sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte 2/6

Parte 1/6 - "DEPENDE DE NÓS, SE ESSE MUNDO AINDA TEM JEITO"
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que.html


NÃO SÃO SÓ ELES OS VILÕES

Antonio Fernando Araujo

Não estamos sós e "depende de nós, se esse mundo ainda tem jeito". Parte disso que um estudo de 2010 nos revelou a Revista Águas Subterrâneas, no seu volume 24, n.1: "As transformações ocorridas no espaço urbano da Região Metropolitana de Belém contribuíram não somente para a sua ocupação, através do entendimento das diferentes formas de apropriação, bem como ocasionou um intenso processo de degradação ambiental."

- Por outro lado, atalhou Batista Ribeiro, na área da extração mineral promovida pelas grandes mineradoras, não existe um estrago muito grande. Há um cuidado para que tudo seja recomposto em termos de capa vegetal após a mina estar exaurida. Lembrei-me da ironia de Collyer, em Marahú, "e como se estivessem brincando de Deus". Ainda assim, prosseguiu Batista Ribeiro, se confrontássemos - de um lado - os estragos que esses "mineradores sociais" das margens das rodovias, os posseiros que desmatam para vender a madeira e fazer pequenas roças - são cerca de 800.000 famílias em toda a Amazônia vivendo desse modo e cada uma delas podendo desmatar até 3 hectares por ano, para cultivo de subsistência, algo insignificante, mas que no conjunto tornam-se 470.000 hectares, ou seja, um problemão -, os carvoeiros do entorno de Marabá, no sudeste do estado, que produzem carvão vegetal oriundo da lenha do desmatamento da floresta primária ou de resíduos das serrarias para servir de matéria-prima termorredutora na produção do ferro gusa nas siderúrgicas da região (cerca de 20, entre médias e pequenas e que, para suas instalações, contaram com inúmeros favores governamentais), os pequenos e grandes madeireiros, legais e ilegais (são mais de 3 mil empresas cortando árvores), as citadas serrarias que também recorrem à floresta primária e os mineradores de ouro dos aluviões de praticamente todos os grandes e pequenos rios - e de outro - com as enormes escavações levadas a cabo pela Vale, tanto na província mineral de Carajás quanto na região do rio Trombetas, ao oeste do estado e, ainda mais, com o destino que tais terras tomarão quando, escasseados os minérios, liquidada a vegetação e exauridas as minas e os aluviões, pois bem, ficaríamos estupidamente surpresos ao constatar que, em termos de cuidados com a preservação da natureza até o ponto em que isso possa ter algum significado social, científico e mercadológico e assim levado em conta, principalmente no que se refere à possível preservação da biodiversidade, a maior empresa brasileira de mineração, a Vale, estará longe do risco de parecer ao mundo como o personagem mais cruel desse drama amazônico feito de desmatamentos e queimadas, num cenário em que se contrapõem pequenas propriedades rurais e imensas instalações ligadas ao agronegócio assentado na agropecuária, à extração mineral distribuída por mais de quinze unidades extrativistas e à geração de energia elétrica a partir da barragem de rios enormes e da construção de mega-usinas produtoras.

- "Vamos a Marahú", disse-me Collyer, "e eu lhe descrevo, tim-tim por tim-tim, cada uma das cores com que se pinta a tragédia por aqui, que não é feita apenas de mineração, derrubadas e queimadas da floresta, esse acervo extraordinário da biodiversidade do planeta e estabilizadora do clima mundial, mas também, porque no olho do furação encontra-se um vasto panorama de necessidades voltadas para a população nativa e imigrante que, acima de tudo, precisam ser atendidas."
O conflito social decorrente do imperativo de se atender essas necessidades e as formas modernas e sustentáveis de uso dos recursos naturais tornou-se um megadesafio que tem suscitado o surgimento de práticas ambientalmente nocivas, mas maquiadas como "sustentáveis", lado a lado com o aprofundamento de mazelas sociais que, quase sempre, excluem os mais carentes e, inevitavelmente confirmam o poder econômico e político dos mais fortes. Entram em cena então outros protagonistas, o capital humano que vai do trabalhador assalariado desqualificado ao pequeno produtor familiar, dono de uma modesta extensão de terra de onde retira com baixíssima produtividade, seu sustento.
O primeiro, quase sempre a serviço do grande capital de base latifundiária ou extrativista, assentado na monocultura de grãos, na exploração mineral ou na criação extensiva de gado, o segundo, limitado pela capacidade de trabalho da família, vêem-se forçados a tratar o bioma da floresta de forma diversa, como é diversa a maneira com a qual uma leva imensa de pequenos empreendedores, da periferia econômica dos grandes projetos minerais, metalúrgicos e agropecuários e do entorno das cidades médias e pequenas, lida com a natureza. O que vimos na região metropolitana de Belém se reproduz aqui dentro da mesma lógica dos absurdos e de estranhos mecanismos com os quais o mundo dos negócios se articula.

A inevitável constatação é que essas atividades "têm um elevadíssimo grau de antagonismo, dado que competem pelos mesmos recursos físicos, humanos e sociais, onde a dimensão mais visível dele é representada pelos conflitos fundiários", como assegura em um de seus textos o pesquisador Francisco de Assis Costa, doutor em Economia pela Universidade Livre de Berlim e hoje, diretor de Estudos e Políticas Regionais Urbanas e Ambientais do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas). Conflitos esses que assumem outras feições e proporções quando, na visão de Collyer, se observa o trem da Vale despejando na Serra do Piriá, bem próximo do imenso Complexo de Carajás, entre 30 e 40 mil garimpeiros nômades, 70% deles de origem maranhense. Quando se registra ao longos das rodovias PA-150 (Redenção-Eldorado dos Carajás), PA-279 (São Felix do Xingu-Xinguara) e PA-287 (Conceição do Araguaia-Redenção) grupos intermináveis de acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), milhares deles empurrados cada vez mais para o meio da mata, eles próprios tornados agentes de boa parte das queimadas na região, enquanto outros, no esforço de arregimentação entre os deserdados das minas e de mobilização dos desiludidos que aguardam assentamento, percorrem essas estradas em motocicletas no afã de lutar pelo direito moral de fazer prevalecer a vida em detrimento da lei e se tornarem assim, eles também, protagonistas de uma violência só explicável à luz de uma quase selvageria social e ambiental.

Assim se testemunha com indiferença e descaso, por exemplo, a característica poluição urbana alcançando as margens dos rios e as portas da floresta. Assim se assiste com naturalidade e festa o estouro de fogos de artifício em cavernas habitadas por morcegos brancos, descobertos em 2001, sobre os quais pouco ou nada se sabe e que, como contam, voam para a África e ainda não se descobriu quando e como voltam para procriar. Portanto não é à toa que essa região é, desde a década de 70, conhecida por seus delírios políticos, por projetos hidrelétricos grandiosos - como Tucuruí no passado e Belo Monte no presente - que alguns condenam tola e irresponsavelmente -, por outros monumentais como o são quase todos os empreendimentos aqui, pelo real e fantástico de suas histórias e por questões fundiárias explosivas, como Eldorado dos Carajás, ou seja, por um palco conflagrado por centenas de conflitos entre sem-terras, posseiros, pequenos agricultores, aventureiros, ONGs, comerciantes, índios, garimpeiros e grandes donos de terras.

De Pinto da Silva, ainda no "campus" da UFPa, ouvi então o que só dias depois em Marahú, me confirmaria Collyer. Definitivamente, embora façam parte dessa tragédia de incontáveis e diversificados atores, não são os grandes projetos minerais, os maiores responsáveis pelo envilecimento das margens dos rios e rodovias e pela pilhagem e devastação desordenada da floresta. Poder-se-ia até mesmo, como um ingrediente suplementar, sugerido por Assis Costa, acrescentar-se o fato da estratégia de longo prazo desenhada pelo governo federal, principalmente a partir dos anos Lula, primordialmente contemplar a "inclusão social e a desconcentração de renda, crescimento do produto e do emprego, dentro de um ambiente sustentável". Funcionaria como um "redutor das desigualdades regionais, dinamizado pelo mercado de consumo de massa, por investimento e pela elevação da produtividade, pela redução da vulnerabilidade externa através da expansão de atividades competitivas, tudo isso, para viabilizar esse crescimento sustentado" e assim apostar que, ao lado das grandes mineradoras, para as quais está destinado um papel de destaque na superação dos "desafios nada triviais, que certamente configurarão dilemas de grande envergadura", o governo possa, sem dúvida, vir a encontrar soluções econômicas voltadas para a desconcentração da renda (objetivo primeiro), ainda que lhe seja exigido, primeiro, em nome da tal governabilidade, uma sofisticada conciliação com os parâmetros do mercado financeiro e, segundo, em nome da coerência estratégica, um projeto político transformador, harmonizado com os parâmetros da sustentabilidade ecológica.

Foi mais ou menos nesse clima de contrastes e de otimismos que nossa conversa prosseguiu ao longo da manhã e quando Assis de Abreu lembrou que o mundo deve muito à Amazônia não pensou duas vezes ao reproduzir-me o resultado de um estudo feito pelo Ministério do Meio-Ambiente no qual se especulava que a dívida mundial para com a manutenção da floresta oscilava em torno de três mil dólares por ano por cada árvore de grande porte mantida em pé.
- Moleza, concluiu, só nos últimos vinte anos, mais de sessenta satélites foram lançados ao espaço, todos capazes de vigiar a Amazônia. E mais: o Sistema de Proteção da Amazônia, braço civil do Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), utiliza esses equipamentos em órbita, aviões e cerca de 800 estações terrestres, tudo para monitorar a região. Ora, isso não saiu barato, mais de 1,5 bilhões de dólares já foram gastos. Sem contar com os milhões de reais empregados na modernização de centros científicos, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), ambos dotados de uma estrutura técnica e operacional capazes de analisar com perfeição boa parte dos dados relativos à floresta.

Mais do que nunca, "depende de nós...”, pois junto com essa modernização toda, um paradoxo: nunca se pôde ver tão de perto a destruição e jamais foi possível medi-la com tanta precisão. Todavia, não é uma equação simples assim. Diferentemente do que se possa imaginar, boa parte do processo de destruição da floresta ainda é invisível para os equipamentos que a monitoram. Hoje, com menos de 80% do seu tamanho original, não são poucas as artimanhas a que recorrem tanto o posseiro que, à procura de espécimes comerciáveis, percorre aquela rede imensa de vias clandestinas ocultas pela mata, como já foi dito, hoje estimada em cerca de 100 mil quilômetros em toda a Amazônia, segundo estudos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, quanto o pecuarista que por um ano mantém suas reses sob a capa da floresta, ao final desse prazo queima o capim cujas raízes não são atingidas pelo fogo que revigora o pasto e serve também para destruir, com o calor, as árvores médias. O gado volta. Fica mais um ano. Só na segunda queimada a destruição aparece para os sistemas de monitoramento. É o estouro da boiada sobre a mata, toda de uma vez. Sucesso no céu, fracasso no chão. As ações de fiscalização e os investimentos na repressão a crimes ambientais estão longe de acompanhar a tecnologia que enxerga detalhes no meio da floresta. Os espertos pecuaristas que utilizam esse processo agem em mais de uma área, mantendo cada uma em um estágio diferente. Seus bois nunca estão nos locais descobertos pela fiscalização – sempre tarde demais.


Próxima parte - 3/6 de "Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas".
CHUVA E ÁGUAS ÁCIDAS EM TERRAS MOLHADAS