por Eugênio Bucci*. Publicado originalmente no Observatório da Imprensa
Os práticos que nos perdoem, mas, de vez em quando, alguns achados do mundo acadêmico nos ajudam a entender o que encontramos por aí no mundo real. Isto posto, peço licença para trazer, aqui para o nosso Observatório, um pouco dos ares universitários. Faço-o com humildade e com alguma boa intenção.
As palavras do chapéu e do título acima lembram – propositadamente – um livro de Jesús Martin-Barbero, professor colombiano, um dos principais teóricos da comunicação no nosso continente: Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia (Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997). Barbero exerce uma forte influência acadêmica entre estudiosos de renome na Universidade de São Paulo e de várias outras universidades do mundo. Ele nos ajudou a escapar de esquematismos que vinham de interpretações mais estreitas, demasiadamente ortodoxas, do legado da Escola de Frankfurt: aquele quase determinismo que ainda hoje vê nos meios de comunicação um sistema de tentáculos a serviço da dominação de classe.
A partir dos estudos culturais e dos estudos da recepção, Barbero identificou, em pesquisas empíricas e em elaborações teóricas de boa qualidade, os núcleos da formação dos sentidos que fundam a autonomia da opinião e da vontade de cada sujeito. Isso jamais significou, do ponto de vista de Barbero e de vários outros que pensaram a partir dele, como Omar Rincón, o abandono de uma perspectiva crítica. Em nenhum momento, a afirmação da autonomia do espectador, do consumidor de informação ou, de forma mais geral, dos cidadãos, implica ressuscitar as teses de um liberalismo ora ingênuo, ora deslumbrado.
Algumas das melhores contribuições para a compreensão da televisão pública, por exemplo, vêm dessas correntes. E mesmo alguns dos melhores estudos sobre a real influência da televisão em públicos como o brasileiro. Lembro aqui um trabalho desbravador no Brasil, Muito além do Jardim Botânico (São Paulo: Summus Editorial, 1985), de Carlos Eduardo Lins da Silva. Carlos Eduardo demonstrou, de modo praticamente incontestável, que o Jornal Nacional, por mais central que fosse a sua presença no espaço público, não "fazia a cabeça" do telespectador. A audiência, entrevistada pelo pesquisador, dava todos os sinais de que sabia ver criticamente o telejornal e que sabia formar sua visão de mundo com independência. Hoje, esse livro de Carlos Eduardo é visto como um clássico nas escolas de comunicação. Com toda a justiça.
Barbero volta seu olhar para os núcleos em que os significados são tecidos. Esses núcleos se relacionam, sem dúvida, com as pautas e os pontos de vista presentes nos meios de massa, mas de modo algum se subordinam a eles. A mediação tem raízes na vida cotidiana das diversas comunidades, nas vivências materiais das pessoas, nas conversas, nas construções autônomas. Os meios, estes sim, é que vão beber aí para se redefinir, para melhor dialogar com seus públicos. A relação, enfim, não é unilateral, não é de determinação, mas é tensa, dialógica, muito mais complexa do que sonha a vã filosofia dos adeptos das variadas teorias conspiratórias.
A internet e a comunicação 'direta'
O advento da internet tornou esses processos mais visíveis. Com as tecnologias digitais, franqueou-se a circulação das opiniões independentes e, por meio delas, é muito mais fácil constatar o que teria sido sempre óbvio: as pessoas pensam com as próprias cabeças. Pensam mal, muitas vezes, mas pensam com suas próprias cabeças. Junto com a maior visibilidade da autonomia dos sujeitos, veio a euforia incontida dos que começaram a ver – nos blogs, nos sites ditos "alternativos" e nas chamadas redes sociais – a realização das utopias da tal "democracia direta", que teria vindo para atropelar e sepultar de vez a suposta "hegemonia classista" dos "formadores de opinião". Não é bem assim. Aliás, nunca é bem assim.
Um dos bordões da nossa era de internetolatria é a afirmação reiterada de que os formadores de opinião não formam mais a opinião de ninguém. Para esses, a grande prova dessa verdade teria sido dada pelas eleições de 2006, que deixaram claro que os meios de comunicação não conseguiram determinar a inclinação dos eleitores.
Mas – é o caso de nos perguntarmos – quando é que eles determinaram essas inclinações? Em 1974, quando Orestes Quércia se elegeu senador por São Paulo, a bordo do velho MDB, contra todas as opiniões ditas "dominantes". Quércia teve 4,6 milhões de votos, contra apenas 1,6 milhão de Carvalho Pinto. Quando a campanha por eleições diretas tomou as ruas do país, em 1984, deu-se o mesmo fenômeno. A televisão praticamente boicotou os comícios e, não obstante, eles só fizeram crescer – e dobraram a postura das emissoras de TV. Outra vez foi isso que vimos no movimento dos cara-pintadas que gritavam "Fora Collor".
Os formadores de opinião do establishment influenciam, assim como são também influenciados, mas não mandam na cabeça do público. Desde muito tempo. Isso é um dado da democracia de massas, se quisermos voltar a Alexis de Tocqueville (1805-1859), e continua valendo, mesmo que esse termo, "massas", seja bastante anacrônico para designar a democracia. Os meios não conduzem o povo. Dizendo a mesma coisa com outras palavras: o poder econômico não dá a palavra final. Ainda bem. Mas, atenção, isso não constitui nenhuma novidade.
Usei aqui o termo visibilidade, mas poderia ter usado outro: transparência. A internet deu transparência aos entendimentos e às negociações de sentido que têm lugar no mundo da vida e daí ingressam no espaço público, mas ela não inaugura esses entendimentos ou essas negociações de sentido para além dos poderes formais ou dos poderes constituídos. Eles já estavam lá, desde que a democracia é democracia. Os meios não ditam os sentidos – que precisam passar, sempre, pelas mediações.
Provavelmente em função dessa utopia que enxergou na internet uma vaga libertária sem precedentes – coisa que ela não é, uma vez que ela também deu novo fôlego e novo vigor a mecanismos de mercado e de acumulação de capital –, vários setores começaram a acalentar outro devaneio: o de que, agora, a comunicação é "direta" e não depende mais da mediação de nenhum órgão de imprensa independente. O raciocínio é um tanto simplório: como jornais e revistas não são mais necessários para que uma notícia vá a público, as redações independentes se tornaram tecnológica e politicamente desnecessárias. Mesmo porque, segundo o mesmo raciocínio, essas redações nunca foram independentes de fato, mas eram apenas correias de transmissão dos interesses das "elites" ou das inefáveis "classes dominantes". (Pense bem: quem são as tais "classes dominantes"? A burguesia e qual mais?) Portanto, ninguém precisa mais de imprensa, ou, pelo menos, já não se precisa mais dessa imprensa burguesa. A internet – o nirvana da "democracia direta" – daria conta de todos os recados.
Democracia e instituições
Fixemo-nos um pouco nessa expressão que usei aqui entre aspas (neste texto que, admito, vem abusando um pouco das aspas): "democracia direta". Plebiscitos, consultas populares, conferências nacionais, tudo isso é bom, por certo. São ferramentas que permitem oxigenar a máquina do Estado, trazem mais fiscalização e mais participação do cidadão na gestão da coisa pública. Nada de errado com isso. O delírio começa quando se imagina que esses recursos possam substituir o próprio Estado e as instituições.
Todas as possibilidades abertas dentro desse imenso guarda-chuva a que se vem dando o nome de "democracia direta" (as aspas, outra vez, são indispensáveis) consagram a vontade das maiorias, não raro cooptadas pelo poder governamental, mas elas não têm como zelar pelos direitos das minorias e pelas garantias individuais. Só a máquina do Estado dispõe de mecanismos para manter equilibrados os diversos contrapesos aí implicados.
Mas não vamos nos perder em categorias da Ciência Política. O ponto é que, no âmbito nacional e mesmo global, não há como escapar das fórmulas próprias da democracia representativa e das delegações, cujo funcionamento depende da legitimação das instituições e de suas regras próprias. Em suma, não há democracia direta que dispense o Estado. Ou, mais propriamente: não há democracia direta que prescinda da mediação que só as instituições (entre elas o Estado) podem oferecer ao curso das deliberações coletivas.
O resto é mito – e aqui digo mito no sentido de falsificação.
Do mesmo modo, essa histeria em torno da "comunicação direta" precisa ser lida a partir de mediações mínimas. A rigor, não existe uma "comunicação direta". Qualquer comunicação é sempre mediada pela língua, que, também ela, é uma instituição, como bem apontou Ferdinand Saussure (1857-1913). Como instituição, a língua nos fornece parâmetros comuns básicos, sobre os quais o que está em discussão vai se assentar. É a língua que nos dá as amarras mínimas para que entendamos que uma palavra está no feminino, que democracia quer dizer democracia, que direito é um valor ao qual todos nos vinculamos. Da língua vêm as categorias em nome das quais postulamos nossas proposições. E além da língua há outras instituições sem as quais não teríamos comunicação alguma.
Imprensa livre ou totalitarismo
Os que imaginam que podemos viver sem imprensa livre não sabem o que imaginam. Os que pregam a abolição da imprensa em nome de causas libertárias pregam o fim da liberdade – e das suas próprias causas, sem o saber.
A imprensa também é uma instituição. Nesse caso, uma instituição que ultrapassa de longe as fronteiras do Estado e que tem suas bases na sociedade, diretamente. Ela é anterior e posterior ao Estado. Redações independentes constituem territórios livres do poder do Estado – aqui, como em poucos outros lugares, podemos visualizar com clareza o modo como a liberdade adquire materialidade quando impõe limites ao poder do Estado. Podemos entender a liberdade como um campo em que o poder do Estado não consegue agir. Por isso as redações independentes são indispensáveis. Sem elas, perdemos a prerrogativa de olhar o poder pelo lado de fora, por meio de núcleos (as redações) que dispõem de uma gramática própria, de hierarquias próprias, de um método próprio de ler o mundo.
Que as redações – no Brasil e no mundo – andam descuidando da sua independência é um fato. É triste, é desalentador, mas é um fato. São muitas as redações que sucumbem às seduções do mercado (do poder econômico) e são muitas as que procuram se abrigar sob o manto do Estado, fazendo o jogo, por vias indiretas e dissimuladas, do poder. Mas vamos com calma. Pretender, a partir dessa constatação, que as redações independentes são apenas uma farsa e devem ser aposentadas, isso é apenas suicídio.
A imprensa precisa melhorar, com urgência. Precisa estar à altura dos desafios históricos que se apresentam, mas isso só será possível com mais – e não menos – independência. Isso só será possível com mais liberdade.
Aqui chegamos, finalmente, à função de mediação que só a imprensa livre pode exercer. Apenas as redações independentes podem promover a mediação do debate público que é essencial à democracia. Redações independentes podem ter inclinações de esquerda ou de direita: o fundamental é que elas sejam independentes da lógica do Estado e da lógica do mercado. Só elas podem reunir mediadores (os jornalistas, no sentido pleno da expressão) cuja sustentação material decorre diretamente de seu ofício, que é o de informar o público. Jornalistas independentes são sustentados não pelo Estado ou pela publicidade privada, mas pela confiança do público e pelos recursos financeiros que daí provêm. Um blog vinculado a um movimento social qualquer pode ser uma boa fonte de dados e de pensamentos originais – mas não é uma redação independente. Ela presta contas ao movimento social a que se vincula, e não ao público. Até mesmo os movimentos sociais, e principalmente eles, uma sociedade só compreende se sobre eles for capaz de deitar um olhar independente, um olhar que só pode se originar das redações independentes.
As redações independentes promovem o fórum comum dos debates públicos, comum porque acessível de modo equilibrado a todos os interesses em disputa na sociedade. Não há outro caminho. Sem os fóruns comuns, o que teríamos seria apenas a dispersão centrífuga que nos conduziria à desagregação organizativa e também de sentidos. Não há vida democrática sem o estabelecimento estável dos fóruns comuns. Por isso, não há democracia sem imprensa livre.
Melhoremos a nossa imprensa – sem matá-la. Não podemos ceder à armadilha fácil de supor que agora iremos prescindir da imprensa. Sem ela, não teremos mais a mediação mínima, a partir da qual poderemos avançar. Inclusive avançar no sentido de criticar, de aprimorar e de transformar a imprensa que temos.
*Eugênio Bucci é jornalista