quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Resgate de escravos envolve irmão de Kátia Abreu, diz governo

29/08/2012 - Leonardo Sakamoto em seu blog

O Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 56 pessoas de condições análogas à escravidão da fazenda Água Amarela, em Araguatins (TO).

A área de plantio de eucaliptos, que também abrigava 99 fornos de carvão vegetal, estava sendo explorada pela RPC Energética.

De acordo com a fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Tocantins, ainda que registrada em nome de um “laranja”, a empresa pertence a Paulo Alexandre Bernardes da Silva Júnior e André Luiz de Castro Abreu, irmão da senadora Kátia Abreu (PSD-TO), liderança ruralista que também é presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Abaixo os principais trechos da matéria de Bianca Pyl, Guilherme Zocchio e Maurício Hashizume, da Repórter Brasil.

Dedicado à extração de eucaliptos e ao carvoejamento, a RPC produzia matéria-prima para a siderúrgica Fergumar (Ferro Gusa do Maranhão Ltda.). Instalada em Açailândia (MA), a Fergumar é dona da fazenda e recebeu os 18 autos de infração lavrados na operação - que foi concluída na semana passada.

A empresa, que já foi envolvida outras vezes em casos de trabalho escravo, não atendeu aos pedidos de posicionamento perante o caso solicitados pela reportagem. A Fergumar escoa 80% de sua produção para os Estados Unidos, incluindo grandes corporações do setor automobilístico. A reportagem tentou contato com os responsáveis pela RPC, mas não conseguiu parecer dos mesmos sobre o ocorrido. Também a senadora Kátia Abreu, que está temporariamente em licença médica do cargo parlamentar, não retornou até o fechamento desta matéria.

De acordo com a fiscalização, a constatação de condições degradantes nas frentes de trabalho e nos alojamentos, servidão por dívida, jornada exaustiva e aliciamento fundamentou a caracterização do trabalho análogo à escravidão. Uma das vítimas não tinha 18 anos, segundo o auditor fiscal do trabalho que coordenou a inspeção, Humberto Célio Pereira.


Planta da Fergumar em Açailândia (MA)

Não havia banheiros em condições de uso. Aos trabalhadores que produziam carvão, os empregadores disponibilizaram um cercado de lona com uma lata improvisada, sem fossa, como latrina. Nos barracos em obras em que dormiam, os sanitários também não funcionavam. Na prática, as vítimas acabavam utilizando o mato para realizar suas necessidades. Faltava água potável, tanto nos barracos como junto aos fornos. O aliciamento foi verificado por meio da atuação do “gato” (intermediador de mão de obra) Maurício Sobrinho Santos, que atraiu e recrutou trabalhadores nos municípios de Vargem Grande (MG), São João Paraíso (MG) e Boa Sorte (MG), além de Açailândia (MA), cidade que abriga a planta da Fergumar. A promessa era de condições de trabalho decente, com a perspectiva de pagamento de fartos salários.

Segundo a fiscalização, o esquema era consumado pelo depósito de um adiantamento em dinheiro por parte do “gato” que, dessa maneira, assegurava o vínculo dos trabalhadores. Essa verba ajudava não só a pagar o transporte dos locais de origem até o Norte de Tocantins, mas também era canalizada para o sustento das famílias dos migrantes. Além do adiantamento, o “gato” mantinha também uma cantina, na qual comercializava desde ferramentas de trabalho e equipamentos de proteção individual (EPIs), como peças de motosserra e botas, até combustíveis, produtos alimentícios, bebidas alcoólicas e itens básicos para higiene pessoal. Tudo era anotado, inclusive os custos relativos às refeições diárias, para que depois fossem descontados dos respectivos vencimentos. Por conta das subtrações, os pagamentos mensais eram inferiores ao salário mínimo. Cadernos com anotações foram apreendidos.

Carvão vegetal abastece altos fornos e faz parte de composição do ferro-gusa (Fotos: SRTE/TO)
As pela passagem de ida, os trabalhadores relatam ter pago R$ 350 cada um. Segundo depoimento de um dos trabalhadores, as luvas furadas oferecidas pelos empregadores colocavam em risco à saúde dos trabalhadores. Três dos resgatados admitiram ter sido atacados, por exemplo, por escorpiões. No local, não havia ainda material adequado para proceder os primeiros socorros. Os alojamentos e as frentes de trabalho foram interditados. Além de uma construção inacabada (sem portas) e abarrotada onde viviam 17 pessoas (inclusive o “gato” e sua família), imóveis despreparados localizados na área urbana de Araguatins (TO) abrigavam outras dezenas. Quando da libertação, eles estavam trabalhando no local há cerca de três meses. O motorista do ônibus que recolhia os empregados não era habilitado e o transporte entre as frentes de trabalho era feito em caminhões e tratores de carga, de modo completamente irregular.

“Laranja” – Um contrato forjado de compra de “madeira em pé” era a base da empreitada que vinha se realizando na fazenda, de acordo com a fiscalização. Pelo instrumento de fachada, a Fergumar aparecia como vendedora de matéria-prima para a RPC Energética, cujo dono seria Adenildo da Cruz Sousa. Ocorre que o mesmo Adenildo vem a ser funcionário registrado da Reflorestar Comércio Atacadista de Produtos Florestais Ltda., conforme apurou a fiscalização. Ou seja, ele desempenhava, conforme investigações da auditoria fiscal do trabalho, o papel de “laranja” dos verdadeiros donos do negócio: Paulo Alexandre Bernardes da Silva Júnior (a quem inclusive havia concedido poderes por meio de uma procuração legal) e André Luiz de Castro Abreu, servidor do Minisério Público do Trabalho (MPT) em Palmas (TO) e irmão da senadora ruralista Kátia Abreu (TO).

O mesmo Paulo Alexandre estaria, ainda de acordo com as apurações da auditoria, à frente da Reflorestar, que já constou da “lista suja” do trabalho escravo (cadastro de empregados envolvidos na exploração desse tipo de crime mantido pelo governo federal) entre 2008 e 2010, por conta de uma libertação de abril de 2007, em Dois Irmãos (TO). Além da questão do “laranja”, a inspeção constatou também que o “gato” que atuava na fazenda Água Amarela havia sido demitido da RPC em março de 2012 e recontratado em junho, sem registro em carteira, enquanto ainda recebia o Seguro-Desemprego.

O recente flagrante foi motivado por uma denúncia que, após ser protocolada anteriormente em representações dos órgãos responsáveis na região, acabou chegando à Polícia Federal (PF), que encaminhou a demanda à sede da Superintendência na capital do Estado. Além do jovem com idade inferior a 18 anos que foi encontrado realizando tarefas insalubres e perigosas, outras quatro mulheres foram resgatadas no decorrer da operação. A RPC pagou as verbas rescisórias à vítimas, que totalizaram mais de R$ 72 mil, mas se recusou a arcar com as despesas de retorno de migrantes vindos de outros Estados.

Representante da Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região (PRT-10) em Araguaína (TO) que acompanhou o início da inspeção, Alexandre Marin Ragagnin afirmou à Repórter Brasil que aguarda o relatório final da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego no Tocantins, com todos os documentos e depoimentos, para tomar providências quanto a possíveis acordos ou ações judiciais. Ele confirmou o quadro grave de degradância, aliciamento e servidão por dívida.

A Fergumar também foi incluída na “lista suja” em meados de 2007. Conseguiu, porém, uma liminar na Justiça que a retirou da relação em agosto do mesmo ano. O ingresso esteve relacionado ao resgate de 23 empregados encontrados em situação análoga à de escravo em outra carvoaria no município de Dom Eliseu (PA), que fornecia carvão vegetal para a empresa.

Com base no serviço de consulta pública, é possível verificar que a Fergumar mantém cadastro irregular junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama). A empresa teve quatro áreas embargadas em São João do Paraíso (MA), em julho de 2006, por exercer atividade potencialmente degradadora sem licença ambiental; desmatar florestas sem autorização do órgão responsável; e devastar florestas ou demais formas de vegetações de preservação permanente.


Fonte:

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Partido da Terra: “os prefeitos com mais hectares estão no PSDB"

26/08/2012 - Diário Liberdade da Galícia

O jornal do PCO [Partido da Causa Operária] entrevista Alceu Castilho, jornalista e autor do livro "Partido da Terra, como os políticos conquistam o território brasileiro", que mapeia o movimento dos latifundiários e donos da terra no Brasil.

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Causa Operária: O que te despertou para a pesquisa que resultou no livro?
Alceu Castilho: Eu morei em Brasília entre 2005 e 2007. Eu escrevia para um pool de jornais paulistas. Em 2006, com as eleições para o Congresso, fiz uma série chamada "Câmara Bilionária", a partir das declarações de bens dos deputados eleitos. A série saiu em 2007 e tratava de bens diversos, imóveis urbanos, imóveis rurais, carros, empresas, dinheiro no colchão... e o que mais me chamou atenção foram os dados sobre bens rurais.

Fazendas, gados, empresas agropecuárias. Seja pelo volume, seja pelas curiosidades nas declarações, valores defasados ou hipervalorizados, e a própria extensão de terras. Então decidi fazer um levantamento maior sobre a posse de bens rurais por políticos. Indo além dos deputados federais.

Em 2008 eu decidi começar a análise pelos dados dos prefeitos, incialmente só no Pará. Mas acabei levantando de todos os prefeitos e depois de todos os vices. Foram cerca de 11 mil declarações. Estava feita a base do livro. Em 2010 eu completei os dados com deputados estaduais, federais, senadores, suplentes de senadores, governadores, vice-governadores, presidente e vice-presidente da república eleitos.

Causa Operária: Porque esse nome "Partido da Terra"?
Alceu Castilho: O livro chegou a ter outros nomes. Um deles era o "movimento dos políticos com terra". ... Acabamos optando por esse nome que sintetiza bem a atuação desses políticos. Pois se trata de um movimento suprapartidário que caracteriza os partidos transversais, um conceito utilizado na Itália, em relação a essas causas suprapartidárias.

O título tem como complemento "como os políticos conquistam o território brasileiro". Portanto, a ideia é essa. Eles são como um partido mesmo, com a característica de defender uma causa. A causa da propriedade.

Causa Operária: Você encontrou dificuldade para ter acesso às informações? Encontrou barreiras?
Alceu Castilho: Não. Porque a opção desde o início foi trabalhar com os dados que eles mesmos forneceram. O livro já existiria só com essa base que é pública. Uma coisa que eu gostaria de ressaltar é que é possível fazer muita coisa em termo de jornalismo e mesmo de pesquisa acadêmica a partir de informações que estão por aí. É claro que o livro não trabalha só com esse tipo de informação. Tem outras, mas não é o tipo de coisa que a gente poderia ficar dependendo deles. Imagina se teríamos resposta de 13 mil políticos com relação aos seus bens. Teve uma ou outra dúvida que eu tentei tirar e eles não responderam. Mas apesar de haverem imprecisões ou ausências com relação à declaração de bens é possível dizer que muitos políticos tem certo prazer em ostentar seus bens rurais. Suas fazendas, seus gados. O vínculo é tão grande com essa questão que muitos deles têm sim certo orgulho disso, o que facilita a pesquisa.

Causa Operária: Os dados são confiáveis e o que representam com relação ao território nacional?
Alceu Castilho: Logo no início verifico várias camadas com relação à posse de bens rurais pelos políticos. O primeiro capítulo a gente se propõe a contar a quantidade de hectares que esses políticos possuem. Então, tem uma base de dois milhões de hectares [ha] que é a base mínima. Que está lá declarada por eles mesmos. Em outros casos eles declaram o valor do bem, mas não informam o ha. Cerca de 1/3 dos bens declarados cai nesse ponto. Só que a partir daí eu projeto o que eram dois milhões como facilmente identificados com mais um milhão e tantos mil ha, só de coisas que eles efetivamente declaram, mas não informaram o tamanho. Tem ha nas mãos de empresas que eles declararam as empresas, mas não a terra, assim por diante.

O eleitor não fica sabendo dos detalhes pela justiça eleitoral, mas fiz uma pesquisa para e em cinco casos, como no do senhor Blairo Maggi, já identifiquei um milhão e cem mil hectares. Com apenas cinco políticos. Como eu digo, essa camada vai aumentando e já cheguei a quatro milhões de ha. Isso sem incluir os vereadores que são mais de 50 mil. A gente poderia fazer uma projeção aí também... estou falando então de políticos eleitos em 2008 e 2010. Esses números não contam suplentes de deputados, não contam os políticos que não foram eleitos nesses pleitos... mas estão sempre aí em cargos públicos. Caso por exemplo de Geddel Vieira Lima. O Jader Barbalho embora esteja no senado não entrou no levantamento porque na época estava barrado; e assim por diante. Prefeitos não eleitos no Pará têm mais terras do que os que foram eleitos. A partir daí é possível fazer outra projeção de milhões de hectares nas mãos de políticos brasileiros. Como eu digo, são várias camadas. O que é fato é que eles possuem uma quantidade significativa do território brasileiro.

O primeiro capítulo traz esses números detalhados. Os dois milhões de início, facilmente identificados estão relacionados por partidos, e só isso dá 0,57% da propriedade de terras declaradas no País. Como eu cheguei a quatro milhões e quatrocentos mil só com o que eles declararam em 2008 e 2010, a gente já tem 1,2% do território. E assim vai aumentando. Ou seja, é muita terra. ... Por exemplo, 4,4 milhões de ha é o tamanho da Holanda, da Suíça, é metade de Portugal. Isso não é pouca terra.

Causa Operária: Porque os ocupantes de cargos eletivos?
Alceu Castilho: "Os proprietários da terra no Brasil ocupam o legislativo, invadem o executivo, cultivam o judiciário". O livro trata diretamente do pessoal que foi eleito porque seus dados estão disponíveis. No judiciário as pessoas não são eleitas. Os dados não estão acessíveis. Qual seria a base para investigar? ... E não que o judiciário não apareça. Porque no livro tem várias histórias que mencionam promotores e juízes.

Uma das conclusões do livro é que a gente tem um sistema político ruralista, muito mais do que uma bancada ruralista. Se é sistêmico, há uma conexão entre os poderes, entre as esferas de cada poder... Essa é uma das conclusões centrais a que o livro chega a partir do próprio levantamento de dados.

Causa Operária: Você disse que começou a pesquisa pelo Pará. Por quê?
Alceu Castilho: O Pará é objeto do quarto capítulo que se chama "Pará, onde vale tudo". Foi o objeto inicial da pesquisa porque é o estado com maior conflito de terras no Brasil. É palco de trabalho escravo, de desmatamento, de ameaça a camponeses. É onde mais morrem camponeses no Brasil.

Em muitos desses casos há políticos protagonistas. É um estado enorme, representativo da ocupação da Amazônia, do arco do desmatamento, é para onde está indo o gado e muitas coisas mais, empurradas pelo agronegócio. O Pará sintetiza muitas historias desse país arcaico.

Causa Operária: Como é a posse da terra por partidos políticos?
Alceu Castilho: O livro divide-se em cinco partes. "Território", "Dinheiro", "Política", "Ambiente" e "Excluídos". Em, "Política", o primeiro capítulo se chama "movimento suprapartidário". É baseado em dados das eleições 2008-2010 e mostra que políticos de quase todos os partidos possuem terras e possuem latifúndios....

Os prefeitos com mais hectares estão no PSDB, seguido de perto pelo PMDB - que eu supunha seria o líder por ser o maior partido brasileiro. Estão próximos, mas os tucanos estão à frente... Em terceiro está o PR; em quarto o PT; em quinto o DEM.

Entre os parlamentares o primeiro é o PMDB; o PSDB vai para quinto lugar; o DEM fica em segundo; o PR se mantém em terceiro; e o PDT em quarto lugar. A posição tem a ver com a quantidade de pessoas eleitas também.

A gente conhece mais os figurões do Congresso... mas o PSDB não é tão associado a esse universo rural. Mas mostra que nas prefeituras tem essa base de grotões, de prefeitos latifundiários. Entra no que eu falei do sistema político. A imprensa fala muito das cúpulas e esquece que o País é muito mais amplo do que a opinião do líder do governo, ou líder da oposição de plantão... Os dados mostram que essa capilaridade existe. São esses clãs, são esses coronéis que colocam os presidentes e governadores de plantão como reféns desse sistema político que é patrimonialista, clientelista, etc. no caso, a própria existência do que eu chamo de esquerda latifundiária é mais uma evidência disso.

Nessa lista dos cinco mais só aparece o PDT, desses partidos originalmente de esquerda. Mas temos latifundiários do PT, do PPS, PSB e assim por diante. O PCdoB no levantamento não aparece, mas já teve um latifundiário no Tocantins candidato ao governo, Leomar Quintanilha. Só o Psol não aparece. Além do PCdoB. Isso falando dos partidos com representação, gente eleita nos casos mencionados. Vereador eu não sei. Isso também é
importante deixar claro.

Eu digo que os filhos do MDB tem mais terra que os filhos da Arena. E que existe uma maior tolerância nos dias de hoje com relação aos ruralistas. Eu não acho que a expressão bancada ruralista explique bem. Por isso que falo em política ruralista. Em 1987/88 durante a constituinte isso estava mais definido. Existia uma oposição clara de muitos deputados à bancada ruralista, que a final de contas foi vitoriosa. Mas havia o confronto. Havia até uma demonização de personagens ruralistas. Como Ronaldo Caiado que agora é deputado, na época nem era, mas era o líder da UDR. E hoje não. Hoje eles estão aceitos pelos políticos desses outros partidos, inclusive ditos de esquerda.

Eu conto no livro que o PSB e o PV, o partido socialista e o partido verde, cedem membros da Comissão de Agricultura para o DEM, para partidos de direita... É simplesmente acordo político. Ou seja, os Manda-Chuva desses mega partidos também estão fazendo o jogo dos ruralistas. Não são só o Ronaldo Caiado, a Cátia Abreu e o Abelardo Lupion etc. os nomes mais conhecidos da bancada ruralista. Os braços mais agressivos dos ruralistas.

O sistema é bem mais amplo que essas figuras.

Eles foram incorporados. Houve uma progressiva aceitação, no mínimo por conveniência política. Em nome da governabilidade... Os pactos políticos mostram isso. No momento que um presidente tucano de um partido que já foi efetivamente socialdemocrata governa junto com o DEM e depois vem o PT e governa junto com o PR com o PTB, PP, PMDB, a gente tem uma incorporação da demanda desses políticos arcaicos. Essa "aceitação" então migra para o conjunto da sociedade.

Causa Operária: A incorporação dessa demanda tem a ver, por exemplo, com o governo do PT defendendo o Novo Código Florestal, com o PCdoB...?
Alceu Castilho: Como eu disse o PCdoB nesse levantamento não apareceu como partido com políticos que tenham muitos ha, mas é bem verdade que tem poucos políticos eleitos pelo PCdoB. E o Aldo Rebelo aparece em vários momentos do livro. No capítulo que fala do código florestal, por exemplo.

Aldo Rebelo tem sido um dos maiores aliados dos ruralistas. Ao ponto de podermos defini-lo sim como ruralista. Um ruralista sem-terra.

Nas conclusões do livro cito um caso que presenciei em Brasília. Centenas de manifestantes do MLST [Movimento de Libertação dos Sem Terra] sendo presos no gramado em frente ao Congresso a mando do então presidente da Câmara, Aldo Rebelo. Isso eu vi. Eu estava lá no gramado. Só não fui preso porque era repórter. Todo mundo que estava no gramado foi preso... Caracterizou estado de exceção. Essas pessoas foram levadas para o estádio nacional. Vi crianças e adolescentes baixando a cabeça com policiais falando "entra, senta, abaixa a cabeça", para todo mundo.

Mulheres com crianças de colo... na madrugada ainda passaram frio e fome na delegacia. Tudo isso eu vi. Ninguém me contou. E tudo isso a mando de um presidente de um partido chamado "comunista". Então esse exemplo é preciso para mostrar que ruralista não são apenas as figuras mais tidas como tais. Vai muito além.

Causa Operária: Você poderia destacar algumas histórias do livro?
Alceu Castilho: Em "Território", no capítulo "Pará, onde vale tudo", temos o detalhamento da história do que eu chamo "dono do Pará", o senhor Jader Barbalho. A história de enriquecimento dele é à base de bens rurais e tem a ver com a atuação dele como ministro do governo Sarney, exatamente ministro da Reforma Agrária. Jader Barbalho já foi governador do Pará, presidente do Senado, já foi preso e algemado tem uma história emblemática em relação a essa conexão entre bens públicos e privados.

Na parte "Dinheiro" eu continuo falando de enriquecimento e falo do Renan Calheiros, cujo gado para gente até da UDR, tinha a peculiaridade de ser mais valioso que a média do gado vendido no Brasil, ou em Alagoas na época. Falo da bezerra de ouro de Joaquim Roriz, a bezerra milionária que ele declarou para justificar transações. Em "Dinheiro" falo do enriquecimento.

Na parte "Política", eu cito o exemplo do Abelardo Lupion e toda a história relacionada ao avó dele, Moises Lupion, governador paranaense que foi escola brasileira, especialista em cessão de terras públicas para uma elite latifundiária. Essa elite é também composta por políticos.

Na parte "Ambiente", o livro traz uma lista inédita de políticos madeireiros. Temos alguns casos de prefeitos que foram presos por crimes ambientais. Inclusive por conta de suas madeireiras. Essa parte detalha esses casos de madeireiras e serrarias nas mãos diretamente de políticos.

E a última parte que são os "Excluídos", são três capítulos, e fala dos brasileiros escravizados, mortos e ameaçados, sempre tendo os políticos como fio condutor. Aqui o caso mais emblemático é o que está no final do livro, do senhor Paulo César Quartiero, hoje deputado do DEM, já foi prefeito de Pacaraima, em Roraima que montou uma verdadeira milícia na Raposa Serra do Sol, hoje reconhecidamente terra indígena. Ele como arrozeiro armou uma milícia. O relato do que esse senhor fez em Roraima é impressionante. Ele construiu um arsenal de guerra para combater e ferir índios. E hoje esse senhor migrou como arrozeiro para a Ilha do Marajó, não por acaso no Pará. Então essa história não acaba.

Causa Operária: Qual a relação que o livro estabelece entre a perseguição e morte de camponeses, o trabalho escravo e o chamado partido da terra?
Alceu Castilho: A conexão é direta. Existem conexões indiretas, mas essa é direta. As maiores chacinam no Brasil foram com a atuação da PM. Essa PM agiu a mando de governadores. Que ao contrário do Fleury em São Paulo que ficou conhecido como Marechal do Carandiru, esses governadores não ficaram conhecidos como Marechal do Corumbiara ou Marechal do Eldorado dos Carajás.

Trabalho escravo e morte de camponeses ocorrem e ocorreram ao longo da história do Brasil em terras de políticos. "O cabra marcado para morrer", o famoso do filme, João Pedro Teixeira, paraibano, segundo relatos biográficos foi morto a mando do senhor Agnaldo Ribeiro, avô do atual Ministro das Cidades, que é homônimo dele por sinal.

Eu conto os hectares dos políticos que já foram formalmente acusados de trabalho escravo. São mais de cem mil. São 780 vezes o tamanho da ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos. E a lei diz que terra com trabalho escravo deve ser desapropriada. Não é à toa que o capítulo sobre isso é o mais gordo do livro. Para contar minimamente cada história de politico envolvido com trabalho escravo.

Existem muitos casos de camponeses mortos e ameaçados em "Excluídos". E os políticos estão diretamente relacionados. Para não falar da conexão indireta. É óbvio. Quando você tem uma CPI da Terra, em 2005, e as pessoas vão a campo investigar os desmandos, a grilagem, as ameaças aos camponeses, fazem um relatório; e chegam os ruralistas e fazem um relatório paralelo condenando os sem-terra... O senhor Álvaro Dias (PSDB) que presidia a CPMI da Terra não colocou a mão na massa... mas ele próprio, junto com Lupion e outros, promoveram um relatório absolutamente vergonhoso, que finalmente foi rasgado em Plenário, pela senadora Ana Júlia Carepa, que se tornaria ela mesma governadora do Pará. As conexões são diretas e indiretas como parte de um sistema político ruralista.

Causa Operária: Como atua esse "partido" de rincões e também do Congresso Nacional e como se dá a questão dos financiamentos de campanha?
Alceu Castilho: Na parte de "Política", existe o capítulo "eleições mais que currais"... A ideia é que as expressões de currais, voto de cabresto contam muito sobre como funcionam o coronelismo, como funciona a perpetuação eleitoral desses proprietários de terra, mas não sintetiza tudo. A gente tem essa fase mais "moderna" do financiamento de campanha por grandes grupos agropecuários. Alguns grupos já foram citados em denúncias de trabalho escravo e outros não. Eu não faço nenhum julgamento, apenas faço constatações.

Tem o caso JBS Friboi, por exemplo, que doou mais de 30 milhões em 2010 a campanhas diversas. Inclusive para a presidente Dilma Rousseff. Aí a gente tem o que eu chamo "bancada da Friboi", que são 48 parlamentares eleitos. Sendo 41 deputados e sete senadores. No ano passado, somente um desses deputados votou contra as mudanças no Código Florestal. É coincidência? O Leitor conclui.

Em 2012 numa votação farsesca do Novo Código Florestal esse número aumentou para três. Mas eu chamo de farsa porque em 2012 a porteira já estava aberta e alguns deputados posaram de defensores do meio ambiente e para fazerem jogo de cena votaram contra. A votação real foi lá de atrás. Quando todos os parlamentares do PCdoB votaram a favor. E assim por diante. A posição do PT era a favor do novo Código Florestal. Mas na hora da eleição quem precisa fazer jogo de cena porque tem um eleitorado supostamente mais progressista, mais de esquerda, faz jogo de cena. Quem não precisa não faz. Simples assim.

Causa Operária: O que você espera com o livro?
Alceu Castilho: Eu espero que o livro contribua para o debate sobre a conexão entre política e questão agrária, e política e questão ambiental. E contribua para o eleitor brasileiro refletir melhor sobre seus votos.

Contribua para que os grupos de pressão ligados a essas questões tenham mais instrumentos para promover esse debate político e tentar fazer frente à esse sistema político excludente, perpetuador de desigualdades, perpetuador de violência.

Leia também:

Fonte: 
http://www.diarioliberdade.org/brasil/consumo-e-meio-natural/30569-partido-da-terra-“os-prefeitos-com-mais-hectares-estão-no-psdb.html

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

”Uma hora ele é índio demais e atrapalha, outra hora ele é índio de menos, e não tem direitos”


27/8/2012 - por Redação do IHU-Online

As cidades brasileiras sempre foram ambientes vetados aos indígenas”, declara a antropóloga Lucia Helena Rangel.

A cada ano voltamos a falar dos mesmos problemas”, diz a antropóloga Lúcia Helena Rangel, ao comentar os dados do Relatório de Violência 2011 contra as comunidades indígenas.   
Segundo ela, as situações de violência e descaso com os povos indígenas são recorrentes e se manifestam não só através dos conflitos territoriais, mas também em casos de racismo e na tentativa de suprimir os direitos das comunidades assegurados na Constituição Federal. “Estamos vendo ações cada vez mais fortes contra o direito às terras dos povos indígenas. A PEC 215 e a portaria 303 da AGU são exemplos disso. A cada dia aparece uma nova portaria ou um novo projeto de lei querendo modificar o artigo 231 da Constituição, ou modificar a aplicação dos direitos”, assinala em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.

De acordo com a antropóloga, como as mudanças propostas contra os direitos indígenas sempre “esbarram no princípio constitucional”, surge um “movimento no âmbito do Legislativo para modificar o princípio constitucional”.

Para ela, as elites brasileiras não querem reconhecer os direitos indígenas e criam indisposições entre a população e as comunidades, gerando um discurso racista, especialmente diante dos indígenas que vivem nas cidades.

O Estado não demarca as terras e não quer assumir a população que vive nas cidades. Quem vai para a cidade não vai de modo forçado, obviamente, mas quando analisamos a situação das terras – no Sul, no Sudeste e no Nordeste –, observamos que a quantidade de terras demarcadas não suporta a população indígena dessas regiões”, aponta.

E dispara: “Num país mestiço como o nosso, onde todo mundo é misturado, os índios não podem ser misturados. Uma hora ele é índio demais e atrapalha, outra hora ele é índio de menos, e não têm direitos. Então, o índio nunca tem um lugar”.

Lucia Helena Rangel é doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP com a tese Os Jamamadi e as armadilhas do tempo histórico. É professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Também é assessora do Conselho Indigenista Missionário – Cimi (Regional Amazônia Ocidental) e do Cimi Nacional.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os dados mais alarmantes do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil? Comparando com os relatórios anteriores, o que destaca?
Lucia Helena Vitalli Rangel – É difícil mencionar o que é mais alarmante, porque algumas situações se repetem a cada ano, com variações. Assim, em determinados momentos, o desmatamento chama mais atenção, em outros, a saúde etc. No ano de 2011, registramos um quadro grave, que já tinha sido destacado em anos anteriores e que diz respeito à situação da saúde dos povos do Vale do Javari, no estado do Amazonas. O Vale do Javari é uma área muito grande, demarcada, e que abriga diversos povos, sendo que muitos deles possuem comunidades isoladas no meio do mato, como os marubos, corubos, os matis, os canamari. Entretanto, as populações que vivem na beira dos rios estão sofrendo de verdadeiras epidemias de malária, de hepatite e das doenças aéreas: gripes, tuberculose, pneumonia. Nessas comunidades, a mortalidade infantil é muito alta. As lideranças indígenas relatam que nos últimos dez anos houve 300 mortes. Não temos como saber, de fato, qual é o tamanho dessas populações, mas vamos supor que seja algo em torno de três a quatro mil pessoas. Nesse caso, 300 mortes em 10 anos é muito.

Outro caso grave, identificado através do relatório, é a situação do povo guarani-kaiowá do Mato Grosso do Sul, onde há uma taxa de homicídios de cem mortos por cem mil pessoas. Essa taxa é maior do que a do Iraque, e quatro vezes maior do que a taxa nacional. O Conselho Indigenista Missionário – Cimi já denunciou os casos de genocídio, e essas denúncias já chegaram à ONU, a organismos internacionais, e várias delegações já foram ao Mato Grosso do Sul para constatar tal situação. Entretanto, não se toma nenhuma providência. Outro problema muito complicado é o desmatamento. Este ano destacamos violações ao patrimônio indígena, depredação, retirada ilegal de recursos naturais, incêndios criminosos etc.

Comparando os dados deste relatório com os relatórios anteriores, não temos como dizer se a situação dos indígenas melhorou ou piorou. Às vezes piora, às vezes melhora, mas isso não significa nenhuma tendência nem de melhorar, nem de piorar. A cada ano voltamos a falar dos mesmos problemas.

IHU On-Line – Qual a situação dos xavantes no Mato Grosso? Os conflitos também estão atrelados à disputa pela terra?
Lucia Helena Vitalli Rangel – No caso dos xavantes, a situação mais complicada é a da terra indígena Marãiwatsèdè. Essa terra está foi invadida por fazendeiros e está em litígio há muitos anos. As comunidades não se conformaram com as ocupações indevidas e tentam reaver o seu território na integralidade. Além de terem acesso a pouca terra, eles são pressionados pelo desmatamento oriundo da pecuária, do agronegócio, da soja, das queimadas, do envenenamento de rios etc. Além disso, a mortalidade infantil entre os xavantes foi alarmante nos anos de 2009 e 2010.

Há uma relutância da Funai diante destes conflitos, porque o órgão cria projetos, faz levantamentos, identifica as terras que devem ser demarcadas, mas não conclui tais projetos, e mesmo quando há conclusão, quando os relatórios são publicados, não há continuidade nas ações. Tanto no Rio Grande do Sul como em Santa Catarina há estradas em que se veem placas indicando “Cuidado, indígenas na estrada”, como se eles fossem animais selvagens.

IHU On-Line – Quais são as etnias que mais sofrem por causa da violência e dos conflitos de terra?
Lucia Helena Vitalli Rangel – No extremo sul da Bahia, o povo pataxó tem sofrido há décadas pressões e violências brutais, tais como assassinatos, emboscadas em estradas, tiroteios, incêndios de escolas, de casas, de roçados por parte de fazendeiros que não querem admitir que as terras dos pataxós e dos tupinambás, que vivem nessa região, sejam demarcadas. Eles afirmam que o governo do estado da Bahia concedeu as terras para eles e, portanto, têm mais direitos do que os índios. Entretanto, ninguém leva em conta que o próprio governo da Bahia foi o primeiro a violar os direitos indígenas ao conceder as terras a um fazendeiro qualquer, considerando que muitos deles nem eram daquela região.

Outras etnias vítimas da violência são os guarani e os kaingang, no Sul; os guarani-kaiowá, no Mato Grosso do Sul, os guajajara e os awá-guajá, no Maranhão; os turucá, em Pernambuco e no Norte da Bahia. Outra situação interessante de apontar é o caso de Roraima, da terra indígena Raposa Serra do Sol, onde vivem os povos uapixana, macuxi, e outros. Ali havia registros de violência brutal durante muitos anos. A luta foi longa, mas finalmente em 2009, quando o Supremo Tribunal Federal – STF corroborou a homologação que já havia sido feita pelo então presidente da República, concedendo aos indígenas a terra, os relatos de violência, em 2011, praticamente sumiram dos relatórios. Isso prova que a situação dos indígenas melhora se as terras forem demarcadas.

Por mais que haja posições contrárias de alguns senadores e deputados, que dizem que os índios de Roraima vivem nas cidades no meio do lixão, devemos lembrar que essa situação é muito anterior à demarcação. O que nós comparamos não é a situação dos indígenas que vivem na cidade de Boa Vista, mas a situação de violência dentro da terra indígena Raposa Serra do Sol.

IHU On-Line – A disputa pela terra é a principal razão pelos conflitos entre indígenas e não índios? Que outros problemas são gerados em decorrência da não demarcação das terras?
Lucia Helena Vitalli Rangel – O pano de fundo é a questão da terra. Entretanto, não podemos reduzir tudo a essa questão. Mas inúmeros problemas vêm daí, porque quando uma terra não está reconhecida, os índios não têm acesso à assistência de saúde, não recebem programas de educação escolar, não recebem insumos agrícolas, projetos de alimentação etc. Então, trata-se de uma questão fundiária, de disputa pelas terras indígenas e de não reconhecimento dos direitos indígenas às suas terras. Os indígenas têm um modo de vida baseado na relação com a terra, com o território, com a natureza. E essa relação é a base da vida deles.

No Mato Grosso do Sul, cerca de dez reservas indígenas de kaiowá-guarani foram demarcadas. A Funai levou todas essas comunidades para dentro dessas terras, e elas viraram um barril de pólvora por causa da superlotação. Há conflitos internos entre comunidades que não se entendem; há casos de alcoolismo, falta de perspectiva etc. Além disso, eles não conseguem trabalhar a terra porque não tem espaço para isso. Então há consequências graves por causa da falta de demarcação das terras.

IHU On-Line – Como vê o projeto desenvolvimentista brasileiro, que propõe a expansão do parque energético em áreas ocupadas por comunidades indígenas e tradicionais, como o caso do Xingu e do Tapajós? Como ficam os povos indígenas diante desses projetos?
Lucia Helena Vitalli Rangel – Cada rio da bacia amazônica tem um tipo de potencial hidrelétrico, e são todos discutíveis, porque alguns rios têm um potencial maior, outros, menor. O quanto isso vai beneficiar a produção econômica, as cidades brasileiras, a população que vive nas cidades, também é uma coisa a ser discutida, porque os mais prejudicados com essas construções, com esses empreendimentos, são as populações ribeirinhas e as populações indígenas.

No rio Madeira, as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio estão sendo feitas em uma região onde há comunidades indígenas isoladas, que ainda não fizeram um contato regular com os agentes do Estado brasileiro e a sociedade. O que vai acontecer com essa gente, nós não sabemos. Por onde eles vão escapar? Eles vão morrer ou não? Vão pegar epidemia ou não? Não há como saber.

Hidrelétricas
Em Altamira, onde está sendo construída a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, vive uma população indígena que já tem contato regular com a sociedade. Ocorre que essa população da região da Volta Grande já foi deslocada em momentos anteriores. Então, trata-se de uma população que tem essa memória, que sabe o quanto custa um empreendimento desses. Quando a Transamazônica foi construída, essa população não foi ouvida, os impactos não foram avaliados corretamente, e o próprio Ibama reconhece isso.

Diante de empreendimentos como Belo Monte, os empreendedores e os representantes do Estado dizem para a população de Altamira o seguinte: “Os indígenas não querem que vocês tenham acesso à energia”. Então cria um conflito que é insuportável.

No Tapajós, acontece a mesma coisa. O complexo hidrelétrico de Tapajós vai alagar terras indígenas. Prioritariamente, quase todas as hidrelétricas que foram construídas nesse plano de desenvolvimento afetaram os povos indígenas, a exemplo de Itaipu, Tucuruí entre outras.

Por causa da transposição do rio São Francisco, por exemplo, o povo Truká foi afetado pela transposição do rio, porque o canal dividiu a terra deles ao meio, e usou parte do território para instalar canteiros de obras. Os próprios indígenas denunciam e reclamam das consequências, como o aumento do alcoolismo, da prostituição, da falta de emprego e da diminuição das terras agriculturáveis. Nesse caso do rio São Francisco, transpõe-se o rio para irrigar terras, mas quem está na beira do canal perde área cultivável. Quer dizer, trata-se de um contrassenso da obra ou de uma falta de respeito pelos indígenas que viviam ali. Por que o canal tem que cortar a terra ao meio?

IHU On-Line – Os índios têm clareza dessa situação, das implicações das obras? No caso de Belo Monte, por exemplo, algumas etnias estão divididas. Eles acabam sendo cooptados pelo Estado?
Lucia Helena Vitalli Rangel – É sempre assim. Têm aqueles que, em troca de algum dinheiro ou algum benefício, trabalham para que a obra se realize. A consequência disso, depois da obra pronta, é um conflito interno muito grande, porque aqueles que se beneficiaram não dividem o benefício com toda a comunidade.

Um exemplo são os indígenas que vivem próximo ao rio Tocantins. O povo xerente foi afetado pela hidrelétrica do Lajeado, que teve a barragem construída no “pé” da terra deles. À época, algumas lideranças se apressaram e quiseram convencer todo mundo de que eles deveriam aceitar o dinheiro da mitigação do impacto – e a mitigação do impacto nessas obras acaba sendo sempre o dinheiro. Então, quando eles aceitam, recebem um valor monetário determinado, para implementarem projetos dentro da área. Mas com esse valor, criam uma associação, constroem uma sede na cidade, compram veículos (tanto ambulâncias como camionetes e caminhões), computadores, telefones. Posteriormente, tudo isso gera uma fase de insatisfação e reclamações. Aumentam os conflitos entre as comunidades que vivem dentro da mesma área, porque umas ganharam mais dinheiro, outras ganharam menos benefícios. Claro, não cabe à empresa que vai construir a hidrelétrica resolver esse problema, mas a atuação dos agentes do Estado podia levar em conta essas coisas, porque elas são conhecidas.

Agora, quando alguém oferece dinheiro para as comunidades, todo mundo fica enlouquecido pelo dinheiro. Então, esse é um problema muito sério e muito complicado. Quem sou eu, por exemplo, uma professora e antropóloga, para dizer a um indígena que, se ele aceitar esse dinheiro, posteriormente enfrentará muitos problemas? Trata-se de outro processo de conscientização, de análise, que demandaria um esforço diferente no tratamento dessas questões com os indígenas. A pressa em propor essas formas de mitigação é que faz com que alguns indígenas também se sintam atraídos e aceitem, de “mão beijada”, coisas que trarão consequências graves para a sua comunidade.

IHU On-Line – De acordo com os dados do Cimi, a homologação das terras indígenas diminuiu drasticamente de 145 registros no governo Fernando Henrique Cardoso para 79 no governo Lula e apenas três no governo Dilma. Quais as razões dessa redução? O que essa mudança na política governamental sinaliza?
Lucia Helena Vitalli Rangel – Cada governo enfrenta um tipo de pressão. Da gestão Lula para cá, o governo tem cedido demais às pressões dos fazendeiros, das empreiteiras, daqueles interessados ou nos grandes projetos, nas grandes obras ou no agronegócio. O governo faz alianças políticas e depois tem que dar a contrapartida. Isso é evidente, no caso do Mato Grosso do Sul, porque há uma pressão muito forte do governo estadual, dos empresários do agronegócio. Até o judiciário, no Mato Grosso do Sul, é contra os indígenas, sendo que existem leis, que há uma Constituição Federal. Mas ninguém respeita.

IHU On-Line – E ainda são publicadas a portaria 303 da AGU, a PEC 215…
Lucia Helena Vitalli Rangel – Exatamente. Estamos vendo ações cada vez mais fortes contra o direito às terras dos povos indígenas. A PEC 215 e a portaria 303 da AGU são exemplos disso. A cada dia aparece uma nova portaria ou um novo projeto de lei querendo modificar o artigo 231 da Constituição, ou modificar a aplicação dos direitos.

Outro exemplo foram as discussões em torno da mudança do Código Florestal, que acabou sendo aprovado na Câmara Federal através dos piores princípios. Por exemplo, em 2010 as discussões das mudanças do Código Florestal desencadearam um verdadeiro vandalismo. No Mato Grosso, as terras indígenas foram afetadas pelo desmatamento de uma forma violenta. Segundo a Polícia Federal, cem terras indígenas foram afetadas, além de 20 unidades de conservação.

IHU On-Line – Como compreender tais portarias diante do artigo 231 da Constituição Federal?
Lucia Helena Vitalli Rangel – A Constituição Federal é uma “salvaguarda”, ela resguarda os direitos cidadãos. Então, o artigo 231 da Constituição reconhece o direito dos indígenas às suas terras, a ocupação originária etc. Portanto, o reconhecimento do direito é constitucional, e é o princípio mais importante. Agora, a aplicabilidade do direito não depende somente da Constituição Federal; há de ter uma regulamentação. No caso dos povos indígenas, a regulamentação acontece através do Estatuto do Índio. Depois de 1988, quando a Constituição foi promulgada, deu-se início à discussão de elaborar um novo Estatuto do Índio, porque o Estatuto que vigora até hoje é de 1970.

IHU On-Line – Que aspectos do Estatuto do Índio deveriam ser atualizados?
Lucia Helena Vitalli Rangel – Teria de fazer um novo estatuto, porque o vigente foi baseado em outros princípios, como o princípio da integração do índio à comunhão nacional, o princípio de que as terras indígenas devem ser protegidas ou administradas pela Funai e o princípio de que, em nome da segurança nacional, as terras indígenas podem ser violadas. Entretanto, o direito Constitucional de 1988 modifica esse princípio, como modifica também o princípio da tutela. Então, há de ter um novo estatuto, porque o atual foi elaborado durante a ditadura militar.

Há mais de 20 anos uma nova proposta de Estatuto do Índio tramita no Congresso Nacional e na Câmara Federal. O novo texto nunca foi votado, porque primeiro os deputados querem votar a Lei da Mineração, a mudança do Código Florestal, para tirar os direitos indígenas, e depois fazer o Estatuto do Índio. Mas como as mudanças sempre esbarram no princípio constitucional, há outro movimento no âmbito do Legislativo, para modificar o princípio constitucional. Não há meio das nossas elites reconhecerem os direitos indígenas e, assim, começam a inventar coisas. Por exemplo, no Mato Grosso do Sul inventaram que os índios queriam 600 milhões de hectares, área maior do que o estado do Mato Grosso do Sul. Mas eles não querem 600 milhões de hectares; querem o pedaço que lhes cabem. Essa distorção fomenta a discórdia, criam uma indisposição entre a população local e os indígenas. Ações como essa geram racismo, preconceito. Parece que não há nem um pouco de vergonha em manifestar isso contra os indígenas.

Além disso, outros dizem que alguns índios não são mais índios, porque têm cabelo crespo, moram na cidade, são “misturados”, quer dizer, eles têm menos direitos do que os outros. Num país mestiço como o nosso, onde todo mundo é misturado, os índios não podem ser misturados. Uma hora ele é índio demais e atrapalha, outra hora ele é índio de menos e não tem direitos. Então, o índio nunca tem um lugar.

IHU On-Line – De acordo com os dados do censo, existem 305 etnias indígenas no país. Como estão os estudos atuais sobre essas culturas? Há conhecimento desta diversidade?Lucia Helena Vitalli Rangel – Para os antropólogos, essa diversidade é uma realidade, e como tal é considerada. Entretanto, nem os antropólogos possuem este número, porque só o IBGE consegue fazer um censo nacional e ter esse alcance. O que os pesquisadores conseguem nas universidades, nos seus laboratórios de pesquisa, é sistematizar os dados. Foi importante o IBGE publicar essa informação de 305 etnias. Não sei exatamente como é a definição de etnia do IBGE, mas são muito provavelmente relativas à autodenominação da comunidade ao falar o nome do povo. Supunha-se que fossem 280 etnias, mas o IBGE fala que é 305. É um dado mais preciso e importante.

IHU On-Line – O que os dados do censo revelam sobre os indígenas brasileiros? Algum dado lhe surpreendeu?
Lucia Helena Vitalli Rangel – No censo do ano 2000, havia um dado da população autodeclarada indígena. Desses, 52% viviam em cidades e 48% viviam nas terras indígenas, em aldeias. Então, no censo de 2010, inverteu o número. A população indígena que vive na cidade está em volta de 47% e 48% e a população que vive em aldeia está em torno de 52% e 53%. O dado demonstra que a população indígena que vive em cidades é muito grande, e o Estado, através da Funai, reluta em reconhecer essas comunidades como sendo comunidades indígenas, porque não quer lhes atribuir direitos. Então, aqueles índios que vivem na cidade não são considerados indígenas. Portanto, estão excluídos do artigo 231. O Estado não demarca as terras e não quer assumir a população que vive nas cidades. Quem vai para a cidade não vai de modo forçado, obviamente. Quando, porém, analisamos a situação das terras – no Sul, no Sudeste e no Nordeste –, observamos que a quantidade de terras demarcadas não suporta a população indígena dessas regiões. Então, a migração é um recurso para as comunidades.

Além disso, as cidades brasileiras sempre foram ambientes vetados aos indígenas. Quando iam para as cidades, eles eram presos, escorraçados, expulsos. Quando iam ao médico, iam e voltavam para casa escoltados pela Funai. A Constituição, bem ou mal, é democrática, e nesse sentido abriu direitos que não estavam previstos, como a ampliação do direito de ir e vir, que é um direito civil do cidadão. Então, a conquista do ambiente humano também é uma conquista para os indígenas, que eles não têm mais que ficar escondidos nos fundos das fazendas, trabalhando quase como escravos, visto que não possuem terra e não têm lugar para onde ir. Então, há uma série de movimentos dessa população que vão configurando também novos perfis. Nesse sentido, os dados do IBGE são muito importantes para pensarmos essas questões e para aprofundarmos em nossas pesquisas.

* Publicado originalmente no site IHU-Online.

Fonte:

domingo, 26 de agosto de 2012

Mídia: fila de espera na seção "Erramos"

24/08/2012 - Blog das Frases - Saul Leblon - Carta Maior

1) Mídia: 'o chavismo fez da Venezuela o pior lugar da América Latina para se viver';

Fatos: a Venezuela é o país menos desigual da América Latina (Habitat-ONU);


2) Mídia: 'a xeonofobia e o populismo de Cristina Kirchner isolaram o país e afundaram sua economia';

Fatos: o investimento estrangeiro direto na Argentina cresceu no primeiro semestre acumulando um saldo de US$ 2,2 bi, 40% acima do registrado no mesmo período de 2011 (Banco Central argentino);


3) Mídia: 'o deputado João Paulo Cunha (PT-SP) desviou dinheiro público em benefício próprio e para a compra de votos' do mensalão;

Fatos: as operações imputadas a João Paulo foram legais; a subcontratação de terceiros pela agência SMP&B, de Marcos Valério, que prestava serviços licitados à Câmara, é praxe no mercado; dos R$ 10,9 milhões pagos à SMP&B, R$ 7 milhões foram transferidos aos grandes grupos de comunicação para veiculação de publicidade: TV Globo (a maior fatia, R$ 2,7 milhões), SBT, Record, Abril, Folha e Estadão. (ministro Ricardo Lewandowski). Ou seja, os mesmos grupos de comunicação que sabiam da lisura do processo, lucraram com ele, mas martelavam a condenação do deputado.


4) Mídia: 'a carga' é intolerável e não se reflete nos serviços oferecidos';

Fatos: a arrecadação fiscal do Estado brasileiro é de US$ 3.797 per capita; a média dos países de G -7 é de US$ 11.811. Para ter recursos que permitissem oferecer serviços públicos de padrão europeu a receita (em sintonia com o PIB) teria que triplicar, o que só seria possível gravando os mais ricos, ao contrário do que apregoa o conservadorismo (dados FMI/FGV).


5) Mídia: 'O problema da saúde pública é de gestão';

Fatos: o gasto público per capta com saúde no Brasil é de US$ 320/ano; a média mundial é de US$ US$ 549/ ano; a dos países ricos é dez vezes maior que a brasileira (OMS-2012). Em tempo: em 2006, a conservadorismo logrou extinguir a cobrança da CPMF. Foram subtraídos R$ 40 bi em recursos à saúde pública, mesmo depois de o governo propor emenda vinculando indissociavelmente a receita CPMF ao orçamento da saúde pública.


Fonte:http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1069