sábado, 3 de dezembro de 2011

Um mundo de águas, minérios e nomes que parecem poemas - parte 4/6

Parte 1/6 - "DEPENDE DE NÓS, SE ESSE MUNDO AINDA TEM JEITO"
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que.html

Parte 2/6 - NÃO SÃO SÓ ELES OS VILÕES
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_02.html

Parte 3/6 - CHUVA E ÁGUAS ÁCIDAS EM TERRAS MOLHADAS
http://brasileducom.blogspot.com/2011/12/um-mundo-de-aguas-minerios-e-nomes-que_5205.html



DO ENCONTRO DAS ÁGUAS AMAZÔNICAS COM O MUNDO GLOBALIZADO

Antonio Fernando Araujo


Da varanda do apartamento do geólogo e professor Milton Matta, coordenador do Laboratório de Recursos Hídricos e Meio-Ambiente, da UFPa, no 15º andar de um prédio, vê-se uma vasta porção da Belém rumo ao sudeste. O que nos permite identificar à esquerda, desde parte do contorno da baía de Santo Antonio que banha a cidade ao norte, com algumas ilhas pelo meio e as águas iniciais da baía do Marajó, até os meandros do rio Guamá, à direita e ao sul, onde se espalham outras tantas ilhas, num total de 39. E é nas margens desse grande rio, como já vimos, que se encontram as instalações do "campus" da UFPa. Entre essa imensidão de águas, a Belém que se expande horizontalmente e cresce vertiginosamente para o alto em nada se assemelha com aquelas cidades costeiras da Carolina do Norte e das ilhas caribenhas que, dos séculos XVI ao XVIII, passaram por maus bocados sob os ataques de bucaneiros e piratas.

Todavia, dificilmente poderemos assegurar que aquela avidez capitalista de corsários e seus patrões tenha chegado ao fim, neste instante em que a imensa biodiversidade amazônica, as reservas minerais ímpares de nióbio e tálio e até mesmo as de petróleo, bauxita, ferro, ouro e manganês, todos presentes na região, voltaram a excitar a cupidez do mercado tornado global e simétrico. Entretanto, Belém mesmo, está assentada sobre outra riqueza mineral. São nada desprezíveis reservas de água doce e potável, Pirabas e o Grupo Barreiras, as mais importantes. Todavia é na direção oeste do estado, algumas centenas de quilômetros adiante, que se inicia outra, bem mais rica, localizada cerca de 1500 metros de profundidade com uma espessura que vai de 500m a 600m. Há anos Matta dedica-se a elas. De acordo com seus estudos e de outros quatro pesquisadores (Francisco de Abreu, André Duarte, Mário Ribeiro, todos da UFPa e Itabaraci Cavalcanti, da UFCe) essa nova reserva se estende desde lá até a parte oriental do estado do Amazonas, "submersa" sob quase todo o estado do Pará e boa parte do Amapá. Começou ele a falar-me do aquífero Alter-do-Chão, com seus estimados 90 mil quilômetros cúbicos de água, "o suficiente para abastecer com folga toda a população mundial por mais de 300 anos" e que desde maio/2010, quando foi apresentado à comunidade científica, o fez exibindo-se com praticamente o dobro do volume do aquífero Guarani, na região sudeste (dividido entre Brasil, Paraguai e Argentina), tido até então como o maior do Brasil, quiçá do mundo.

E agora estamos postos diante daquilo que muitos estudiosos já consideram como a próxima e mais promissora riqueza de qualquer região, seus recursos hídricos. E se quisermos dar um significado adicional à exploração do aquífero Alter-do-Chão, agora como o maior manancial subterrâneo do planeta, devemos levar em conta que não estamos identificando aqui um procedimento tradicional, comumente associado a uma coleta extrativa como observada em muitas propostas do aproveitamento da biodiversidade amazônica. Não precisa nem levar em conta, como lembra ainda o professor, que Alter-do-Chão hoje, já abastece cidades como Manaus (mais de 10 mil poços particulares e 130 da rede pública) e diversos municípios do Pará, como o de Santarém, às margens do Tapajós, no ponto em que ele deságua no Amazonas e por cujo porto pretende-se que escoa a produção de grãos do Mato Grosso. Trata-se assim, de uma atividade que visa atender uma necessidade primordial humana e animal, voltada tanto para o consumo próprio quanto para a agricultura e a indústria. Portanto, "a Região Norte é, sem dúvida, um dos maiores símbolos da riqueza natural encontrada no Brasil. Agora, além de abrigar a floresta Amazônica e o rio Amazonas, ela pode ser conhecida por possuir a maior reserva mundial de águas subterrâneas", garante-nos a jornalista Sílvia Pacheco. "É água que não acaba mais", enfatiza.

Assim como Carajás tornou-se alvo da ambição internacional, cristalizada em seus testas-de-ferro - políticos e empresários nacionais sob a liderança do clã Sarney -, a região do rico rio Tapajós, cujas margens da estrada que ligará em definitivo Cuiabá a Santarém, já se encontram totalmente loteadas, dessa vez entre os integrantes daquilo que se poderia chamar de clã Barbalho. Assim, é perfeitamente possível entendermos que tanto a criação do estado de Carajás, quanto a do Tapajós, passa por essa constelação de interesses que nada tem a ver com melhorias significativas das condições de vida da população. Visam tão somente saciar a ambição de algumas expressivas lideranças locais e regionais, ávidas por mais poder e fortuna. Ao invés de apoiar essa inócua divisão a população, através de suas organizações sociais, deveria se mobilizar cada vez mais na exigência do governo estadual, as melhorias que almeja em cada caso. Além de não serem iludidas, não estariam assim arcando com os altos custos de instalação de uma máquina política, administrativa e judiciária que, em última instância, beneficiará exclusivamente, aquelas elites de empresários e políticos e, em número muito reduzido alguns dos seus habitantes.
Não existem mais Barbas Negras e suas naus piratas. Mas estão aí os descendentes dos que foram reis e príncipes, cientistas e empresários, governos estrangeiros e organismos internacionais e no lugar dos barcos à vela são as grandes embarcações que para atravessar os oceanos necessitam lastrear seus porões com água, muita água. E é exatamente aqui que se pode encontrar "água que não acaba mais".

Alter-do-Chão, na verdade, é apenas o nome de uma vila balneária, antiga aldeia dos índios Borari, seus primeiros habitantes, ornada de praias com areias faiscantes e, como boa parte das vilas e cidades paraenses, carrega no nome a influência portuguesa. Floresceu às margens do rio Tapajós, a 30 quilômetros ao sul de Santarém, oeste do Pará, e sob ela, estima-se, fica localizada a parte central do aquífero que ela nominou.
Alter-do-Chão tem gosto de paraíso perdido. Talvez por conta disso, "em abril de 2009, o jornal inglês The Guardian destacava-a como a melhor e a mais bela praia do Brasil. O lugar realmente é lindo e só agora começa a ser divulgado", anotou a jornalista Zilda Ferreira, do blog Educom, que em maio de 2010, durante uma semana, permaneceu na vila procurando entender porque, de uns tempos pra cá, a mídia nacional e européia começou a anunciar aquele vilarejo como o centro da região mais rica de água do planeta.

Tudo indica que a história começou quando o príncipe Charles, herdeiro da Coroa britânica, fez, parte de sua comitiva de cerca de 30 membros passar, não apenas uma semana, mas quase todo o mês de março de 2009 no balneário. Ele próprio esteve lá por um dia percorrendo de barco e de carro, ao lado do embaixador britânico no Brasil, Alan Charlton e à frente de jornalistas ingleses, cientistas e pesquisadores, além da então governadora do Estado, Ana Carepa e de representantes do Ministério das Relações Exteriores e do Itamaraty, boa parte da região, incluindo Santarém e o município vizinho de Belterra. Depois de quase 20 anos, o príncipe retornava ao Pará, onde esteve em 1991, ocasião em que visitou a Serra dos Carajás. Era a quarta vez de Charles no Brasil e há décadas ele trata de temas como desenvolvimento sustentável, gestão de recursos naturais e cooperação global para proteção do patrimônio ambiental, por meio da fundação que dirige, a Prince's Rainforest Project (Os Projetos de Florestas Tropicais do Príncipe). Belterra, às margens do Tapajós, foi o palco, em meados do século passado, da ambição frustrada do mal-aconselhado norte-americano Henry Ford, para transformar a floresta tropical brasileira crua em área de plantio. Visava a exploração de borracha de forma racional como décadas antes fizeram os ingleses na sua colônia na Malásia. Passados esses anos todos, o mais provável agora é que os olhos britânicos estejam voltados, entre outras atrações, também para as reservas hídricas de Alter-do-Chão.

Na comunidade de Maguari, o príncipe conheceu detalhes do Projeto Barco Saúde & Alegria e, empolgado, visitou a Floresta Nacional do Tapajós, uma das sete unidades de uso sustentável dos recursos naturais da região que visa compatibilizar projetos de conservação da natureza com a exploração e o aproveitamento econômico direto de forma planejada e regulamentada, alguns deles beneficiários de um mecanismo global de investimentos, baseado na quantidade de emissão de gás carbônico na atmosfera, voltado exclusivamente para países tropicais.

Na Ponta de Pedras, entre as últimas línguas de sol, a fragrância de árvores e o zumbido de varejeiras abusadas, o príncipe participou de um luau amazônico, a piracaia. Os moradores prepararam para a comitiva peixe assado na brasa - curimatá e tucunaré - e frutas, enquanto meninas dançavam em volta da fogueira, sobre a terra molhada e ao som de carimbó.
No entardecer, antes de voltar para Manaus, quando na ponta do Cururu foi espiar os botos, lhe amamentaram com lendas sobre esses dóceis animais que até num passado recente e por não conhecerem predadores, eram facilmente abatidos. Hoje, tanto o cor-de-rosa quanto o tucuxi (cinza), esses golfinhos amazônicos em extinção, visitam os barcos. Ao desligarem seus motores em torno da praia os atrai e numa espécie de reverência à natureza, como se quisesse reatar com ela uma intimidade perdida o príncipe testemunhou o que pode ser descrito como o advento de um novo convívio possível entre as ambições das elites capitalistas mundiais, as mesmas que há muito exercitam com perícia a arte de não ter escrúpulos, e alguns dos habitantes mais amáveis da Terra, e por instantes deixou de lembrar as matanças de baleias no Pacífico sul, as mais de 1 bilhão de pessoas (1 em cada 5) que não tem acesso à água potável segura e os mais de 300 conflitos potenciais espalhados mundo afora por conta da água, nos quais, em quase todos, aquelas elites avidamente participam.

Por aqui, tais disputas ainda não são sangrentas. Até quando? Mídia alguma propagou o instante em que, léguas dali, grandes embarcações de bandeiras piratas - tal e qual seus ancestrais -, esvaziavam seus tanques lastreados com águas trazidas de outras regiões do globo - contaminadas inclusive com um tipo de caramujo que na foz do Amazonas não encontra predador natural -, e os reabasteciam com a água amazônica doce e quase potável, oriunda dos Andes e das dezenas dos afluentes, desde o Marañon e o Solimões até o Amazonas. - Não basta a pirataria dos espécimes dos rios, da nossa biodiversidade e dos lugarejos ribeirinhos, estamos diante também do surrupio descarado das nossas águas que são estudadas na Europa, para em seguida serem vendidas a peso de ouro, no Oriente Médio e no norte da África, onde um barril de água potável já vale mais do que um de petróleo, denunciou o professor Matta. Nos dias de hoje, e como uma espécie de subproduto da moderna pirataria, aqueles caramujos infestaram de tal forma a região costeira do Amapá voltada para a foz do Amazonas que se tornaram uma praga ambiental com a qual nem os técnicos do Ministério do Meio-Ambiente e muito menos a população sabem como lidar.


NÃO FIZEMOS A TRAVESSIA DO DISCURSO À ADOÇÃO DE PRÁTICAS