Mostrando postagens com marcador Paulo Freire. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Paulo Freire. Mostrar todas as postagens

sábado, 24 de setembro de 2011

Paulo Freire e o silêncio dos opressores


* por Alexandre Haubrich
No Museo Bolivariano, em Caracas (Venezuela), há uma sala chamada “Los Imprescindibles”, ou “Os Imprescindíveis”. Entre Che Guevara, Simon Bolívar, Zapata e outros heróis latino-americanos, está um brasileiro: Paulo Freire. Pois esse educador pernambucano que desenvolveu a reflexão sobre uma outra forma de educação, respeitado fora do Brasil como “imprescindível”, autor do clássico “Pedagogia do Oprimido”, completaria 90 anos de nascimento nesta segunda-feira, 19 de setembro. E foi esquecido pela grande mídia nacional. Paulo Freire foi um dos mais importantes brasileiros. Seu pensamento e suas ações apresentaram uma forma revolucionária de se pensar a Educação, na qual educador e educando cruzam seus papéis, se ensinam mutuamente. A pedagogia de Freire clama por autonomia para todos, pela emancipação social através da emancipação do estudante, pelo crescimento do professor unido ao crescimento do aluno, pela educação como prática de liberdade.
Paulo Freire lutou e construiu uma Educação que incomodava, e seu legado segue incomodando. Sua defesa dos oprimidos nunca agradou aos opressores, os mesmos que seguem oprimindo, e que têm seu discurso reproduzido pela mídia igualmente dominante, igualmente opressora. Essa mesma mídia que, neste 19 de setembro, silenciou sobre o aniversário de nascimento de um personagem do tamanho de Paulo Freire.
Nenhuma palavra sobre a data na Folha de S. Paulo, no Estadão, no O Globo ou no G1. Dos grandes portais, apenas o Terra falou sobre o assunto. O motivo do silêncio não é difícil de identificar. Por que os opressores dariam espaço a quem defende os oprimidos? O conhecimento sobre a obra de Paulo Freire é uma chave importante para a busca por autonomia, para a luta por democracia real, para o combate a todas as formas de opressão.

Citação de Paulo Freire – “imprescindible”
Em seus livros e em sua prática política Freire sugere dar voz e liberdade a quem as elites midiáticas trabalham diariamente para silenciar e prender. Os pobres deixam de ser vistos como ignorantes e passam a ser vistos como portadores de outras formas de conhecimento, deixam de ser selvagens aculturados para possuírem uma cultura diferente, deixam de ser objetos para serem sujeitos, deixam de serem caixas onde se depositar “conhecimento” para serem parte ativa de uma troca de experiências e mútuo aprendizado.
A criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, prática diária da mídia dominante, é confrontada diretamente pelo pensamento de Paulo Freire. A resposta dos opressores é fazer do próprio silêncio sobre o autor o silenciar das vozes dos oprimidos. A desinformação como arma.
O aniversário de aniversário de Paulo Freire mostrou quem está de que lado – com os opressores ou assumindo para si as lutas dos oprimidos por autonomia e emancipação. Enquanto a velha mídia ignorou a data, alguns sites e blogs de esquerda publicaram bom conteúdo lembrando o maior educador brasileiro. Alguns bons exemplos são a Revista Fórum, o Brasil de Fato e o Portal Vermelho.

*Todos os livros de Paulo Freire estão disponíveis para download grátis AQUI.
*Fonte: Blog Jornalismo B, editado pelo jornalista Alexandre Haubrich, publicado no dia 19 de setembro, data do aniversário de Paulo Freire.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Paulo Freire e as Verdades Escondidas

*Por Venício A. de Lima, no Observatório da Imprensa:

Trinta anos após sua primeira edição, o que justificaria a republicação de Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire, um livro que explora o pensamento e a prática do educador brasileiro no período anterior à dissolução do chamado socialismo real; anterior às eleições que levaram ao poder vários governos populares na América Latina, na contramão da nossa tradição histórica; anterior à revolução digital que dá origem às imensas transformações tecnológicas nas comunicações? O que a prática e a reflexão posteriores de Freire – produtivo até sua morte em 1997 – acrescentaram sobre comunicação e cultura? O que pensam os pesquisadores, sobretudo os brasileiros, a respeito da contribuição de Freire para os estudos de comunicação?



Os escritos posteriores

Foram poucas as ocasiões, depois de Extensão ou Comunicação? [1969] e Pedagogia do Oprimido [1970], nas quais Freire tratou especificamente o tema da comunicação. Registro duas passagens emblemáticas em que ele faz referencia a formas tecnologicamente mediadas de comunicação, em particular à televisão. A primeira, quando publica, com Sérgio Guimarães, Sobre a Educação, volume 2 [1984]. Vale reproduzir (p. 40):


SÉRGIO: (...) A gente vê que, nos seus vários livros, você não chegou a discutir propriamente as questões [dos meios de comunicação]. Por quê?

FREIRE: Exatamente porque nunca me senti competente, a não ser do ponto de vista de uma apreciação global. Se me perguntas: ‘Paulo, o que é que você acha da televisão?’, eu te respondo: para mim, a televisão não pode ser compreendida em si. Ela não é um instrumento puramente técnico, o uso dela é político. E sou capaz também de fazer algumas propostas com relação ao uso da televisão. Mas, mesmo quando não venho tratando desses chamados meios de comunicação em trabalhos meus anteriores, mesmo quando não falo diretamente sobre eles, eu os considero, por exemplo, dentro do horizonte geral da teoria do conhecimento que venho desenvolvendo nos meus trabalhos sobre educação. Não os trato diretamente, no sentido de que eles não são objeto de um estudo técnico, cientificamente válido. (...) Não me sinto um especialista em torno desse tema. Eu o abordo em linhas gerais.



A segunda aparece em um de seus últimos escritos, Pedagogia da Autonomia [1997], quando trata da necessidade de “desocultar verdades escondidas” na mídia. Diz Freire (pp. 157-158):


Pensar em televisão ou na mídia em geral nos põe o problema da comunicação [de massa], processo impossível de ser neutro. Na verdade, toda comunicação [de massa] é comunicação de algo, feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum ideal contra algo e contra alguém, nem sempre claramente referido. Daí também o papel apurado que joga a ideologia na comunicação [de massa], ocultando verdades, mas também a própria ideologização do processo comunicativo. Seria uma santa ingenuidade esperar de uma emissora de televisão do grupo do poder dominante que, noticiando uma greve de metalúrgicos, dissesse que seu comentário se funda nos interesses patronais. Pelo contrário, seu discurso se esforça para convencer que sua análise da greve leva em consideração os interesses da nação. Não podemos nos pôr diante de um aparelho de televisão “entregues” ou “disponíveis” ao que vier. (...) A postura crítica e desperta nos momentos necessários não pode faltar. (...) Para enfrentar o ardil ideológico de que se acha envolvida a mensagem [do poder dominante] na mídia (...) nossa mente ou nossa curiosidade teria que funcionar epistemologicamente todo o tempo. E isso não é fácil.

O que se observa nas duas citações acima é que, em ambas, Freire remete o leitor (a) para suas reflexões anteriores sobre a teoria do conhecimento e/ou a necessidade de se pensar “epistemologicamente”, vale dizer, considerar a matriz dialogal como referência normativa para o processo de comunicação, seja ela mediada tecnologicamente ou não.

Até o fim de seus dias, portanto, Freire manteve-se fiel à sua formulação original sobre a comunicação como co-participação de sujeitos que se relacionam dialogicamente em torno do objeto que querem conhecer e, ao mesmo tempo, transformam o mundo no contexto da ação cultural libertadora.

É exatamente a formulação original de Freire sobre comunicação e cultura que constitui o objeto de estudo deste livro.

O que pensam os estudiosos brasileiros

No ensaio “A Pesquisa em Comunicação na América Latina”, ao identificar o que chama de “pais fundadores”, Christa Berger menciona levantamento realizado entre 50 pesquisadores, em 1992, que aponta Paulo Freire como uma das cinco principais influências teóricas deste campo de estudo na região. Freire é lembrado por seu ensaio Extensão ou Comunicação?, escrito no Chile, no qual “está contida a crítica principal aos meios de comunicação de massa: de consistirem em meros instrumentos de transmissão, de tratarem os destinatários como receptores passivos e de impossibilitarem relações dialógicas”. Da mesma forma, autores amplamente reconhecidos e com vasta produção no campo, como o belga Armand Mattelart – com experiência histórica no Chile dos anos 60 e 70 do século passado – e o espanhol/colombiano Jesus Martin Barbero, reconhecem a contribuição de Freire na construção de suas perspectivas teóricas (Berger, 2001, pp. 241-277).

Denise Cogo (1999, pp. 29-36), por outro lado, descreve a presença ativa das idéias de Freire em três áreas: os estudos e a prática da comunicação rural; da comunicação alternativa e/ou popular e dos estudos culturais, nas vertentes de pesquisa sobre o receptor ativo e a leitura crítica da mídia.

Considerando que Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire constitui também um exercício de diálogo crítico, mais ou menos explícito, com as então nascentes tradições dos estudos culturais norte-americana e inglesa, personificadas em James W. Carey (1934-2006) e Raymond Williams (1921-1988), merecem registro especial as ponderações de Cogo sobre a importância fundadora de Freire para esta tradição na América Latina. Afirma ela:


(...) A obra de Paulo Freire ajuda a consolidar as bases para o entendimento das inter-relações entre comunicação, educação e cultura, cujos desdobramentos refletem-se, mais tarde, no desenvolvimento de uma vertente denominada de estudos culturais e comunicação. Herdeira dos estudos culturais ingleses, essa vertente encontra sua especificidade no contexto latino-americano a partir do final da década de 80 através de investigadores como o colombiano Jesus Martin-Barbero e os mexicanos (sic) Nestor Garcia Canclini e Guillermo Orozco Goméz, cujas reflexões apontam para a construção de uma trajetória comum: a compreensão da comunicação no marco do processo das culturas em que a compreensão do fenômeno comunicativo não se esgota em conceitos e critérios como canais, meios, códigos, mensagens, informação. O entendimento da comunicação é reorientado a uma revalorização do universo cultural e do cotidiano dos sujeitos como mediadores dos sentidos produzidos no campo da recepção das mensagens difundidas pelos meios massivos de comunicação.


Outro autor que destaca o potencial da obra de Freire para os estudos de comunicação é Eduardo Meditsch. Em instigante artigo publicado em 2008 ele chama a atenção para “o compromisso com a prática. O pensamento de Paulo Freire não era limitado por esta ou aquela escola teórica em que, eventualmente, se apoiava: seu compromisso primeiro era com a vida real, com a realidade humana que procurava compreender para transformar ou, numa palavra, com a prática”.

Tanto Cogo quanto Meditsch, no entanto, lembram não só as leituras reducionistas e o aprisionamento “no jogo dos conceitos praticado no meio acadêmico”, como “a débil apropriação” que se faz da obra freireana nos estudos de comunicação. Meditsch, em diagnóstico impiedoso sobre esse campo de estudos no nosso país, afirma que foi exatamente o primado fundamental da prática que afastou Freire. Afirma ele:


(...) Os “práticos” nunca se deram conta do potencial da teoria freireana para aperfeiçoar as suas práticas, e a grande maioria nem tomou conhecimento de suas idéias, a não ser por orelhas de livro. Por sua vez, os “teóricos” que leram além das orelhas jamais se sentiram compromissados a aplicar as idéias de Freire nas práticas midiáticas, não apenas por ignorarem solenemente estas práticas, mas também por sentirem um profundo desprezo por elas. Para estes, a prática de que falavam Marx e Freire era apenas mais um conceito a enriquecer sua bagagem teórica, ou era uma prática tão idealizada que se recusava a admitir como legítima a realidade com que “os práticos” se relacionavam. Desta forma, as idéias de Freire, quando levadas em conta em nossa área, foram confinadas ao “balé de conceitos” da comunicologia e “domesticadas” pela lógica acadêmica que seu autor sempre condenou. A sua aplicação no desenvolvimento das práticas da comunicação foi abortada em nosso campo (p. 8).


Diante do rigor dessas observações resta destacar qual, de fato, a contribuição das idéias de Freire para os estudos da comunicação e da cultura nos nossos dias.

Qual a contribuição de Freire hoje?

Além dos aspectos já mencionados na “Introdução”, no capítulo IV – “A Importância de Freire para os Estudos de Comunicação” – e outros ao longo de Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire [por exemplo, os pontos de contato com Habermas], a releitura de Freire se justifica hoje pelas seguintes razões:

1. Freire é o principal representante contemporâneo da tradição teórica da comunicação como diálogo. Esta é também a posição de Clifford Christians, um dos mais importantes pesquisadores dessa tradição nos Estados Unidos (cf. Christians, 1988 e 1991).

Ainda em 2001 escrevi:

“...se até recentemente esse modelo parecia inadequado para qualquer tipo de aplicação no contexto da chamada “comunicação de massa”, unidirecional e centralizada, hoje a nova mídia reabre as possibilidades de um processo dialógico mediado pela tecnologia. (...) O modelo normativo construído por Freire ganha atualidade e passa a servir de ideal para a realização plena da comunicação humana em todos os seus níveis” (cf. de Lima, 2001; p. 51).

A tradição da comunicação como diálogo ganha renovada importância e potencializa a possibilidade da interação permanente e on line no ato mesmo da comunicação. Freire teorizou a comunicação interativa antes da revolução digital, vale dizer, antes da internet e de suas redes sociais. Como fez o próprio Freire, devemos nos remeter às suas reflexões sobre a teoria do conhecimento, base do conceito de comunicação como diálogo. Lá encontramos uma referencia normativa revitalizada, criativa e desafiadora que será de imensa valia para pensar as novas tecnologias de comunicação e também pensar a sua regulação.

2. Existe um enorme potencial analítico embutido em alguns conceitos introduzidos por Freire que ainda não foram plenamente explorados. Um exemplo eloqüente é certamente o conceito de “cultura do silêncio”, discutido no capítulo III de Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire.

Freire fala da nossa herança colonial de “mutismo” e mais tarde da “cultura do silêncio” dos oprimidos, impedidos de ter voz, mergulhados na submissão pelo silêncio. Ele recorre a trecho conhecido do Padre Antonio Vieira (1959) em famoso sermão pronunciado na Bahia, ainda na primeira metade do século XVII (1640), que vale reproduzir novamente aqui:

“Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra – infans, infante – quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste permaneceu o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. (...) O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”.

Não seria essa uma forma histórica de censura na medida em que a “cultura do silêncio” nega a boa parte da população sua liberdade fundamental de palavra, de se expressar? E quem seria, neste caso, o censor?

No Brasil colônia, certamente o Estado português e os muitos aliados que se beneficiavam da opressão aos povos nativos e aos escravos africanos. A própria sociedade era também “censora”, na medida em que convivia culturalmente com a exclusão de vários segmentos de qualquer participação civil. Por exemplo, as mulheres.

Nada disso é novidade, mas certamente ajudará, sobretudo aos jovens de uma sociedade onde nascem novas formas interativas de comunicação a compreender a verdadeira dimensão de conceitos como censura e liberdade de expressão. Nessa nova sociedade-rede, uma forma disfarçada de censura é o silencio da grande mídia em relação a determinados temas. Considerando que a grande mídia ainda é a principal mediadora e construtora dos espaços públicos, um tema que for deliberadamente omitido estará sendo sonegado e excluído desse espaço, vale dizer, da possibilidade de fazer parte do conhecimento e do debate público.

A cultura do silêncio freireana equivale, de certa forma, ao conceito de “efeito silenciador do discurso” introduzido pelo jurista norte americano Owen Fiss quando argumenta que, ao contrário do que apregoam os liberais clássicos, o Estado não é um inimigo natural da liberdade (2005, esp. capítulo 1). O Estado pode ser uma fonte de liberdade, por exemplo, quando promove “a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos – distribuir megafones – para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes não há outra forma” (p. 30).

Fiss usa como exemplo os discursos de incitação ao ódio, à pornografia e os gastos ilimitados nas campanhas eleitorais. As vítimas do ódio têm sua auto-estima destroçada; as mulheres se transformam em objetos sexuais e os “menos prósperos” ficam em desvantagem na arena política. Em todos esses casos, “o efeito silenciador vem do próprio discurso”, isto é, “a agência que ameaça o discurso não é Estado”. Cabe, portanto, ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar “que o público ouça a todos que deveria”, ou ainda, garanta a democracia exigindo “que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o discurso dos menos poderosos”.

Especificamente no caso da liberdade de expressão, existem situações em que o “remédio” liberal clássico de mais discurso, em oposição à regulação do Estado, simplesmente não funciona. Aqueles que supostamente poderiam responder ao discurso dominante não têm acesso às formas de fazê-lo (pp. 47-48). O exemplo emblemático dessa última situação é o acesso ao debate público nas sociedades onde ele (ainda) é controlado pelos grandes grupos de mídia.

A liberdade de expressão individual tem como fim assegurar um debate público democrático onde, como diz Fiss, todas as vozes sejam ouvidas. Ao usar como estratégia de oposição política o bordão da ameaça constante de volta à censura e de que a liberdade de expressão corre risco, os grandes grupos de mídia transformam a liberdade de expressão num fim em si mesmo. Ademais, escamoteiam a realidade de que, no Brasil, o debate público não só [ainda] é pautado pela grande mídia como uma imensa maioria da população a ele não tem acesso e é dele historicamente excluída.

Nossa imprensa tardia se desenvolveu nos marcos do de um “liberalismo antidemocrático” no qual as normas e procedimentos relativos a outorgas e renovações de concessões de radiodifusão são responsáveis pela concentração da propriedade nas mãos de tradicionais oligarquias políticas regionais e locais (nunca tivemos qualquer restrição efetiva à propriedade cruzada), e impedem a pluralidade e diversidade nos meios de comunicação.

A interdição do debate verdadeiramente público de questões relativas à democratização das comunicações pelos grupos dominantes de mídia, na prática, funciona como uma censura disfarçada. Este é o “efeito silenciador” que o discurso da grande mídia provoca exatamente em relação à liberdade de expressão que ela simula defender.

3. As idéias de Freire constituem a base teórica para a positivação da comunicação como direito humano fundamental.

A necessidade do desenvolvimento e da positivação de um direito à comunicação foi identificada há mais de 40 anos pelo francês Jean D’Arcy, quando diretor de serviços audiovisuais e de rádio do Departamento de Informações Públicas das Nações Unidas, em 1969. Naquela época ele afirmava:

Virá o tempo em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos terá de abarcar um direito mais amplo que o direito humano à informação, estabelecido pela primeira vez vinte e um anos atrás no Artigo 19. Trata-se do direito do homem de se comunicar (em Fisher, 1984, p. 26).

Onze anos depois, o famoso Relatório MacBride, publicado pela UNESCO (original 1980; 1983, pp. 287-291), reconhecia pioneiramente o direito à comunicação. Diz o Relatório:

Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos humanos. Mas esse direito é cada vez mais concebido como o direito de comunicar, passando-se por cima do direito de receber comunicação ou de ser informado. Acredita-se que a comunicação seja um processo bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantêm um diálogo democrático e equilibrado. Essa idéia de diálogo, contraposta à de monólogo, é a própria base de muitas das idéias atuais que levam ao reconhecimento de novos direitos humanos. O direito à comunicação constitui um prolongamento lógico do progresso constante em direção à liberdade e à democracia.

Tanto a proposta de D’Arcy como o Relatório MacBride, na verdade, assumiam e consagravam a perspectiva “dialógica” da comunicação que já havia sido elaborada, do ponto de vista conceitual, por Freire no ensaio Extensão ou comunicação?

Freire se diferencia da tradição dialógica dominante ao recorrer à raiz semântica da palavra comunicação e nela incluir a dimensão política da igualdade, da ausência de dominação. A comunicação implica um diálogo entre sujeitos mediados pelo objeto de conhecimento que por sua vez decorre da experiência e do trabalho cotidiano. Ao restringir a comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. A comunicação passa a ser, portanto, por definição, dialógica, vale dizer, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de informar e ser informado e o direito de acesso aos meios necessários à plena liberdade de expressão. O próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social. Essa é a base do direito à comunicação.

Pode-se afirmar também que Freire se filia à corrente do humanismo cívico do neo-republicanismo. A concepção implícita de liberdade na sua definição dialógica de comunicação é constitutiva de uma cidadania ativa que equaciona autogoverno com participação política, contrariamente à liberdade negativa do liberalismo clássico, ainda hoje indissociável da retórica histórica de nossas elites dominantes. Para Freire, inequivocamente, o cidadão constitui o eixo principal da vida pública através da participação ativa e do direito à voz. A liberdade não antecede à política, mas se constrói a partir dela.

Essas são algumas das razões que justificam a republicação de Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire, 30 anos depois, em homenagem aos 90 anos de nascimento de Paulo Freire. [Brasília, Outono de 2011]

* Introdução do livro Comunicação e Cultura: as ideias de Paulo Freire, de Venício A. de Lima, 2ª edição revista, prefácio de Ana Maria Freire, Editora da Universidade de Brasília/Editora Fundação Perseu Abramo, Brasília/São Paulo, 2011; título do OI

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

MST ganha medalha Paulo Freire do Ministério da Educação

Da página do MST
O MST ganhou do Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, a medalha Paulo Freire, durante a abertura da 2ª Semana EJA.

A homenagem é um reconhecimento pelas experiências em educação básica de jovens e adultos (EJA) em acampamentos e assentamentos, além da participação na formulação de políticas públicas para o setor, através da Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de jovens e adultos (CNAEJA).

De acordo com Tiago Manggini, do setor de educação do MST, a participação dentro da Comissão Nacional foi fundamental para que a realidade camponesa fosse incluída na pauta. “Há uma dívida histórica com o campo, no que diz respeito à educação. As políticas nacionais para o setor costumam ter dificuldades de focar as ações em realidades específicas, como o caso dos acampamentos e assentamentos”, disse.

As experiências do MST com a EJA tiveram início com a Campanha de Educação de Jovens, Adultos e Idosos, realizada em 1991, no assentamento Conquista da Fronteira em Bagé, no Rio Grande do Sul. Na ocasião, esteve presente Paulo Freire, que empresta seu nome à medalha recebida.

Em 1996, uma parceria com o MEC e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) levou o projeto para 18 estados. Foram formadas 550 turmas e 8.000 educandos. Depois o projeto continuou por meio de parcerias entre secretarias de educação e universidades nos estados. Em cada ano, o MST alfabetiza cerca de 30 mil educandos, envolvendo 2 mil educadores.

A 2ª Semana EJA acontece até a sexta-feira, na Academia de Tênis, em Brasília.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A Escola dos Meus Sonhos

Quando comecei a ler este texto, lembrei-me de uma entrevista que fiz com Ivan Illich (1926-2002)* em 1975, quando ele veio ao Brasil. Perguntei a Illich por que ele defendia uma "Sociedade Sem Escolas", nome de seu famoso livro, muito discutido na década de 70. Ele me respondeu:
- Ah.... se fosse reescrevê-lo, atualmente, mudaria muito.

Depois de um breve silêncio, começou a elogiar a educação proposta por Paulo Freire, na época exilado. Em seguida, voltou a condenar a escola vigente, e começou a pregar por que era necessário uma outra escola que fosse criativa, motivadora, participativa e respeitasse as diferentes habilidades. E concluiu exaltando a educaçao freiriana.

Veja o artigo de Frei Betto, co-autor com Paulo Freire (Zilda Ferreira, da equipe do Blog EDUCOM).


A ESCOLA DOS MEUS SONHOS
por Frei Betto e Paulo Freire (1921-1997)*. Publicado originalmente no "Estado de S. Paulo" em 14/5/97.

Na escola de meus sonhos, os alunos aprendem a cozinhar, costu­rar, consertar eletrodomésticos, fazer pequenos reparos de eletricidade e de instalações hidráulicas, conhecer mecânica de automóvel e de ge­ladeira, e algo de construção civil. Trabalham em horta, marcenaria e oficinas de escultura, desenho, pintura e música. Cantam no coro e tocam na orquestra.

Uma semana ao ano integram-se, na cidade, ao trabalho de lixei­ros, enfermeiras, carteiros, guardas de trânsito, policiais, repórteres, feirantes e cozinheiros profissionais. Assim, aprendem como a cidade se articula por baixo, mergulhando em suas conexões subterrâneas que, à superfície, nos asseguram limpeza urbana, socorro de saúde, segurança, informação e alimentação.

Não há temas tabus. Todas as situações-limite da vida são tratadas com abertura e profundidade: dor, perda, falência, parto, morte, en­fermidade, sexualidade e espiritualidade. Ali, os alunos aprendem o texto dentro do contexto: a matemática busca exemplos na corrupção dos políticos e nos leilões das privatizações; o português, na fala dos apre­sentadores de TV e nos textos de jornais; a geografia, nos suplementos de turismo e nos conflitos internacionais; a física, nas corridas da Fór­mula 1 e pesquisas do supertelescópio Hubble; a química, na qualida­de dos cosméticos e na culinária; a história, na violência de policiais a cidadãos, para mostrar os antecedentes na relação colonizadores—índios, senhores—escravos, Exército—Canudos etc.

Na escola dos meus sonhos, a interdisciplinaridade permite que os professores de biologia e de educação física se complementem; a multidisciplinaridade faz com que a história do livro seja estudada a partir da análise de textos bíblicos; a transdisciplinaridade introduz aulas de meditação e de dança e associa a história da arte à história das ideo­logias e das expressões litúrgicas.

Se a escola for laica, o ensino religioso é plural: o rabino fala do judaísmo; o pai-de-santo, do candomblé; o padre, do catolicismo; o médium, do espiritismo; o pastor do protestantismo; o guru, do budismo etc. Se for católica, há periódicos retiros espirituais e adequação do currículo ao calendário litúrgico da Igreja.

Na escola dos meus sonhos, os professores são obrigados a fazer periódicos treinamentos e cursos de capacitação, e só são admitidos se, além da competência, comungam com os princípios fundamentais da proposta pedagógica e didática. Porque é uma escola com ideologia, visão de mundo e perfil definido do que seja democracia e cidadania. Essa escola não forma consumidores, mas cidadãos.

Ela briga com a TV mas leva-a para a sala de aula: são exibidos vídeos de anúncios e programas e, em seguida, analisados criticamente. A publicidade do iogurte é debatida; o produto, adqui­rido; sua química, analisada e comparada com a fórmula declarada pelo fabricante; as incompatibilidades denunciadas, bem como os fa­tores porventura nocivos à saúde. O programa de auditório de do­mingo é destrinchado: a proposta de vida subjacente; a visão de feli­cidade; a relação animador-platéia; os tabus e preconceitos reforçados etc. Em suma, não se fecha os olhos à realidade; muda-se a ótica de encará-la.

Há uma integração entre escola, família e sociedade. A Política, com P maiúsculo, é disciplina obrigatória. As eleições para o grêmio ou diretório estudantil são levadas a sério e um mês por ano setores não vitais da instituição são administrados pelos próprios alunos. Os polí­ticos e candidatos são convidados para debates e seus discursos anali­sados e comparados às suas práticas.

Não há provas baseadas no prodígio da memória nem na sorte da múltipla escolha. Como fazia meu velho mestre Geraldo França de Lima, professor de História (hoje romancista e membro da Academia Brasileira de Letras), no dia da prova sobre a Independência dó Brasil os alunos traziam à classe toda a bibliografia pertinente e, dadas as ques­tões, consultavam os textos, aprendendo a pesquisar.

Não há coincidência entre o calendário gregoriano e o curricular. João pode cursar a 5ª série em seis meses ou em seis anos, dependendo de sua disponibilidade, aptidão e recursos.

É mais importante educar que instruir; formar pessoas que profis­sionais; ensinar a mudar o mundo que a ascender à elite. Dentro de uma concepção holística, ali a ecologia vai do meio ambiente aos cuidados com a nossa unidade corpo-espírito, e o enfoque curricular estabelece conexões com o noticiário da mídia.

Na escola dos meus sonhos, os professores são bem pagos e não precisam pular de colégio em colégio para poderem se manter. Pois essa é a escola de uma sociedade onde a educação não é privilégio, mas direito universal, e o acesso a ela, dever obrigatório.
*Saiba quem é ou foram:
Frei Betto
Paulo Freire
Ivan Illich