou de riqueza.

As eleições municipais se prestam a um debate amplo sobre a cidade que queremos, o modelo que desejamos e ao processo de organização popular para enfrentar os monstros que transformam cidades/lugares de paz, harmonia e progresso segundo as necessidades de todos os seus cidadãos, em fonte de privilégios para elites que dominam e controlam tanto as cidades, como os estados e o País.

Drumond não quis voltar a Itabirito depois de ter visto – ou não ter visto – as montanhas suprimidas pelas mineradoras. De forma irresponsável e criminosa.

Cidades litorâneas em nosso País estão sendo transformadas em gigantescas plataformas para a exploração de petróleo, sem que seus cidadãos possam fazer nada, apenas acreditar que aquilo é progresso e amargar as doenças – em todos os sentidos – desse progresso/privilégio.

Voltar a Idade da Pedra? Nada disso. A Noruega quando descobriu petróleo no Mar do Norte – é uma grande produtora – decidiu explorar a riqueza de forma correta e de um jeito tal que o ambiente não fosse prejudicado e nem as cidades transformadas em monte de entulhos de ferro e concreto. É assim até hoje.

O lixo virou indústria, um grande negócio que sustenta empresas e figuras dos governos estaduais e municipais.

Começam a surgir em todos os pontos do Brasil as praias particulares em flagrante violação ao princípio que praias são públicas. Já existem praias privadas garantidas por forças policiais que servem às elites dominantes.

É o Brasil rumo a um futuro sombrio e sem perspectiva que o capitalismo propicia.

E é nas cidades que a reação começa. Com organização popular e basta.

Não são reformas que vão mudar esse estado de coisas. Mas mudanças estruturais profundas que não passam por câmaras municipais ou assembléias legislativas, nem por congressos onde deputados e senadores, em sua esmagadora maioria, são eleitos com dinheiro das grandes empresas.

Mas da luta pela organização popular e como conseqüência a reação a esse ufanismo de que rua congestionada é sinal de progresso, que a poluição é um preço a ser pago por esse progresso, que novas doenças são conseqüências das quais não se pode fugir, pois são inerentes ao progresso.

Só não se pergunta que mundo legaremos aos que nos sucederão. E estarão nas nossas cidades.

A especulação imobiliária é uma das grandes responsáveis pelas chamadas tragédias ambientais, pois vai tomando dos trabalhadores espaços que se valorizam na lógica capitalista, afastando-os, empurrando-os para uma periferia onde são tratados ou com a violência policial costumeira, ou sempre com o descaso do poder público.

É hora de um debate sobre as cidades e eleições municipais, que não vão mudar a realidade, mas são um importante instrumento para isso, para começar a mudar, na tarefa de organizar.

No duro mesmo é luta pela sobrevivência.

quinta-feira, 8 de março de 2012

John Perkins: “Portugal está a ser assassinado, como muitos países do terceiro mundo já o foram"

Entrevista concedida por John Perkins a Sara Sanz Pinto, publicada em 3 Mar 2012
no site Informação online - Portugal

Chamou-se a si próprio assassino económico no livro “Confessions of an Economic Hit Man”, que se tornou bestseller do “New York Times”

Em tempos consultor na empresa Chas. T. Main, John Perkins andou dez anos a fazer o que não devia, convencendo países do terceiro mundo a embarcar em projectos megalómanos, financiados com empréstimos gigantescos de bancos do primeiro mundo. Um dia, estava nas Caraíbas, percebeu que estava farto de negócios sujos e mudou de vida. Regressou a Boston e, para compensar os estragos que tinha feito, decidiu usar os seus conhecimentos para revelar ao mundo o jogo que se joga nos bastidores financeiros.

Como se passa de assassino económico a activista?
Em primeiro lugar é preciso passar-se por uma forte mudança de consciência e entender o papel que se andou a desempenhar. Levei algum tempo a compreender tudo isto. Fui um assassino económico durante dez anos e durante esse período achava que estava a agir bem. Foi o que me ensinaram e o que ainda ensinam nas faculdades de Gestão: planear grandes empréstimos para os países em desenvolvimento para estimular as suas economias. Mas o que vi foi que os projectos que estávamos a desenvolver, centrais hidroeléctricas, parques industriais, e outras coisas idênticas, estavam apenas a ajudar um grupo muito restrito de pessoas ricas nesses países, bem como as nossas próprias empresas, que estavam a ser pagas para os coordenar. Não estávamos a ajudar a maioria das pessoas desses países porque não tinham dinheiro para ter acesso à energia eléctrica, nem podiam trabalhar em parques industriais, porque estes não contratavam muitas pessoas. Ao mesmo tempo, essas pessoas estavam a tornar-se escravos, porque o seu país estava cada mais afundado em dívidas.

E a economia, em vez de investir na educação, na saúde ou noutras áreas sociais, tinha de pagar a dívida. E a dívida nunca chega a ser paga na totalidade. No fim, o assassino económico regressa ao país e diz-lhes “Uma vez que não conseguem pagar o que nos devem, os vossos recursos, petróleo, ou o que quer que tenham, vão ser vendidos a um preço muito baixo às nossas empresas, sem quaisquer restrições sociais ou ambientais”. Ou então, “Vamos construir uma base militar na vossa terra”. E à medida que me fui apercebendo disto a minha consciência começou a mudar. Assim que tomei a decisão de que tinha de largar este emprego tudo foi mais fácil. E para diminuir o meu sentimento de culpa senti que precisava de me tornar um activista para transformar este mundo num local melhor, mais justo e sustentável através do conhecimento que adquiri. Nessa altura a minha mulher e eu tivemos um bebé. A minha filha nasceu em 1982 e costumava pensar como seria o mundo quando ela fosse adulta, caso continuássemos neste caminho. Hoje já tenho um neto de quatro anos, que é uma grande inspiração para mim e me permite compreender a necessidade de viver num sítio pacífico e sustentável.

Houve algum momento em particular em que tenha dito para si mesmo “não posso fazer mais isto”?
Sim, houve. Fui de férias num pequeno veleiro e estive nas Ilhas Virgens e nas Caraíbas. Numa dessas noites atraquei o barco e subi às ruínas de uma antiga plantação de cana-de-açúcar. O sítio era lindo, estava completamente sozinho, rodeado de buganvílias, a olhar para um maravilhoso pôr do Sol sobre as Caraíbas e sentia-me muito feliz. Mas de repente cheguei à conclusão que esta antiga plantação tinha sido construída sobre os ossos de milhares de escravos. E depois pensei como todo o hemisfério onde vivo foi erguido sobre os ossos de milhões de escravos. E tive também de admitir para mim mesmo que também eu era um esclavagista, porque o mundo que estava a construir, como assassino económico, consistia, basicamente, em escravizar pessoas em todo o mundo. E foi nesse preciso momento que me decidi a nunca mais voltar a fazê-lo. Regressei à sede da empresa onde trabalhava em Boston e demiti-me.

E qual foi a reacção deles?
De início ninguém acreditou em mim. Mas quando se aperceberam de que estava determinado tentaram demover-me. Fizeram-me propostas muito interessantes. Mas fui-me embora à mesma e deixei por completo de me envolver naquele tipo de negócios.

Diz que os assassinos económicos são profissionais altamente bem pagos que enganam os países subdesenvolvidos, recorrendo a armas como subornos, relatórios falsificados, extorsões, sexo e assassinatos. Pode explicar às pessoas que não leram o seu livro como tudo isto funciona?
Basicamente, aquilo que fazíamos era escolher um país, por exemplo a Indonésia, que na década de 70 achávamos que tinha muito petróleo do bom. Não tínhamos a certeza, mas pensávamos que sim. E também sabíamos que estávamos a perder a guerra no Vietname e acreditávamos no efeito dominó, ou seja, se o Vietname caísse nas mãos dos comunistas, a Indonésia e outros países iriam a seguir. Também sabíamos que a Indonésia tinha a maior população muçulmana do mundo e que estava prestes a aliar-se à União Soviética, e por isso queríamos trazer o país para o nosso lado.

Fui à Indonésia no meu primeiro serviço e convenci o governo do país a pedir um enorme empréstimo ao Banco Mundial e a outros bancos, para construir o seu sistema eléctrico, centrais de energia e de transmissão e distribuição. Projectos gigantescos de produção de energia que de forma alguma ajudaram as pessoas pobres, porque estas não tinham dinheiro para pagar a electricidade, mas favoreceram muito os donos das empresas e os bancos e trouxeram a Indonésia para o nosso lado. Ao mesmo tempo, deixaram o país profundamente endividado, com uma dívida que, para ser refinanciada pelo Fundo Monetário Internacional, obrigou o governo a deixar as nossas empresas comprarem as empresas de serviços básicos de utilidade pública, as empresas de electricidade e de água, construir bases militares no seu território, entre outras coisas. Também acordámos algumas condicionantes, que garantiam que a Indonésia se mantinha do nosso lado, em vez de se virar para a União Soviética ou para outro país que hoje em dia seria provavelmente a China.

Trabalhou de muito perto com o Banco Mundial?
Muito, muito perto. Muito do dinheiro que tínhamos vinha do Banco Mundial ou de uma coligação de bancos que era, geralmente, liderada pelo Banco Mundial.

Sugere no seu livro que os líderes do Equador e do Panamá foram assassinados pelos Estados Unidos. No entanto, existem vários historiadores que defendem que isso não é verdade. O que acha que aconteceu com Jaime Roldós e Omar Torrijos?
Não existem provas sólidas quer do que aconteceu no Equador, com Roldós, quer do que se passou no Panamá, com Torrijos. Porém, existem muitas provas circunstanciais. Por exemplo, Roldós foi o primeiro a morrer, num desastre de avião em Maio de 1981, e a área do acidente foi vedada, ninguém podia ir ao local onde o avião se despenhou, excepto militares norte-americanos ou membros do governo local por eles designados. Nem a polícia podia lá entrar. Algumas testemunhas-chave do desastre morreram em acidentes estranhos antes de serem chamadas a depor. Um dos motores do avião foi enviado para a Suíça e os exames mostram que parou de funcionar quando estava ainda no ar e não ao chocar contra a montanha. Isto é, existem provas circunstanciais tremendas em torno desta morte, e além disso todos estavam à espera que Jaime Roldós fosse derrubado ou assassinado porque não estava a jogar o nosso jogo. Logo depois de o seu avião se ter despenhado, Omar Torrijos juntou a família toda e disse: “O meu amigo Jaime foi assassinado e eu vou ser o próximo, mas não se preocupem, alcancei os objectivos que queria alcançar, negociei com sucesso os tratados do canal com Jimmy Carter e esse canal pertence agora ao povo do Panamá, tal como deve ser. Por isso, depois de eu ser assassinado, devem sentir-se bem por tudo aquilo que conquistei.”

A verdade é que os EUA, a CIA e pessoas como o Henry Kissinger admitiram que o nosso país tinha derrubado Salvador Allende, no Chile; Jacobo Arbenz, na Guatemala; Mohammed Mossadegh, no Irão; participámos no afastamento de Patrice Lumumba, no Congo; de Ngô Dinh Diem, no Vietname. Existem inúmeros documentos sobre a história dos EUA que provam que fizemos estas coisas e continuamos a fazê-las. Sabe-se que estivemos profundamente envolvidos, em 2009, no derrube no presidente Manuel Zelaya, nas Honduras, e na tentativa de afastar Rafael Correa, no Equador, também há não muito tempo. Os EUA admitiram muitas destas coisas e pensar que eles não estiveram envolvidos nos homicídios de Roldós e Torrijos... Estes dois homens foram assassinados quase da mesma forma, num espaço de três meses. Ambos tinham posições contrárias aos EUA e às suas empresas e estavam a assumir posições fortes para defender os seus povos – é pouco razoável pensar o contrário.

Algumas pessoas acusam-no de ser um teórico da conspiração. O que tem a dizer sobre isso?
Bem, não sou, de modo nenhum, um teórico da conspiração. Não acredito que exista uma pessoa ou um grupo de pessoas sentadas no topo a tomar todas as decisões. Mas torno muito claro no meu último livro, “Hoodwinked” (2009), e também em “Confessions of an Economic Hit Man” (2004) – editado em Portugal pela Pergaminho em 2007 com o título “Confissões de Um Mercenário Económico: a Face Oculta do Imperialismo Americano” –, que as multinacionais são movidas por um único objectivo que é maximizar os lucros, independentemente das consequências sociais e ambientais. Estes últimos são novos objectivos que não eram ensinados quando estudei Gestão, no final dos anos 60. Ensinaram-me que havia apenas este objectivo entre muitos outros, por exemplo tratar bem os funcionários, dar-lhes uma boa assistência na saúde e na reforma, ter boas relações com os clientes e os fornecedores, e também ser um bom cidadão, pagar impostos e fazer mais que isso, ajudar a construir escolas e bibliotecas.

Tudo se agravou nos anos 70, quando Milton Friedman, da escola de economia de Chicago, veio dizer que a única responsabilidade no mundo dos negócios era maximizar os lucros, independentemente dos custos sociais e ambientais. E Ronald Reagan, Margaret Thatcher e muitos outros líderes mundiais convenceram-se disso desde então. Todas estas empresas são orientadas segundo este objectivo e quando alguma coisa o ameaça, seja um acordo de comércio multilateral seja outra coisa qualquer, juntam--se para garantir que o mesmo é protegido. Isto não é uma conspiração, uma conspiração é ilegal, isto que fazem não é. No entanto, é extremamente prejudicial para a economia mundial.

Também escreveu que o objectivo último dos EUA é construir um império global. Como vê a recente estratégia norte-americana contra a China e o Irão?
Actualmente, podemos dizer que o novo império não é tanto americano como formado por multinacionais. Penso que a ditadura das grandes empresas e dos seus líderes forma hoje a versão moderna desse império. Repito, isto não é uma conspiração, mas todos eles são movidos por esse objectivo de que falámos anteriormente.

Mas vários especialistas defendem que estamos num cenário de terceira guerra mundial, com a China, a Rússia e o Irão de um lado e os EUA, a União Europeia (UE) e Israel do outro. E que toda a conversa de Washington em torno do programa nuclear iraniano não passa de uma grande mentira.
Não acredito que todo este conflito seja motivado por armas nucleares. Na verdade, vários estudos recentes, alguns deles das mais respeitadas agências de informações norte-americanas, mostram que não existem armas nucleares no Irão. E acredito que tudo isto não se deve apenas aos recursos iranianos mas também à ameaça de Teerão de vender petróleo no mercado internacional numa moeda que não o dólar, uma ameaça também feita por Muammar Kadhafi, na Líbia, e Saddam Hussein, no Iraque. Os norte-americanos não gostam que ameacem o dólar e não gostam que ameacem o seu sistema bancário, algo que todos esses líderes fizeram – o líder do Irão, o líder do Iraque, o líder da Líbia. Derrubaram dois deles e o terceiro ainda lá está. Penso que é disto que se trata.

Não tenho dúvidas de que a Rússia está a gostar de ver a agitação entre a UE e o Irão, porque Moscovo tem muito petróleo e, se os fornecedores iranianos deixarem de vender, o preço do petróleo vai subir, o que será uma grande ajuda para a Rússia. É difícil acreditar que qualquer destes países queira mesmo entrar numa terceira guerra mundial. No fundo, o que querem é estar constantemente a confundir as pessoas, parecendo que querem entrar em conflito e ajudar a alimentar as máquinas de guerra, porque isso ajuda uma série de grandes empresas.

Como durante a Guerra Fria?
Sim, como durante a Guerra Fria, porque isso é bom para os negócios. No fundo, estes países estão todos a servir os interesses das grandes empresas. Há algumas centenas de anos, a geopolítica era maioritariamente liderada por organizações religiosas; depois os governos assumiram esse poder. Agora chegámos à fase em que a geopolítica é conduzida em primeiro lugar pelas grandes multinacionais. E elas controlam mesmo os governos de todos os países importantes, incluindo a Rússia, a China e os EUA. A economia da China nunca poderia ter crescido da forma que cresceu se não tivesse estabelecido fortes parcerias com grandes multinacionais.

E todos estes países são muito dependentes destas empresas, dos presidentes destas empresas, que gostam de baralhar as pessoas, porque constroem muitos mísseis e todo o tipo de armas de guerra. É uma economia gigante. A economia norte-americana está mais baseada nas forças armadas que noutra coisa qualquer. Representa a maior fatia do nosso orçamento oficial e uma parte maior ainda do nosso orçamento não oficial. Por isso tanto a guerra como a ameaça de guerra são muito boas para as grandes multinacionais. Mas não acredito que haja alguém que nos queira ver de facto entrar em guerra, dada a natureza das armas. Penso que todas as pessoas sabem que seria extremamente destrutivo.

Como avalia o trabalho de Barack Obama enquanto presidente dos EUA?
Penso que se esforçou muito por agir bem, mas está numa posição extremamente vulnerável. Assim que alguém entra na Casa Branca, sejam quais forem as suas ideias políticas, os seus motivos ou a sua consciência, sabe que é muito vulnerável e que o presidente dos EUA, ou de outro país importante, pode ser facilmente afastado. Nalgumas partes do mundo, como a Líbia ou o Irão, talvez só com balas o seu poder possa ser derrubado, mas em países como os EUA um líder pode ser afastado por um rumor ou uma acusação.

O presidente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, ver a sua carreira destruída por uma empregada de quarto de um hotel, que o acusou de violação, foi um aviso muito forte a Obama e a outros líderes mundiais. Não estou a defender Strauss-Kahn – não faço a mínima ideia de qual é a verdade por trás do que aconteceu, mas o que sei é que bastou uma acusação de uma empregada de quarto para destruir a sua carreira, não só como director do FMI mas também como potencial presidente francês. Bill Clinton também foi afastado por um escândalo sexual, mas no tempo de John Kennedy estas coisas não derrubavam presidentes. Só as balas. Porém, descobrimos com Bill Clinton que um escândalo sexual – e não é preciso ser uma coisa muito excitante, porque aparentemente ele nem sequer teve sexo com a Monica Lewinsky, fizeram uma coisa qualquer com um charuto que já não me lembro – foi o suficiente para o descredibilizar. Por isso Obama está numa posição muito vulnerável e tem de jogar o jogo e fazer o melhor que pode dentro dessas limitações. Caso contrário, será destruído.

No fim do ano passado escreveu um artigo onde afirmava que a Grécia estava a ser atacada por assassinos económicos. Acha que Portugal está na mesma situação?
Sim, absolutamente, tal como aconteceu com a Islândia, a Irlanda, a Itália ou a Grécia. Estas técnicas já se revelaram eficazes no terceiro mundo, em países da América Latina, de África e zonas da Ásia, e agora estão a ser usadas com êxito contra países como Portugal. E também estão a ser usadas fortemente nos EUA contra os cidadãos e é por isso que temos o movimento Occupy. Mas a boa notícia é que as pessoas em todo o mundo estão a começar a compreender como tudo isto funciona. Estamos a ficar mais conscientes. As pessoas na Grécia reagiram, na Rússia manifestam-se contra Putin, os latino-americanos mudaram o seu subcontinente na última década ao escolher presidentes que lutam contra a ditadura das grandes empresas. Dez países, todos eles liderados por ditadores brutais durante grande parte da minha vida, têm agora líderes democraticamente eleitos com uma forte atitude contra a exploração.

John Perkins com Llyn Roberts e Jane Goodall

Por isso encorajo as pessoas de Portugal a lutar pela sua paz, a participar no seu futuro e a compreender que estão a ser enganadas. O vosso país está a ser saqueado por barões ladrões, tal como os EUA e grande parte do mundo foi roubado. E nós, as pessoas de todo o mundo, temos de nos revoltar contra os seus interesses. E esta revolução não exige violência armada, como as revoluções anteriores, porque não estamos a lutar contra os governos mas contra as empresas. E precisamos de entender que são muito dependentes de nós, são vulneráveis, e apenas existem e prosperam porque nós lhes compramos os seus produtos e serviços. Assim, quando nos manifestamos contra elas, quando as boicotamos, quando nos recusamos a comprar os seus produtos e enviamos emails a exigir-lhes que mudem e se tornem mais responsáveis em termos sociais e ambientais, isso tem um enorme impacto. E podemos mudar o mundo com estas atitudes e de uma forma relativamente pacífica.

Mas as próprias empresas deviam ver que a ditadura das multinacionais é um beco sem saída.
Bem, penso que está absolutamente certa. Há alguns meses estive a falar numa conferência para 4 mil CEO da indústria das telecomunicações em Istambul e vou regressar lá, dentro de um mês, para uma outra conferência de CEO e CFO de grandes empresas comerciais, e digo-lhes a mesma coisa. Falo muitas vezes com directores-executivos de empresas e sou muitas vezes chamado a dar palestras em universidades sobre Gestão ou para empresários e também lhes digo o mesmo. Aquilo que fizemos com esta economia mundial foi um fracasso. Não há dúvida. Um exemplo disso: 5% da população mundial vive nos EUA e, no entanto, consumimos cerca de 30% dos recursos mundiais, enquanto metade do mundo morre à fome ou está perto disso. Isto é um fracasso. Não é um modelo que possa ser replicado em Portugal, ou na China ou em qualquer lado. Seriam precisos mais cinco planetas sem pessoas para o podermos copiar. Estes países podem até querer reproduzi-lo, mas não conseguiriam.

Por isso é um modelo falhado e você tem razão, porque vai acabar por se desmoronar. Por isso o desafio é como mudamos isto e como apelar às grandes empresas para fazerem estas mudanças. Obrigando-as e convencendo-as a ser mais sustentáveis em termos sociais e ambientais. Porque estas empresas somos basicamente nós, a maioria de nós trabalha para elas e todos compramos os seus produtos e serviços. Temos um enorme poder sobre elas. Por definição, uma espécie que não é sustentável extingue-se. Vivemos num sistema falhado e temos de criar um novo. O problema é que a maior parte dos executivos só pensa a curto prazo, não estão preocupados com o tipo de planeta que os seus filhos e os seus netos vão herdar.

Podemos afirmar que esta crise mundial foi provocada por assassinos económicos e rotular os líderes da troika como serial killers?
Penso que é justo dizer que os assassinos económicos são os homens de mão, nós, os soldados, e os presidentes das grandes multinacionais e de organizações como o Banco Mundial, o FMI ou Wall Street, os generais.

Ainda há dias o “Financial Times” divulgou que os gestores financeiros de Wall Street andavam a tomar testosterona para se tornarem ainda mais competitivos. Isto faz parte do beco sem saída de que estás a falar?
A sério?! Ainda não tinha ouvido isso, mas não me surpreende nada. No entanto, aquilo que precisamos hoje em dia é de um lado feminino, temos de caminhar na direcção oposta e livrar-nos dessa testosterona. Precisamos de mais líderes mulheres, mulheres reais – não homens vestidos com roupas de mulher, por assim dizer – para trazerem com elas os valores de receptividade e do apoio e encorajarem os homens a cultivar isso neles próprios. Nós, homens, temos de estar muito mais ligados ao nosso lado feminino.

Se fôssemos apresentar esta crise económica à polícia, quem seriam os criminosos a acusar?
Pense em qualquer grande multinacional e à frente dessa multinacional estará alguém responsável pela ditadura empresarial, seja a Goldman Sachs, em Wall Street, seja a Shell, a Monsanto ou a Nike. Todos os líderes dessas empresas estão profundamente envolvidos em tudo isto e, da mesma forma, estão os líderes do FMI, do Banco Mundial e de outras grandes instituições bancárias. Detesto estar a dar nomes, estas pessoas estão sempre a mudar de emprego, por isso prefiro apontar os cargos. Eles estão sempre em rotação, por exemplo, o nosso antigo presidente, George W. Bush, veio da indústria petrolífera. A sua secretária de Estado, Condoleezza Rice, também veio da indústria petrolífera. Já Obama tem a sua política financeira concebida por Wall Street, maioritariamente pela Goldman Sachs. Mudaram-se da empresa para a actual administração norte-americana. A sua política de agricultura é feita por pessoas da Monsanto e de outras grandes empresas do sector. E a parte triste é que assim que o seu tempo expirar em Washington voltam para essas empresas. Vivemos num sistema incrivelmente corrupto. Aquilo a que chamamos política das portas giratórias é só uma outra designação de corrupção extrema.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Bancos são os financiadores de armas nucleares

06/3/2012 - por Thalif Deen, da IPS* - Envolverde

Nações Unidas, 6/3/2012 – A indústria mundial de armas nucleares é financiada e mantida viva por mais de 300 bancos, fundos de pensão, companhias de seguros e gestores de ativos, segundo um estudo divulgado pela Campanha Internacional para Abolir as Armas Nucleares (Ican). Estas instituições realizam substanciais investimentos na produção de armas atômicas. O estudo, de 180 páginas, diz que as nações com poderio nuclear gastam mais de US$ 100 bilhões ao ano fabricando novas ogivas, modernizando as velhas e construindo mísseis balísticos, bombardeiros e submarinos para lançá-las.

Grande parte deste trabalho é feito por corporações como BAE Systems e Babcock International, na Grã-Bretanha, Lockheed Martin e Northrop Grumman, nos Estados Unidos, Thales e Safran, na França, e Larsen & Toubro, na Índia.

Instituições financeiras investem nestas companhias fornecendo empréstimos e comprando ações e bônus”, afirma o documento, considerado o primeiro de seu tipo. Com o título Dont Bank on the Bomb: The Global Financing of Nuclear Weapons Producers ("Não confiem na bomba: o financiamento mundial dos produtores de armas nucleares"), o estudo fornece detalhes das transações financeiras com 20 empresas intensamente envolvidas na fabricação, manutenção e modernização das forças atômicas norte-americanas, britânicas, francesas e indianas.

É necessária uma urgente campanha coordenada mundial pelo desinvestimento em armas nucleares, destaca o informe. Um movimento assim poderia ajudar a frear os programas de modernização e fortalecimento de armamentos e impulsionar as negociações para uma proibição universal desse tipo de bombas. “Deixar de investir nas companhias de armas nucleares é uma forma efetiva de o mundo corporativo avançar para a meta de uma abolição nuclear”, indica o estudo.

O trabalho exorta as instituições financeiras a deixarem de investir na indústria armamentista atômica. “Qualquer uso de armas nucleares violaria o direito internacional e teria catastróficas consequências humanitárias. Ao investir nos fabricantes, as instituições financeiras estão, na verdade, facilitando a construção de forças atômicas”, alerta. Na introdução do informe, o arcebispo anglicano sul-africano Desmond Tutu, prêmio Nobel da Paz, afirma: “ninguém deveria obter lucro com esta terrível indústria da morte, que ameaça a todos nós”.

Tutu exorta as instituições financeiras a apoiarem os esforços para eliminar a ameaça atômica, e destaca que o fim dos investimentos foi vital na campanha para acabar com o apartheid (sistema de segregação racial contra a maioria negra) na África do Sul. A mesma tática pode e deve ser empregada para enfrentar a criação mais maligna do homem: a bomba nuclear, sugere.

Por sua vez, Tim Wright, diretor de campanhas da Ican e coautor do estudo, disse à IPS que algumas das instituições identificadas no trabalho já expressaram sua “intenção de adotar políticas proibindo os investimentos em fabricantes de armas atômicas”. A campanha para que cessem os investimentos “provavelmente terá maior êxito em países onde a oposição às armas é mais forte”, por exemplo, nos escandinavos e no Japão, acrescentou. Wright destacou que cada vez mais bancos reconhecem que se deve aplicar algum tipo de critério ético aos investimentos, e que apoiar a fabricação de armas capazes de destruir cidades inteiras em um instante é algo claramente contrário à ética.
Das 322 instituições financeiras identificadas no informe, cerca da metade tem sede nos Estados Unidos e um terço na Europa. O estudo também denuncia instituições da Ásia, Austrália e Oriente Médio. As mais envolvidas com a indústria de armas nucleares são Bank of America, BlackRock e JP Morgan Chase, nos Estados Unidos, BNP Paribas, na França, Allianz e Deutsche Bank, na Alemanha, Mitsubishi UFJ Financial, no Japão, BBVA e Banco Santander, na Espanha, Credit Suisse e UBS, na Suíça, e Barclays, HSBC, Lloyds e Royal Bank of Scotland, na Grã-Bretanha.

Consultado sobre se seria viável uma campanha para boicotar estas entidades, Wright declarou à IPS que “se os bancos resistirem a ceder, os clientes terão que buscar alternativas éticas”. Muitos outros bancos, particularmente pequenos, negam-se a ter qualquer ligação com esta indústria, destacou. “Se as pessoas começarem a debandar em massa, isto enviará um forte sinal ao banco, de que seu apoio às companhias de armas nucleares é inaceitável. No caso das instituições multinacionais, uma campanha coordenada de boicote em vários países seria efetiva”, acrescentou.

O estudo também cita Setsuko Thurlow, sobrevivente da bomba atômica lançada pelos Estados Unidos sobre a cidade japonesa de Hiroshima em 1945, que fez um apelo para que se invista de forma ética e para não se contribuir com atividades que ameacem a Terra.


*(IPS) - A Agência Envolverde distribui com exclusividade no Brasil os textos da agência Inter Press Service (IPS) e do Projeto Terramérica. Jornais, revistas e websites que queiram ter acesso a este material podem entrar em contato com nossa redação através do email agencia@envolverde.com.br

terça-feira, 6 de março de 2012

A Justiça avacalhada - CASO "JORNAL PESSOAL"

Por Luciano Martins Costa em 06/03/2012 na edição 684 - do Observatório da Imprensa
Comentário para o programa radiofônico do OI, 6/3/2012

Comentários de autoridades e outras figuras públicas na rede social da internet são sempre uma atitude temerária. São muitos os casos de celebridades que caem em desgraça ou se deslocam para baixo na lista das pessoas mais admiradas por conta de manifestações infelizes, atos falhos e declarações impensadas que revelam convicções que não convém andar espalhando por aí.

Na edição de terça-feira (6/3), a Folha de S.Paulo publica comentário postado na rede de relacionamentos Facebook pelo juiz paraense Amilcar Bezerra Guimarães que merece uma observação mais atenta. Guimarães vem a ser conhecido da imprensa nacional pelo fato de haver condenado o jornalista Lúcio Flávio Pinto a pagar indenização de R$ 8 mil por danos morais a familiares do falecido empreiteiro Cecílio do Rego Almeida.

Lúcio Flávio havia chamado Almeida de “pirata fundiário”, em comentário sobre a apropriação, pelo empresário, de 4,7 milhões de hectares de terras públicas na Amazônia. A Justiça já havia concluído que os documentos do empreiteiro eram ilegais, determinando a devolução das terras, ou seja, a denúncia de Lúcio Flávio se revelava correta e fundamentada, quando o juiz Amílcar Guimarães, em apenas um dia como juiz substituto e com atraso, entregou ao cartório judicial sua decisão num processo de 400 páginas, condenando o jornalista.

O jornalista recorreu da decisão, mas foi derrotado em segunda instância. O caso extrapolou para além das redes de comentários entre jornalistas e integrantes da magistratura do Pará quando Lúcio Flávio, afirmando não ter condições de arcar com novo recurso, desistiu de apelar contra a decisão da Justiça paraense. Seu caso ganhou repercussão nacional a partir de um movimento nas redes sociais intitulado “Somos todos Lúcio Flávio”, que chegou a ser reproduzido no exterior.

Na segunda-feira (5/3), o juiz Amilcar Guimarães, que mantinha silêncio sobre o assunto, resolveu postar na rede de relacionamentos online o que pensa sobre a questão (ver http://somostodoslucioflaviopinto.wordpress.com/2012/03/04/veja-o-que-o-juiz-que-condenou-lucio-flavio-pinto-postou-no-facebook/).

E o que o magistrado convenciona chamar de Justiça mostra a quantas anda o Judiciário. Entre outras coisas, o magistrado se solidariza com o empresário do grupo de comunicações Maiorana, dominante no Pará, que há alguns anos agrediu o jornalista num restaurante, por conta de denúncias publicadas no Jornal Pessoal, e termina pedindo a Lúcio Flávio que o acuse diante do Conselho Nacional de Justiça, para “ganhar” a aposentadoria compulsória.

Isso é o que se chama avacalhação.

Aposentadoria é o prêmio.

As declarações do juiz são tão espantosas que os editores da Folha de S.Paulo chegaram a imaginar a possibilidade de se tratar de um perfil falso criado no Facebook. Mas o juiz, entrevistado pelo jornal paulista, confirmou a autoria das mensagens e se queixou de estar sendo satanizado” pelo jornalista.

Questionado sobre a decisão de condenar Lúcio Flávio e da impossibilidade de haver estudado todo o processo em menos de um dia, ele confessou que tomou a decisão sem ler todos os autos. “O que é que o juiz precisa além de ler a reportagem?”, perguntou, referindo-se ao texto que havia suscitado o processo por danos morais contra o jornalista.

Ao declarar que gostaria de ser denunciado ao CNJ, o magistrado afirma que a aposentadoria compulsória “não seria uma punição, seria um prêmio”. A Folha consultou a direção do Tribunal de Justiça do Pará e ouviu que as declarações do juiz são consideradas “de caráter pessoal”, e por isso não haveria comentários oficiais a respeito.

A não ser que o próprio Conselho Nacional de Justiça se interesse pela questão, vai ser assim mesmo: o corporativismo continua imperando, dominado pelos setores mais reacionários da Justiça, que segue na direção contrária à da evolução da sociedade.

Lúcio Flávio é um desses protagonistas solitários da imprensa regional, que se tornou conhecido nas duas últimas décadas por suas reportagens denunciando o desmatamento da Amazônia e as alianças entre os poderosos locais, entre os quais costuma alinhar os controladores do grupo O Liberal, que, entre jornais e emissoras, domina as comunicações no Pará.

Por conta de suas atividades jornalísticas, sofreu mais de trinta processos, e o caso julgado pelo juiz Amílcar Guimarães, além de puni-lo com uma multa que ele afirma não poder pagar, retira sua condição de réu primário, tornando-o absolutamente vulnerável à ação de seus desafetos.

Mais do que a absurda decisão judicial que condena por danos morais um jornalista por haver publicado informação que a própria Justiça veio a confirmar, chama atenção o deboche do magistrado sobre a própria Magistratura.