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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

América Latina - fim de um ciclo

12/01/2014 - Elaine Tavares em seu blogue Palavras Insurgentes

Ao se completarem dez meses da morte de Hugo Chávez, o panorama que se vislumbra na América Latina é desanimador.

A Venezuela “cria cuervos”, agarrada com a elite financeira do país que põe a economia no chão.

O Equador se rende as mineradoras e aos ditames do Banco Mundial.

O Brasil, que nunca chegou a trilhar os caminhos do socialismo, cada vez mais mergulha no pragmatismo do negócio.

Países da América Central que estavam inclinados a uma parceria com a Venezuela também se desviam.

A Bolívia, apesar de forte influência indígena, igualmente vai se rendendo às grandes empresas privadas, que formam um perigoso poder no país.

O Uruguai, que tem sido a estrela da vez, avança em reformas que muito pouco mudam a estrutura do sistema de governo.

Ao que parece, a era das transformações está encerrada e o caminho para o socialismo, que era uma promessa do líder venezuelano, está, por hora, interrompido.

Como era de se esperar, o desaparecimento de Chávez foi também o desaparecimento do motor teórico do processo “revolucionário” que começou com a chegada desse militar incomum ao poder em 1998.

Quando Chávez chegou à presidência da Venezuela o mundo estava então dominado pelo pensamento neoliberal. Parecia não haver saída desse labirinto de pensamento único.

Na América Latina apenas Cuba seguia resistindo, e o presidente venezuelano entrou no cenário com um discurso duro contra o imperialismo e o capital.

No princípio foi tratado como um anacronismo, uma falha na matrix que logo seria extirpada. Mas, no tecido social completamente roto da Venezuela a proposta de Chávez cresceu, tomou corpo e se encarnou na maioria da população desde sempre empobrecida.

Ele prometia uma revolução bolivariana, amarrada ao ideário do famoso conterrâneo que liderou as grandes guerras de independência da parte norte e leste da América Latina: Bolívar.

E o que é o bolivarianismo?

Um sistema de governo que tem como plataforma a educação gratuita para todos, soberania, fim do colonialismo político, econômico e cultural, unidade dos países latino-americanos, fim da dependência.

E foi esse sendero que o governo de Chávez foi abrindo por entre as veias da América Latina.

Seu discurso forte, seu carisma e, fundamentalmente suas ações, guinaram a Venezuela à esquerda e, com ela, começaram a girar também outros países.

O Equador, depois de fortes rebeliões indígenas, foi buscando um caminho soberano.

A Bolívia, igualmente derrubou presidentes, ardeu em rebelião e apontou novos horizontes, inauditos.

Veio uma nova Constituição na Venezuela, participativa, desde baixo. Outro duro golpe no pensamento neoliberal, no modelo ocidental, burguês.

Institucionaliza-se o poder popular, coisa inédita nestes confins.

Anunciam-se revoluções bolivarianas, cidadãs, culturais.

O imperialismo atacou, deu golpe, mas foi derrotado pela massa que já não estava mais excluída da participação.

Chávez voltou fortalecido, passou por novas eleições, sempre vencendo. Dia a dia ele falava com seu povo, lia livros, editava outros tantos, orientava estudos.

Não era um bravateiro sem estofo. Sabia o que dizia e o que estava fazendo. Não era ainda o socialismo. No máximo, um capitalismo de estado, mas prometia avançar para além. E caminhava.

Na esteira das mudanças venezuelanas a Bolívia também mudou.

Elegeu Evo Morales [foto], das fileiras indígenas e sindicais, construiu de forma participativa e popular uma nova Constituição, criou um estado Plurinacional, avançou na participação, fez assomar a cultura originária, maioria no país.

O Equador seguiu o mesmo diapasão.

Nova Constituição, outorgou direitos à natureza, estado pluricultural.

Abriu espaço para novos pensares, mais além do socialismo: o sumak kausay, uma forma de organizar a vida embasada em conceitos autóctones, dos povos antigos, coisa completamente nova para quem acreditava que o modelo europeu era o único possível.

A América Latina entrou no novo milênio ardendo em novidade e transformação.

Quando alguém fraquejava, lá vinha o Chávez com sua voz de trovão, puxando o timão mais à esquerda.

E mesmo quando ele mesmo claudicava, ou cedia ao “possível”, buscava nos autores revolucionários, nos heróis do passado, a inspiração para reavaliar e avançar.

E, assim, esses três países em especial (Venezuela, Bolívia e Equador) começaram a realizar algumas mudanças que finalmente mexiam nas estruturas.

Outros, como o Brasil, a Argentina, a Nicarágua, Honduras, Paraguai, Uruguai, principiaram a realizar reformas e a amparar pelo menos alguns pontos do bolivarianismo, como a ideia de soberania e união latino-americana.

Quando, no mês de março de 2013, o câncer venceu o comandante, as coisas já não andavam bem.

Na Venezuela era possível observar a subida da inflação e a opção do governo por uma aliança com o setor financeiro. O país não conseguia avançar no caminho do desenvolvimento endógeno, atropelado que fora ano após ano por golpes, contragolpes e ações desestabilizadoras da direita.

Apesar de todos os esforços empreendidos, o rentismo petroleiro ainda era o carro chefe da economia do país. A produção - de comida e de outros produtos de uso corrente - não deslanchou.

Continuava mais vantajoso ao empresariado nacional seguir com a importação, especulando com o dólar, criando um perigoso mercado paralelo para a moeda estadunidense.

Na Bolívia, Evo Morales passou a apostar na lógica do neodesenvolvimentismo, puxada pelo Brasil.

Projetos grandiosos com construtoras estrangeiras (brasileiras) e o crescente conflito com as comunidades indígenas.

No Equador, Rafael Correa [foto abaixo] foi mordido pela mosca azul e abraçou-se às mineradoras e as grandes empresas do petróleo.

Tem mantido fogo cerrado contra os povos indígenas, acusando-os de barrar o progresso do país e entrou de cabeça na mesma onda do “desenvolvimento” a qualquer custo.

O modelo é o mesmo do Brasil. Reforma sem vestígios de revolução.

A morte de Chávez de certa forma liberou os aliados para uma virada de timão, mais ao estilo do Brasil.

Aquilo que Lula não conseguiu, já que era frequentemente ofuscado por Chávez, Dilma logrou. Não tanto pela ação dela, mas porque agora os mandatários vizinhos estavam mais livres para fugir da rota socialista.

Daí que se configura inegável o papel de liderança que o presidente venezuelano exercia em todo o continente.

Tanto que as proposta de uma aliança com o Caribe e a construção da Unasur foram constituídas a partir de suas investidas.

A união das repúblicas latino-americanas era um sul determinado por ele e, num período de crise na região europeia assim como nos Estados Unidos, foi e continua sendo uma alternativa muito conveniente para os países da América Latina.

Mas, apesar de essas propostas seguirem vivas e atuantes, é fato que perderam força política.

Os encontros continuam, as instituições também, mas não há uma liderança capaz de articular as ações econômicas com o debate teórico.

A última reunião da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba) foi um bom exemplo. Realizada em Caracas no último dia 17 de dezembro, não mereceu sequer uma nota nos jornais.

Falta a grandiloquência de um projeto totalizante de combate ao capitalismo.

O professor Nildo Ouriques, do Instituto de Estudos Latino-Americanos, analisa a Venezuela hoje, sob o comando de Nicolás Maduro [foto abaixo], e não tem dúvidas de que o processo revolucionário, por agora, se esgotou.

O fato de o partido do governo ter ganhado as eleições municipais agora em dezembro não diz muito. Nos pequenos municípios a política do partido está consolidada. Mas, nos grandes, não. Daí que a direita avança por aí.

Maduro não tem a força de Chávez para mudar o rumo dos acontecimentos e talvez nem mesmo Chávez pudesse fazê-lo.

Pode até ser que o bolivarianismo siga no poder por algum tempo – e é bom que siga  - mas não haverá mais mudanças radicais e o povo ficará cada vez mais fora do poder de decisão”.

Segundo Nildo, a inflação galopante que tem assolado o país e a criação de um mercado paralelo do dólar enfraquecem a economia e a tendência é de que, a seguir essa política, a situação econômica se agrave ainda mais.

O empresariado local não tem interesse na produção, está lucrando de forma astronômica com o dólar.

E, sem produção, o país segue dependente.

É um círculo vicioso e sem saída.

A menos que houvesse uma virada de curso. Mas isso não se vislumbra.

Nos demais países, a falta de um discurso forte acerca do caminho para o socialismo ou qualquer outra forma diferente de organizar a vida, coloca todo mundo - em maior ou menor grau - na posição de "humanizar" o capitalismo.

No Brasil, algumas políticas públicas asseguram renda aos mais pobres, o programa Mais Médicos surge como um importante paliativo de saúde para os fundões do país.

Mas, por outro lado, o agronegócio está cada vez mais abraçado ao governo, deitando e rolando no ataque aos indígenas e aos que pretendem colocar qualquer freio a nova expansão da monocultura.

Vive-se uma investida anti-indígena só comparada a caminhada para o norte no início do século XX.

No Uruguai, apesar de passos importantes como o ataque ao narcotráfico e a busca por uma democratização da mídia, Mujica [foto] permite a ação nefasta das papeleiras e de outras grandes crias do capital.

Na Bolívia, na última quarta-feira (18.12), chegou-se ao extremo de reprimir, com gás e força policial, uma manifestação de crianças, que marchavam por um código do menor.

No Equador, Correa está rendido às petroleiras.

Na verdade, toda a proposta de soberania e anti-colonialismo contida no bolivarianismo parece se esvair.

Os mandatários ditos “progressistas” não conseguem sair da roda da dependência. Preferem o acordo com o capital especulativo e com as mega empresas transnacionais, para tentar algum respiro do que chamam “desenvolvimento”.

Aplicam políticas compensatórias que até são importantes, a considerar a extrema pobreza que vivem as maiorias, mas que não parecem capazes de romper com o ciclo de uma quase perpétua subserviência.

O máximo que conseguem é o que já apontava Gunder Frank: o desenvolvimento do subdesenvolvimento, o que permite algumas ilhas de riqueza, um certo incremento no consumo através da liberação de crédito, mas praticamente nenhuma mudança estrutural.

Para os protagonistas de lutas importantes contra o capital, como é o caso dos bolivianos que viveram as guerras da água e do gás, esses governos, mascarados de esquerda, acabam prestando um desserviço à luta anticapitalista.

"Eles domesticam o movimento social, seguram os movimentos de luta, cooptam lideranças, disseminam uma mensagem falsa sobre as possibilidades de melhorias dentro do sistema.

Assim, retrocedemos décadas. É uma tragédia", afirma Oscar Olivera, uma das mais importantes lideranças da Guerra da Água, em Cochabamba.

Nos dias de hoje, sem a presença vigorosa de um Fidel, ou a trovejante ousadia de Chávez, o que parece avançar é a acomodação ao velho modelo de dependência e de cooperação com o capital.

Mas, ainda assim, a falta de uma alternativa também abre caminho para a construção de outro ciclo, talvez um pachakuti (o mundo de patas para cima, uma viração), como dizem os povos andinos.

Algum novo giro, uma nova tendência, uma surpresa, como foi Chávez e seu sonho bolivariano. No final dos anos 90 essa novidade veio de onde ninguém esperava.

Agora, enquanto o mundo mergulha no frisson das novas tecnologias, da inserção internética, no reino das sensações, talvez, em algum lugar não sabido, completamente inaudito, esteja brotando o que virá. As lutas não acabam, seguem seu caminho.

Os movimentos continuam protagonizando resistência e, afinal, os povos sempre aprendem quando vivenciam experiências alvissareiras, como as que afloraram na última década.

Algo novo há de aparecer.

Assim, seguimos!...

Fonte:
http://eteia.blogspot.com.br/2014/01/america-latina-fim-de-um-ciclo.html

Leituras afins:
- O fim de uma era - Fernando Brito
- Uma nova geração que resgata Marx - Michelle Goldberg 
- Burguesias nacionais? Não existem mais - Rodrigo Mendes 

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Indígenas de Cauca dão uma lição ao mundo



Nos últimos dias assomou nos noticiários brasileiros a notícia de que um grupo de índios colombianos havia ocupado uma base militar na cidade de Toríbioregião de Cauca, expulsando dali o exército. As notas falavam que os indígenas já estariam cansados de viver sob o fogo cruzado das forças do Estado e da guerrilha comandada pelas Forças Armadas Revolucionárias Colombianas, as Farcs. Mas, a notícia, assim, solta, não dá conta do longo processo de luta e resistência das comunidades originárias daquela estratégica região. Como sempre, falta a imprensa brasileira o devido cuidado com a contextualização dos fatos.

A reportagem é de Elaine Tavares no sítio Instituto de Estudos Latino-Americanos – IELA, 17-07-2012, vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

zona de Cauca é considerada um importante e estratégico corredor que liga a região amazônica ao oceano pacífico, com passagem também para o Equador e, por isso, desde muitos anos vem sendo disputada pelo Estado e pelas FARCs. Além disso, sempre é bom lembrar que a situação de guerra civil na Colômbia tampouco é de hoje. Isso começou no longínquo ano de 1948 quando Jorge Gaitán, um político liberal e progressista, às vésperas de ganhar a eleição presidencial, foi assassinado, levando o povo a uma explosiva revolta que foi violentamente reprimida pelas forças reacionárias, mandantes do crime. Desde aí, a população acabou sendo obrigada a se armar, para enfrentar as forças do exército como também os inúmeros grupos de bandoleiros que se aproveitaram do caos para roubar e saquear.  

Essa situação de insegurança e de profunda violência também gerou – já na década de 60 - as forças revolucionárias que, com inspiração marxista, buscaram organizar o povo para uma reação organizada e ordenada de tomada do poder. Mas, a América Latina vivia a surpreendente revolução cubana e a reação dos Estados Unidos foi imediata. Não haveria de permitir que outro foco socialista nascesse nas terras de baixo. Não foi à toa que desde os anos 60 as ditaduras pipocaram por todo o continente.

Ao longo dos anos, com a ajuda militar e tática dos Estados Unidos as forças conservadoras seguiram dominando a Colômbia, enfrentando a persistente reação revolucionária. Esse processo que segue até hoje tem causado profundas feridas no corpo social. Lá se vão mais de 60 anos de conflitos e combates nos quais vão sendo ceifadas as vidas das gentes.  Não bastasse essa realidade explosiva, ainda existem no país os chamados paramilitares, que são grupos de combate à guerrilha, geralmente formados por militares e mercenários que também impõem o terror. A eles se somam os narcotraficantes financiados pelo sistema internacional que igualmente investem em milícias armadas. No meio de tudo isso está o povo, as gentes que querem viver em paz.

A região de Cauca é um desses lugares assolado pelos grupos armados, justamente por sua localização estratégica. E ali, vivem comunidades indígenas que, nesses anos a fio, também entregaram seus filhos, ora ao exército, ora à guerrilha e que cotidianamente sofrem a ação das lutas entre essas forças armadas. São pelo menos 570 mil hectares de terras comunais, onde tradicionalmente essas comunidades plantam e criam seus animais.

A guerra civil, que teve seu espocar em 1948, aos poucos foi perdendo a sua própria memória. Geração após geração se viu enredada nos conflitos e na batalha diária pela sobrevivência. Muitos dos que viveram os primeiros momentos do conflito morreram no caminho, e os motivos da revolta foram ficando obscurecidos. Já faz tempo que a Colômbia busca um caminho para a paz, mas não tem conseguido pavimentar essa estrada. Primeiro porque o poder econômico aliado aos Estados Unidos não tem a menor intenção de permitir que os aliados saiam do poder. Por outro lado a guerrilha não avança mais do que a perpétua resistência. E no meio desse fogo cruzado estão as pessoas comuns.

Os indígenas colombianos tem uma longa história de resistência e de luta. Primeiro contra o opressor colonial e agora contra o Estado terrorista. A região de Cauca, particularmente, é muito aguerrida. Desde o ano de 1971 a população indígena organizou o Conselho Regional Indígena de Cauca, o CRIC, entidade que tem sido protagonista de muitas lutas, chegando também a organizar um grupo armado de autodefesa que acabou depondo as armas em 1991 em um dos acordos de paz. Assim como todos os colombianos eles precisavam defender suas vidas. Desde a organização do CRIC os indígenas passaram a reivindicar direitos que estavam perdidos nas contas da guerra: terra, educação, saúde, proteção da natureza da mão destruidora das mineradoras.

A ação de expulsão do exército de suas terras, assim como a de qualquer outro grupo armado – sejam as FARCs, os paramilitares ou os narcotraficantes – está amparada na decisão comunitária de dar um basta a desaparição sistemática das gentes. “Queremos semear a paz telúrica no nosso território e colhe-la na vida comunitária”, dizem. Mas essa paz de que falam não é a paz dos vencedores de plantão, que significa a morte ou a submissão da comunidade seja ao exército ou à guerrilha. A eles não interessa dominar o espaço, mas sim conservar a terra para as próximas gerações.

Mais uma vez os indígenas estão dizendo a sua palavra, sempre ignorada nesses mais de 500 anos. A forma de organizar a vida pleiteada pelas comunidades indígenas não encontra parâmetros na forma imperial/capitalista – como quer o governo, nem na forma socialista, de matriz europeia – como quer a guerrilha. Os indígenas querem viver a sua vida baseada na lógica dos seus ancestrais, com autonomia e autogoverno. Eles querem o direito de impor a sua justiça comunitária, de definir sua economia, sua educação, saúde. Querem o direito de conservar, proteger e gerir os recursos naturais de seu território. Por isso eles derrubaram os portões do exército e as tendas da guerrilha. “Tanto um como outro nos expropria, nos tira a vida e não nos garante o direito de viver segundo nossa vontade autônoma. Uns trazem a guerra e outros querem nos dizer como resistir. Ambos nos negam como povo”, afirmam.
Assim, as comunidades ligadas ao CRIC tem uma pauta simples, de quatro pontos:

1 - Que saiam todos os grupos armados do seu território
2 - Que respeitem a sua forma de organizar a vida
3 – Que deixem a eles o cuidado de seus recursos naturais
4 – Que não se aproveitem mais do seu sofrimento e tampouco falem sobre sua resistência.

Os indígenas de Cauca querem ser reconhecidos como comunidade autônoma e capaz. Já basta da mesma velha cantilena de que as gentes originárias precisam de proteção e tutelagem. Manter essa visão é estagnar no pior momento do mundo medieval. A esquerda e os intelectuais precisam entender de uma vez por todas que para compreender o mundo indígena é preciso se desvestir da episteme ocidental/eurocêntrica e olhar o mundo sob outra ótica, outra episteme, autóctone. Esse exercício de humildade e de respeito é hoje, na América Latina, uma obrigação. As gentes de Cauca estão ensinando. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.
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domingo, 5 de junho de 2011

Aprovada a destruição. Que fazer?

 

Hoje é dia mundial do meio ambiente. Não há o quê comemorar.



por Elaine Tavares*
1415 Aprovada a destruição. Que fazer?Vivemos um eterno retorno quando se trata da proteção aos latifundiários e grandes empresas internacionais. No Brasil contemporâneo, pós-ditadura, nunca houve um governo sequer que buscasse, de verdade, uma outra práxis no campo. Todos os dias, nas correntes ideológicas do poder, disseminadas pela mídia comercial – capaz de atingir quase todo o país via televisão –, podemos ver, fragmentadas, as notícias sobre a feroz e desigual queda de braço entre os destruidores capitalistas e as gentes que querem garantir vida boa e plena aos que hoje estão oprimidos e explorados.
Nestes dias de debate sobre o novo Código Florestal, então, foi um festival. As bocas alugadas falavam da votação e dos que são contra a alteração do Código como se fossem pessoas completamente desequilibradas, que buscam impedir o progresso e o desenvolvimento do país. Não contentes com todo o apoio que recebem da usina ideológica midiática, os latifundiários e os capatazes das grandes transnacionais que já dominam boa parte das terras brasileiras, ainda se dão ao luxo de usar velhos expedientes, como o frio assassinato, para fazer valer aquilo que consideram como seu direito: destruir tudo para auferir lucros privados.
Assim, nos exatos dias de votação do novo Código, jagunços fuzilam Zé Claudio, conhecido defensor da floresta amazônica. Matam ele e a mulher, porque os dois incomodavam demais com esse papo verde de preservar as árvores. Discurso tolo, dizem, de quem emperra a distribuição da riqueza – deles próprios, é claro. E o assassinato acontece, sem pejo, no mesmo dia em que os deputados discutem como fazer valer – para eles – os seus 30 dinheiros sujos de sangue.
Imagens diferentes, mas igualmente desoladoras. De um lado, a floresta devastada e as vidas ceifadas a bala, do outro a tal da “casa do povo”, repleta de gente que representa, no mais das vezes, os interesses escusos de quem lhes enche o bolso. Pátria? País? Desenvolvimento? Progresso? Bobagem! A máxima que impera é do conhecido personagem de Chico Anísio, o deputado Justo Veríssimo: eu quero é me arrumar!
No projeto construído pelo agronegócio só o que se contempla é o lucro dos donos das terras, dos grileiros, dos latifundiários. Menos mata preservada, legalização da destruição, perdão de todas as dívidas e multas dos grandes fazendeiros. Assim é bom falar de progresso. Progresso de quem, cara pálida? Ao mesmo tempo, os “empresários” do campo, incapazes de mostrar a cara, lotam as galerias com a massa de manobra.
Pequenos produtores que acreditam estar defendendo o seu progresso. De que lhes valerá alguns metros a mais de terra na beira de um rio se na primeira grande chuva, o rio, sem a proteção da mata ciliar, transborda e destrói tudo? Que lógica tacanha é essa que impede de ver que o homem não está descolado da natureza, que o homem é natureza?
Que tamanha descarga de ideologia os graúdos conseguem produzir que leva os pequenos produtores a pensar que é possível dominar a natureza, como se ao fazer isto não estivessem colocando grilhões em si mesmo? Desde há muito tempo – e gente como Chico Mendes, irmã Doroty e Zé Claudio já sabia – que o ser humano só consegue seguir em frente nesta terra se fizer pactos com as outras forças da natureza. E que nestes pactos há que se respeitar o que estas forças precisam sob pena de ele mesmo (o humano) sucumbir.
O novo Código Florestal foi negociado dentro das formas mais rasteiras da política. Por ali, na grande casa de Brasília, muito pouca gente estava interessada em meio ambiente, floresta, árvore, rio, pátria, desenvolvimento. O negócio era conseguir cargo, verba, poder. Que se danem no inferno pessoas como Zé Cláudio, que ficam por aí a atrapalhar as negociatas. Para os que ali estavam no plenário da Câmara, gente como o Zé e sua esposa Maria não existe. São absolutamente invisíveis e desnecessários. Haverão de descobrir seus assassinos, talvez prendê-los por algum tempo, mas, nas internas comemorarão: “menos um, menos um”.
Assim, por 410 a 63, venceram os destruidores. Poderão desmatar à vontade num tempo em que o planeta inteiro clama por cuidado. Furacões, tsunamis, alagamentos, mortes. Quem se importa? Eles estarão protegidos nas mansões. Não moram em beiras de rio. Dos 16 deputados federais de Santa Catarina, apenas Pedro Uczai votou não. Até a deputada Luci Choinacki, de origem camponesa votou sim, contrariando tudo o que sempre defendeu.
Então, na mesma hora em que a floresta chorava por dois de seus filhos abatidos a tiros, os deputados celebravam aos gritos uma “vitória” sobre o governo e sobre os ecologistas. Daqui a alguns dias se verá o tipo de vitória que foi. Mas, estes, não se importarão. Não até que lhes toque uma desgraça qualquer. O cacique Seatlle, da etnia Suquamish, já compreendera, em 1855, o quanto o capitalismo nascente era incapaz de viver sem matar: “Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exauri-la, ele vai embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai sem remorsos. Rouba a terra de seus filhos, nada respeita. Esquece os antepassados e os direitos dos filhos. Sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. Suas cidades são um tormento para os olhos do homem vermelho, mas talvez seja assim por ser o homem vermelho um selvagem que nada compreende”.
Zé Claudio e Maria eram assim, vistos como “selvagens que nada compreendem”. Mas, bem cedo se verá que não. Eles eram os profetas. Os que conseguiam ver para além da ganância. Os que conseguiam estabelecer uma relação amorosa com a terra e com as forças da natureza. Eles caíram a bala. E os deputados vende-pátria, quando cairão?
Já os que gritam e clamam por justiça não precisam esmorecer. Perdeu-se uma batalha. A luta vai continuar. Pois, se sabe: quem luta também faz a lei. Mas a luta não pode ser apenas o grito impotente. Tem de haver ação, organização, informação, rebelião. Não só na proteção do verde, mas na destruição definitiva deste sistema capitalista dependente, que superexplora o trabalho e a terra. É chegada a hora de uma nova forma de organizar a vida. Mas ela só virá se as gentes voltarem a trabalhar em cada vereda deste país, denunciando o que nos mata e anunciando a boa nova.

* Elaine Tavares é jornalista e membro do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
** Publicado originalmente no site Correio da Cidadania.
** republicada dia 30 de maio pelo portal Envolverde.


Veja também: Como derrubar árvores e matar pessoas.