quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte 1/6

 "DEPENDE DE NÓS, SE ESSE MUNDO AINDA TEM JEITO"


Antonio Fernando Araujo

- Estamos léguas de distância das minas de bauxita, láááá do Trombetas..., idem, idem da província mineral da serra dos Carajás, dos garimpeiros do Tocantins, Xingu e Tapajós que infestam com mercúrio esses rios, das siderúrgicas de ferro-gusa de Marabá, mas a apenas 15 quilômetros da nuvem de poeira mineral que, depois de flutuar sobre o porto de Vila do Conde, põe-se em movimento entre lufadas de pó que um pé-de-vento qualquer costuma mandar e depois segue ao encontro da cidade de Barcarena, berço da Cabanagem no século XIX e por onde escoa boa parte do caulim, da alumina e do alumínio, industrializados ou simplesmente beneficiados no município, disse-me entre sorridente e melancólico o professor Taylor Collyer.

Marahú é uma praia de águas doces, 70km de Belém do Pará, encravada na ilha do Mosqueiro, mais ou menos na beirada sul da baía do Marajó. Foi nesse recanto varrido por ventos que sopram desde o Atlântico que nos encontramos. Com o eterno meio sorriso nos lábios e uma paciência de camelo, o doutor Collyer procurou desenhar-me o contorno de quem seria o responsável pelo maior abalo traumático da história da Amazônia, a exploração de suas riquezas minerais.
- Mas isso, prosseguiu, parece estar bem longe das preocupações do paraense médio, do belenense em especial. Constatei isso dias depois. Fica-se com a impressão de que, o que essa atividade carrega de tragédia não passa de um drama distante que homens e máquinas, caminhões imensos, carvoeiros, comerciantes e agricultores nativos, leva de garimpeiros e escavadeiras gigantescas encenam em alguma cratera de Marte. Hoje em dia, a discreta discussão política feita por aqui gira em torno da possível divisão do Estado em mais duas unidades, Tapajós e Carajás. Ainda que, ao longo das décadas, esteja evidente que a elite paraense já tenha demonstrado ser incapaz de atentar para as paragens mais remotas de uma unidade administrativa com tamanho equivalente ao da Colômbia, embora com apenas um sexto da sua população, a maioria aqui, aparentemente demonstra estar convencida de que o eleitorado paraense não aprovará o retalhamento do seu Estado atual.

Em 2005, o professor Maurílio de Abreu Monteiro, do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA) escreveu que "quando chega ao fim a exploração industrial de algumas minas na Amazônia oriental brasileira, como a de manganês da Serra do Navio e de outras, menos expressivas, a exemplo das de ouro, também situadas no Amapá, torna-se ainda mais necessário examinar a história da mínero-metalurgia na região, refletindo acerca da relação entre tal atividade e o desenvolvimento regional." Sua preocupação maior era porque "os processos de extração e beneficiamento de minerais acalentaram, em amplos e diversos segmentos sociais, expectativas de rápida industrialização regional."

Esse discurso do progresso para a região é o mesmo que, hoje, acalenta os que defendem a criação do estado de Carajás, ao sul do Pará. Uma região absolutamente controlada pelos interesses econômicos da Vale, cujo braço político se ancora no clã Sarney e cujos membros, com o passar dos anos, tornaram-se ali proprietários de vastas porções de terra voltadas para a agropecuária extensiva, uma delas maior que a soma de todas as áreas hoje ocupadas pelas 15 maiores províncias minerais do Pará. E se alguém ainda imagina que, com a criação do estado de Carajás o esperado progresso para a população haverá de vir pelas mãos desse clã ou mesmo de empresários e políticos visceralmente associados a ele, basta dar uma espiada no vizinho Maranhão, há décadas dominado politicamente por esse clã e tornado um dos estados mais pobres do Brasil, com a segunda pior expectativa de vida, o maior déficit habitacional do país, o segundo maior índice de mortalidade infantil e se assombrar diante do estado de penúria e abandono em que vivem quase sete milhões dos brasileiros que hoje ostentam o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre todos os Estado do país, à frente apenas de Alagoas.

Não muito longe de Marahú, do outro lado da cidade, encontram-se as instalações do "campus" da Universidade Federal do Pará (UFPa), estendendo-se pelas margens do rio Guamá que banha todo o sul de Belém. Há pelo menos 3,5 décadas é lá que se abriga o NAEA, uma experiência pioneira "cujos objetivos fundamentais são o ensino, em nível de pós-graduação, visando em particular, a identificação, descrição, análise, interpretação e solução dos problemas regionais amazônicos; a pesquisa, notadamente em assuntos de natureza sócio-econômica relacionados com a região; e a informação, através da coleta, elaboração, processamento e divulgação dos conhecimentos científicos e técnicos disponíveis sobre toda a região amazônica", escrito em seu ‘sítio’. Nosso encontro com outros dos mestres do NAEA foi marcado no Instituto de Geociências, mais exatamente na sua Biblioteca. Afixada na porta, pode-se ler a letra da canção de Ivan Lins e Vitor Martins, "Depende de Nós", e o trecho em que diz "depende de nós, se esse mundo ainda tem jeito, apesar do que o homem tem feito, se a vida sobreviverá", funcionou como se ela quisesse antecipar algumas das questões que logo mais vou debater com os professores João Batista Ribeiro, Evaldo Pinto da Silva, Francisco de Assis de Abreu e Estanislau Luczynski, todos eles doutores em suas respectivas áreas de atuação e conhecimento, graduados e pós-graduados aqui e no exterior.

Não houve uma entrevista formal, mas uma conversa descontraída onde prevaleceu a fala do Assis de Abreu que há anos dedica-se a estudar o impacto que as atividades de mineração vêm causando ao meio ambiente amazônico, em especial ao do Pará. Foi ele inclusive quem nos recomendou aquela ida à ilha do Mosqueiro e ir anotando, com a paciência de um monge, uma a uma e ao longo da estrada, as pegadas trágicas que o homem urbano vem deixando quando retira barro, areia e pedra dos vastos terrenos das margens da rodovia para empregá-los na construção civil da região metropolitana de Belém. Degradando ainda mais o já exaurido solo daquela que um dia foi a bucólica rodovia Belém-Mosqueiro, são eles que nos revelam mais uma faceta, talvez a mais desanimadora, da desordenada ocupação da terra em torno das médias e grandes cidades da Amazônia. E se isso vale para a metropolitana Belém-Mosqueiro o que pensar sobre a "colonização" das margens dos cerca de 100 mil quilômetros de estradas clandestinas que cortam a Amazônia e onde acontecem mais de 80% das queimadas?

O que fazer então perante esses cenários de terras degradadas de onde a capa florestal nunca deveria ter sido removida, desse panorama de florestas a serem preservadas, mas diante das quais se contrapõe o humano que precisa dela para assegurar sua sobrevivência, desse universo que não pode ser medido de riquezas de todos os tipos e que mexe com a cobiça, em suma desse mundo de águas, minérios, madeiras, flora e fauna em harmonia que se expressam na abundância de uma biodiversidade sem igual praticamente intacta preservando seus segredos? O que a civilização tem feito até os dias de hoje diante da exuberância dessa natureza ímpar nada mais tem sido do que subtrair dela parte dessa opulência, cuja prática recorre com frequência a variadas e pouco adequadas formas de um extrativismo que a vida dos séculos consagrou, mas que em muitos casos acabou por ferir de morte aquilo que ela tinha de mais fecundo, sua capacidade de regeneração.

Em 2009, na conferência da ONU sobre o clima, em Copenhague, o Brasil assumiu o compromisso de reduzir em 80%, até 2020, o desmatamento ilegal em toda a Amazônia. "Evitar desmatamentos e queimadas na Amazônia, como querem a comunidade internacional e a sociedade brasileira, dependerá do aproveitamento parcial dos 71 milhões de hectares já desmatados (dados de 2006), com atividades produtivas adequadas e que promovam a recuperação de áreas que não deveriam ter sido desmatadas, área maior que a somatória dos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná", sugere-nos o pesquisador da Embrapa e doutor em Economia Rural, Alfredo Homma. Isso está muito além da simples ideia de criação de áreas extrativistas, pois implica em "tornar a agricultura local mais técnica, introduzindo novas tecnologias apropriadas, expandir a oferta de serviços de assistência técnica e de resultados tecnológicos, com vistas a atender com eficiência o produtor rural, promovendo investimentos em atividades lucrativas, que sejam competitivas e apresentem vantagens comparativas, reduzir os impactos ambientais e protegendo a biodiversidade. Esse conjunto de medidas criará condições para as pessoas permanecerem no mesmo local evitando que saiam em busca de novas áreas de floresta para derrubar ou que migrem em peso para as áreas urbanas", conclui Homma.

"Não há como brincar de Deus", disse-me Collyer, e "tentar recompor a floresta tal como ela era antes" é como se estivéssemos pregando uma ilusória volta ao passado, renegando um conjunto de problemas dramáticos do presente e esquecendo que um futuro promissor para esta região ainda terá, obrigatoriamente, que levar em conta que seus problemas não são independentes.

Como ex-Diretor de Mineração do Governo do Pará ele sabe do que está falando. Alguns daqueles problemas, por exemplo, só serão resolvidos com o combate à pobreza do Nordeste, que concentra 46% da população rural do País e de onde saem milhares de migrantes em busca de alternativa de sobrevivência. Outros, até mesmo, estão relacionados com a necessidade de mais reflorestamento no Sul e Sudeste, pois são eles que consomem 66% da madeira extraída da Amazônia. Na esfera tributária "outra possibilidade de articular a mínero-metalurgia com o desenvolvimento local é a de se ampliar, via tributação, 'lato sensu', a parte do valor criado pela mineração. A ampliação das alíquotas dos 'royalties', por exemplo, não comprometeria a competitividade internacional das 'commodities', uma vez que se encontram bem abaixo da média mundial. Poderiam ser recursos cuja destinação voltar-se-ia ao fortalecimento de processos de desenvolvimento fundamentados no estabelecimento de vantagens competitivas socialmente criadas e integradas ao uso sustentável da base natural da região" como assegura Monteiro.

Enfatizando esse ponto, em matéria publicada no Valor, Anderson Cabido, prefeito de Congonhas, cidade histórica de Minas Gerais, reforça essa posição e afirma ser injusta a alíquota dos 'royalties' do minério, equivalente a 2% sobre o lucro líquido das companhias mineradoras, enquanto a alíquota do 'royalty' do petróleo é de 10% sobre o faturamento bruto das petroleiras. Cabido, que também está à frente da Associação Nacional dos Municípios Mineradores (ANMM), oferece como exemplo dessa injustiça o fato da cidade de Macaé, no Estado do Rio de Janeiro, ter recebido R$ 1,1 bilhão em 'royalties' do petróleo em 2009, enquanto todos os municípios mineradores do país terem apurado juntos R$ 1,08 bilhão em royalties do minério. Apesar de usar a alíquota de 10% do petróleo como paradigma de um inevitável aumento dos royalties do minério, Cabido não pleiteia um tratamento igualitário para ambos os produtos minerais, petróleo e minério. A proposta dos prefeitos é de um aumento de 2% a 4% da receita bruta da mineração, e não de 2% para 10%, como seria coerente, segundo seu raciocínio comparativo entre petróleo e minério, informa-nos Luiz Begazo, na Revista Valor Econômico.



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NÃO SÃO SÓ ELES OS VILÕES