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domingo, 23 de fevereiro de 2014

Voto é como vacina: tem que ser obrigatório

21/12/2013 - Antonio Lassance (*) - Carta Maior

A defesa do voto facultativo é muito bonita. Bonita, ingênua, desinformada e irresponsável. É preciso fazer esse debate com todo o respeito às pessoas que pensam diferente, que são muitas. 

Mesmo o “irresponsável” que acabei de utilizar tem um sentido respeitável, que será explicado adiante. A intenção aqui, mais do que fazê-las mudar de ideia, é antes incentivá-las a repensar seus argumentos.          

É bom tratar do tema antes que seja tarde demais.

Antes que o Brasil resolva entrar nessa canoa furada. Há sempre propostas de emenda constitucional tramitando no Congresso.

O voto facultativo pode nos surpreender, um dia, como um presente de grego.

Há pouco, tivemos o triste exemplo do Chile, que elegeu sua presidenta, Michelle Bachelet [foto], com a expressiva proporção de 62% dos votos, mas com a presença de menos da metade dos eleitores. 

Houve quem apoiasse Bachelet e preferiu não votar pela simples suposição de que ela já estaria eleita, e seu voto não faria diferença.

O mesmo deve ter ocorrido com alguns eleitores do lado adversário.

Uma parte importante dos eleitores votou não com base em suas convicções, mas em pesquisas de opinião.

Direito, sim; obrigação também

Vota quem quer, pois o voto é um direito, certo? Errado.

O voto é um direito, mas, como qualquer outro direito, ele traz consigo obrigações.

A educação também é um direito, mas os pais são obrigados a colocar os filhos na escola (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 55: “Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”). 

A saúde é um direito, mas as famílias têm a obrigação de vacinar seus filhos.

As pessoas devem estar vacinadas contra algumas doenças se quiserem visitar alguns estados e outros países.

Os direitos são custeados graças à nossa obrigação de pagar impostos – o nome não é à toa.

Há uma frase do ex-senador Roberto Campos, famosa e muito repetida pelos papagaios de seu liberalismo, segundo a qual nossa Constituição tem muitos direitos e poucas obrigações. Basta ler a Constituição para comprovarmos que isso é uma balela. Na melhor das hipóteses, uma piada. 

Mesmo o título dos direitos e garantias fundamentais é aberto com o capítulo que se intitula Dos direitos e deveres individuais e coletivos”. O célebre e generoso art. 5.º, que expressa todo o sentido do apelido de “Constituição Cidadã” dado à Carta Magna brasileira, começa proferindo que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.

Do voto deveríamos pensar o mesmo. É um direito e igualmente uma obrigação. O cidadão que quer direitos está assumindo que tem uma relação com o Estado, que é o agente responsável por garantir esses direitos e cobrar as obrigações.

O cidadão que tem o direito de reclamar do Estado, a plenos pulmões, é o mesmo que tem a obrigação de dizer ao Estado que rumo ele deve tomar. Para que o Estado represente o que o cidadão quer, o pressuposto é que ele, na condição de eleitor, diga o que quer e o que não quer.

Pesquisa alguma substitui o voto

A relação entre Estado e sociedade não pode ser marcada pela abstenção. A razão é simples: não sabemos exatamente o que a abstenção significa em uma eleição.

A democracia não pode trocar eleições por pesquisas de opinião para saber o que o cidadão quer do Estado. Por melhores que sejam as pesquisas, e são muitas, e são díspares, certamente alguém vai estar errado sobre algo muito importante de ser aferido. 

A opinião pública está livre para ser analisada por qualquer um, da forma que achar melhor. Mas a vontade do cidadão, isso não pode ser deixado a qualquer um, de qualquer jeito. É algo importante demais para ficar nas mãos de institutos de pesquisa ou, pior, de charlatães de plantão, especialistas de assuntos aleatórios, golpistas contumazes e toda uma legião de oportunistas ávidos em sequestrar a opinião daqueles que se abstiverem.

Se ninguém gosta de dar um cheque em branco a quem foi eleito, muito menos deveriam dar a quem sequer foi eleito.

A luta pelo voto está sendo esquecida

A defesa do voto obrigatório perde terreno, entre outras razões, porque sua maneira mais comum é também a mais infame possível. Há péssimos defensores do voto obrigatório que usam o argumento de que o brasileiro ainda não está pronto para o voto facultativo. É de um complexo de vira-latas atroz.

Do lado do voto facultativo, há políticos que o defendem por convicção. Uma convicção bonita, ingênua, desinformada e irresponsável. Cabe aqui a explicação: tratam o voto como um direito que não responsabiliza o cidadão. Péssimo exemplo.

Alguns outros políticos defendem o voto facultativo por conveniência. Querem falar o que a maioria dos eleitores quer ouvir. Da mesma forma, acontece com os eleitores. Há os que o defendem por convicção. E há outros que o preferem simplesmente porque acreditam que seu voto vale bem menos a pena do que o churrasco do final de semana.

Aqueles um pouco mais politizados dirão: “mas democracia não é só voto!”. “”?

Será que quem usa esse “” impunemente sabe um pouco da história da luta pelo voto universal?

Tudo bem que o movimento cartista inglês, de 1830, as revoluções de 1848, as sufragistas (que defendiam o voto feminino) do início do século passado, e tantos outros movimentos estão distantes no tempo, e nem todo mundo ainda se lembra das aulas de História.

Também há uma nova geração que nasceu depois da ditadura

Esse “” mostra o quanto o voto, desmoralizado por muitos partidos e políticos, acaba banalizado e esculhambado também por muitos eleitores. Não se pode relegar a um final melancólico uma conquista que foi garantida a duras penas, com o suor, as lágrimas e mesmo o sangue de muitos que lutaram para que pudéssemos exercê-lo, em toda a sua plenitude.

O voto facultativo é uma péssima ideia, um palpite infeliz, um desserviço à democracia.

Mas e os países avançados? Não têm, todos eles, voto facultativo?

Não todos, muitos, é verdade. Vários só tornaram o voto facultativo recentemente, e nada impede que voltem atrás. Muitos países avançados têm voto facultativo e têm também pena de morte, proibição ao uso do véu por mulheres (em claro desrespeito à liberdade individual e religiosa) e tratam imigrantes como animais. Muitos deles têm uma regulação da mídia para ninguém botar defeito.

O fato de um país ter voto obrigatório não faz dele um país avançado. O fato de um país ser avançado não faz com que ele tenha voto facultativo. O argumento sobre países avançados não ajuda no debate, pois não esclarece como funciona o sistema eleitoral como um todo, e não se diz das consequências que a desobrigação do voto acarretou.

Na França, Reino Unido e Alemanha, o comparecimento às urnas costuma ser bem maior do que o que se viu no Chile e do que, tradicionalmente, se verifica nos Estados Unidos. É bem provável que nossas taxas de abstenção fiquem bem mais próximas da chilena e da norte-americana do que da britânica. 

A taxa de abstenção varia conforme a eleição, conforme os candidatos, conforme a situação econômica, conforme a raiva dos eleitores. Falar que muitos países avançados têm voto facultativo, pura e simplesmente, é apenas um argumento do tipo Maria-vai-com-as-outras.

TSE deveria ensinar a votar branco e nulo 

Hoje, o eleitor que não quiser votar tem duas opções: justificar ou pagar a multa. A multa tonou-se irrisória para a maioria dos brasileiros. Vai de 3% a 10% do valor do salário mínimo. 

Outras penalidades acabam sendo mais relevantes. O título pode ser cancelado e a pessoa fica impedida de fazer concursos públicos, receber empréstimo de instituições financeiras públicas, tirar passaporte e carteira de identidade, entre outras. 

Todos são obrigados a comparecer, mas não a votar, na medida em que há a opção do eleitor anular o voto.

O único resquício autoritário ainda presente no processo eleitoral brasileiro e que precisa ser abolido é a pregação frequente, feita pelos ministros que ocupam a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de que o eleitor não deve anular o voto e precisa votar em alguém.

Isso é descabido, pois nada autoriza a Justiça a se meter na opinião do eleitor. Não há lei que obrigue o eleitor a votar em alguém. 

Tanto o voto branco quanto o voto nulo são expressões democráticas da livre manifestação. Deveriam ser opções de voto respeitadas e melhor informadas. O cidadão tem direito de votar em branco, se quiser, e de votar nulo, se preferir. A urna eletrônica admite as duas possibilidades.

O que o TSE pode e deve fazer, cumprindo sua obrigação de preparar o eleitor para o processo, é reservar espaço no horário eleitoral para dizer que o voto é importante, que o eleitor tem sua chance de escolher bons representantes, e ensinar o eleitor que, se ele não quiser votar em uma pessoa, pode votar no partido. 

Se não quiser votar em ninguém, nem pessoa, nem partido, pode votar branco. Se ainda assim achar que ninguém merece sua escolha, pode anular seu voto.

O TSE deveria ensinar as pessoas que queiram votar branco ou nulo a fazê-lo, esclarecendo a diferença. O eleitor que não teve tempo de se informar e não sabe em quem votar deve saber que pode votar em branco e que não precisa passar vergonha por isso.

O eleitor que viu o programa eleitoral e não ficou satisfeito com ninguém, ou é contra o voto em si, por princípio, pode expressar sua contrariedade ou descontentamento votando nulo. 

Com isso, tiraríamos das urnas um voto que é irresponsável e de péssimas consequências, qual seja, aquele em que o eleitor vota em qualquer um ou no primeiro que aparecer em sua frente, na boca de urna.

Teríamos, provavelmente, mais brancos e nulos, mas escolhas mais bem feitas. De sobra, haveria informações mais fiéis sobre o grau de insatisfação, desinteresse e desinformação dos eleitores, o que seria benéfico para a análise sobre a quantas anda nossa representação.

Vacina incomoda, mas é importante

O voto é como uma vacina. Daquelas que as pessoas podem ou não querer tomar, mas, se não o fizerem, devem arcam com as consequências.

Como direito, as vacinas devem sempre estar à disposição de todos os que queiram favorecer seu organismo, mas servindo também ao propósito de preservar o convívio social. O direito individual caminha junto com a obrigação que cada cidadão tem com a coletividade.

Ano que vem [2014] tem eleições. Precisamos tomar a vacina, por mais que muitos não gostem da injeção e prefiram xingar a classe dos farmacêuticos. A democracia brasileira vai dizer “muito obrigada”.

(*) Antonio Lassance é cientista político.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/Voto-e-como-vacina-tem-que-ser-obrigatorio/29862

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Marina Silva cai na rede do PSB

Por Antonio Lassance, na Carta Maior

Brasília - De sustentabilidade em sustentabilidade, Marina Silva se filia a seu terceiro partido. Após as eleições de 2014, ela fará nova troca, ingressando em sua Rede. Será uma média de quase um novo partido a cada um ano e meio. 

A dobradinha com Eduardo Campos, que em ataque de sinceridade, Marina chamou de "coligação pragmática", surpreendeu apoiadores do PSB e, mais ainda, da Rede. Muitos consideram o PSB um "mal necessário". Outros acham que Marina cometeu um erro estratégico, que vai chamuscar sua imagem pública, torná-la refém de Eduardo Campos, ligá-la a aliados indigestos do PSB, como os Bornhausen, em Santa Catarina, e, assim, afastar marineiros cujo estômago não está preparado para engolir tantos sapos. A Rede que queria Marina como candidata a presidente a aceita menos como vice de Campos, tido como um político menor, perto de sua líder.

O acordo com o PSB coloca a ex-senadora no jogo de 2014, mas na posição de coadjuvante. Quem mais ganha com a aliança é Eduardo Campos, que fez um lance de mestre. Acaba de ganhar uma garota propaganda de peso. Marina, com seus 16% de intenções de voto, com viés de baixa, deve catapultar os 4% de Eduardo Campos. Porém, na matemática eleitoral, 16 mais 4 não é igual a 20, pois a operação tem perdas de lado a lado. Tem gente do PSB ligada a ruralistas, que não gostam de Marina; tem gente da Rede que não quer saber de Eduardo Campos. 

A dupla pisa sobre a cabeça de Aécio Neves e o empurra para baixo. Muito em breve, o mineiro poder amargar, pior do que o terceiro lugar atual, um patamar inferior a 10%, algo inédito para o PSDB. 

José Serra está saboreando sua vingança em um prato ainda quente. Há apenas uma única coisa que Serra queira mais em 2014 do que derrotar o PT: é diminuir Aécio. Quando chegou à conclusão de que eram mínimas as chances de Marina ter seu partido registrado a tempo para concorrer no ano que vem, Serra considerou que o cenário mais provável era o de vitória de Dilma em primeiro turno. Um resultado péssimo para o PSDB e uma mancha definitiva para a carreira de Aécio. Com a chapa Campos/Marina, a candidatura Aécio Neves sofre grave risco de esvaziamento. 

Mais do que Dilma, é a chapa do PSB que passa a ser, momentaneamente, a principal adversária do candidato do PSDB. Diante do risco de ficar para trás na corrida presidencial, comendo poeira, há quem defenda reavaliar a situação ao longo de 2014. Se Aécio não se mostrar viável, o PSDB tentará uma saída que evite um resultado vergonhoso. 

Para a candidatura Dilma, as chances de vitória no primeiro turno continuam fortes. Já era assim, conforme pesquisas mais recentes, quando Marina ainda aparecia como possível candidata. Como vice de Eduardo Campos, é difícil que a decisão da Rede provoque algum estrago extra na candidatura petista. 

O que pode causar problemas para o PT, de agora em diante, são seus eventuais erros e a péssima atuação congressual de seu grande aliado, o PMDB. A vantagem de Dilma é que sua dobradinha principal é com Lula. Mais do que Eduardo Campos e do que Marina Silva, Lula sabe bem como é que se muda um país. A atuação de Dilma na presidência e a de Lula no debate político são armas poderosas. O que ainda falta e será decisivo em 2014 é um programa ousado, que enfatize mais a mudança que a continuidade, diferentemente da estratégia de 2010. Do contrário, a pecha de República Velha, não a de 1891, mas a fundada pelo PMDB em 1985, pode virar carimbo.


Acompanhe essa aliança:http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6311

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Um presidente da Câmara para entrar para a História


Fosse Henrique Eduardo Alves um time de futebol, ele hoje estaria na zona de rebaixamento. A comparação foi feita por um deputado no dia seguinte à fatídica sessão de 28 de agosto, quando a cassação de Natan Donadon, tida como líquida e certa, simplesmente não aconteceu. Segundo o próprio presidente da Câmara, em seus 40 anos de parlamento, jamais viu algo parecido. Muitos parlamentares pensam da mesma forma. Não se lembram de uma presidência tão sofrível. 

Por Antonio Lassance* - Carta Maior
   
Brasília - Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) é certamente um presidente da Câmara para entrar para a história. Ele próprio deve concordar com isso. Após ter protagonizado o feito de presidir a sessão que manteve o mandato do deputado Natan Donadon, seu ex-correligionário, hoje sem partido, Alves externou que, em seus 40 anos de parlamento, jamais viu algo parecido.

O episódio não apenas deixou perplexo o velho político. Também mostrou que a Câmara está à deriva.

Entre seus pares, a surpresa está em como um presidente com tantas décadas de experiência conseguiu colecionar mais problemas do que o folclórico Severino Cavalcanti, que presidiu a Casa em 2005 e foi forçado a renunciar após uma sucessão de denúncias.

Um parlamentar do próprio PMDB ironizou em seu gabinete, com assessores, que, se disputasse o campeonato brasileiro, Alves certamente estaria na zona de rebaixamento. A imagem da Câmara e desse partido nunca estiveram tão em baixa, e Henrique Alves tem dado a isso uma inestimável contribuição.

O Partido dos Insatisfeitos com o Governo (PIG) sequestra o presidente da Câmara


Escalado pelo vice-presidente, Michel Temer, para se tornar presidente da Câmara, Alves tinha também a incumbência de isolar seu aliado de véspera, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), apoiado pela ala contrária a Temer (dos neófitos Sérgio Cabral e Eduardo Paes). Alves trazia as credenciais de um macaco velho da política.

Cunha, que teve seus interesses contrariados por Dilma (ela afastou seus indicados em Furnas Centrais Elétricas), resolveu agir no Congresso como o fio desencapado de todos os descontentamentos. Cunha usou como trunfo, para derrotar Temer e Alves, a insatisfação generalizada do PMDB contra o torniquete aplicado por Dilma. Deu certo. Tornou-se líder do partido - ou, mais exatamente, líder da oposição do PMDB ao governo Dilma.

Derrotado em sua primeira batalha, Alves, ao invés de contribuir para superar o problema e enfraquecer Cunha, fez exatamente o contrário. Deu asas à imaginação oposicionista daquele que se tornou o partido majoritário no Congresso, o Partido dos Insatisfeitos com o Governo (PIG).

O resultado prático foi que o PMDB na Câmara, que em 2010 e até 2011 parecia finalmente unificado sob a liderança de Temer, hoje está mais balcanizado que nunca. Tem mais alas que uma escola de samba, mas sem qualquer sincronismo. Suas dissensões foram conformando facções cada vez mais famintas e mais irritadas com a crise de abstinência a que foram submetidas durante a presidência Dilma.

Ao ser confrontado com a rebelião entre seus quadros, o presidente da Câmara rendeu-se aos amotinados e se somou ao time dos insatisfeitos. Tornado refém, passou a também empunhar uma faca posta no pescoço do governo.

A estratégia era fustigar o Executivo com o discurso de independência do Legislativo; como se, para ser independente, o Congresso devesse necessariamente ser de oposição. Assim, o presidente da Câmara encobria sua própria fragilidade e isolamento. Sua direção era a da biruta, mirando para onde batesse o vento. Sem se importar muito com a direção, os ventos lhe seriam sempre favoráveis.

Governo dividido


Desde 1988, poucas vezes se viu um presidente da Câmara dos Deputados em franca oposição ao governo. Por vários momentos, a presidência Dilma passou muito próximo da experiência do que os cientistas políticos chamam de governo dividido – ou seja, quando o Executivo é governado por um determinado partido, mas o Legislativo está sob o comando de um partido em oposição.

Nesses tempos nebulosos, tratou-se de uma experiência esdrúxula de governo dividido, pois o principal partido que levou a Câmara a se comportar como oposição conta com o vice-presidente da República, além de muitos ministérios e cargos dirigentes em empresas estatais e autarquias. O PMDB, assim como tem ocorrido ultimamente com o PSB, tem feito oposição eventual a um governo com o qual está comprometido até o último fio de cabelo. Comprometido, mas não compromissado.

Em sua política de independência, Alves tomou duas iniciativas emblemáticas. Reservou um jatinho da FAB para um almoço no Rio de Janeiro com o candidato da oposição, Aécio Neves. Aproveitou o ensejo para levar seus familiares para assistir ao jogo da seleção brasileira no Maracanã. A imprensa brindou o acontecimento com manchetes garrafais. A segunda iniciativa foi a de empunhar a bandeira do orçamento impositivo, proposta tão enfaticamente defendida que fica a dúvida de por que nenhum governo estadual ou prefeitura de seu partido a adota com o mesmo entusiasmo.

Com Câmara à deriva, Donadon escapa da cassação


A Câmara, sob o comando de Alves, não ficou mais independente. Ficou à deriva. A tenebrosa sessão que manteve o mandato de Natan Donadon foi o fato consumado cristalino da absoluta falta de comando político sobre a Casa, papel essencial de um presidente. Entre parlamentares, o diagnóstico é claro. Faltou liderança de seu presidente. Faltou empenho. Faltou coordenação. Faltou autoridade política e moral. Resultado: faltaram votos para garantir a cassação.

O macaco velho, depois de pisar em todas as cascas de banana possíveis e imagináveis, escorregou mais uma vez. Sua presidência estatelou-se no fatídico 28 de agosto, quando a cassação de Donadon, tida como líquida e certa, simplesmente não aconteceu.

Para remendar o estrago, Alves, prostrado diante do vexame, saiu pela tangente. Declarou que não mais admitiria votações de cassação de mandato com voto secreto. Todos os partidos se viram envolvidos direta ou indiretamente pelo escândalo Donadon e, finalmente, se articularam para evitar um mal maior. Votaram e aprovaram em segundo turno a PEC 349, que dormia nas prateleiras. Ele agora segue para o Senado, que fará de tudo para sepultá-la.

Uma nau sem timoneiro


A proeza da aprovação parcial da PEC 349 está longe de salvar a reputação de Alves, que figura, na opinião de muitos parlamentares, como possivelmente o mais sofrível de todos os presidentes que a Câmara já viu. Ele hoje não representa a maioria da Casa - apenas aderiu a ela. Ele não representa o bloco governista, aquele que o elegeu presidente. Ele não representa a coalizão PT-PMDB, que está em crise. Ele sequer representa seu próprio partido, que se sente mais à vontade para seguir as ordens de Eduardo Cunha.

A maior dúvida que acompanha Alves, como uma sombra, a cada vez que ele se senta na cadeira de presidente, é como um deputado que não representa nada nem ninguém irá presidir a Casa até 2014.

Embora esteja presidente, Henrique Eduardo Alves não parece e não age como um presidente. À frente de um barco à deriva, sua gestão crava como epitáfio a música de Paulinho da Viola:

“Não sou eu quem me navega,
quem me navega é o mar
É ele quem me carrega
como nem fosse levar”.


*Antonio Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do instituto

Fonte:.http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22644


Leia também:http://brasileducom.blogspot.com.br/2013/01/dilma-refem-do-pmdb.html

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A geração bit se assenhora da comunicação, mas a revolta está no ar


Uma guerra de titãs se processa no campo da comunicação e da tecnologia da informação, envolvendo pelo menos três atores essenciais: os grandes grupos financeiros, as grandes corporações do mundo da informação e da comunicação e os governos. A velha mídia está derretendo sob o sol a pino de novas formas de consumo da informação.

Antonio Lassance* - Carta Maior
 
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A velha mídia está derretendo sob o sol a pino de novas formas de consumo da informação. Os abalos sofridos por ícones tradicionais do jornalismo se sucedem. O que sobrará dos velhos modelos?

Uma guerra de titãs se processa no campo da comunicação e da tecnologia da informação, envolvendo pelo menos três atores essenciais: os grandes grupos financeiros (bancos e seus financistas), as grandes corporações do mundo da informação e da comunicação e os governos.

Quem agora puxa o ritmo das transformações na comunicação são o que chamo de barões digitais, ou Geração Bit (de Bill Gates, da Microsoft; do finado Steve Jobs, da Apple; Mark Zuckerberg, do Facebook; Sergey Brin e Larry Page, do Google, Jeff Bezos, da Amazon, e tantos outros que não param de surgir), todos de trajetória meteórica.

Por enquanto, eles agem em conluio com os velhos gigantes das telecomunicações. O problema é que o principal negócio das telecons está se transformando. Dentre em breve, será quase exclusivamente o de entregar os produtos empacotados pelos barões digitais, pura e simplesmente. A sorte das telecons está, literalmente, por um fio. Se houver inovações que tornem a interligação física dispensável ou menos rentável do que o necessário para cobrir os custos de sua infraestrutura, as telefônicas passarão a ser a bola da vez do canibalismo dos barões digitais.

Mais cedo ou mais tarde, os velhos capitães das telecons terão que encarar diretamente os criadores da atual fase da era digital. Ambos os lados irão reinstalar o teatro que, há um século, se dava em torno de ferrovias, petróleo, energia elétrica e siderurgia. Na segunda metade do século XIX, esses barões ladrões se abraçavam e se apunhalavam o tempo todo. Algo similar deve ocorrer na era digital entre o baronato sem fio e o com fio, em duelos em que as armas serão telefones (fixos e móveis), computadores portáteis e televisores. Nenhum deles deve desaparecer. A grande incógnita não é quem irá vencer, mas sim como e quando os barões digitais da Geração Bit irão enterrar os telecons, e se alguém dentre as telefônicas irá mudar de lado a tempo para evitar ficar pequeno, como aconteceu com a IBM, a Xerox e a Kodak.

O entrechoque vai ditar os novos rumos da comunicação global. Aqueles que prevalecerem desse confronto irão transformar definitivamente o mundo das comunicações.

Os Cavalos de Troia
Os governos aparecem como peças chave dessa equação. Eles são propulsores das estratégias comerciais e industriais dos grupos econômicos que estão à frente das inovações que reinventam o mundo em que vivemos. Patrocinam as estratégias desses grupos, compram seus produtos e os alimentam de informação vendida como notícia.

O complexo militar é normalmente responsável por investir recursos maciços em tecnologias inovadoras que, posteriormente, ganham versões de mercado. Hoje se sabe o quanto tais tecnologias continuam sendo capturadas por objetivos militares e de influência geopolítica.

Celulares, tablets, notebooks e televisores, vendidos em lojas de varejo e dados aos montes em época de Natal, aniversário e Dia dos Namorados, são presentes de grego que trazem em suas barrigas soldados digitais (como era Edward Snowden), recrutados para abrir os portões das atividades, das preferências e dos pensamentos de cidadãos, empresas e governos, onde quer que estejam.

A comunidade de informação dos EUA continua se banqueteando de todos nós, a cada clique, como vermes escondidos. Graças a Snowden, descobrimos que o grande problema da internet não são os piratas, são os corsários, ladrões de informações preciosas a serviço dos governos. Ao invés de empunharem a bandeira de ossos cruzados, vestem uniformes e hasteiam as bandeiras de seus países.

Em meio a tudo, o outrora grande negócio do jornalismo tornou-se apenas um detalhe. Neste instante, completa-se uma longa trajetória que começou, no século XIX, com o jornalismo, enquanto profissão - “profissão liberal”, como se dizia no passado daqueles que trabalhavam por conta própria e recebiam o quanto lhes era pago diretamente por seus clientes. No século XX, o jornalismo abriu um grande mercado – o da comunicação de massa. Suas corporações carregavam o portentoso título de “a grande mídia”. Eram titãs nos velhos tempos. Alguns ainda são. Em pouco tempo dirão, como a personagem do filme “Crepúsculo dos deuses”: “eu sou grande! O mundo é que ficou pequeno”.

A trajetória hoje se completa com o jornalismo e a informação sendo transformados simplesmente em um produto. Um produto cada vez menor, rasteiro e descartável. Em uma visão dialética, se percebe que esse já era o destino para o qual os grandes veículos estavam transformando o caráter da notícia. Hoje, provam sua amarga colheita e se sentem envenenados.

Entre tantos sinais do derretimento colossal, o mais recente e apoteótico foi a compra do Washington Post pelo fundador e chefão da Amazon.com, Jeff Bezos. O Post custou o preço de um quadro de Paul Cézanne.

Pior destino tiveram muitos outros jornais. Eles se dividem entre os que desapareceram, os que permanecem em estado vegetativo e os que entraram em autofagia. A maioria resiste fazendo dos jornalistas suas principais vítimas, com demissões em massa e enxugamento das redações e editorias.

O titã tornou-se, ao fim, um Titanic. Foi essa a metáfora mais emblemática da venda do Washington Post a Bezos. O jornal encontrou seu iceberg, e é sobre ele que o negócio do jornalismo, prostrado, lança suas esperanças de abrigar-se. É sobre sua plataforma gigantesca e reluzente que se busca refúgio e alívio contra um destino pior: afundar.

O mesmo Bezos já havia vaticinado:

"A internet está transformando quase todos os elementos do negócio das notícias: reduziu os ciclos noticiosos, erodiu as fontes confiáveis de receita e abriu espaço a novas formas de competição, entre as quais as que têm pouco ou nenhum custo para a produção de notícias". (“Jeff Bezos, el multimillonario que compró el alicaído Washington Post”, BBC, 6/8/2013).

A notícia como mercadoria
O grande negócio do jornalismo, ao transformar a notícia em mercadoria, hipotecou sua independência. O “jornalismo independente” significava, no princípio, que o jornalismo era um negócio próprio, autônomo. Sua principal fonte de receita era a venda em bancas e as assinaturas. É esse modelo que está em crise.

Cada vez mais, os velhos jornalões estão sendo comprados ou por grandes financistas (como John W. Henry e Warren Buffett) ou por grupos de telecomunicações e novas mídias digitais (como Carlos Slim e, agora, Bezos).

Bezos é o primeiro da Geração Bit a entrar pela porta da frente do mundo jornalístico. Antes dele, e pela porta dos fundos, o Google ameaçou fazer um estrago no jornalismo tradicional similar ao provocado pelo Youtube na indústria do entretenimento. Rodando resumos de notícias extraídas diretamente dos jornais, em tempo real, em seu motor de busca, ele provocou uma diminuição na propensão dos leitores de gastarem um clique a mais para visitar as páginas dos jornais, definhando a estatística que alimenta sua publicidade.

O jornalismo de grande escala é cada vez menos um negócio em si e cada vez mais uma parte de outros negócios. É um item a mais na grande lista de produtos das grandes corporações digitais de entretenimento.

Porém, a dialética da nova comunicação digital, se em escala global levou à sua transformação completa em mercadoria, em escala local produziu uma nova versão do jornalismo enquanto atividade militante, dedicada ao desmascaramento das relações ocultas entre o público e o privado. Também tem se revelado fundamental à proclamação da identidade de novos atores, com novas agendas na relação entre Estado e sociedade.

De fato, esse jornalismo militante estava presente na origem do jornalismo contemporâneo. Desde os tempos longínquos de Marat (1743-1793) e seu jornal “O Amigo do Povo”, fagulha essencial para a Revolução Francesa. Também no jornalismo operário do século XIX e na imprensa revolucionária dos partidos proscritos pelos governos aristocráticos da velha Europa. Estava igualmente visível na primeira imprensa dos Estados Unidos, que Alexis de Tocqueville (1805-1859) registrou como uma das bases essenciais “Da Democracia na América” (título de seu livro de 1835). Naquela república que, segundo ele, trazia um padrão de governança que se espalharia por todo o mundo, havia um cidadão com uma característica peculiar: o gosto por ler jornais.

Não à toa, ali se conformaria uma ética e uma estética do jornalismo que se tornariam um padrão internacional, pelas mãos do célebre Joseph Pulitzer (1847–1911). Pulitzer, celebrizado pelo prêmio que funciona como um Nobel para os profissionais da área, reproduziu seu modelo de “independência”, zelo pela precisão das informações e rigor na apuração. Consolidou também a preferência por jornais de títulos grandes e chamativos, imagens fartas, frases curtas, objetivas, diretas.

É importante lembrar o contexto de Pulitzer, de combate intenso do jornalismo contra os barões ladrões e crítica à política corrupta, capturada pelo interesse dos cartéis. Pulitzer fez parte de um processo importante de formação da consciência nacional que contribuiu para a luta contra a cartelização econômica, o que forçou os partidos Republicano e Democrata a um realinhamento de suas plataformas e de suas relações com a sociedade.

Nos tempos de Pulitzer, o leitor era a fonte essencial da sustentação dos veículos. Para vender, os jornais, em alguma medida precisavam expressar o ímpeto por mudanças. Paulatinamente, esse modelo foi superado. O jornalismo baseado no interesse do leitor foi transformado em jornalismo comercial, no qual a publicidade passou a ocupar um espaço fundamental. Ele já não podia, francamente, se reivindicar independente. Ele não podia revelar suas relações íntimas com os grandes grupos econômicos e seus governos liberais. Como alternativa, sua pregação iconoclasta, sua simulação de independência e sua indignação se voltaria contra movimentos sociais, permanentemente estigmatizados, e contra governos progressistas, quase sempre nivelados por baixo e carimbados de corruptos.

A situação chegou ao paroxismo no Brasil, onde, como lembra o professor Mário Schapiro, a corrupção e as práticas ilícitas “parecem corresponder a um mercado de ficção: o mercado em que só há a demanda, mas não há a oferta" (SCHAPIRO, Cartel no Metrô e as Respostas do Direito. Blog do Estadão, 2/8/2013). Há corruptos por todo o Estado, mas o mercado de corruptores é apenas negócio.

O novo mundo da comunicação se encaminha para o que Manuel Castells (Communication, Power and Counter-power in the Network Society. International Journal of Communication, vol. 1, 2007, págs. 238-266) denominou “autocomunicação de massa”. Uma comunicação que não é mais absolutamente unívoca e depois massificada, e sim proveniente de uma profusão de atores e autores. Por meio da troca multimodal, algumas mensagens geradas por muitos e endereçadas a muitos ganham uma notoriedade viral.

Essa comunicação, dificílima de ser engarrafada pelos meios de comunicação tradicionais, é revolucionária por criar e recriar, o tempo todo, novos padrões comunicativos e narrativas inovadoras. Ao mesmo tempo, é uma comunicação descartável, que se desmancha no ar. Tende a gerar um Walter Cronkite por dia (Cronkite, 1916-2009, foi o respeitado âncora da CBS entre os anos 1960 e 1980), descartando-o no dia seguinte. É essa lógica do efêmero, movida pelo “on-line” e pela inovação de formatos e narrativas, que torna constante o descarte de profissionais, a repaginação dos layouts e a migração para novas plataformas eletrônicas. Estamos diante de um processo acelerado de destruição da atividade jornalística tradicional. O jornalismo não está morrendo. Está se reinventando. O que está morrendo é uma forma específica e datada de jornalismo.

A revolta da comunicação das ruas
Frente a um novo contexto e muitas dificuldades, a velha mídia do Brasil pisou distraída nas jornadas de junho - como foram apelidadas as manifestações ocorridas neste ano. Diante de novos padrões comunicativos e narrativas inovadoras, produzidas por atores multifacetados, os veículos de maior audiência resolveram brincar com fogo.

Os maiores veículos não estavam seriamente interessados em saber o que estava acontecendo, e sim em direcionar o alvo do desgaste. Os especialistas de plantão eram os de sempre, inaptos a dar opiniões que realmente fizessem algum sentido em relação às pautas das manifestações.

Em pouco tempo, uma imprensa desacostumada a uma pluralidade de atores, sobre os quais praticou a delicada censura do silêncio, tornou-se ela própria um alvo evidente dos protestos. As grandes multidões eram compostas de inúmeras e diversas “multidinhas”. Em comum elas tinham, no mínimo, uma desconfiança em relação à velha mídia, mas alguns grupos demonstraram uma franca aversão e até ódio aos veículos mais tradicionais.

A tentativa da velha mídia de dublar as opiniões das multidões, com uma tradução enviesada por seus próprios interesses, gerou revolta e foi rechaçada de forma agressiva pelos manifestantes, que hostilizaram e expulsaram todos os jornalistas que se apresentaram na multidão com o símbolo dos grandes grupos de comunicação. Mesmo alguns de nossos melhores jornalistas, críticos e acostumados a mostrar o outro lado, foram nivelados por baixo. Algo que não se justifica, mas se explica.

De positivo, houve a eclosão de uma infinidade de comunicadores populares, com uma ideia na cabeça e um smartphone ou uma pequena câmera na mão. No Brasil, um desses grupos ganhou identidade em torno da Mídia Ninja. Mas há uma centena de pessoas e de grupos populares de comunicação espalhados pelo Brasil, surgidos em torno da vontade de mostrar o que ninguém vê. Se somarmos a isso a comunicação popular comunitária, a conta passa dos milhares. A única diferença para os Ninjas é que eles não surgiram das manifestações de ontem, e sim há um bom tempo, e ainda não escreveram seu manifesto.

Ao por em ação um novo padrão comunicativo, colocam em xeque o padrão tradicional de comunicação jornalística, publicitária, de eventos (como a Copa), e mesmo da comunicação digital. O jornalismo impresso era responsável por apresentar, diariamente, “uma condensação totalizante de determinada visão de mundo”, como lembra Maringoni (Jornal, o fim de uma concepção). O jornalismo alternativo e popular ganha sentido com uma visão horizontal, crítica da sobredeterminação do mercado sobre as políticas públicas do Estado. Longe do mito da isenção e da imparcialidade, sua objetividade é garantida justamente pela possibilidade de estar próximo à ação popular ou de ser parte dessa própria ação.

Também essa visão engajada estava presente na origem do jornalismo. No entanto, o novo padrão comunicativo não é mais o velho engajamento dos publicistas, como o de Émile Zola (1840 - 1902) em seu “J’accuse”, ou o jornalismo de Samuel Weiner (1912-1980), que tomava partido pró-Getúlio Vargas (1930-1945). O velho publicismo e o jornalismo partidário faziam, no primeiro caso, um apelo à consciência nacional. A comunicação popular e alternativa é parte do próprio alinhamento de setores da sociedade que ganham expressão comunicativa. Em meio a uma feroz disputa política, os velhos publicistas eram heróis da consciência nacional adormecida. Hoje, os que fazem a comunicação de movimentos sociais e de atos de revolta buscam sobretudo registrar e potencializar, e não orientar tais iniciativas.

O engajamento hoje se dá na relação com movimentos populares, dos quais sua comunicação brota e depende. Se (ou quando) tais movimentos se recolhem, essa comunicação tende ou a murchar ou a ganhar maturidade e permanência, como foi no caso da experiência da TV dos Trabalhadores. Quando não, hibernam junto com um outono das mobilizações, até que ressurjam com força, ou ganham nova forma e novo sentido.

O jornalismo mambembe diante dos governos que se comportam como empresas
Infelizmente, as formas de comunicação plurais, de pequena escala, que interessam ao cidadão que vê o mundo de sua janela, estão fora do radar da comunicação governamental. Os governos, que deveriam ser os principais interessados em comunicar para a cidadania, agem no mercado publicitário sem qualquer diferença em relação ao que fazem as fábricas de cerveja, as lojas de varejo e as montadoras de automóvel.

Há preocupações extremadas com a possibilidade, por exemplo, de financiar mídias que cobrem protestos - possivelmente, mais pelo fato de que as manifestações criticam todos os governos, como é próprio da luta pela cidadania. A luta por direitos sempre foi antecipada por revoltas, algumas violentas. Do ludismo dos ingleses e das sabotagens dos franceses, que jogavam seus “sabots” (tamancos) dentro das máquinas, contra a Revolução Industrial; dos protestos violentos de 1º. de maio de 1886 pela redução da jornada de trabalho; das passeatas pelo voto das mulheres (as sufragistas); das greves operárias de 1978 e 1980 que confrontaram a ditadura no Brasil; dos Occupy, nos EUA; dos indignados, na Espanha, aos revoltosos da Primavera Árabe.

Os movimentos que historicamente se tornaram vitoriosos foram aqueles que transformaram a revolta e a destruição em politização das pautas e em partidarização de bandeiras que foram sendo progressivamente institucionalizadas, ou seja, se tornaram regras. Uma dessas bandeiras ainda à espera de quem as empunhe com mais firmeza é a da democratização da comunicação.

Dizem que não se pode financiar mídias que, entre outras coisas, podem verbalizar protestos, mas não se tem pudor algum em anunciar em programas cujos apresentadores defendem que bandido bom é bandido morto, ou programas humorísticos em que as principais piadas são contra negros, mulheres, nordestinos e homossexuais. Se os índices de audiência justificam o gasto, não importa o gosto; não importa, nem mesmo, a mensagem anti-cidadã que pronunciem. Financiar o conservadorismo é normal. Financiar a mudança é um perigo.

Os governos chamam de “mídia técnica” aquela que é medida pelo Ibope e pelo Índice de Veiculação de Circulação de jornais e revistas (o IVC). Mas esquecem de dizer que o Ibope e IVCs dessas mídias é diariamente alimentado por um mercado de informações privilegiadas e das entrevistas exclusivas concedidas apenas para “os grandes”.

A informação produzida pelo Estado é um bem imaterial, mas que custa dinheiro público para ser produzida. Pois ela é rotineiramente dada privadamente de bom grado, conforme relações de amizade e interesses de evidência, ou jogada pela janela da cizânia de autoridades maiores e menores dos próprios governos. Sem licitação, sem transparência, sem critérios republicanos. Muitas vezes em segredo, o que é algo proibido pela lei que rege o serviço público (salvo raras exceções), mas é afrontosamente tolerado sob o charmoso apelido de “off”.

A “mídia técnica” gasta absurdamente mais recursos em TV do que em rádio, embora o consumo de informação dos brasileiros pelo rádio esteja praticamente no mesmo patamar do da TV. Gasta-se injustificadamente mais do que se deveria em jornais e revistas do que em internet. Gasta-se muito com poucas empresas de comunicação, e pouco com os profissionais que fazem a comunicação. Afinal, a esmagadora maioria dos profissionais da comunicação está fora do pequeno circuito da velha mídia.

Esse é um debate essencial e que precisa mudar de patamar. É preciso olhar ao redor o que acontece no mundo da nova comunicação digital e no que ocorreu bem debaixo de nosso nariz, após os protestos. A comunicação alternativa e popular não pode ser tratada como um jornalismo mambembe, que sobrevive de centavos jogados pelos transeuntes sobre um chapéu virado.

Sua principal virtude é tratada como um defeito pela visão oficial, dado o viés meramente comercial. A comunicação popular e a alternativa não são estritamente jornalismo, são comunicação em sentido amplo. Sua principal atividade não é apenas relatar e opinar (isso também), e sim dar voz, documentar ações e personagens muitas vezes invisíveis, contar histórias de quem é silenciado pelos meios tradicionais. Sua vocação não é a da massificação, mas a de públicos segmentados – melhor seria dizer, públicos especiais. Ela caminha pelo que Castells chama de “pequenos meandros”, as redes de relacionamento social que precederam as ferramentas eletrônicas criadas para facilitar a produção e entrega de suas mensagens.

Essa comunicação não se dedica ao mercado, e sim à cidadania. Talvez por isso a maioria das áreas de publicidade dos governos, colonizada pela visão marqueteira e focada nos índices de popularidade, não sabe exatamente o que fazer com ela.

Deveria ser acolhida de forma pública e transparente nas estratégias de financiamento das políticas públicas que interessam ao fortalecimento da pluralidade, da democracia, da radicalização dos direitos de cidadania. É claro que essa possibilidade inovadora só poderia existir em governos que também não encarassem a notícia como mercadoria. É difícil encontrá-los.

Assim que Jeff Bezzos comprou o Washington Post, surgiram várias especulações sobre o que ele afinal pretende. Se Bezos estiver pensando grande, pode criar um novo modelo de negócio para o jornalismo, fazendo desaparecer muitos jornais, assim como, com o Kindle, seu leitor de livros digitais, ajudou a fechar várias livrarias por todo o país. Outra hipótese é a de que, se estiver pensando pequeno, Bezos usará o Post apenas como instrumento para aumentar sua influência em Washington - convenhamos, Bezos não precisa do Post para isso, basta seu dinheiro. Alguns ainda disseram que ele quer, além da marca do Post, se aproveitar de uma parcela preciosa da inteligência nacional, aquela formada pelo excelente time de profissionais da notícia que vive sob o manto e o mito do jornal que derrubou Nixon. Provavelmente, Bezos está pensando não em uma, mas em todas as opções anteriores.

A que me parece mais instigante é justamente a da inteligência nacional. No Brasil, ela está sendo demitida dos jornais e partindo para voos solo, em blogs ou em novas organizações coletivas, micro, pequenas e médias; comunitárias ou cooperativas. Isso deveria interessar aos governos que pretendam uma política ousada e republicana de comunicação, capaz de relacioná-la mais aos direitos de cidadania do que ao Ibope. Uma política que se aproveitasse mais da extraordinária capacidade e inteligência dos jornalistas do que das marcas dos veículos que as transmitem. Afinal, tais marcas são efêmeras e decadentes. É melhor investir em quadros de Paul Cézanne. No futuro, eles valerão bem mais.

*Antonio Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.

Publicado originalmente no site da Carta Maior, onde  há  versão em PDF e links remissivos

http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6243

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O inferno astral do neoliberalismo

O que está ruim ainda tem a chance de ficar pior. A crise profunda do neoliberalismo tem tido como efeito político a ressurreição do conservadorismo. Se os novos liberais perderam força, os conservadores tomaram muito de seu espaço. A última vez em que isso aconteceu foi após a I Guerra Mundial, com o nazismo e do fascismo.
Antonio Lassance*

         O velho liberalismo romântico
         O neoliberalismo é uma ideologia, uma visão de mundo. Mais precisamente, é uma visão de mundo adepta do individualismo, da competição, do Estado mínimo e da primazia do mercado, o que justifica sua filiação ao velho liberalismo. O que havia de novo nesse liberalismo?
         O velho liberalismo de Adam Smith reservava funções claras ao Estado, mesmo que sumárias, como a defesa do território, a proteção (que hoje preferimos chamar de segurança pública), o recolhimento de impostos e a política monetária. Mas nenhum liberal clássico, ao defender o indivíduo, deixava de olhar a sociedade como um todo. A liberdade individual supostamente promoveria o bem estar da sociedade. Smith externava preocupação com o fato de que seus concidadãos, que vestiam o mundo, estavam em farrapos.
         Para o neoliberalismo, porém, não existe sociedade; o que existe são indivíduos (frase de Margareth Thatcher, ex-primeira ministra do Reino Unido). Não existe serviço público que não possa e não deva ser prestado por empresas privadas (frase de David Cameron, atual primeiro ministro britânico).
         Para o liberalismo clássico, as corporações eram um problema a ser atacado. “A riqueza das nações”, de Adam Smith, criticava a proteção estatal às companhias comerciais, que exerciam atividades mercantis de forma monopolística, financiadas e escoltadas com recursos públicos. Para o novo liberalismo, as corporações são “a firma” e são equiparadas aos indivíduos. São pessoas jurídicas e têm por trás de si acionistas (indivíduos). Ao contrário da versão original, para o neoliberalismo a riqueza dos indivíduos é apátrida, e não uma riqueza “das nações”.
         Outro fator de novidade do neoliberalismo era a globalização, uma marcha tida como inexorável para o domínio absoluto do globo por essas grandes corporações (comerciais, industriais, mas sobretudo financeiras). Bem diferente da ideia de divisão internacional do trabalho, que tinha como base as nações e o trabalho, e não as empresas e os fluxos financeiros. Romanticamente, Smith apontava um caminho para cada país encontrar seu lugar ao sol, produzindo de acordo com sua vocação. Deve-se dar um desconto ao romantismo de Adam Smith, pois ele era contemporâneo da poesia de Lord Byron, da música de Beethoven, da pintura de Delacroix. O mundo respirava romantismo por todos os lados e parecia que o progresso salvaria a todos.
         A visão do neoliberalismo não é nada romântica. Os neoliberais são realistas até o último fio de cabelo. Eles são herdeiros da mutação genética introduzida no velho liberalismo pelo darwinismo social de Herbert Spencer, na segunda metade do século XIX. Sua vinculação a Friedrich Hayek tem traços claros que os colocam mais como apóstolos da lei do mais forte do que da lei do livre mercado.
         Ascensão e queda do neoliberalismo
         A construção do neoliberalismo desenrolou-se aos soluços, com inúmeros sobressaltos. Ele sobreviveu em estado vegetativo por décadas, até ganhar uma dimensão política avassaladora com o tridente formado por Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha, nos anos 1980, personificado nas lideranças de Ronald Reagan, Margareth Thatcher e Helmut Kohl.
         Sua força política empunhava um ideário econômico agressivo, cuja síntese mais propalada tornou-se conhecida como o “Consenso de Washington”.
         O ciclo do neoliberalismo, quase como um ciclo biológico tradicional, durou cerca de vinte e cinco anos. É difícil encontrar hoje em dia algo que não traga sinais dessa herança. Mesmo com seus abalos, ao final dos anos 1990, ele ainda ganhou uma sobrevida por meio de governos da autointitulada “terceira via”. Sob este guarda-chuvas está uma legião composta pelos democratas nos EUA (Bill Clinton), socialdemocratas da Europa (Tony Blair, no Reino Unido; Gerhard Schröder, na Alemanha; Lionel Jospin, na França; Massimo D’Alema, na Itália) e parte da América Latina (como Fernando Henrique Cardoso, no Brasil; Carlos Andrés Perez, na Venezuela; Carlos Menem, na Argentina; e todos os governos da Concertación chilena).
         O inferno astral
         O neoliberalismo sofreria um profundo abalo e entraria definitivamente em seu inferno astral a partir de 2008, quando se ouviu um dobre de finados não na periferia do sistema, mas na catedral do capitalismo, em Nova York. Era o enterro da Lehman Brothers Holdings Incorporated.
         Mas uma das características do neoliberalismo, além da ousadia e do cinismo, é a teimosia. Ele insistia em disputar projetos políticos e em ganhar eleições com seus arautos. Neles residiam as últimas esperanças de dar a volta por cima, recobrar as energias e reinventar formas de acumulação que evitassem que o capitalismo carregasse a pecha de ser um grande prejuízo para a vida da maioria dos mortais.
         Para a surpresa dos incautos, o neoliberalismo conseguiu eleger novos garotos-propaganda. Na pátria-mãe, o Reino Unido, David Cameron; no Chile, Sebastián Piñera; na Alemanha, Angela Merkel.
         O Reino Unido é o exemplo mais retumbante do fracasso estrutural do neoliberalismo. Sua política econômica tem como eixo a redução de serviços públicos e a tentativa de desmonte de estruturas de Estado, uma retórica persistente, mas pouco efetiva. O inglês mantém um alto grau de prestação de serviços públicos estatais. Conjunturalmente, a inflação está em alta, com as projeções beirando os 5% - pois é, eles não vão cumprir a meta de inflação, que por lá está fixada em 2%. O desemprego não só está em alta, como é o maior dos últimos dois anos.
         A Escócia de Adam Smith, em má homenagem ao credo neoliberal, ostenta um grande número de serviços públicos gratuitos à população. Seu Estado de bem-estar social faz inveja ao dos ingleses. Os escoceses já haviam conseguido um parlamento próprio e agora têm ganhado mais adeptos em favor de sua independência. A política de desmonte, do governo Cameron, tem ajudado em muito a aumentar a adesão à proposta de secessão. As receitas da Escócia são suficientes para mostrar que, se alguém pode sair perdendo com a separação, é a Inglaterra.
         No País de Gales, a seção local do partido conservador cogita até trocar de nome e reclama de sua associação ao legado de Margareth Thatcher. A má fama do thatcherismo, segundo pesquisas, os prejudica eleitoralmente.
         No Chile, Piñera enfrenta as maiores manifestações desde Pinochet. Além dos estudantes nas ruas, grande parte dos moradores das cidades do sul do país, dependentes do gás subsidiado para se proteger do frio, protesta contra o reajuste do produto e o encarecimento do custo de vida.
         Na Alemanha, Merkel tem feito pouca coisa que pode ser considerada verdadeiramente neoliberal. Tanto que até seu companheiro de partido, Helmut Kohl, lhe faz críticas sistemáticas. Os socialdemocratas alemães parecem bem mais apegados ao neoliberalismo e dizem que a Alemanha vai pagar caro pelas “vacilações” de Merkel, que deveria ser mais dura em cobrar ajustes rigorosos em toda a zona do Euro.
         O conservadorismo e seu contraponto
         Mas a hora não é dada a comemorações. O que está ruim ainda tem a chance de ficar pior. A crise profunda do neoliberalismo tem tido como efeito político a ressurreição do conservadorismo. Se os novos liberais perderam força, os conservadores tomaram muito de seu espaço. A última vez em que isso aconteceu foi após a I Guerra Mundial, com o nazismo e o fascismo.
         O conservadorismo tem como bandeiras o combate aos imigrantes, o protecionismo, o militarismo e o gasto social seletivo. Quer reduzir a prestação de serviços públicos e trocá-los por cheques, “vouchers” e descontos de imposto de renda, mas não exatamente por razões privatistas. Há um duplo propósito. Torna possível financiar empresas privadas nacionais para prestar serviços públicos essenciais e fecha a porta aos imigrantes, que vivem na ilegalidade e não podem receber esses benefícios focalizados.
         O conservadorismo que tem no “Tea Party”, dos EUA, seu movimento mais proeminente, é protecionista, nacionalista, militarista, xenófobo, intolerante Os neoliberais não são a fonte desses cacoetes. Seus vícios originais são outros, embora aceitem compartilhá-los, principalmente o militarismo, se isso justificar vantagens competitivas.
         Neoliberais apoiam a imigração como forma de atrair talentos de qualquer parte do mundo e reduzir o custo da mão-de-obra, assim como para manter uma ampla parcela de trabalhadores apartada de direitos sociais. São a favor do direito de mulheres muçulmanas escolherem se querem ou não usar a burka, pois sua proibição desrespeita a liberdade individual. São cautelosos quanto ao militarismo, pois seus gastos são elevados. Henry Kissinger e James Baker escreveram, meses atrás, um artigo condenando a intervenção na guerra da Líbia, com base em um cálculo da relação custo-benefício para os Estados Unidos.
         Na crise financeira de 2008, os neoliberais foram, em grande medida, “liquidacionistas”, como o velho Hayek pregava. Disseram que os bancos em dificuldades deveriam ser deixados à sua própria sorte e quebrarem, se preciso fosse.
         Se há um contraponto político ao conservadorismo, ele ronda a América do Sul. Está pelo Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Venezuela, Equador e Peru. Com defeitos, limitações, tibiezas e inúmeros problemas. Na Europa e nos Estados Unidos, os movimentos de esquerda são de uma espontaneidade sem luxemburguismo (o da Rosa, não o do Vanderley). Dependem de associações civis pouco conectadas à luta política nacional e têm um profundo descrédito pelos partidos, inclusive os de ultraesquerda, afogados em sua própria retórica e empacados em sua falta de projeto.
       
*Antonio Lassance é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e professor de Ciência Política. As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.