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segunda-feira, 17 de junho de 2013

Os anos do povo

13/06/2013 - Com este artigo do economista Luiz Gonzaga Belluzzo, intitulado 'Os anos do povo', Carta Maior segue com a publicação dos textos do livro “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil – Lula e Dilma”, editado pela Boitempo, em colaboração com Flacso. O livro foi organizado por Emir Sader e contém 21 artigos de balanço, alguns de caráter geral, outros, setorial, além de uma longa entrevista com Lula.

Luiz Gonzaga Belluzzo



    Não farei mágicas na economia”, soava o realejo do presidente Lula em 2002, às vésperas da posse. Em tais arengas, o presidente, ao mesmo tempo, prometia taxas de crescimento formidáveis ao longo do próximo mandato.

O presidente Lula tem lá suas categorias de entendimento da economia (não sei se melhores ou piores do que as mais utilizadas por profissionais da matéria). Uma delas desfia interpretações peculiares sobre as frustrações e fracassos dos anos 1980. Tenho razões para suspeitar: o presidente via aquele período como uma temporada de espetáculos de prestidigitação, inspirados nas proezas de Houdini ou David Copperfield, o entortador de colheres.

É um ponto de vista muito difundido. Mas, na década de 1980, os planos de estabilização nada mais foram do que providências precárias e desesperadas para evitar que o país – devastado pela crise da dívida externa, origem do terremoto fiscal e monetário do início da década – fosse tragado pelo redemoinho da hiperinflação.

Os sucessivos planos de estabilização tentaram, em vão, bloquear a escalada de preços, numa situação de absoluto estrangulamento externo, berço da desordem fiscal e monetária.

Há de ficar registrado que, nos anos 1970 – tempos da grana fácil –, a opinião dita bem informada, ilustrada, mas também a deslustrada, não se cansava de desqualificar os críticos da imprudente aventura empenhada em edificar projetos de infraestrutura (produtores de serviços não comercializáveis) sobre uma montanha de débitos em moeda estrangeira.

Em miúdos: financiaram a construção de estradas, hidrelétricas, metrôs e sistemas de telecomunicações em dólares, mesmo sabendo que as tarifas e os pedágios seriam pagos em moeda nacional. Paul Volker, no crepúsculo de 1979, subiu as taxas de juros nos Estados unidos. O Brasil quebrou. Sobrou para a viúva. Os sábios correram para debaixo da cama.

No início dos anos 1990, quando se anunciava um novo ciclo de liquidez internacional, os sabichões saíram da toca. As classes conservadoras e conversadoras não aprendem e – ao contrário dos Bourbon – tampouco se lembram de coisa alguma.

Diante da pletora de dólares, passaram a salivar com intensidade e patrocinar as visões mais grotescas a respeito das relações entre desenvolvimento econômico, abertura da economia e relações entre política fiscal e monetária.

Aproveitaram a abundância de dólares para matar a inflação, mas permitiram a valorização do câmbio, sob o pretexto de que a liberalização do comércio e dos fluxos financeiros promoveria a alocação eficiente dos recursos, tanto do ponto de vista estático quanto da perspectiva da acumulação de capital.

Nessa visão, os ganhos de produtividade decorrentes de tais mudanças no comportamento empresarial seriam suficientes para dinamizar as exportações, atrair investidores externos e deslanchar um forte ciclo de acumulação. Mas, na vida real, a abertura comercial com câmbio valorizado e juros altos suscitou o desaparecimento de elos das cadeias produtivas na indústria de transformação, com perda de valor agregado gerado no país, decorrente da elevação dos coeficientes de importação em cada uma das cadeias de produção.

Com essa estratégia, o crescimento foi pífio. Ainda assim, os “renovados” cavaram um buraco de mais de 30 bilhões de dólares em conta corrente e erigiram uma dívida interna de 56% do Produto Interno Bruto (PIB) – ao esterilizar a acumulação de reservas com taxas de juros estratosféricas. Last but not least afugentaram para a China o investimento estrangeiro em nova capacidade, ou seja, desdenharam as exportações futuras.

Em 2002, as eleições presidenciais foram realizadas sob um clima de terror especulativo. Os mercados e seus porta-vozes projetaram cenários apavorantes para os quatro anos de governo Lula. O risco Brasil foi a 2.400 pontos base, descolou da pontuação dos outros emergentes. A transição, para surpresa de muitos e decepção de outros, foi feita com habilidade e prudência.

Em 2003 todos auguravam um desastre para a economia, mas o que se observou foi a progressiva aceleração do crescimento da economia brasileira num ambiente de baixa inflação. À sombra de uma política monetária ainda excessivamente conservadora, o país executou uma política fiscal prudente e de acumulação de reservas, construindo defesas sólidas para prevenir os efeitos da crise. Isso foi proporcionado por uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável.

Nesse ambiente benfazejo, a política monetária do governo Lula repetiu os enganos dos anos 1990, mantendo a taxa de juros e o câmbio fora do lugar. Criou-se uma situação do tipo “há bens que vêm para o mal”, ou seja, o câmbio valorizado era compensado pelos preços generosos formados num mercado mundial superaquecido e especulado.

A política monetária se constituiu na principal anomalia da gestão econômica do governo Lula. Nas condições aqui descritas, seria não só desejável, mas obrigatório buscar uma combinação câmbio-juro real mais estimulante para a substituição de importações, o avanço das exportações nos segmentos de maior intensidade tecnológica e para o investimento em novos setores, mais dinâmicos.

Uma economia urbano-industrial formada há anos não pode apoiar o crescimento e a estabilidade na exportação de commodities, cujos efeitos sobre o emprego e sobre a renda são limitados. O crescimento da indústria é almejado porque impõe a diversificação produtiva e torna mais densas as relações intrassetoriais e intersetoriais, proporcionando, ao mesmo tempo, ganhos no comércio exterior e na economia doméstica.

Essa façanha exige a elevação da taxa de investimento da economia dos atuais 20 para 25% do PIB.

O Brasil encerrou a década de 1990 com uma regressão da estrutura industrial, ou seja, não acompanhou o avanço e a diferenciação setorial da indústria manufatureira global e, ademais, perdeu competitividade e elos nas cadeias que conservou.

Contrariamente ao afirmado pela vulgata neoliberal a respeito da globalização, o movimento de relocalização manufatureira foi determinado por duas forças complementares e, não raro, conflitantes: o movimento competitivo da grande empresa transnacional para ocupar espaços demográficos de mão de obra abundante e as políticas nacionais dos Estados Soberanos nas áreas receptoras.

O país incorporou 16 milhões de famílias ao mercado de consumo moderno por conta das políticas sociais e de elevação do salário-mínimo que habilitam esses novos cidadãos ao crédito.

Essa incorporação será limitada se não estiver apoiada na ampliação do espaço de criação da renda. nas economias emergentes bem-sucedidas, a ampliação do espaço de criação da renda é fruto da articulação entre as políticas de desenvolvimento da indústria (incluídas a administração do comércio exterior e do movimento de capitais) e o investimento público em infraestrutura.

Esse arranjo, ao promover o crescimento dos salários e dos empregos gera, em sua mútua fecundação, estímulos às atividades complementares e efeitos de encadeamento para trás e para frente.

No Brasil dos anos 1950, 1960 e 1970 havia sinergia – como em qualquer outro país – entre o investimento público, comandado pelas empresas estatais, e o investimento privado. A privatização desmontou essa relação virtuosa. O volume elevado de investimento público em infraestrutura é crucial para formação da taxa de crescimento na China.

O investimento das multinacionais tem importância para a geração de divisas e para a graduação tecnológica das exportações, mas não para o volume do investimento agregado. O debate brasileiro dá a impressão de que os tupiniquins, de um lado e de outro, não fizeram um esforço para compreender a natureza das transformações ocorridas nos últimos trinta anos.

A esquerda continua prisioneira das formas de intervenção do passado e condena as parcerias público-privadas, enquanto a direita aposta num liberalismo mítico, que nunca existiu.

Nos anos 2000, particularmente a partir de 2004, a estrutura e a dinâmica da produção e do comércio globais, originadas pela concomitância entre os movimentos da grande empresa e as políticas nacionais (particularmente as da China), colocou o Brasil, por conta de sua dotação de recursos naturais – água, energia, terras agriculturáveis, base mineral – em posição simultaneamente promissora e perigosa.

Bafejado pela liquidez internacional – antes e depois do estouro da bolha imobiliária – e abalroado pela demanda chinesa de commodities, o Brasil foi condescendente com a ampliação e generalização do déficit comercial, que afetou a maioria dos setores industriais, ao mesmo tempo em que o agronegócio e a mineração sustentavam um superávit global no comércio exterior.

A abundância de divisas teve a larga contribuição do fluxo de capitais – antes e depois da crise financeira. A situação benigna provocou o descuido com a persistência dos fatores que determinaram o encolhimento e a perda de dinamismo da indústria: câmbio valorizado, tarifas caras em termos internacionais dos insumos de uso geral e carga tributária onerosa.

Alguém me perguntou outro dia o que o Brasil pretende do seu desenvolvimento. Respondi com as promessas estratégicas do governo Dilma: o Brasil está em condições de estabelecer uma macroeconomia da reindustrialização usando de forma inteligente as vantagens que se revelaram recentemente.

Não se trata de restringir os esforços na manutenção de um câmbio subvalorizado ou de esperar que a queda dos juros produza automaticamente a recuperação do investimento industrial, mas de desenvolver um conjunto de políticas voltado para o objetivo de expansão do mercado interno sem incorrer nas restrições de balanço de pagamentos. Nessa estratégia não cabe a determinação da taxa de câmbio como um ativo cujo “preço” é formado pelo movimento de capitais.

A taxa de câmbio tem de ser administrada de modo a evitar valorizações e desvalorizações bruscas. No âmago das queixas contra o “intervencionismo” do governo estão os gritos e gemidos dos arbitageurs e especuladores em prol da flutuação livre e das taxas de juros elevadas.

Os megafones da mídia conservadora se incumbem de proclamar, dia sim, dia não, que os investidores internacionais e os fundos globais encolhem suas operações no Brasil. Por isso o governo deve buscar uma ampla negociação com o empresariado brasileiro, aquele interessado no crescimento de seus negócios e de suas empresas.

A estratégia apoiada no mercado interno envolve ademais o equilíbrio do orça- mento corrente e a rápida ampliação do orçamento de investimento, o prosseguimento do processo de inclusão e de distribuição de renda. Mas isso será mais viável se os recursos oriundos do pré-sal forem destinados à correção das distorções da estrutura tributária e para reverter o encarecimento dos insumos fundamentais, além de gerar espaço e demanda para a reindustrialização.

Mais do que uma política industrial, concebida em termos restritos, o Brasil reclama um arranjo que promova a reindustrialização. Esse arranjo deve estar apoiado, como já foi dito, no potencial de seu mercado interno, nas vantagens competitivas do agronegócio e da mineração – agora acrescidas das perspectivas do pré-sal – e no seu sistema público de financiamento.

Vou falar da infraestrutura. Estamos diante de um o binômio transporte/energia que não utiliza racionalmente nossa constelação de recursos e a distribuição espacial das atividades, cada vez mais descentralizada.

Tão ou mais importante do que a modernização da infraestrutura é definir o destino que pretendemos dar ao sistema educacional brasileiro, ao caminho que oferecemos aos cidadãos do ensino básico aos bancos do ensino superior. 

Não se trata apenas de abastecer adequadamente o mercado de trabalho. é importante, sim, formar mais técnicos e engenheiros, carreiras desestimuladas pelo baixo crescimento das últimas décadas. Mas, antes de tudo, trata-se de conter a degradação que está ocorrendo em todos os níveis da educação no Brasil: a especialização precoce, em detrimento da formação cultural mais ampla e mais sólida, capaz de permitir a autonomia e a fruição da liberdade pelo cidadão brasileiro. Pois não se forma um bom engenheiro se o profissional não tem noção do país em que vive, do mundo em que sobrevive.

Na verdade está-se produzindo hoje, desculpe a expressão, uma geração de idiots savants, que se especializam no seu ramo de atividade e não têm a menor noção do mundo onde vivem. Comentei numa entrevista: basta acompanhar o que você lê na internet. é assustador.

Isso demanda maior empenho, sobretudo das camadas “esclarecidas” da sociedade civil, na construção de uma política cultural compatível à democracia de massas.

Assim, a infraestrutura, a educação formal e a política cultural são as três questões fundamentais.

Temos de superar o velho desenvolvimentismo que admitia o avanço social e cultural como consequência natural do desenvolvimento econômico e nos perguntar: que sociedade desejamos?

Os grandes autores brasileiros, os intérpretes do Brasil perscrutaram a história para responder à questão: quem somos nós, os brasileiros? É hora de perguntar: que sociedade queremos?

Quando me refiro a uma política cultural, estou falando de uma integração do indivíduo, dos grupos sociais ao mundo contemporâneo; saber, afinal de contas, quais são os valores que nós queremos preservar. Imagino que sejam os mesmos que a modernidade colocou como um desafio para a nossa ação política: a liberdade, a igualdade e a compreensão.

A que estamos assistindo hoje, desgraçadamente, no mundo inteiro e acho que no Brasil com mais intensidade, é um processo de obscurecimento, e nesse particular tem enorme importância o que nós queremos dos meios de comunicação de massa.

Hoje em dia você tem um grande debate travado em torno da liberdade de expressão. A mídia, a grande mídia, sob a consigna da liberdade de expressão, trata de impedir que se desenvolva o verdadeiro debate sobre o Brasil ou sobre os temas que afligem a humanidade.

Contra esse controle, temos de lutar pela diversidade. Promover a diversidade é uma obrigação das políticas públicas: não deixar que o poder da informação, concentrado em poucas empresas, se transforme em censura da opinião alheia. Porque a internet ainda é uma caixa de ressonância da grande imprensa: os blogs e quejandos, em sua maioria, reproduzem o que a grande imprensa diz, na forma e no conteúdo, porque estão com a consciência crítica danificada.

O projeto da liberdade não pode, como dizia Adorno, se separar da questão da compreensão, do entendimento, da crítica e da capacidade de se formular projetos. E isso está bloqueado hoje, no Brasil, por conta da banalização da vida e da celebração das celebridades. Tudo está sendo feito para que a sociedade se transforme numa massa amorfa que não tem papel nenhum a desempenhar na projeção de seu próprio destino.

Não foram poucas as ocasiões em que o presidente Lula esquivou-se do rótulo “esquerdista radical”. Tratou de escapar ao mesmo tempo da fuzilaria conservadora e dos ataques do esquerdismo. Amparado nos conselhos da história e no respeito aos limites ditados pela correlação de forças interna e internacional, buscou os riscos de uma base de apoio pluriclassista com hegemonia das forças progressistas. Abrigou-se na rubrica de líder sindical, perseguindo a imagem do líder popular negociador, sempre disposto ao compromisso e à mediação.

Imagino que Lula poderia protagonizar um personagem ausente no livro de Slavoj Zizek sobre a atualidade do Manifesto Comunista.

Esse livro trata dos enganos, desenganos, projetos e miopias da esquerda na era do capitalismo neoliberal “financeirizado” e globalizado. Em um dos capítulos, Zizek aborda as ambiguidades e desencontros da luta política dos subalternos, ao interpretar o enredo do filme inglês Os virtuoses.

O diretor do filme levou à tela a narrativa da luta desesperada e inglória de um punhado de mineiros contra o fechamento da mina em que trabalhavam. O grupo de militantes participava também de uma banda, comandada por um maestro-mineiro que, no limiar da derrota política, proclamava: só a música importa.

A consigna era vista pelos mais duros como uma forma simbólica, mas ilusória e alienante, de reafirmar a solidariedade de classe.

A mina tinha perdido a sua função econômica, foi fechada. Nada mais restava para os companheiros desempregados senão a irrealidade da banda, na qual tentavam colocar em prática os valores que tinham perdido a “autenticidade”, isto é, as condições de vida e de trabalho que lhe davam sentido.

No epílogo da triste jornada, um dos personagens reafirma sua pertinência fundamental ao grupo perdedor, seja qual for a forma assumida pelas condições de vida: “se já não há mais esperança, resta tão somente seguir os princípios”.

A banda econômica do governo Lula preferiu apostar no equilíbrio entre a esperança e os princípios, ainda que isso tenha lhe custado a increpação de praticar a Realpolitik, tentando se equilibrar – de forma incoerente para os principistas – entre as ações que buscavam a elevação dos padrões de vida dos mais pobres e as decisões de política econômica que propiciavam os ganhos parrudos aos senhores das finanças e seus acólitos.

Essa façanha, dizem os críticos, foi executada em um ambiente internacional excepcionalmente favorável. Maquiavel, no entanto, já advertia que a virtù do príncipe só poderia frutificar se amparada pela fortuna.

Seja como for, acuado no início do primeiro mandato pelo terrorismo dos mercados, o metalúrgico tratou de não violar partitura que registrava os acordes da prudência, sem abandonar o projeto de ampliação das políticas sociais. Intuitivo, Lula, o sindicalista, construiu uma visão pragmática do desenvolvimento nas sociedades modernas.

Para ele, a política é, sobretudo, mediação entre dois sistemas: as necessidades e aspirações dos cidadãos e os interesses monetários que se realizam através do mercado. Lula parece supor que esse jogo crucial da modernidade deve reconhecer a legitimidade das ações egoístas, observados os limites impostos pelas políticas do Estado destinados a proteger os mais frágeis e dependentes.

A democracia moderna – a dos direitos sociais e econômicos – nasceu e se desenvolveu contra as ilusões de harmonia nas relações econômicas impostas pelo mercado. Desde o século XIX, as lutas sociais e políticas dos subalternos cuidaram de restringir os efeitos da acumulação privada da riqueza sobre a massa de não proprietários e de- pendentes.

O sufrágio universal foi conseguido com muita briga entre final do século XIX e o começo do século XX. Os direitos econômicos e sociais são produtos da luta que transcorre entre o final dos anos 1930 e o final da Segunda Guerra Mundial.

O Estado promotor da inclusão social é uma construção jurídica e institucional erigida a ferro e fogo pelos subalternos. Depois da Segunda Guerra Mundial, sobretudo na Europa, mas também de forma atenuada nos Estados unidos, as forças antifascistas impuseram o reconhecimento dos direitos do cidadão, desde o seu nascimento até a sua morte.

Sacralizaram os direitos individuais para expurgar da vida social qualquer resquício de totalitarismo e afirmaram os direitos econômicos e sociais para evitar que o desamparo das massas se transfigurasse na busca de soluções salvacionistas e decisionistas.

Na periferia do capitalismo, o desenvolvimentismo dos anos 1950 e 1960 imaginou que o crescimento econômico resolveria naturalmente os desequilíbrios sociais e econômicos herdados da sociedade agrário-exportadora e semicolonial. Engano.

O desenvolvimentismo, a despeito do razoável sucesso da industrialização, não conseguiu reduzir as desigualdades. Na esteira de um processo de urbanização acelerada, o desenvolvimentismo transportou as iniquidades do campo para as cidades, onde, até hoje, as mazelas da desigualdade e da violência sobrevivem expostas nas periferias e nos morros.

Não é de espantar que nos países em desenvolvimento tais tendências tenham levado à corrosão das convicções democráticas e republicanas do povaréu. As políticas sociais das últimas décadas ainda não superaram, apenas bloquearam a reprodução desimpedida da velha prática das camadas dominantes: a reiterada violação dos direitos sociais, ainda mal conquistados na letra da Constituição de 1988.

Na sociedade brasileira, ainda é agudo o conflito entre as aspirações dos cidadãos a uma vida decente, segura, economicamente amparada e as condições reais da existência material e moral da grande maioria.

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22188&editoria_id=4

terça-feira, 20 de março de 2012

A fala do governo

15/03/2012 - Emir Sader em seu blog da Carta Maior

O governo leva adiante uma política econômica e social correta, no essencial. Principalmente quando se consolida a tendência a diminuir a taxa de juros, corrigindo seu aumento no começo do governo, e avançando para a taxa média mundial, o que levaria a baixar os incentivos a trazer para aqui o pior capital do mundo, o especulativo, que não gera nem bens, nem empregos, e produz desequilíbrios que colocam em risco o desenvolvimento e as políticas sociais. 


Onde o governo deixa a desejar é no plano político. O país não ouve a palavra da presidenta, do governo, explicando, prestando contas, socializando preocupações, buscando mobilização da cidadania e dos movimentos populares, que o apoiam.

O governo tem, antes de tudo, obrigação de prestar contas periodicamente à população que o elegeu, a partir das suas propostas para o Brasil. Para isto, o governo não pode confiar na mídia privada, que funciona muito mais como censura e como filtro, que faz chegar o que quer e da forma que quer, selecionando, recortando, retalhando, deformando mesmo as falas do governo. A população não pode ficar à mercê do monopólio privado da mídia que, como bem disse a Presidenta, diante das importantes políticas do governo, prefere definir outra pauta, de partido opositor, como foi assumido explicitamente por ela durante a campanha eleitoral.

Se fôssemos tomar o primeiro ano do governo Dilma pelo que a mídia faz chegar aos leitores, ouvintes e telespectadores, teria sido um ano marcado pelos escândalos, periodizado pelos casos de cada ministro alvo de denúncias até sua substituição.

É preciso dizer que o governo foi pautado pela mídia na sua ânsia denuncista, sem que suas versões tenham chegado à população, salvo através do filtro desse mesma mídia opositora.

Os eixos centrais do governo não chegaram à população sob forma de discurso, de exposição, de propostas, mais além da implementação concreta das políticas. Mas a política não se faz apenas com fatos, ela precisa, de argumentos, de convencimento, de persuasão, mais ainda se queremos que avance – e avance muito – a consciência social dessa imensa massa de gente que está, pela primeira vez, tendo acesso a direitos elementares, que por tanto tempo lhe foram negados.

O governo precisa assumir suas responsabilidades nesse processo de conscientização da massa da cidadania, explicando suas políticas, dizendo as razões pelas quais a situação do povo tem melhorado substancialmente, quais os obstáculos para que siga avançando de forma ainda mais rápida, qual a estratégia do governo, etc. , etc.

Não se trata simplesmente de que essa fala faz falta, é que esse espaço é ocupado pelo discurso opositor, que se opõe frontalmente aos argumentos que orientam as politicas do governo.

Para eles, quanto menos Estado melhor, todo o caudal de denúncias não é feito para melhorar a ação do governo e do Estado, mas para enfraquecê-los em favor dos mecanismos de mercado, em que se assentam as posições opositoras.

Pregam menos gastos sociais, prioridade do ajuste fiscal, política externa de alinhamento subordinado aos EUA. Como desfrutam do monopólio dos espaços de formação de opinião pública – a que resistimos na imprensa alternativa, mas em um combate de forças muito desiguais, especialmente se consideramos o peso da televisão -, difundem um discurso na contramão do que faz e pensa o governo.

E quem representa, nesse espaço fundamental de disputa das corações e mentes, a maioria da população, que elegeu e reelegeu a Lula e elegeu a Dilma, confirmando que são a maioria no Brasil? O governo teria que assumir suas responsabilidades, garantindo que sua fala chegue a todos os brasileiros. Tem que encontrar os meios, nos espaços públicos atualmente existentes, ou criando formas que derivem da democratização dos meios de comunicação. Mas não pode se ausentar desses espaços, sob o risco de seguir sendo pautado pela oposição e, pior, de que a consciência das pessoas não acompanhe a ação do governo, não por discordância, mas por desconhecimento dos argumentos.

A política e o poder são a combinação da força e da persuasão, conforme as análises insuperáveis de Gramsci.

O governo tem o poder das ações e da escolha de cargos, mas tem que fazer acompanhar essa ação da persuasão, do convencimento, do consenso. Se algo eu me atreveria a dizer à Presidenta neste momento, seria simplesmente:

Fala, Dilma!

Fala, muito, fala sempre, encontrando os meios de que suas falas cheguem às pessoas, se queremos consolidar a nova maioria social e política com uma consciência majoritária baseada em valores solidários e nao nos mecanismos da competição selvagem de todos contra todos que propõem o mercado e difunde a oposição midiática.

O exercício da política democrática é essencialmente o exercício do convencimento, da argumentação, do compartilhamento dos problemas e da convocação da mobilização popular para o protagonismo conjunto do governo e do povo na construção de um Brasil justo e solidário.

domingo, 23 de outubro de 2011

A urgência da democratização da mídia

 
Por Emir Sader, no sítio Carta Maior:

Nos meses transcorridos desde as acusações a Palocci até esta ofensiva contra Orlando Silva ficou clara a força da velha mídia para pautar a política nacional. A agenda política ficou periodizada pelos ministros que eram a bola da vez das acusações, numa sequência prolongada de “escândalos, que deu a impressão que essa era a cara mais marcante do governo.

A política econômica e sua articulação com as políticas sociais – o tema mais importante do governo, porque isso vai definir a capacidade do Brasil para resistir às consequências da crise no centro do capitalismo – não conseguiu o espaço essencial que deveria ter na agenda nacional. Ficou na sombra da pauta de denúncias produzida pela velha mídia.

Durante os últimos anos do governo Lula – e, em particular durante a campanha eleitoral – foi possível neutralizar relativamente o peso dos monopólios da mídia privada, com Lula – do alto da sua imensa popularidade e com sua linguagem de enorme apelo popular -, ainda mais que contávamos com os horários televisivos e os comícios da campanha.

Passadas essas circunstâncias, a velha mídia monopolista voltou a ocupar seu papel central na definição das agendas nacionais, pautando o governo com seu denuncismo, que visa enfraquecê-lo. Agem como um grande exército regular e nós, da mídia alternativa, como guerrilhas. Temos credibilidade, rapidez, acesso aos jovens – que eles não dispõem –, mas contamos com meios muito menores de difusão.

Temerosos do marco regulatório, difundem que haverá limitação à liberdade de expressão. Ao contrário, o objetivo não será calar ninguém, mas dar voz a milhões de outras vozes, que hoje, apesar de majoritárias no país, não se reconhecem e são excluídas da mídia tradicional.

Não haverá democracia real no Brasil enquanto não forem democratizados os meios de comunicação, enquanto algumas poucas famílias deixarem de querer falar em nome do país e da grande maioria da população, que vota contra e derrota sistematicamente os candidatos que essa mídia apoia.

É urgente iniciar o debate sobre o marco regulatório, mesmo que um Congresso infestado de donos de meios de comunicação privados resista ao máximo a qualquer forma de democratização da mídia. Defendem seus privilégios monopolistas, mas tem que ser derrotados, para que a formação de opinião pública no Brasil possa ser democrática e pluralista.

Fonte: Extraído do Blog do Miro

sábado, 23 de julho de 2011

Agenda para um espanhol indignado


Emir Sader*

O correspondente do jornal espanhol El País no Brasil não se conforma. Diz que não entende como aqui não há um movimento dos jovens indignados, como no seu país. Com tanta corrupção, diz ele, certamente leitor assíduo da velha mídia e menos da realidade concreta. Palocci, Ministério dos Transportes, processo do mensalão. Onde está a juventude brasileira? Perdeu a capacidade de se indignar? Está corrompida? Está envelhecida? Não tem os valores morais da juventude do velho continente?

Ele se indigna no lugar da nossa juventude, com um país carcomido pelos hábitos corruptores da velha politica populista e patrimonialista. Aderiu ao Cansei.

Dá pena. Ele não entende nem o nosso país, nem o dele. Acha que os jovens se indignam com a corrupção, na forma que a velha mídia a trata, como mercadoria de denúncia contra o Estado, a política, os governos, etc. etc.

Se comparasse a situação do seu país e do nosso poderia entender bem um ou até mesmo os dois países. Sugerimos uma agenda para sua visão obnubilada.

Por que não compara a popularidade do Zapatero com a do Lula? Por que será que um é enxotado – até mesmo por editorial do seu jornal, chegado ao PSOE, que diz que se ele quer fazer algo de vem pra Espanha, deve ir embora imediatamente – e o outro saiu do governo com 87% de popularidade e 4% de rejeição, mesmo tendo toda a mídia contra? O que é indignante: ter Zapatero como dirigente máximo do país ou a Lula?

Não lhe indigna saber que o seu país, que foi colonizador, se apropriando das riquezas produzidas pelos escravos neste país, que continua a explorar mediante os grandes bancos, petroleiras, companhias de telecomunicação a este continente, se encontra, há já quase 4 anos em crise. Enquanto nós, explorados, dominados, submetidos aos organismos internacionais que vocês apoiam, saímos a quase três anos da crise. Não lhe indigna isso?

Não lhe indigna que aqui todos os imigrantes podem se legalizar e ser tratados com igualdade de direitos, enquanto no seu país semanalmente chegam embarcações com centenas de pessoas provenientes da África – que vocês ajudaram a espoliar -, vários deles já mortos, e são presos e devolvidos a seu continente de origem, tratados como seres inferiores, rejeitados, humilhados e ofendidos?

Não lhe indigna que aqui, com muito menor quantidade de recursos, estamos próximos do pleno emprego, enquanto no seu país o desemprego bate recordes, chega a praticamente 50% para os jovens? Em condições que as elites ricas esbanjam dinheiro pelo mundo afora? Não lhe indigna isso?

Daria para continuar falando muito mais. Se lhe indignassem essas coisas, teria saído com os jovens espanhóis que continuam a ocupar ruas e praças, indignados, eles sim, com tudo isso que passa no seu país. Eles defendem os imigrantes, os desempregados, todos vítimas principais do governo que seu jornal apoiou até ontem.

Não lhe indigna que Lula seja um líder mundial, que vá à África propor medidas de luta contra a fome, enquanto o seu país rejeita os africanos e continua a explorar os recursos daquele continente?

Creio que, no fundo, o que indigna ao jornalista espanhol é que seu país perdeu a competição para sediar os Jogos Olímpicos, derrota com que não se conforma, então tenta desvalorizar o Rio e o Brasil, com denúncias reiteradas e multiplicadas sobre problemas de insegurança pública, de atraso nas obras da Copa e das Olimpíadas.

O que indigna é sua incapacidade de não compreender nem o seu país, nem o país sobre o qual ele deveria fazer cobertura que permitisse que os leitores compreendessem o Brasil. Mas ele não compreende sequer o seu país, como vai compreender o nosso?

É indignante realmente. Estivesse na Espanha, estaria com os jovens indignados, contra um governo como o que tem eles, com uma mídia como a que tem eles.


Fonte: Blog do Emir Sader

sábado, 11 de dezembro de 2010

#RIO BLOG PROG realiza dia 18 debate na sede dos Bancários

Informamos com prazer que os Blogueiros Progressistas do Rio de Janeiro realizam dia 18 de dezembro, próximo sábado, debate no Sindicato dos Bancários, centro da cidade, com participação de:

- Fabiano Santos, cientista político do Iuperj
- Bemvindo Siqueira, ator, humorista e diretor de teatro
- Carlos Latuff, cartunista
- Emir Sader, cientista político
Mediação: Miguel do Rosário

Tema: A função política da blogosfera no Brasil de hoje e de amanhã.

Local: Auditório do Sindicato dos Bancários - Av. Presidente Vargas, 502 - 21° andar. Centro. Sábado, 18 de dezembro de 2010. 14h. 

Após o debate, os blogueiros conversam sobre o Encontro Regional, a ser realizado em abril.

Mais informações: rioblogprog@gmail.com

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Seminário de Desenvolvimento e Educação, hoje e amanhã na Uerj

O Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e a Fundação Ceperj (Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro) realizam o primeiro Seminário "Desenvolvimento e Educação", nos dias 18 e 19 de novembro. O evento será nos auditórios 91 e 93 da Uerj, na Rua São Francisco Xavier, 524, 9° andar, Maracanã. Pesquisadores, intelectuais, políticos, técnicos e gestores vão debater e confrontar criticamente as concepções de desenvolvimento e de educação no âmbito nacional e em relação à América Latina.

O ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), Samuel Pinheiro Guimarães neto, Theotônio dos Santos - do Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), Gaudêncio Frigotto - do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação (PPFH) da Uerj, Dermeval Saviani - da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Emir Sader - do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), Roberto Amaral - do Cebela (Centro Brasileiro de Estudos Latino Americanos), são alguns dos palestrantes do evento.

O seminário "Desenvolvimento e Educação" terá quatro temas: "Concepções de desenvolvimento e de educação e o papel do Estado no Brasil hoje: um balanço crítico", Ciência, tecnologia e o papel da universidade na construção de projeto radicalmente democrático de desenvolvimento no Brasil", "O projeto brasileiro de desenvolvimento e a sua relação internacional, especialmente em relação à América Latina" e "Análise crítica dos indicadores econômico, sociais, educacionais e culturais que qualificam qual desenvolvimento e educação para que sociedade?".

Desenvolvido em parceria entre PPFH/UERJ, Centro de Estatísticas, Estudos e Pesquisas (Ceep) e Fundação Ceperj, o seminário terá como eixos centrais: as concepções de desenvolvimento e educação e o papel do Estado; ciência e tecnologia e o papel da universidade na construção de um projeto nacional de desenvolvimento e centrado na busca de respostas às profundas desigualdades sociais e à natureza das relações da sociedade brasileira no plano nacional e, especialmente, com a América Latina; e fecha com uma análise crítica dos indicadores econômicos, sociais, educacionais e culturais que permitam qualificar qual o desenvolvimento, qual educação, para qual sociedade.

O seminário terá duas palestras diárias (manhã e tarde), com a participação de um moderador. Os debates devem se materializar numa coleção de palestras apresentadas em DVD, na edição dos Anais ou de um livro e em um número especial da revista Crítica & Política. "Desenvolvimento e Educação" é coordenado pelos seguintes professores: Zacarias Gama (PPFH/Uerj), Epitácio Brunet (Ceep - Fundação Ceperj), Gaudêncio Frigotto (PPFH/Uerj), Roberto Amaral (Cebela) e Luíz Carlos Barreto Lopes (SEEDUC/RJ).

Programação

Data: 18 de novembro
Local: auditório 91 - Uerj

Mesa 1
Tema: Concepções de desenvolvimento e de educação e o papel do Estado no Brasil hoje: um balanço crítico.
Expositores: Theotônio dos Santos (UFF e Cebela) e Dermeval Saviani (Unicap)
Moderador: Gaudêncio Frigotto (PPFH/Uerj)
Horário: 9h às 12h30

Mesa 2
Tema: Ciência, tecnologia e o papel da universidade na contrução de projeto radicalmente democrático de desenvolvimento no Brasil
Expositores: Laura Tavares (UFRJ) e José Raymundo Romeo (UFF)
Moderador: Antônio Carlos Ritto (PPFH/Uerj)
Horário: 14h30 às 18h

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Data: 19 de novembro
Local: auditório 91 - Uerj

Mesa 3
Tema: O projeto brasileiro de desenvolvimento e a sua relação internacional, especialmente em relação à América Latina
Expositores: Emir Sader (CLACSO / PPFH-Uerj)
Samuel Pinheiro Guimarães Neto (Unb - IRBr/MRE)
Moderador: Roberto Amaral (Cebela)
Horário: 9h às 12h30

Mesa 4
Tema: Análise crítica dos indicadores econômico, sociais, educacionais e culturais que qualificam qual desenvolvimento e educação para que sociedade?
Expositores: Márcio Pochmann (Ipea - Unicamp) e Cândido Grzybowski (Ibase)
Moderador: Luiz Edmundo Aguiar (UFRJ)
Horário: 14h30 às 18h

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Brasil que sai das urnas

A seguir, um resumo de várias análises publicadas no website do Instituto Humanitas Unisinos sobre as eleições de 2010, a partir de entrevistas com gente como Walter Pinheiro, D. Luiz Demétrio Valentini, Ivana Bentes, Ivo Poletto, Emir Sader, Wladimir Safatle, Marcelo Neri e Francisco de Oliveira, além de trabalhos de outros intelectuais e frases de políticos após um dos processos eleitorais mais marcantes do pós-ditadura militar. Confira a apresentação e um sumário de todo o material reunido na seção Notícias do Dia, da página do IHU.

O balanço da sexta eleição presidencial pós-ditadura, e a quinta consecutiva disputada entre o PT e o PSDB, aos poucos vai sendo feito e vai revelando o Brasil que saiu das urnas. Ao mesmo tempo, ganha corpo o debate de como será e quais são os principais desafios que aguardam Dilma Rousseff – no primeiro governo pós-Lula.

Contribuir na interpretação dos principais fatos que fizeram parte da disputa eleitoral 2010 e seus desdobramentos, na análise das forças ganhadoras e perdedores, nas conjecturas de qual projeto sai fortalecido e nos desafios que se apresentam para um governo pós-Lula é o objetivo dessa análise. O ponto de referência de elaboração desta análise é o movimento social, mesmo tendo presente que a leitura e a interpretação dos movimentos sobre as eleições estão em curso e não são unitárias. A nossa análise, portanto, é uma entre outras que se oferece para o debate público.

No balanço preliminar das eleições 2010 algumas constatações ganharam destaque. Entre elas, a mais ouvida e citada, foi a de que Lula foi o grande vitorioso considerando que a sua aposta pessoal – Dilma Rousseff – se transformou em uma candidatura competitiva e vencedora. Ainda mais: Lula conseguiu algo pouco comum no mundo da política que é a transferência de votos.

Entre ganhadores e perdedores do processo eleitoral 2010, além da vitória pessoal de Lula, destacam-se outras afirmações: Marina Silva surpreendeu; o DEM foi fragorosamente derrotado; o PT saiu fortalecido, o PSDB enfraquecido, o PSB emergiu como nova força política; caciques políticos foram expelidos pelas urnas e pela Ficha Limpa; a esquerda programática teve desempenho pífio. Falou-se ainda muito do grau de tensão dessas eleições comparável apenas ao das eleições de 1989 e ao fato da agenda moral religiosa ter assumido uma proporção impensável no debate eleitoral.

Agreguem-se aos aspectos anteriores outros elementos menos comentados, mas nem por isso menos importantes: a ausência de um debate programático mais consistente; o ‘lulismo’ substituindo o debate programático; a confirmação do realinhamento eleitoral verificado em 2006 e o não comparecimento da agenda do movimento social nas discussões. As eleições de 2010 permitem ainda a análise de que o modelo neodesenvolvimentista, protagonizado pelo governo Lula, saiu vitorioso e tende a se consolidar no governo de Dilma Rousseff.

Sumário

O Brasil que sai das urnas
Introdução
Eleições 2010. Surpresas ‘não esperadas’
Estado laico. Sociedade religiosa
Igreja e aborto – polêmica envolve a CNBB
Pronunciamento de Bento XVI, um reforço inesperado
Marina Silva. Onda verde ou onda conservadora?
Eleições despolitizadas?
O ‘lulismo’ substituiu os programas
Raízes sociais e ideológicas do lulismo
Lulismo. Um projeto sem rupturas e pluriclassista
Neodesenvolvimentismo. O conteúdo programático do lulismo
Estado financiador. As grandes transnacionais brasileiras
O Estado investidor. As grandes obras de infra-estrutura
O Estado Social. Mitigação e superação da pobreza
Lulismo + neodesenvolvimentismo = vitória de Dilma
A agenda esquecida
Gênero: forçando mudanças na política
Estereótipos de gênero
Dilma e as rupturas de concepções conservadoras
Desafios para o governo Dilma
Economia. Ventos de mau presságio?
A ‘sombra’ de Lula
Perfil do novo Congresso
Pós-eleição 2010 em frases

Clique aqui e leia a análise. Saudações educomunicativstas.

sábado, 2 de outubro de 2010

“Esquerda fez opção pela democracia na América Latina”, diz Lula

Esta entrevista de Lula é histórica, por vários motivos.
Mas resolvemos destacar os jornais que a veicularam:
latino-americanos, de esquerda, fortes e respeitados, porém
pouco conhecidos por nós, brasileiros. Confira.
Zilda Ferreira - Equipe do Blog EDUCOM


Lula: nordestino, operário, brasileiro
Por Emir Sader, cientista político e colunista da Carta Capital

Fomos nos acostumando tanto com o sucesso de Lula, seja no seu governo, seja na projeção internacional, que às vezes não temos suficientemente presente todas as dimensões desse fenômeno. Pudemos entrevistá-lo e nos darmos conta do amadurecimento político com que Lula chega ao fim do mandato, o entusiasmo com que termina esses impressionantes 8 anos e as qualidades que lhe permitiram, em uma arquitetura genial, ser o artífice da candidatura da Dilma.

Solicitamos a entrevista, conseguida para três dias antes das eleições, horas depois de Lula ter chegado do penúltimo comício, em Sergipe, e horas antes do último, no ABC (ele promete seguir fazendo passeatas silenciosas – permitidas pela legislação eleitoral).

Quisemos que fosse uma modalidade mais ampla, democrática. Para isso, convidamos os dois principais diários de esquerda do continente – Página 12, da Argentina, que mandou o melhor jornalista argentino da atualidade, Martin Granovski, e La Jornada, do México, que mandou sua notável diretora, Carmen Lira. Ambos tem tiragens importantes – La Jornada é o segundo em tiragem no México, com 8 edições regionais -, com sites com entradas diárias muito grandes, publicações que destoam claramente do resto da imprensa dos seus países, muito similar à nossa.

Por outro lado, quisemos abrir consultas com os leitores sobre as perguntas que gostariam de fazer a Lula, sabendo que seria impossível fazê-las todas, pela quantidade, mas para sentir os temas principais de interesse dos leitores. Eu disse a Lula que, no momento do início da entrevista, já havia mais de 250 perguntas, que nos comprometíamos a fazer-lhe chegar todas por escrito.

Nos reunimos com Lula, os três, alternando as perguntas e às vezes estabelecendo um diálogo. Assistiram ou passaram em algum momento, Gilberto Carvalho, Franklin Martins, Alexandre Padilha e Marco Aurélio Garcia. No final pudemos conversar um pouco em off com o Lula. Na saída já nos entregaram o DVD com a gravação integral da reunião, nos enviaram fotos e mais tarde a entrevista integralmente degravada.

Claramente o tema das comunicações foi dos mais reiterados, como se pode ver pela íntegra da entrevista publicada. Quisemos que fosse publicada na íntegra. Esta também deve ser uma prática da imprensa alternativa, não se dar o direito de selecionar o que parece a editores valer a pena submeter aos leitores. A internet não deve ser só um meio tecnicamente diferenciado, mas uma forma diferente, pluralista, alternativa, de fazer comunicação.

Apesar das intensas atividades e emoções correspondentes, Lula estava com ótimo ânimo, coerente com o tamanho da vitória que se aproxima. Despreocupado se a vitória se dará no primeiro turno – hipótese claramente mais provável – ou no segundo, mas seguro de que termina seu mandato – como disse ele, onde muitos nem começaram – realizando o fundamental com que se comprometeu – a prioridade do social era a substância do discurso na primeira campanha vitoriosa.

Nos acostumamos – como dizia no começo deste texto – com esse sucesso, mas é bom parar um pouco e pensar suas reais dimensões e facetas. Nos esquecemos, de tanto ter incorporado, o verdadeiro peso de Lula ter duas determinações essenciais – imigrante nordestino e operário. Duas marcas discriminadas e marginalizadas no Brasil. Nos meus anos 50, os nordestinos – chamados de "cabeças-chata", "paraíbas" – eram a categoria mais baixa da ordem social. Sua imagem cotidiana era a do trabalhador da construção civil – sem casa, sem identidade, quase anônimo. Pertenciam àquela imensa leva de imigrantes que, com as terríveis secas do nordeste nos anos 50, mais o imenso boom econômico de São Paulo – “A cidade que mais cresce no mundo, constroem-se quatro casas pro hora”, se propalava, orgulhosamente, sem a consciência das monstruosidades que esse crescimento rápido e desordenado estava produzindo.

Mesmo sendo operário, do setor tecnologicamente mais avançado da economia – a industria automobilística chegou a representar, direta ou indiretamente, ¼ do PIB brasileiro -, pertencia a uma categoria que nunca foi devidamente valorizada no Brasil. Foram poucas gerações como a de Lula, com o processo industrial em expansão, com a valorização da imagem do operário. Logo veio a ditadura, depois o neoliberalismo e a desqualificação do trabalhador, do mundo do trabalho, do desenvolvimento econômico.

Pois é Lula, imigrante nordestino, operário, que personificou esses 8 anos importantíssimos para resgatar o Brasil, rebaixado e avacalhado por Collor e FHC. Para resgatar o Estado brasileiro, um modelo de desenvolvimento econômico e social que permite, pela primeira vez, diminuir a desigualdade social no país mais desigual do continente mais desigual do mundo, para levar adiante uma política internacional soberana, centrada no Sul do mundo.

Lula sai mais fresco do que quando entrou no governo. Dinâmico, mais experiência, com ar de estadista, de construtor de um projeto hegemônico, com um profundo sentimento brasileiro e latinoamericano, com amor pela África, com o orgulho de que o povo brasileiro o sinta como um deles, com o sentimento de voltar para São Bernardo e tomar umas biritas com os mesmos amigos que deixou quando veio a Brasília se tornar o primeiro presidente operário, o primeiro a eleger seu sucessor, o primeiro a promover a eleição de uma mulher como presidente do Brasil.

Esse é o Lula que encontramos ontem – cuja entrevista pode ser lida integralmente na Carta Maior -, que vota no domingo em São Bernardo, para onde irá Dilma, depois de votar em Porto Alegre, viajando ambos no final da tarde para Brasília, esperar os resultados que devem consagrar nas urnas o melhor governo que o Brasil já teve e apontar para a consolidação da construção de uma sociedade justa, solidária e soberana. Esse Lula, a encarnação mesma do brasileiro, do que de melhor têm os brasileiros, essa Dilma, que representa a trajetória digna de uma militante da luta contra a ditadura, de construtora desse Brasil pelo qual lutávamos e continuamos lutando, mudando os métodos de luta, mas nunca mudando de lado – como ela gosta de destacar.
Leia aqui a íntegra da entrevista de Lula. Saudações educomunicativistas.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

À NAÇÃO

Por Emir Sader

Em uma democracia nenhum poder é soberano. Soberano é o povo.
É esse povo – o povo brasileiro – que irá expressar sua vontade soberana no próximo dia 3 de outubro, elegendo seu novo Presidente e 27 Governadores, renovando toda a Câmara de Deputados, Assembléias Legislativas e dois terços do Senado Federal.
Antevendo um desastre eleitoral, setores da oposição têm buscado minimizar sua derrota, desqualificando a vitória que se anuncia dos candidatos da coalizão Para o Brasil Seguir Mudando, encabeçada por Dilma Rousseff.
Em suas manifestações ecoam as campanhas dos anos 50 contra Getúlio Vargas e os argumentos que prepararam o Golpe de 1964. Não faltam críticas ao “populismo”, aos movimentos sociais, que apresentam como “aparelhados pelo Estado”, ou à ameaça de uma “República Sindicalista”, tantas vezes repetidas em décadas passadas para justificar aventuras autoritárias.
O Presidente Lula e seu Governo beneficiam-se de ampla aprovação da sociedade brasileira. Inconformados com esse apoio, uma minoria com acesso aos meios, busca desqualificar  esse povo, apresentando-o como “ignorante”, “anestesiado” ou “comprado pelas esmolas” dos programas sociais.
Desacostumados com uma sociedade de direitos, confunde-na sempre com uma sociedade de favores e prebendas.
O manto da democracia e do Estado de Direito com o qual pretendem encobrir seu conservadorismo não é capaz de ocultar a plumagem de uma Casa Grande inconformada com a emergência da Senzala na vida social e política do país nos últimos anos. A velha e reacionária UDN reaparece “sob nova direção”. Em nome da liberdade de imprensa querem suprimir a liberdade de expressão. A imprensa pode criticar, mas não quer ser criticada. É profundamente anti-democrático – totalitário mesmo – caracterizar qualquer crítica à imprensa como uma ameaça à liberdade de imprensa.
Os meios de comunicação exerceram, nestes últimos oito anos, sua atividade sem nenhuma restrição por parte do Governo.
Mesmo quando acusaram sem provas.Ou quando enxovalharam homens e mulheres sem oferecer-lhes direito de resposta.Ou, ainda, quando invadiram a privacidade e a família do próprio Presidente da República.
A oposição está colhendo o que plantou nestes últimos anos.
Sua inconformidade com o êxito do Governo Lula, levou-a à perplexidade. Sua incapacidade de oferecer à sociedade brasileira um projeto alternativo de Nação, confinou-a no gueto de um conservadorismo ressentido e arrogante.
O Brasil passou por uma grande transformação.Retomou o crescimento. Distribuiu renda. Conseguiu combinar esses dois processos com a estabilidade macroeconômica e com a redução da vulnerabilidade externa. E – o que é mais importante – fez tudo isso com expansão da democracia e com uma presença soberana no mundo.
Ninguém nos afastará desse caminho.
Viva o povo brasileiro.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A prostituição n(d)a imprensa

Por Emir Sader

Ocupa quase três páginas diárias no jornal, sob o título Relax, com mais de 200 anúncios de prostitutas se oferecendo, das formas mais diversas. Oferecem-se, desde uma “paraguaia com dificuldades econômicas” até brasileiras que anunciam seus dotes, passando por uma “agência de contatos (sic) necessita senhoritas”, explicitando: “Experimente conosco, notará a diferença. Inclui alojamento.”

A coluna é do jornal El País, o de maior circulação na Espanha, de orientação socialista neoliberal. O negócio do sexo e sua publicidade rendem 50 milhões de euros por dia, 18 bilhões de euros por ano. 90% das prostitutas envolvidas são estrangeiras, metade delas são sulamericanas, 13% menores de idade. 300 mil mulheres são exploradas sexualmente na Espanha. 40 milhões de euros são arrecadados por jornais como El Pais
O governo espanhol, através do seu Ministério da Igualdade, dirigido por uma mulher, Bibiana Aído, tenta, há três anos, encontrar as formas de proibir esse tipo de publicidade, sem sucesso. “...enquanto continuem existindo anúncios de contatos na imprensa séria se estaria contribuindo para a normalização da exploração sexual”, razão pela qual deveriam ser eliminadas, afirma ela, que considera que os anúncios de prostituição “são uma vergonha” e “atentam contra a dignidade da mulher”.

Mas o Ministério que ela dirige busca formas legais que permitam atuar contra essa cínica atividade comercial da imprensa considerada “séria”, que resiste, alegando a “liberdade de expressão” – neste caso, significativamente vinculada, de forma direta à prostituição. Apelou-se para a “auto regulação”, tão a gosto os dos donos das empresas de comunicação, tanto lá, como aqui. Dois jornais – Público, de esquerda, e La Razón, nacionalista – decidiram que não aceitariam esse tipo de publicidade, mas os outros jornais continuaram a publicar e auferir os correspondentes milhões de euros, que lhes ajudam a enfrentar a crise financeira que afeta a todas as empresas de comunicação. Eles demandam “compensação financeira” – como ocorreu na França, para deixar de promover a prostituição, incluído a infantil, revelando o tipo de caráter, de moral que orienta aos donos da mídia privada. Justamente quando o governo promove um drástico corte de recursos sociais, vêm os empresários privados da mídia pedir essa “compensação”. Até nisso e nessa hora, querem faturar o deles.

Às vezes imprensa privada e prostituição tem muito mais em comum do que simplesmente a mercantilizaçã o da informação e a venda dos espaços para as oligarquias políticas tradicionais.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Chile: duas visões sobre a eleição de domingo

O descanso do condor

do Oleo do Diabo
Arriscado usar, numa crônica sobre política latino-americana, o nome condor. Apesar de ainda ser um símbolo de liberdade e independência, a bela ave das cordilheiras andinas teve seu nome estigmatizado pela homônima operação de contra-insurgência realizada coletivamente pelas piores ditaduras da região. Mas eu insisto. Recuso-me a entregar tão facilmente um arquétipo poderoso e popular às mãos torpes de forças derrotadas. Ave mais nobre e mais livre das Américas, o condor é o maior pássaro do planeta. Suas asas têm envergadura superior a três metros, permitindo que ele voe longas distâncias sem sequer movimentá-las. O condor pode voar até trezentos quilômetros sem descanso. Mas o que isso significa perante a imensidão continental das montanhas onde ele vive? Em algum momento, o orgulhoso pássaro tem que descer e descansar.

A derrota de Eduardo Frei é o descanso do condor. Por mais competente que seja uma agremiação partidária, sempre haverá um período de cansaço, de esgotamento, de ânsia pelo novo. A esquerda chilena não foi derrotada neste domingo. Ganhou um desafio. Haveria derrota se o legado da esquerda chilena fosse um país devastado econômica e socialmente, disso resultando uma vitória eleitoral esmagadora para a oposição. Nada disso aconteceu no Chile. A esquerda entrega um país com índices solidamente positivos e perdeu por poucos milhares de votos. Saiu por cima, com dignidade e respeito. Não se radicalizou. Não caiu em armadilhas maniqueístas, realizando avanços onde devia fazê-los e mantendo políticas que achou sensato conservar.

As grandes mudanças não são necessariamente inversões. Nenhuma instância é mais dialética que a política. Todo governo é simultaneamente continuidade e superação. Ou continuidade e regresso.

É válido comparar o Chile ao Brasil. Os formuladores da campanha de Dilma Rousseff terão à sua disposição o exemplo da derrota da esquerda chilena para se precaverem contra algo semelhante por aqui.

*

A esquerda latino-americana acumulou, nos últimos anos, uma longa série de vitórias. Muito além do que os mais otimistas jamais esperavam. Quem imaginaria, dez ou quinze anos trás, que a esquerda ganharia as eleições presidenciais em quase todos os países do continente? E que a primeira década do novo século, após os trágicos anos 90, assistiriam a um declínio da miséria tão acentuado?

Essas vitórias sucessivas, todavia, são o prefácio de derrotas futuras. É a lei da vida. A derrota no Chile serve à esquerda como advertência de seu próprio declínio. Ingenuidade achar que o PT ou qualquer outro partido de esquerda governará o Brasil indefinidamente. Então achei esse poema de um chileno que ganhou o Nobel de literatura, o socialista Pablo Neruda, que fala da necessidade de cairmos de vez em quando para não perdemos a perspectiva da altura. Ou mesmo por razão nenhuma. Porque há mistérios na vida que não compreendemos e seria arrogância e loucura pretender controlar tudo o que acontece. O poema alude também às desgraças políticas (e humanas) que varreram o continente. "Os copos se enchem e voltam / naturalmente a estar vazios / e às vezes de madrugada / morrem misteriosamente. Os copos e os que beberam."

A esquerda latino-americana não perdeu no Chile, porque sua maior vitória ainda é válida. Os gritos de júbilo pela volta da democracia ainda ecoam nas escarpas de Machu Picchu. As ditaduras direitistas não voltarão mais. E se voltarem encontrarão um ambiente social e institucional muito mais preparado para enfrentá-las.

Os povos latino-americanos são pacientes e fortes. Já enfrentaram séculos de opressão, miséria e totalitarismo. Não será a eleição pontual de um conservador que abaterá o seu espírito endurecido por tantos anos de sofrimento. Sem dúvida, tudo está muito bem; e tudo - diz Neruda - está muito mal.

De qualquer forma, vinte anos no poder é um sonho ainda distante da esquerda brasileira. Lula teve oito. Ainda teremos que nos preparar muito para sermos capazes de voar tão alto e tão longe quanto o condor andino.

O Berlusconi chileno

do Blog do Emir Sader
De tanto considerar-se um país da OCDE, distanciado da América Latina, o “tigre latinoamericano”, o Chile ganhou um Berlusconi. Esse é o molde de Sebastián Piñera, recém eleito presidente do Chile, fazendo com que a direita volte ao governo – depois de ter ocupado violentamente o poder, mediante uma ditadura militar, de 1973 a 1990.

Depois dos ditadores militares que representaram os interesses da direita e dos EUA na região, o neoliberalismo projetou um outro tipo de líder da direita: o empresário supostamente bem sucedido. Roberto Campos, entre outros, já dizia que o Estado e as empresas estatais deveriam funcionar com o mesmo critério das privadas: a busca do lucro, o critério custo-benefício, a competitividade. Empresas estatais deficitárias deveriam ser fechadas ou privatizadas – junto com as rentáveis também, já que não competiria ao Estado essa função.

Berlusconi foi eleito e reeleito, entre outras imagens, por essa: o empresário mais rico, o supostamente mais bem sucedido, da Itália. “Se deu certo dirigindo suas empresas, vai dar certo no Estado” – conforme a pregação liberal. “Vai passar o Estado a limpo”, “Vai cortar os gastos inúteis” (isto é, os não rentáveis economicamente). O Estado funcionar conforme o custo-benefício significa cortar recursos para políticas sociais, paga salários dos fucionários públicos, para investimentos de infra-estrutura. Daí o sucateamento do Estado, as privatizações, a mercantilização das relações sociais.

O empresário de sucesso no mercado seria o melhor agente para “passar a limpo” o Estado, fazer o tal “choque de gestão” – que os tucanos adoram. Aqui mesmo eles já apoiaram Antonio Ermírio de Morais, contra seu atual aliado, Orestes Quércia, para o governo de São Paulo.

No Chile, José Piñera, irmão e sócio do eleito presidente do Chile, foi o introdutor das malditas “reformas laborais”, um dois eixos do neoliberalismo, com seu suposto fundamental: gastar menos com remuneração salarial e elevar a superexploração do trabalho, como outras forma de transferência de recursos para os grandes empresários.

O Grupo Piñera ficou conhecido no Chile como dos que mais fez pela introdução do cartão de crédito no Chile, porém o grosso dos seus esforços esteve concentrada na expansão da Lan Chile, com a criação da Lan Peru e a compra de outras empresas latinoamericanas de aviação. Para se assemelhar mais ainda a Berlusconi, ainda que não seja torcedor do Colo-Colo, comprou o clube, como quem compra uma fábricas de empanadas.

Piñera não esconde suas afinidades com o presidente colombiano, Uribe, com quem tratará de fazer dobradinha, tentando isolar a Equador e a Bolívia na região andina e se apresentar, junto com o Peru, como um pólo ortodoxo neoliberal, intensificando as relações de livre comércio com os EUA. Mal sabe ele que os tempos de auge do neoliberalismo já ficaram para trás, que aventurar-se por esse caminho é deixar a economia chilena ainda mais fragilizada diante dos continuados efeitos da crise internacional, ainda para um pais que tem um TLC com os EUA – eixo dessa crise.

A derrota é muito dolorosa para o povo chileno. Mesmo se não colocássemos os governos da Concertação no bloco progressista na região – porque privilegiaram o Tratado de Livre Comércio com os EUA, mantiveram uma política econômica ortodoxa -, toda a esquerda sai derrotada. Porque, apesar das debilidades dos governos da Concertação – refletido agora no voto majoritário da direita, que incorpora amplos setores populares -, a esquerda não soube construir, nas duas décadas de democratização, uma alternativa antineoliberal no Chile. O povo chileno pagará caro esse erro da esquerda, que agora tem, pelo menos, a possibilidade de colocar em questão o modelo herdado do pinochetismo.

Os momentos de balanço de derrotas como essa se prestam para as divisões, para os oportunismos, para os radicalismos verbais. A esquerda chilena pode olhar para a América Latina para ver distintas expressões de governos populares e de blocos sociais e políticos que levam a cabo esses governos, como referência, para que o Chile volte a assumir seu lugar no processo de integração regional e de construção de alternativas efetivamente de esquerda, nas terras de Allende, Neruda e Miguel Enriquez.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Médicos do povo para o povo

do Blog do Emir
Há 10 anos que se estão formando as primeiras gerações de médicos de origem pobre na América Latina. Não estão sendo formados pelas excelentes universidades publicas latinoamericanas, que têm os melhores cursos tradicionais de medicina do continente. Nem falar das universidades privadas.

Eles estão sendo formados pelas Escolas Latinoamericanas de Medicina, projeto iniciado há 10 anos em Cuba e que agora já conta com uma Escola similar na Venezuela e tem projeto de ampliar-se para países como Bolívia e Equador. São selecionados estudantes por cotas de movimentos sociais - originários do movimento camponês, do movimento negro, do movimento sindical, do movimento indígena e de outros movimentos sociais -, se tornam alunos do melhor curso de medicina social do mundo e retornam a seus países para praticar os conhecimentos adquiridos não na medicina privada, mas na medicina social, pública, nos lugares que os nossos países mais precisam, sem contar normalmente com os médicos formados nas universidades tradicionais.

Cuba transformou uma antiga instalação militar – a Academia Naval Granma – em uma universidade médica latinoamericana, para que milhares de jovens privados de estudar medicina nos seus países, possam ter acesso a esse curso em Cuba e retornem a seus países para atender necessidades que não são contempladas pela medicina tradicional.

Além da melhor medicina social que se pode dispor hoje no mundo, os alunos recebem formação histórica sobre o nosso continente, respeitando-se as convicções – políticas, religiosas – de cada aluno. “Médicos dispostos a trabalharem onde for preciso, nos mais remotos cantos do mundo, onde outros não estão dispostos a ir. Esse é o médico que vai ser formar nesta Escola” – dizia Fidel na inauguração da Escola.

A primeira turma se formou em 2005. Formar um médico nos EUA custa não menos de 300 mil dólares. Cuba está formando atualmente mais de 12 mil médicos para países do Terceiro Mundo, em uma contribuição inestimável para os povos desses países. Mesmo passando dificuldades econômicas nas duas ultimas décadas, Cuba não diminuiu nenhuma vaga na Escola Latinoamericana de Medicina – como, aliás, nenhuma vaga nas escolas cubanas, nem nenhum leito em hospital.

Desde a formação da primeira turma, em 2005, graduaram-se médicos de 45 países e de cerca de 84 povos originários. Formaram-se 1496 médicos em 2005, 1419 em 2006, 1545 em 2007, 1500 em 2008, 1296 em 2009. Os três países que tiveram mais médicos formados na Escola são Honduras, com 569, Guatemala, com 556 e Haiti, com 543. Atualmente mais de 2 mil alunos estudam na Escola. A procedência social deles é em sua maioria operários e camponeses. As religiões predominantes são a católica e a evangélica.

A Escola em Cuba – em uma cidade contigua a Havana – é integrada por 28 edificações numa área de mais de um milhão de metros quadrados, onde os estudantes recebem o curso pré-medico e os dois primeiros anos do curso de medicina, de ciências básicas. Depois os alunos recebem o “ciclo clínico” nas 13 universidades médicas existentes em Cuba. O corpo geral de professores é de mais de 12 mil.

O Brasil também já conta com cinco gerações de médicos, formados na melhor medicina social, sem que possam exercer a profissão, propiciada pela generosidade de Cuba. Os Colégios Médicos tem conseguido bloquear esse beneficio extraordinário para o povo brasileiro, alegando que o currículo em que se formara, não corresponde exatamente ao das universidades brasileiras – uma forma corporativa de defender seus privilégios.

As nossas universidades públicas costumam ter as vagas ocupadas por alunos que se preparam muito melhor que a grande maioria, por dispor de recursos econômicos que lhes possibilitam ter formação muito superior às dos outros. Assim, em geral tem origem na classe média alta e na burguesia, que desfrutam da melhor formação que as universidades públicas possuem, gratuitamente, sem que a isso corresponda a contrapartida de exercer medicina social, nas regiões em que o país mais necessita.

Essas instituições corporativas não devem se preocupar, as centenas de médicos formados na Escola Latinoamericana de Medicina não abrirão consultórios nos Jardins de São Paulo, na zona sul do Rio ou em outras regiões ricas das capitais brasileiras. Eles irão fazer a medicina social que o Brasil precisa, atendendo a demandas que não são atendidas pelos médicos formados nas melhores universidades públicas brasileiras, mas que derivam seus conhecimentos para atender a clientelas privadas, em condições de pagar consultas e tratamentos caros.

As negociações para o reconhecimento dos diplomas dos jovens médicos solidários formados em Cuba estão em desenvolvimento, com apoio do governo brasileiro, mas ainda não chegaram a uma solução que permita o aporte dessas primeiras gerações de médicos brasileiros de origem popular.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

A Bolívia sumiu do noticiário da Globo, da Veja e dos jornalões. Entenda

Por sinal já está acontecendo o mesmo com Honduras, à medida que as pressões internacionais e as negociações para a superação do golpe de Estado (chamado de "crise" por alguns...) apontam para o retorno do presidente constitucional ao poder, o que não interessa nem um pouco aos arautos da violência antidemocrática e antipovo encastelados nas redações. Agora a ordem é falar da classificação hondurenha à Copa do Mundo e dizer que esse fato "está eclipsando o noticiário da crise". Voltando à Bolívia, veja neste artigo de Emir Sader como o governo de Evo Morales (foto) venceu o separatismo golpista e as direitas retrógradas e começa a mudar - literalmente - a cara da Bolívia

Sapatos ou sandálias
publicado em 13/10/2009 no Blog do Emir

“Melhor um mafioso de sapato que um ignorante de sandália.” O comentário preconceituoso foi feito por uma mulher branca, no vôo de Santa Cruz de la Sierra a Cochabamba. Dá uma idéia do sentimento dessa minoria branca, que sempre governou a Bolívia, durante séculos, ao sentir que o país lhes tinha sido expropriado pelas mãos da grande maioria de povos indígenas – 64% da população se reconhecem como de origem indígena – aymaras, quéchuas, guaranis ou de outras nacionalidades -, mas nunca tinham governo o país.

Na época da campanha eleitoral havia uma charge em um jornal boliviano, em que quatro mulheres brancas jogavam baralho, quando uma delas pergunta:

- Mas um índio pode ser presidente?

Ao que respondeu uma outra:

- Sim, da Índia.


A forma usual de se dirigir a Evo Morales, presidente da república, é chamá-lo de “esse índio de merda”. No ano passado, na praça central de Cochabamba, estudantes brancos submeteram índias e índios a vexames públicos, violentamente. O racismo da direita, da imprensa e dos governos da região oriental é extremado.

Esse sentimento se aguçou quando as pesquisas eleitorais confirmam o que as eleições do ano passado já haviam revelado: o governo de Evo Morales goza de ampla maioria no país e desta vez deve conseguir não apenas a reeleição e repetir a maioria na Câmara de Deputados, mas conquistar a maioria do Senado, talvez até com 2/3 dos parlamentares. A oposição, derrotada politicamente, concorre com vários candidatos, sempre muito atrás – mesmo somados – da votação prevista para Evo.


Um deles, candidato também nas eleições passadas, Samuel Doria, é quem detêm a marca da Burger King na Bolívia. Seu lema, pintado nas paredes daqui de Cochabamba: “Fazer Bolívia voltar a trabalhar”. Expressa outro preconceito: o de que a região ocidental do país, em que está La Paz e os estados de maioria esmagadora de indígenas, vivem do Estado, de políticas sociais, de subsídios, etc., enquanto o dinamismo e o trabalho ficariam por conta da região majoritariamente branca – a região oriental.

Depois de tentativas de deslegitimação do governo, promovendo projetos autonômicos nas províncias, de forma violenta, a direita se viu derrotada na consulta sobre confirmação de mandatos em agosto do ano passado. Diante dos resultados, promoveu atos violentos de ocupação de prédios do governo federal, agressão a fucnionarios públicos, até que um dos governadores da região oriental, do estado de Pando -, reprimiu uma mobilização de camponeses, matando a vários deles. Isso por si só já gerou seu isolamento, mas o governo passou a atuar, com a prisão do governador e uma grande mobilização de 100 mil pessoas dirigidas por Evo Morales em La Paz. A oposição passou à defensiva, derrotada politicamente. Um dos reflexos dessa derrota é não ter conseguido se unificar e lançar vários candidatos.

A vitória de Evo Morales, com maioria – com a possibilidade de chegar a 2/3 no Senado – permitirá que todo o processo, recém iniciado, de refundação do Estado boliviano, com todo o novo embasamento legal que isso requer, poderá ser feito conforme as orientações do governo. A direita ainda não está derrotada economicamente, dispõe de grande poder econômico – ainda que enfraquecido – e do poder midiático, graças ao monopólio que exerce, tal como acontece nos outros países do continente.

Mas, a três anos e meio da sua primeira eleição, o governo boliviano caminha, seguro, para a sua consolidação. Elabora neste momento uma lei de gestão pública do novo Estado multinacional e autonômico, avançando no projeto de refundação do Estado boliviano. O ex-presidente Sanchez de Losada, refugiado nos EUA, com pedido de extradição pelo governo boliviano para responder na Justiça pelas dezenas de mortes de responsabilidade do seu governo, quando tentava evitar sua queda, representa bem o “mafioso com sapato”. Evo, de sandálias, a saberia indígena, camponesa, popular, que para os preconceitos racistas aparece como “ignorância”.