24/10/2013 - STF garante direitos constitucionais indígenas
- por Felipe Milanez (*)
- em seu blog, no site da Carta Capital
Decisão sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol não vincula condicionantes a outros casos de disputas territoriais.
Luis Roberto Barroso, relator do processo, profere seu voto enquanto é observado por indígenas
No julgamento dos embargos da Petição (PET) 3388, na quarta-feira, 24, em Brasília, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu os direitos constitucionais dos povos indígenas restringindo a aplicação da decisão, que contém 19 "condicionantes", apenas para o caso ao que se refere o julgamento: a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Os ministros foram precisos em afirmar: a decisão não tem efeito vinculante, não se estendendo a outros litígios que envolvam terras indígenas.
Qualquer extensão da decisão deste caso para um outro caso é mera "argumentação", segundo disse o relator, ministro Roberto Barroso [foto].
De forma clara, assim ele definiu a decisão do acórdão que estava em sede de embargos: "decisão atípica e não é um bom padrão a ser seguido".
As condicionantes teriam sido escritas para garantir a aplicação daquela decisão de 2009 na área, para ser efetiva, com a retirada dos invasores e a proteção do direito territorial dos povos indígenas. Por isso, de forma "atípica", a Corte definiu certas condições para o caso.
Portanto, segundo Barroso: "Uma outra demarcação pode levar em conta outras circunstâncias. A solução não pode ser a mesma para demarcações de áreas com outras características. As condicionantes estabelecidas para Raposa Serra do Sol valem apenas para este caso."
As "19 condicionantes" haviam sido oferecidas, na época, pelo falecido juiz Menezes Direito [foto], e criaram conflitos desde que o acórdão que protegeu a demarcação da Raposa Serra do Sol foi publicado.
Ruralistas, assim como o advogado da União, Luis Inácio Adams [foto abaixo], representando os interesses do governo federal, passaram a fazer uma interpretação extensiva desse argumento, tentando impedir novas demarcações e autorizar empreendimentos sem consulta aos índios.
Na visão dessas partes, não caberia demarcar nenhuma terra onde os índios não estivessem em 1988, não poderia haver nenhuma "ampliação", e os indígenas não teriam direito de serem consultados sobre projetos de "interesse nacional" (um termo complicado de ser definido) que recaiam sobre seus territórios tradicionais.
Portanto, Adams editou uma Portaria, a 303, e os ruralistas usaram os argumentos em mandados de segurança, como se a decisão da Raposa Serra do Sol funcionasse como uma súmula vinculante.
O alvo de Menezes Direito, cuja opinião serviu ao lobby ruralista, não era especificamente a terra indígena em Roraima mas, longe de lá, as terras guaranis no Mato Grosso do Sul e no sul do País, e os projetos desenvolvimentistas do governo federal.
Mesmo os casos de demarcações nos quais houvesse nulidade absoluta do processo não poderiam ser revistos.
A tentativa de Menezes Direito de produzir uma legislação por meio de uma decisão jurídica foi rechaçada pelos ministros do STF.
A decisão do STF sobre a demarcação da Raposa Serra do Sol não vincula juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas diversas, explicou o ministro Barroso.
E, se não vincula o judiciário, também não deve vincular o Executivo na administração pública. Nesse sentido, a Portaria 303 da AGU, assinada por Adams em 2012 e que estava suspensa, perdeu sua justificativa maior.
A portaria era um dos principais alvos do movimento indígena, pois reescrevia as 19 condicionantes de Menezes Direito para os casos gerais.
Produzia, assim, uma interpretação da Constituição Federal que inovaria a ordem legislativa, o que perpassa os poderes dos advogados da União. Em meio a protestos, a medida foi suspensa.
STF e o acirramento dos conflitos
As argumentações sobre a aplicação da lei e o funcionamento do sistema jurídico podem sempre ser múltiplas e contraditórias.
É o que tem ocorrido nas decisões da Corte Suprema: decisões de Ricardo Lewandowski e Joaquim Barbosa geralmente são antagônicas às de Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Mello no que tange os direitos indígenas.
Quando cai no colo de um ou de outro um processo, cada um decide do jeito que quer.
Lewandowski [foto] já havia decidido pela não aplicação
das condicionantes, enquanto Gilmar Mendes encontrou nelas um subterfúgio para suspender a demarcação da Terra Indígena Arroio-Korá, dos Kaiowá e Guarani, no Mato Grosso do Sul.
Infelizmente, o STF, que deveria ser uma instituição pacificadora e garantidora do Direito, é um dos grandes responsáveis pelo acirramento de conflitos no campo no País e pela concentração fundiária.
A Corte, órgão máximo do Judiciário, é apontada pelo governo como responsável por travar as demarcações.
Apesar do julgamento ter sido favorável aos povos indígenas, os adversários dos índios passaram a contar na imprensa uma versão diferente, de que quem perdeu teria ganhado. Algo como: não ganhou, mas levou.
É uma retórica confusa, mas que ficou patente na declaração de Adams logo após o julgamento:
"[A decisão] reforça a portaria da AGU. O que a portaria é, é uma orientação técnica do advogado-geral à área jurídica dizendo que, na interpretação da norma constitucional, na aplicação da norma constitucional, nós temos que observar as condicionantes."
Acontece que a decisão do STF é justamente o contrário do argumento utilizado pelo advogado. Uma eventual tentativa de publicar a Portaria não será resguardada pelo STF, a priori, mas apenas opinião externada pelo órgão advocatício, e que deverá enfrentar opiniões contrárias e manifestações.
Em aberto
O STF deixou em aberto grandes questões, no entanto, que estão em debate no Brasil.
Tendo sido refutada a restrição das demarcações, resta o problema da "consulta prévia" aos povos indígenas, direito adquirido com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Para Raul do Valle, advogado do Instituto Socioambiental, o problema é o seguinte:
"A decisão de 2009 é extremamente ambígua, dizendo que a instalação de bases militares, bem como suas intervenções, não precisam de consulta prévia para ocorrerem, no que o ministro
Barroso concordou.
Mas ela estende essa mesma regra à "expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas, de cunho estratégico", sendo que a definição de "estratégico" caberia ao Conselho de Defesa Nacional.
Claramente uma extrapolação e uma afronta ao estado de Direito, na medida em que permite que decisões totalmente discricionárias possam impedir o exercício de um direito
fundamental.
Se esse conselho decidir que é estratégico ao país vender soja para China com o menor preço possível estaria o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) autorizado a cortar uma pequena terra Kaingang no Paraná ao meio, sem consulta, porque seu desvio encareceria a saca exportada por Paranaguá em alguns centavos?"
Para Valle [foto acima], porém, é importante frisar que o voto de Barroso foi claramente pela negativa dessa hipótese, "dizendo que nem tudo pode ser considerado 'estratégico'".
Até o lado espiritual dos povos indígenas foi debatido pelos ministros em suas togas.
Há igrejas na Raposa Serra do Sol, protestantes e católicas, e a dúvida era se elas deveriam serem expulsas após a demarcação.
Sobre esse ponto, Barroso reafirmou o princípio constitucional da liberdade religiosa, facultando aos indígenas o poder da escolha se querem ou não a permanência das igrejas, templos, etc. No entanto, fez questão de frisar a "proteção aos locais de culto".
Nesse sentido, o trabalho das agências missionárias fundamentalistas, que praticam o proselitismo, segue sendo proibido nas terras indígenas, conforme portaria da Funai que expulsou missões internacionais que tentam evangelizar povos e traduzir a bíblia.
Essas atividades continuam sendo consideradas contrárias a lei. Isso não significa que os povos indígenas não possam praticar diferentes religiões que as suas tradicionais.
Mas invadir terras indígenas para converter os povos que lá habitam permanece sendo considerado uma afronta à proteção aos locais de culto.
As almas indígenas, conforme publiquei aqui no blog, em seus locais de culto que são os territórios tradicionais, devem continuar protegidas pelo Estado da sanha fundamentalista.
No julgamento, após terem sido tomadas as decisões centrais, os ministros que aparentemente teriam opinião diversa passaram a oferecer um debate raso, permeado de preconceito e discriminação aos povos indígenas.
[Gilmar] Mendes, [à direita, com Marco Aurélio Mello] que possui fazendas no Mato Grosso, chegou a citar uma reportagem preconceituosa da revista Veja, [VEJA - Edição 2091 - 17 de dezembro de 2008] como é a tônica da publicação, contrária aos índios da Raposa Serra do Sol.
Mendes inclusive deixou transparecer uma expressão de raiva no momento em que pronunciou "tribos de índios vivendo nos lixões" [ao lado].
Ao que Marco Aurélio de Mello deu seguimento ao bate-papo, como uma conversa de compadres na varanda do curral, revirando fantasmas da Ditadura e criticando os índios "aculturados" (um conceito que carrega significados discriminatórios).
Eles haviam aproveitado o gancho de Teori Zavascki [foto].
Segundo o advogado Raul Valle, Zavascki "queria, por alguma razão, dizer que os efeitos dos julgados se
estendiam a outros casos, mas não teve coragem".
Após uma grande confusão na sua argumentação, Zavascki resumiu tudo dizendo que o futuro é imprevisível e que tudo pode mudar um dia. Sob esse alerta, o relator Barroso completou: pode cair um meteorito aqui amanhã.
A onda anti-indígena em curso no Brasil hoje não acabou com a decisão do STF.
Especialmente pelos argumentos que aparentemente tornariam a decisão ambígua.
O bate papo dos ministros deu indicativos de que o STF empurrou para o Legislativo e o Executivo a pressão contrária aos índios.
E o Executivo tenta argumentar que vai se "inspirar" na decisão para agir de acordo com seus interesses e editar, novamente, normas que restringem direitos.
No entanto, por mais que se mire os índios como adversários de seus interesses, no caso do governo e ruralistas, em um aspecto o STF foi claro, sem nenhuma ambiguidade: vai ser preciso respeitar a Constituição Federal de 1988.
Caso ela seja mudada, tudo muda. Mas, hoje, o que vale é a Constituição e o sistema jurídico de hierarquia das normas e a separação dos poderes.
A Casa Grande, representada pelos grandes detentores de terras que não admitem interferências em seus negócios, vai ter de aceitar.
Assim como o governo, submetido a um controle constitucional. Essa é a regra do jogo do "contrato social" que constitui o Brasil.
Conforme alerta o Conselho Indigenista Missionário, os desafios
enfrentados pelos povos indígenas não foram resolvidos:
"O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) ressalta, todavia, que o encerramento do julgamento e a publicação do acórdão da Petição 3388 não servirão para cessar as problemáticas no tocante a questão das terras tradicionais dos povos indígenas.
É de se presumir que as forças político econômicas anti-indígenas continuem o ataque violento que vem desferindo contra os povos e seus direitos constitucionalmente estabelecidos."
Caso caia um meteorito em Brasília, cuja possibilidade alertou o ministro Barroso, muita coisa pode acontecer.
No entanto, mesmo assim, as 19 condicionantes formuladas por Menezes Direito não serão aplicadas fora do caso da Raposa Serra do Sol.
(*) Felipe Milanez, pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Felipe Milanez escreve sobre meio ambiente, conflitos sociais e questões indígenas. É também pesquisador visitante na Universidade de Manchester e integra o European Network of Political Ecology (Entitle).
Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-milanez/raposa-serra-do-sol-stf-garante-direitos-constitucionais-indigenas-6541.html