quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A obesidade e a fome

16/01/2014 - “A obesidade e a fome são os dois lados de um sistema alimentar que não funciona
- Entrevista com Esther Vivas - Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

Por ocasião da sua visita a Tenerife para a comemoração do Dia Internacional das Mulheres Rurais (15 de outubro), tivemos a oportunidade de conversar com Esther Vivas, [foto] ativista social e pesquisadora de políticas agrárias e alimentares.

A entrevista está publicada na revista Mundo Rural n. 13, do AgroCabildo, Cabildo de Tenerife, 14-01-2014. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Qual é o estado do atual modelo de produção, distribuição e consumo de alimentos?
Atualmente, enquanto milhões de pessoas no mundo não têm o que comer, outros comem muito e mal.

A obesidade e a fome são os dois lados da mesma moeda: a de um sistema alimentar que não funciona e que condena milhões de pessoas à má nutrição.

Vivemos, definitivamente, em um mundo de obesos e famélicos.

Os números deixam isso claro: 870 milhões de pessoas no mundo passam fome, enquanto 500 milhões têm problemas de obesidade, segundo indica o relatório O Estado Mundial da Agricultura e da Alimentação 2013, publicado recentemente pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), e que este ano analisa a mácula da má nutrição.

Uma problemática que não afeta apenas os países do Sul, mas que aqui está cada vez mais próxima.

A fome severa e a obesidade são apenas a ponta do iceberg.

Como acrescenta a FAO, dois milhões de pessoas no mundo sofrem deficiências de micronutrientes (ferro, vitamina A, iodo...), 26% das crianças têm, em consequência, atraso no crescimento e 1,4 bilhão vivem com sobrepeso.

O problema da alimentação não consiste apenas em se podemos comer ou não, mas no que ingerimos, de que qualidade, procedência, como foi elaborada.

Não se trata apenas de comer, mas de comer bem.

E quem sai ganhando com este modelo?
A indústria agroalimentar e a grande distribuição, os supermercados, são os principais beneficiários.

Alimentos quilométricos (que vêm da outra ponta do mundo), cultivados com altas doses de pesticidas e fitossanitários, em condições precárias de trabalho, prescindindo do campesinato, com pouco valor nutritivo... são alguns dos elementos que o caracterizam.

Em suma, um sistema que antepõe os interesses particulares do agrobusiness [agronegócio] às necessidades alimentares das pessoas.

Como afirma Raj Patel [foto] em seu livro Obesos e Famélicos (Los Libros de Lince, 2008):

“A fome e o sobrepeso globais são sintomas de um mesmo problema (...) 

Os obesos e os famélicos estão vinculados entre si pelas cadeias de produção que levam os alimentos do campo à nossa mesa”.

E acrescento: para comer bem, para que todos possam comer bem, é preciso romper com o monopólio destas multinacionais na produção, distribuição e consumo de alimentos. Para que acima do afã do lucro, prevaleça o direito à alimentação das pessoas.

E quem sai perdendo?
Estamos correndo o risco do desmantelamento de um setor, o agrário, estratégico para a nossa economia.

Algo que não é novo, mas que com as atuais medidas só se agravou.

Atualmente, menos de 5% da população ativa no Estado espanhol trabalha na agricultura, e uma parte muito significativa são pessoas maiores de idade.

Algo que, segundo os padrões atuais, é símbolo de progresso e modernidade.

Talvez, teríamos que começar a nos perguntar com que parâmetros se definem ambos os conceitos.

A agricultura camponesa é uma prática em extinção.

Atualmente, milhares de propriedades fecham suas portas. Sobreviver no campo e trabalhar a terra não é tarefa fácil.

E quem mais sai perdendo no atual modelo de produção, distribuição e consumo de alimentos são, precisamente, aqueles que produzem os alimentos.

A renda agrária situava-se, em 2007, segundo a COAG, em 65% da renda geral. Seu empobrecimento é claro. Avançamos para uma agricultura sem camponeses.

E, se estes desaparecem, nas mãos de quem fica a nossa alimentação?

Que relação existe com a atual situação de crise?
A crise econômica só piorou esta situação.

Cada vez mais pessoas são empurradas a comprar produtos baratos e menos nutritivos, segundo se desprende do relatório Geração XXL (2012), da companhia de pesquisa IPSOS.

Como estes indicam, na Grã-Bretanha, para dar um exemplo, a crise fez com que as vendas de carne de cordeiro, verduras e frutas frescas diminuíssem consideravelmente, ao passo que o consumo de produtos enlatados, como biscoitos e pizzas, aumentasse nos últimos cinco anos.

Uma tendência generalizável a outros países da União Europeia.

Milhões de pessoas sofrem hoje as consequências deste modelo de alimentação “fast food”, que acaba com a nossa saúde.

As doenças vinculadas ao que comemos só aumentaram nos últimos tempos: diabetes, alergias, colesterol, hiperatividade infantil, etc.

E isto tem consequências econômicas diretas.

Segundo a FAO, a estimativa do custo econômico do sobrepeso e da obesidade foi, em 2010, de aproximadamente 1,4 bilhão de dólares.

Existe alguma alternativa?
Quais são os elementos e a condições necessárias para elas?
Como indica a organização internacional GRAIN, a produção de alimentos multiplicou-se por três desde os anos 1960, ao passo que a população mundial tão somente duplicou desde então, mas os mecanismos de produção, distribuição e consumo, a serviço dos interesses privados, impedem aos mais pobres a obtenção necessária de alimentos.

O acesso, por parte do pequeno agricultor, à terra, à água, às sementes... não é um direito garantido. Os consumidores não sabem de onde vem aquilo que comem, não podem escolher consumir produtos livres de transgênicos.

A cadeia agroalimentar foi se alargando progressivamente afastando, cada vez mais, produção e consumo, favorecendo a apropriação das diferentes etapas da cadeia por empresas agroindustriais, com a consequente perda de autonomia de camponeses e consumidores.

Diante deste modelo dominante do agrobusiness, onde a busca do lucro econômico se antepõe às necessidades alimentares das pessoas e ao respeito ao meio ambiente, surge o paradigma alternativo da soberania alimentar.

Uma proposta que reivindica o direito de cada povo a definir suas políticas agrícolas e alimentares, a controlar seu mercado doméstico, a impedir a entrada de produtos excedentes através de mecanismos de dumping, a promover uma agricultura local, diversa, camponesa e sustentável, que respeite o território, entendendo o comércio internacional como um complemento à produção local.

A soberania alimentar implica em devolver o controle dos bens naturais, como a terra, a água e as sementes, às comunidades e lutar contra a privatização da vida.

Não são propostas utópicas? Que estratégias são requeridas?

Um dos argumentos que os detratores da soberania alimentar utilizam é que a agricultura ecológica é incapaz de alimentar o mundo.

Mas contrariamente a este discurso, vários estudos demonstram que esta afirmação é falsa.

Esta é a conclusão de uma exaustiva consulta internacional impulsionada pelo Banco Mundial [BM] em parceria com a FAO, o PNUD, a Unesco, representantes de governos, instituições privadas, científicas, sociais, etc., projetado como um modelo de consultoria híbrida, que envolveu mais de 400 cientistas e especialistas em alimentação e desenvolvimento rural durante quatro anos.

É interessante observar como, apesar de que o relatório tivesse estas instituições na retaguarda, concluía que a produção agroecológica provia de ingressos alimentares e monetários os mais pobres, ao mesmo tempo que gerava excedentes para o mercado, sendo melhor garantia de segurança alimentar que a produção transgênica.

O relatório da IAASTD, publicado no começo de 2009, apostava na produção local, camponesa e familiar e na redistribuição das terras nas mãos das comunidades rurais.

O relatório foi rechaçado pelo agrobusiness e arquivado pelo Banco Mundial, embora 61 governos o aprovassem discretamente, com exceção dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, entre outros.

Alcançar este objetivo requer uma estratégia de ruptura com as políticas agrícolas neoliberais impostas pela Organização Mundial do Comércio [OMC], pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional [FMI], que erodiram a soberania alimentar dos povos a partir de seus ditados de livre comércio, planos de ajuste estrutural, endividamento externo, etc.

Frente a estas políticas, é preciso gerar mecanismos de intervenção e de regulação que permitam estabilizar os preços, controlar as importações, estabelecer cotas, proibir o dumping e, em momentos de sobreprodução, criar reservas específicas para quando estes alimentos escassearem.

Em nível nacional, os países têm que ser soberanos na hora de decidir seu grau de autossuficiência produtiva e priorizar a produção de alimentos para o consumo doméstico, sem intervenções externas.

Mas, reivindicar a soberania alimentar não implica em um retorno romântico ao passado; antes, trata-se de recuperar o conhecimento e as práticas tradicionais e combiná-las com as novas tecnologias e os novos saberes.

Não deve consistir tampouco em um projeto localista, nem numa “mistificação do pequeno”, mas em repensar o sistema alimentar mundial para favorecer formas democráticas de produção e distribuição de alimentos.

A que responde o auge dos grupos de consumo? Como foi a evolução mais recente destes grupos na Espanha?
Os grupos e as cooperativas de consumo propõem um modelo de agricultura cujos objetivos se centram
- em encurtar a distância entre produção e consumo, em relações de confiança e solidariedade entre ambos os extremos da cadeia, entre o campo e a cidade;
- em apoiar uma agricultura camponesa e de proximidade que cuida da nossa terra e que defende um mundo rural vivo com o propósito de poder viver dignamente do campo;
- e em promover uma agricultura ecológica e de temporada, que respeite e tenha em conta os ciclos da terra.

Assim mesmo, nas cidades, estas experiências permitem fortalecer o tecido local, gerar conhecimento mútuo e promover iniciativas baseadas na autogestão e na autoorganização.

De fato, a maior parte dos grupos de consumo encontra-se nos núcleos urbanos, onde a distância e a dificuldade para contatar diretamente com os produtores são maiores, e, deste modo, pessoas de um bairro ou localidade se juntam para realizar “outro consumo”.

Existem, assim mesmo, vários modelos: aqueles em que o produtor serve semanalmente uma cesta, fechada, com frutas e verduras ou aqueles em que o consumidor pode escolher quais alimentos de estação quer consumir de uma lista de produtos oferecidos pelo camponês com quem trabalha.

Também, em nível legal, encontramos majoritariamente grupos inscritos, como associações, e, alguns poucos, de experiências mais consolidadas e com longa trajetória, com formato de sociedade cooperativa.

Os primeiros grupos surgiram, no Estado espanhol, no final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, majoritariamente na Andaluzia e na Catalunha,  embora também encontremos alguns em Euskal Herria e no País Valencià, entre outros.

Uma segunda onda se deu nos anos 2000, quando estas experimentaram um crescimento muito importante ali onde já existiam e apareceram pela primeira vez onde não tinham presença.

Atualmente, estas iniciativas se consolidaram e multiplicaram de maneira muito significativa, em um processo difícil de quantificar devido ao seu caráter particular.

O auge destas experiências responde, do meu ponto de vista, a duas questões centrais.

Por um lado, a uma crescente preocupação social sobre o que se come, diante da proliferação de escândalos alimentares, nos últimos anos, como a doença da vaca louca, os frangos com dioxinas, a gripe suína, a e-coli, etc.

Comer, e comer bem, importa de novo. E, por outro lado, a necessidade de muitos ativistas sociais de buscar alternativas no cotidiano, para além de se mobilizarem contra a globalização neoliberal e seus artífices.

Justamente depois da emergência do movimento antiglobalização e antiguerra, no começo dos anos 2000, uma parte significativa das pessoas que participaram ativamente destes espaços impulsionaram ou entraram para fazer parte de grupos de consumo agroecológico, redes de intercâmbio, meios de comunicação alternativos, etc.

Que papel tem as mulheres neste processo?
Avançar na construção de alternativas ao atual modelo agrícola e alimentar implica em incorporar uma perspectiva de gênero.

Trata-se de reconhecer o papel que as mulheres têm no cultivo e comercialização daquilo que comemos.

Entre 60% e 80% da produção de alimentos nos países do Sul, segundo dados da FAO, recai sobre as mulheres.

Estas são as principais produtoras de cultivos básicos como o arroz, o trigo e o milho, que alimentam as populações mais empobrecidas do Sul global.

Mas, apesar de seu papel chave na agricultura e na alimentação, elas são, junto com as crianças, as mais afetadas pela fome.

As mulheres, em muitos países da África, Ásia e América Latina enfrentam enormes dificuldades para ter acesso a terra, obter créditos, etc.

Mas estes problemas não se dão apenas no Sul.

Na Europa, muitas camponesas sofrem de uma total insegurança jurídica, já que a maioria delas trabalha em explorações familiares onde os direitos administrativos são propriedade exclusiva do titular da exploração e as mulheres, apesar de trabalhar nela, não têm direito a auxílios, à plantação, a uma cota láctica, etc.

A soberania alimentar tem que romper não apenas com um modelo agrícola capitalista, mas também com um sistema patriarcal, profundamente arraigado em nossa sociedade, que oprime e submete as mulheres.

Uma soberania alimentar que não inclua uma perspectiva feminista estará condenada ao fracasso.

Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/527306-a-obesidade-e-a-fome-sao-os-dois-lados-de-um-sistema-alimentar-que-nao-funciona-entrevista-com-esther-vivas

Leituras afins:

- XV Simpósio Internacional IHU - “Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio” - de 05 a 08 de maio de 2014
- Nuvens de veneno - Wellinton Nascimento 
- Fome: 10 fatos para saber em 2014 - Ana Duarte Carmo

Nota:

A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Nuvens de veneno

21/01/2014 - Wellinton Nascimento, do Forest Blog
- do blogue Mercado Ético

Há uma grande disparidade no tratamento que o agronegócio dispensa à saúde da lavoura e a saúde dos trabalhadores.

A preocupação com o aumento da produção sem economizar no uso dos agrotóxicos, revela um descaso com os efeitos colaterais causados na vida da população e do meio ambiente.

No estado de Mato Grosso – o maior produtor de soja, algodão e gado no Brasil -, apenas seis municípios possuem Programa de Saúde dos Trabalhadores.

O estado detêm também o recorde de maior consumidor de agroquímicos no país.

A aviação agrícola despeja sobre as lavouras nuvens de endosulfan, tamaron, futrifol e outros inseticidas controversos já proibidos nos Estados Unidos, na Europa e até mesmo na China.

Os produtos são exportados, mas os agrotóxicos ficam.

Esse é o grande questionamento trazido pelo preciso curta “Nuvens de Veneno”, dirigido por Beto Novaes, aonde vão parar os milhões de litros de agrotóxicos que estavam nos vasilhames agora vazios?

Os inseticidas usados pelos grandes produtores tem afetado drasticamente a saúde e as lavouras de pequenos produtores familiares de assentamentos e comunidades rurais de Mato Grosso.

Os insumos químicos levados pelas nuvens de veneno, andam quilômetros e tem chegado até às cidades.

Os pesticidas evaporam, se condensam na chuva e intoxicam pessoas, plantas, nascentes.

Uma pesquisa realizada por Wanderlei Pignati [foto], professor da Universidade Federal de Mato Grosso, na água de 10 poços artesanais das cidades de Lucas do Rio Verde e Campo Verde, durante dois anos, revelou que todos estavam contaminados com resíduos agrotóxicos.

O curta mostra que, lastimavelmente, os insumos não tem surtido mais efeito contra as pragas, o que gera um ciclo destrutivo: a quantidade de veneno é aumentada à exaustão e depois substituída por outros agrotóxicos ainda mais nocivos.

Obediência aos códigos florestais, controle social e visão crítica da população são algumas das soluções apresentadas no vídeo.



Reserve apenas 22 minutos da sua semana, assista “Nuvens de Veneno” e reflita.

Até quando vamos aceitar essa situação? Que qualidade de vida as futuras gerações terão, se tamanha irresponsabilidade persistir?

(Forest Comunicação)

Leituras afins:
- A obesidade e a fome - Entrevista com Esther Vivas
- XV Simpósio Internacional IHU - “Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio” - de 05 a 08 de maio de 2014
- Fome: 10 fatos para saber em 2014 - Ana Duarte Carmo

Fonte:
http://www.mercadoetico.com.br/arquivo/nuvens-de-veneno/

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Tempos sombrios

14/01/2014 - Tempos sombrios para os povos indígenas
- Oiara Bonilla - blogue Amazônia Real

Os ataques aos povos indígenas começaram 514 anos atrás, e sempre foram pautados pela lógica de expansão territorial e econômica do país, atingindo períodos de particular crueldade, levando ao extermínio de populações inteiras e ao desaparecimento de grande parte da diversidade sócio-cultural do país.

Hoje é possível dizer que estamos em um destes períodos.

Desde novembro do ano passado, assistimos no Brasil a uma avalanche de agressões e ataques explícitos e diretos aos povos indígenas.

A Rodovia Transamazônica (BR 230) foi construída numa época particularmente atroz para os índios.

Atravessando terras indígenas e retalhando implacavelmente a floresta, a estrada abriu brechas para a “colonização” da região, – isto é, para a extração de madeira, a criação extensiva de gado (mediante extenso desmatamento prévio) para, mais recentemente, possibilitar o plantio de soja, cana e demais commodities – hoje motores econômicos e justificativas “incontestáveis” das atrocidades mais atuais que continuam sendo cometidas.

Um dos territórios atravessados pela estrada é justamente o do povo Tenharim, que ocupou a cena nos noticiários no final do ano e continua no centro das atenções.

Atualmente, essa região, conhecida como sul do Amazonas, é campeã de desmatamento, de grilagem e de violências contra seringueiros, índios e pequenos agricultores.

Desde os anos 1970, os Tenharim estão aguardando compensações por suas terras terem sido cortadas pela estrada, e pelas mortes acarretadas ao longo do processo de sua construção.

Uma investigação aparentemente inconclusa sobre a morte mal explicada de uma das principais lideranças Tenharim, seguida do desaparecimento de três não indígenas na região provocou um levante da população local contra os índios, gerando uma onda de violências, declarações e vociferações preconceituosas e racistas sem precedentes nas ruas da cidade de Humaitá (AM).

Diversas reportagens, relatos, comentários, fotografias e vídeos (onde, por exemplo, é possível ouvir gritos de alegria e comemorações durante as ações violentas) nas redes sociais e na mídia local estamparam a brutalidade do racismo de alguns moradores não-indígenas de Humaitá.

Este fato, que poderia ser considerado como um mero caso policial, infelizmente, não deve ser tratado como um caso isolado. Ele é o último de uma série cada vez mais massiva de agressões e ações abertamente preconceituosas e violentas contra os povos indígenas no país.

Impossível não lembrar, mais uma vez, da invasão da sede da Fundação Nacional do Índio por ruralistas em Campo Grande e do discurso de uma mulher desejando aos índios: “Morram! Morram!” no contexto do Leilão da Resistência.

Organizado em dezembro de 2013 por fazendeiros e simpatizantes do agronegócio no Mato Grosso do Sul, o encontro arrecadou quase um milhão de reais para financiar milícias armadas – ou, oficialmente, “empresas de segurança privada” – destinadas a proteger as fazendas de eventuais retomadas de terra pelos Guarani, Kaiowá e Terena.

Desde o início do século XX, os Guarani e Kaiowá foram espoliados sistematicamente de suas terras e obrigados a viver em exíguas reservas, ecologicamente devastadas, sem ter nenhuma outra perspectiva a não ser servir como mão de obra barata para os mesmos latifundiários que hoje ocupam e exploram suas terras tradicionais.

Há poucos dias, também no Mato Grosso do Sul, a investigação da morte de Oziel Terena [foto] foi declarada inconclusiva pela Polícia Federal.

Em maio de 2013, o jovem indígena foi assassinado durante a reintegração de posse da Fazenda Buriti, uma das propriedades do ex-deputado Ricardo Bacha (PSDB) [foto abaixo] que incide sobre a terra indígena Buriti, declarada em 2010 como de ocupação tradicional.

No mesmo dia, proprietários de terra recusavam indenizações milionárias oferecidas pelo governo como compensação pela devolução das terras aos índios. “Vamos para o pau!”, declarou publicamente Bacha, insatisfeito com os mais de 10 milhões de reais oferecidos a ele e sua família.

Ameaças, truculência, abuso de poder, disputa judicial interminável.

A isso estão cotidianamente sujeitos os Guarani Ñandeva da terra conhecida como Yvy Katu, no município de Japorã (MS), fronteira com o Paraguai.

Eles esperam a homologação de sua terra há quase 10 anos, vivem acampados em suas próprias terras e anunciaram recentemente que resistirão até a morte à execução de reintegrações de posse ou ações de pistoleiros contra sua permanência na área.

O mesmo delegado responsável pela reintegração da Fazenda Buriti os ameaçou verbalmente na última ação realizada pela Policia Federal em Yvy Katu.

Deus abençoe vocês”, respondeu quando os índios disseram que não deixariam sua terra.

No Mato Grosso do Sul, dezenas de áreas indígenas aguardam demarcação ou homologação, em configurações semelhantes.

São inúmeros os casos, e não caberia aqui estabelecer uma lista sistemática dessa avalanche de agressões.

O que nos parece mais importante é enfatizar que as tensões e os conflitos fundiários se dão em um contexto de ataques políticos e jurídicos intensos aos povos indígenas e a seus direitos constitucionalmente garantidos.

De fato, o ano de 2013 foi também um ano de grandes ataques aos direitos indígenas no Congresso, levados a cabo principalmente pela bancada ruralista, que atualmente forma parte da base aliada do governo.

Ao menos trinta proposições sobre legislação indígena tramitam no Legislativo ou foram editadas pelo Executivo, todas afetam diretamente os povos indígenas.

Estes projetos de lei e decretos dialogam diretamente com os ataques sofridos pelos indígenas; são uma resposta positiva às demandas das oligarquias agrárias e do agronegócio, principais motores da violência contra as populações originárias.

Assim, esse verdadeiro rolo compressor – liderado e conduzido pela bancada ruralista, e praticado hoje no campo da legalidade e da ilegalidade pelo capital brasileiro e transnacional – está dando o tom da reedição da guerra de colonização.

Fonte:
http://amazoniareal.com.br/tempos-sombrios-para-os-povos-indigenas/

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Indígenas brasileiros em águas represadas

22/01/2014 - Indígenas brasileiros convivem mal com as águas represadas
- por Mario Osava, da Inter Press Service (IPS) - Envolverde

Foz do Iguaçu e Paulo Afonso, Brasil, 22/1/2014 – A hidrelétrica de Itaparica [foto] ocupou território dos indígenas pankararu, mas enquanto outros foram compensados, a eles coube apenas perder suas terras e o acesso ao rio São Francisco, queixam-se líderes desse povo do Nordeste do Brasil.

Já não comemos pescado como antes, mas o maior dano foi a perda da cascata sagrada, onde realizávamos nossos ritos religiosos”, lamentou à IPS o cacique José Auto dos Santos.

Quase 200 quilômetros rio abaixo, a comunidade indígena xokó sofre a diminuição de água, contida acima por grandes represas que suprimiram as cheias estacionais e regulares do São Francisco, inviabilizando os arrozais de aluvião e reduzindo drasticamente a pesca.

Efeitos semelhantes são temidos no rio Xingu [foto], na Amazônia, onde a construção da central de Belo Monte desviará parte das águas do trecho conhecido como Volta Grande, o que afetará os povos juruna e arara.

Cerca de 2.500 quilômetros ao sul, os avá-guarani assentados às margens da represa de Itaipu, na fronteira com o Paraguai, se dedicaram à piscicultura para manter seu alto consumo tradicional de pescado, em uma população crescente e com escassa terra para cultivar.

Nos anos 1970 e 1980, emergiu no Brasil uma geração de indígenas de águas paradas, quando o país construiu numerosas centrais hidrelétricas, algumas gigantescas como Itaipu, compartilhada com o Paraguai, e Tucuruí [foto], na Amazônia oriental, ambas inauguradas em 1984.

No São Francisco, cujo maior trecho cruza terras semiáridas, foram instaladas cinco centrais, que alteraram seu fluxo fluvial.

Uma delas, Sobradinho [foto], exigiu uma represa de 4.214 quilômetros quadrados, um dos maiores lagos artificiais do mundo, segundo sua operadora, a estatal Companhia Hidrelétrica do São Francisco, que tem outras 13 centrais na região nordestina.

A abertura de Sobradinho, em 1982, acabou com a plantação de arroz em terras inundáveis do território xokó, cerca de 630 quilômetros rio abaixo, contaram à IPS seus moradores.

O ciclo anual de cheias praticamente desapareceu no Baixo São Francisco desde 1986, quando foi criada em Pernambuco a represa de Itaparica, de
828 quilômetros quadrados, que regula o fluxo auxiliar de Sobradinho.

Assim, se pôs fim ao aluvião, que fertilizava os arrozais e enchia ciclicamente de peixes os lagos conectados ao rio por um canal.

Sem corrente, o rio perde força, é um prato plano que se cruza a pé”, descreveu Lucimário Apolônio Lima [foto], o cacique xokó, com uma juventude incomum entre líderes indígenas.

O jovem cacique xokó Apolônio Lima busca novas formas de sustento para seu povo, depois que a represa de Itaparica cortou suas atividades tradicionais de agricultura e pesca, dependentes das águas do rio São Francisco.

Com 30 anos, explicou à IPS que busca para sua gente, pouco mais de 400 pessoas, um futuro sustentável. Para isso, estimula a apicultura e outras produções alternativas, luta pela revitalização do São Francisco e se opõe à transposição de suas águas para combater secas no norte, um megaprojeto do governo federal.

Antes de fazer isso, é preciso dar vida ao rio, os doentes não doam sangue para transfusões”, afirmou o cacique.

Meus avós já asseguravam que as margens do São Francisco morreriam. Eu não, mas meus netos o verão”, profetizou à IPS o xamã Raimundo Xokó, de 78 anos.

Para os pankararu, estabelecidos a cinco quilômetros da muralha que represa as águas em Itaparica, as ribeiras fluviais são coisa do passado.

Seus líderes se sentem roubados.

Não temos onde pescar, a empresa tomou nossa terra, desconhecendo nosso direito legal até a margem”, explicou à IPS o xamã José João dos Santos, mais conhecido como Zé Branco.

O ex-cacique Jurandir Freire, apelidado de Zé Índio, luta por indenizações milionárias, porque os indígenas foram excluídos das compensações por sua terra inundada, ao contrário dos municípios, cujas prefeituras recebem benefícios, e os camponeses assentados nas chamadas agrovilas com áreas irrigadas.

Zé Índio esteve preso e perdeu seu cargo por liderar, em 2001, um protesto que danificou linhas de transmissão elétrica da central, que passam por montanhas do território pankararu sem compensação alguma.

A terra fértil, em um vale e ladeiras montanhosas que favorecem uma umidade que contrasta com a semiaridez à sua volta, é outra fonte de conflitos.

Desde a demarcação da Reserva Pankararu, em 1987, os indígenas pressionam o governo para retirar os agricultores brancos que ocupam a melhor parte.

Minha avó nasceu ali e morreu aos 91 anos, isso há cinco”, disse Isabel da Silva para defender que sua família e outras vizinhas pertencem ao território pankararu há mais de um século.

“Segundo a lei, temos que sair, mas fazer isso seria uma injustiça”, disse à IPS esta funcionária do Polo Sindical de Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco, que conseguiu o reassentamento de quase seis mil famílias camponesas afetadas pela central de Itaparica.

Há 435 famílias ameaçadas de expulsão há duas décadas, em uma medida que demora por falta de terra para reassentá-las, justificam as autoridades.

O povo pankararu vive em uma reserva de 8.376 hectares e em 2003 contava com 5.584 integrantes, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável pela proteção das populações originárias.

Mas outros milhares emigraram para as cidades, especialmente São Paulo, onde mantêm sua identidade e se reúnem em ritos religiosos e festas indígenas. Com terra menos escassa, muitos regressariam, espera Zé Índio.

A escassez de terra também impacta os ocoy, situados nas margens da represa de Itaipu.

São 160 famílias, cerca de 700 pessoas, que sobrevivem em apenas 250 hectares, a maioria de florestas protegidas, vedada à agricultura.

A piscicultura, impulsionada pela empresa Itaipu Binacional, surgiu como alternativa para completar sua alimentação, diante da queda da pesca tradicional e das limitações agrícolas.

Os indígenas se destacaram entre os 850 pescadores que se somaram à iniciativa, “talvez por sua cultura, vinculada à água”, destacou à IPS o diretor de coordenação e meio ambiente da companhia, Nelton Friedrich [foto].

Com 40 tanques rede [foto abaixo], a comunidade ocoy obtém quase seis toneladas de pescado por ano, segundo o vice-cacique Silvino Vass.

No entanto, esta não é sua maior fonte alimentar e poucos participam diretamente da atividade, segundo pesquisa acadêmica realizada em 2011 por Magali Stempniak Orsi.

Além disso, os indígenas dependem muito da empresa, que lhes fornece os alevinos e a alimentação para os peixes, disse a pesquisadora, segundo a qual o projeto deve promover maior participação comunitária.

Os ocoy precisam de assistência alimentar para completar suas necessidades, ao contrário de duas vizinhas comunidades avá-guarani, que contam com mais terras doadas pela Itaipu Binacional e mais produção agrícola.

Em todo caso, o apoio de Itaipu aos indígenas locais é uma exceção entre as centrais hidrelétricas.

Além de buscar alternativas de desenvolvimento para eles, cuida da sustentabilidade de toda sua sub-bacia, com o Programa Cultivando Água Boa, um conjunto de 65 ações ambientais, sociais e produtivas.

Envolverde/IPS

Fonte:
http://envolverde.com.br/sociedade/indigenas-brasileiros-convivem-mal-com-aguas-represadas/

Nota:
A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.