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domingo, 16 de fevereiro de 2014

O que nos mentem sobre a economia

01/02/2014 - Mentiras propagadas pelo pensamento econômico dominante
- Vicenç Navarro (*) - Carta Maior

Grande parte dos argumentos mostrados pelos meios de informação e persuasão econômicos para justificar certas políticas são pura ideologia cheia de mentiras.

Permita-me, senhor leitor, que eu converse com você como se estivéssemos tomando um café, explicando-lhe algumas das maiores mentiras apresentadas diariamente no noticiário econômico.

Você deveria ter consciência de que grande parte dos argumentos mostrados pelos maiores meios de informação e persuasão econômicos do país para justificar as políticas públicas ora implementadas são posturas claramente ideológicas, que não se sustentam com base na evidência científica existente.

Vou citar algumas das mais importantes, mostrando que os dados contradizem aquilo que se diz.

E também tentarei explicar por que continuam repetindo essas mentiras, apesar de a evidência científica questioná-los, e com que finalidade elas são apresentadas diariamente a você e ao público.

Comecemos por uma das mentiras mais importantes, que é a afirmação de que os cortes de gastos nos serviços públicos do Estado de bem-estar social – tais como saúde, educação, serviços domésticos, habitação social e outros (que estão prejudicando enormemente o bem-estar social e a qualidade de vida das classes populares) – são necessários para que o déficit público não aumente.

E você se perguntará: E por que é tão ruim que o déficit público cresça?”.

E os reprodutores do senso comum lhe responderão que o motivo de se reduzir o déficit público é que o crescimento desse déficit determina o crescimento da dívida pública, que é o que o Estado tem que pagar (predominantemente aos bancos, que têm uma quantia em torno de mais da metade da dívida pública na Espanha) por ter pedido emprestado dinheiro dos bancos para cobrir o rombo criado pelo déficit público.

Reforça-se, assim, que a dívida pública (considerada um peso para as gerações futuras, que terão de pagá-la) não pode continuar crescendo, devendo-se, para isso, reduzi-la diminuindo o déficit público.

Isso quer dizer, para eles, cortar, cortar e cortar o Estado de bem-estar até o ponto de acabar com ele, que é o que está acontecendo na Espanha.

Os argumentos utilizados para justificar os cortes não são críveis.
  
O problema com esta postura é que os dados (que o senso comum oculta ou ignora) mostram exatamente o contrário.

Os cortes são enormes (nunca foram tão grades durante a época democrática) e, ainda assim, a dívida pública continua crescendo e crescendo.

Veja o que está acontecendo na Espanha, por exemplo, com a saúde pública, um dos serviços públicos mais importantes e mais demandados pela população.

O gasto público com saúde enquanto parte do PIB se reduziu em torno de 3,5% no período 2009-2011 (quando deveria ter crescido 7,7% durante esse mesmo período para chegar ao gasto médio dos países de desenvolvimento econômico semelhante ao nosso), e o déficit público diminuiu, passando de 11,1% do PIB em 2009 para 10,6% em 2012.

A dívida pública não baixou, mas continuou aumentando, passando de 36% do PIB em 2007 para 86% em 2012.

Na verdade, a causa do aumento da dívida pública se deve, em parte, à diminuição do gasto público.

Como isso pode acontecer?, você se perguntará. A resposta é fácil de enxergar.

A diminuição do gasto público implica a redução da demanda pública e, com isso, a diminuição do crescimento e da atividade econômica, fazendo com que o Estado receba menos recursos através de impostos e taxas. Ao receber menos impostos, o Estado de se endivida mais, e a dívida pública continua crescendo.

Desnecessário afirmar que o maior ou menor impacto que estimula o gasto público depende do tipo de gasto. Mas os cortes são nos serviços públicos do Estado de bem-estar, que são os que criam mais emprego e que estão entre os que mais estimulam a economia.

Permita-me repetir essa explicação devido à sua enorme importância.

Quando o Estado (tanto central como autônomo e local) aumenta o gasto público, aumenta a demanda de produtos e serviços, e com isso, o estímulo econômico.

Quando reduz, diminui a demanda e o crescimento econômico, fazendo com que o Estado receba menos fundos.

É aquilo que, na terminologia macroeconômica, se conhece como o efeito multiplicador do gasto público.

O investimento e o gasto público facilitam a atividade da economia, o que é negado pelos economistas neoliberais (que se promovem, em sua grande maioria, pelos maiores meios de informação e persuasão do país), apesar da enorme evidência atestada pela literatura científica (veja meu livro Neoliberalismo y Estado del Bienestar, editora Ariel Económica, 1997. Em português, Neoliberalismo e Estado de bem-estar).

Outra farsa: gastamos mais do que temos

O mesmo senso comum está dizendo também que a crise se deve ao fato de termos gastado demais, acima de nossas possibilidades. Daí a necessidade de apertar os cintos (que quer dizer cortar, cortar e cortar o gasto público).

Via de regra, essa postura é acompanhada da afirmação de que o Estado tem que se comportar como as famílias, ou seja, “em nenhum momento pode gastar mais do que recebe”.


O presidente Rajoy [E] e a Sra. Merkel [D] repetiram essa frase milhares de vezes. 

Essa frase tem um componente de hipocrisia e outro de mentira. Deixe-me explicar o porquê de cada um deles.

Eu não sei como você, leitor, comprou seu carro. Mas eu, como a grande maioria dos espanhóis, comprou o carro a prazo, quer dizer, usando crédito. Todas as famílias se endividaram, e assim funciona o orçamento familiar.

Pagamos nossas dívidas conforme entram os recursos que, para a maior parte dos espanhóis, vem do trabalho. E daí surge o problema atual.

Não é que as pessoas gastaram além de suas possibilidades, mas foram suas rendas e suas condições de trabalho que pioraram mais e mais, sem que a população fosse responsável por isso.

Na verdade, os responsáveis por isso acontecer são os mesmos que estão dizendo que é preciso cortar os serviços públicos do Estado de Bem-estar e também diminuir os salários.

E agora têm a ousadia (para colocar de maneira amável) de dizer que você e eu somos os culpados porque gastamos mais e mais. Eu não sei você, mas eu garanto que a maioria das famílias não comprou e não acumulou produtos como loucos. Pelo contrário. 

A mesma hipocrisia existe no argumento de que o Estado gastou muito.

Veja você, leitor, que o Estado espanhol gastou muito – não muito mais –, mas muito menos do que outros países de nível de desenvolvimento econômico semelhante.

Antes da crise, o gasto público representava somente 39% do PIB, enquanto a média da UE-15 era de 46% do PIB.

Na época, o Estado deveria ter despendido, no mínimo, 66 bilhões de euros a mais no gasto público social para ter gastado o correspondente ao seu nível de riqueza.

Não é certo que as famílias ou o Estado tenham gastado mais do que deveriam. Apesar disso, continuarão afirmando que a culpa é da maioria da população, que gastou muito e agora tem que apertar os cintos.

Você também provavelmente escutou que esses sacrifícios (os cortes) precisam ser feitos “para salvar o euro”.

Novamente, esta ladainha de que “estes cortes são necessários para salvar o euro” se reproduz.

Contudo, ao contrário daquilo que se anuncia constantemente, o euro nunca esteve em perigo. Não há sequer uma mínima possibilidade de alguns países periféricos (os PIGS, Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha) da zona do euro serem expulsos da moeda.

Na verdade, um dos problemas entre os muitos que estes países têm é que o euro está excessivamente forte e saudável. Sua cotação esteve sempre acima do dólar e seu poder dificulta a economia dos países periféricos da zona do euro.

E outro problema é que o capital financeiro alemão lhes emprestou, com grandes lucros, 700 bilhões de euros, e agora quer que os países periféricos os devolvam. Se algum deles deixar o euro, o sistema bancário alemão pode entrar em colapso.

O setor bancário (cuja influência é enorme) não quer nem ouvir falar da saída dos países devedores da zona do euro. Eu lhes garanto que é a última coisa que eles querem. 

Essa observação a favor da permanência no euro é certamente óbvia, e não um argumento.

Na verdade, acredito que os países PIGS deveriam ameaçar sair do euro.

Mas é absurdo o argumento que se utiliza de que a Espanha deve, ainda mais, reduzir o tempo de visita ao médico para salvar o euro (que é o código para dizer, “salvar os bancos alemães e lhes devolver o dinheiro que emprestaram obtendo lucros enormes”).

São essas as falácias constantemente expostas.

Eu lhes garanto que são apresentadas sem que sejam comprovadas por nenhuma evidencia. Isso é claro. 

A causa dos cortes 

E você se perguntará: - Por que então fazem esses cortes?

A resposta é fácil de encontrar, ainda que raramente seja vista nos grandes meios de comunicação.

É o que se costumava chamar de “luta de classes”, mas agora a mídia não utiliza essa expressão por considerá-la “antiquada”, “ideológica”, “demagógica” ou qualquer adjetivo que usam para mostrar a rejeição e desejo de marginalização daqueles que veem a realidade de acordo com um critério diferente, e inclusive oposto, ao daqueles que definem o senso comum do país.

Mas, por mais que queiram ocultar, essa luta existe.

É a luta de uma minoria (os proprietários e gestores do capital, quer dizer, da propriedade que gera rendas) contra a maioria da população (que obtém suas rendas a partir de seu trabalho).

É aquilo que meu amigo Noam Chomsky [foto] chama de guerra de classes – conforme expõe em sua introdução ao livro Hay alternativas. Propuestas para crear empleo y bienestar social en España, de Juan Torres, Alberto Garzón e eu (Em português: Há alternativas. Propostas para criar emprego e bem-estar social na Espanha).

Desnecessário dizer que essa luta de classes variou de acordou com o período em que se vive.

Esta que está acontecendo agora é diferente daquela da época de nossos pais e avós.

Na verdade, agora está inclusive mais ampla, pois não é somente das minorias que controlam e administram o capital contra a classe trabalhadora (que continua existindo), mas inclui também grandes setores das classes médias, formando as chamadas classes populares, conjuntamente com a classe trabalhadora.

Essa minoria é fortemente poderosa e controla a maioria dos meios de comunicação, e tem também grande influência sobre a classe política.

E esse grupo minoritário deseja que os salários diminuam, que a classe trabalhadora fique aterrorizada (daí a função do desemprego) e que perca os direitos trabalhistas e sociais.

E está reduzindo os serviços públicos como parte dessa estratégia para enfraquecer tais direitos.

A privatização dos serviços públicos, consequência dos cortes, também é um fator importante por permitir a entrada do grande capital (e muito particularmente do capital financeiro e bancários, e das seguradoras) nesses setores, aumentando seus lucros.

Você deve ter lido como, na Espanha, as companhias privadas de seguro de saúde estão se expandindo como nunca haviam conseguido antes. 

E muitas das empresas financeiras de alto risco (quer dizer, altamente especulativas) estão atualmente controlando grandes instituições de saúde do país graças às políticas privatizantes e aos cortes feitos pelos governos, que justificam essa medida com toda a farsa (e acredite que não há outra forma de dizer) de que precisam fazer isso para reduzir o déficit público e a dívida pública.

(*) Vicenç Navarro é catedrático de Políticas Públicas da Universidade Pompeu Fabra e Professor de Políticas Públicas na Johns Hopkins University. Site pessoal www.vnavarro.org

Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Mentiras-propagadas-pelo-pensamento-economico-dominante/7/30160

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Dia do Índio e de uma agenda de lutas

17/04/2013 - Cerca de 700 indígenas ocupam a Câmara dos Deputados
- da Redação do Brasil de Fato
- com informações do Cimi (Conselho Indigenista Missionário)

Revoltados com a criação de uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição - PEC 215, que dá ao Congresso Nacional poderes para demarcar terras indígenas, cerca de 700 indígenas ocuparam o plenário da Câmara dos Deputados.

Hoje, essa atribuição é de responsabilidade do Executivo.

Cerca de 700 indígenas transferiram o Abril Indígena para uma ocupação na Câmara dos Deputados na Esplanada dos Ministérios, no Distrito Federal nesta terça-feira (16).

A decisão foi tomada pelos indígenas durante a audiência pública convocada pela frente parlamentar em defesa dos indígenas.


O objetivo das lideranças indígenas é pressionar que a Mesa Diretora da Câmara extinga uma comissão especial criada para analisar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000 que dá ao Congresso Nacional poderes para demarcar terras indígenas - responsabilidade que hoje pertence ao Executivo, por meio da Funai.

Nós não aceitamos nenhum tipo de negociação ou diálogo referente à PEC 215.

O que nós queremos é que a Comissão seja desfeita”, disse Sônia Guajajara (foto), liderança da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).

O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB/RN) esteve presente na audiência pública depois de muita pressão do movimento indígena.

Sobre a reivindicação dos povos indígenas, apenas disse que pediria aos líderes partidários que não indicassem representantes para a comissão da PEC 215 até que a situação fosse boa para todas as partes.

Não, presidente, não aceitamos isso.

Portanto, ficaremos aqui (em ocupação ao Congresso) por tempo indeterminado”. 

Fonte:
http://www.brasildefato.com.br/node/12678

Por Antonio Fernando Araujo, do blog Educom:

Temos reproduzido aqui algumas matérias que revelam o estado precário em que se encontram, de um modo geral, não apenas as populações indígenas, mas todas - sem exceções - as comunidades tradicionais de quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores e demais excluídos, quando postos frente a frente ao avanço predador que o grande capital promove sobre essa gente, suas propriedades e culturas originais, algumas delas remontando a séculos, estejam elas situadas no campo ou nos centros urbanos.

Por certo, tal precariedade está intimamente associada ao projeto de desenvolvimento que os governos - em todos os níveis e sejam de que partido for -, conceberam e entendem ser o único e o mais adequado ou oportuno ao perfil do seu município, estado ou país.

E o que temos assistido, é essa "classe política", em conjunto com a grande mídia empresarial e, mais recentemente, com parcelas do sistema judiciário, associarem-se para servir como arautos, intérpretes, promotores e executores desse modelo em que essa população e o meio-ambiente "surgem" diante deles como um estorvo ao projetos de dominação oriundos, quase sempre, das elites financeira e empresarial.

A partir daí toda sorte de arbitrariedades, preconceitos e injustiças vêm à tona, na ânsia da posse dos recursos e das riquezas de toda espécie que, porventura, encontrem-se sob a "guarda" desses povos ou comunidades e, em muitos casos, sejam até mesmo suas fontes de sobrevivência.

"Tanto o governo como os grupos de poder que financiam a maioria dos deputados querem poder dispor das terras indígenas que estão cheias de riqueza", assinalou a jornalista Elaine Tavares, no Brasil de Fato.

O que nossos indígenas promoveram anteontem (16/4) na Câmara dos Deputados - e que serviu até para que alguns deputados assustados, protagonizassem uma ridícula fuga do plenário e procurassem abrigo em seus gabinetes - nos sirva de lição.

Independentemente da etnia - mais de 300, segundo o IBGE - a que cada um pertence, entenderam que precisam se unir, estar juntos nessas causas que transcendem a origem, a localização e os costumes e cultura de cada tribo.

Diferentemente dos partidos e da militância ditos de esquerda que sequer foram capazes ainda de, em volta da mesa, conceber uma pauta, por menor que seja, de metas e lutas comuns para fazer frente àquele projeto que, em última instância, é o mesmo do capital internacional, nossos guerreiros pintaram os corpos e como parte da mesma linguagem primitiva de suas lutas ancestrais proclamaram solene, mas em tom de guerra, "não, presidente, não aceitamos isso."

Seria então a oportunidade de fazermos coro com eles? Refletir, denunciar e nos solidarizarmos com sua luta como procuramos fazer neste blog quando reproduzimos aqui esses artigos? E de forma semelhante e em uníssono, amplificamos em bom som todas as demais demandas políticas e sociais pelas quais a nação se debate e há muito vem se manifestando?

Senadora Katia Abreu, líder do agronegócio
Cabe a todos e em especial às nossas lideranças políticas e partidárias matutar, tirar uma lição do evento e apressar o passo.

O grande capital e o conjunto de suas poderosas organizações e bem nutridas instituições estão coesos e a cada dia mais e mais bem equipados.

Do lado de cá do balcão o que vemos é a fragmentação crescente de nossas forças políticas e para isso basta que uma vírgula não seja do agrado do companheiro para que toda a ideia do indispensável acúmulo de forças se desfaça como num castelo de cartas.

Não que isso não possa ser benéfico, mas historicamente tem servido mais para que se bloqueiem as possibilidades de um consenso no que possa ser útil à luta comum do que às oportunidades de se debater politicamente a pluralidade de opiniões e a partir delas construir-se uma única força, por certo, mais robusta.

Mais do que nunca, isso se tornou uma necessidade mandatória, nem que seja para que, ao menos de longe, se possa vislumbrar alguma possibilidade de êxito nos inúmeros territórios de lutas.

Estão aí postas as lições desse "Abril Indígena", versão 2013, a da covardia dos deputados fujões e a da bravura dos guerreiros indígenas que, tanto quanto esse políticos, são antes de mais nada, cidadãos brasileiros.  

Assim, não deixe de ler:
- O índio na metrópole - Andrezza Richter, Carolina Rocha Silva e Kárine Michelle Guirau
- Abril Indígena 2013: Declaração da Mobilização Indígena Nacional em Defesa dos Territórios Indígenas
- Em defesa da terra indígena - Renato Santana

E mais:
- O futuro dos índios - Guilherme Freitas entrevista Manuela Carneiro da Cunha
- Apreensão no campo - Dom Tomás Balduíno
- Era para serem outros 500 - Cristiano Navarro
- Rio de ouro e soja - Carlos Juliano Barros


Nota:
Fotos de José Cruz, Valter Campanato e Wilson Dias, todas da Agência Brasil/ABrA, extraídas do Portal Brasil de Fato. A eventual inserção de imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

domingo, 16 de setembro de 2012

“Talvez duas crianças tenham morrido para você ter o seu celular”

11/09/2012 - Por Inés Benítez, no IPS (Inter Press Service)
- extraído do blog Sociedade dos Amigos da TV Brasil (SOA Brasil)

[Aquilo que o mundo já conhece como Holocausto Colonial (*), se reproduz tanto na Faixa de Gaza e nas Colinas de Golan quanto aqui na África. A reconquista da Líbia pelas forças armadas do ocidente, uma das poucas nações africanas que ainda esboçava uma reação aos planos de dominação imperialista e neocolonial patrocinados pelas grandes corporações capitalistas, serviu para nos dar uma ideia das características  do naco da humanidade a ser varrido do mapa para que, acima de tudo, prevaleçam os interesses do mundo abastado do dinheiro.

O artigo que aqui publicamos anteontem sobre a luta pela água no Quênia (costa oriental da África), A Água ou a Vida revela outras facetas desse processo de dominação e extermínio.

E porque possui as mesmas raízes históricas coloniais, em tudo se assemelha às guerras fraticidas que assolam a República Democrática do Congo (costa ocidental dessa mesma África), objeto do artigo de hoje sobre o coltan, esse raro e imprescindível mineral presente em todos os "brinquedinhos eletrônicos" dos dias atuais.]
(Equipe Educom)

A extração de coltan contribui para manter um dos maiores conflitos armados da África, que já causou mais de cinco milhões de mortos, êxodo em massa e violações de 300 mil mulheres nos últimos 15 anos, segundo organizações de direitos humanos. Isto foi reconhecido em 2001 pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), que confirmou a existência do “vínculo entre a exploração ilegal dos recursos naturais e a continuação do conflito na República Democrática do Congo”.

Um grupo de especialistas convocado pelo Conselho registrou até 2003 cerca de 157 empresas e indivíduos de todo o mundo vinculados, de um modo ou de outro, à extração ilegal de matérias-primas valiosas na RDC.

No Brasil, já existem mais celulares que habitantes, mas poucos consumidores sabem da exploração sangrenta na República Democrática do Congo de uma matéria-prima para esses aparelhos, o tântalo.

(Inés Benítez, no IPS)

Pode ser que duas crianças tenham morrido para você ter esse telefone celular”, disse Jean- Bertin, um congolense de 34 anos que denuncia o silêncio absoluto” sobre os crimes cometidos em seu país pela exploração de matérias-primas estratégicas como o coltan (columbita-tantalita). A República Democrática do Congo (RDC) possui pelo menos 64% das reservas mundiais de coltan, nome popular na África central para designar as rochas formadas por dois minerais, columbita e tantalita.
Da tantalita se extrai o tântalo, metal duro de transição, de cor azul acinzentado e brilho metálico, resistente à corrosão e que é usado em condensadores para uma enorme variedade de produtos, como telefones celulares, computadores e tablets, bem como em aparelhos para surdez, próteses, implantes e soldas para turbinas, entre muitos outros. “A maldição da RDC é sua riqueza. O Ocidente e todos que fabricam armas metem o nariz ali”, lamenta Jean-Bertin, que chegou há oito anos à cidade espanhola de Málaga, procedente de Kinshasa, onde vivem seus pais e dois irmãos.

A extração de coltan contribui para manter um dos maiores conflitos armados da África, que causou mais de cinco milhões de mortos, êxodo em massa e violações de 300 mil mulheres nos últimos 15 anos, segundo organizações de direitos humanos. Isto foi reconhecido em 2001 pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), que confirmou a existência do “vínculo entre a exploração ilegal dos recursos naturais e a continuação do conflito na República Democrática do Congo”. Um grupo de especialistas convocado pelo Conselho registrou até 2003 cerca de 157 empresas e indivíduos de todo o mundo vinculados, de um modo ou de outro, à extração ilegal de matérias-primas valiosas na RDC.

A exploração de coltan em dezenas de minas informais, salpicadas na selva oriental da RDC, financia os grupos armados e corrompe militares e funcionários. A extração artesanal, sem nenhum controle de qualidade, comporta um regime trabalhista próximo da escravidão e um grande dano ao meio ambiente e à saúde dos trabalhadores, incluindo crianças, segundo o documentário de 2010, Blood in the Mobile (Sangue no Celular), do diretor dinamarquês Frank Piasecki.

No entanto, fontes da indústria, como o Tantalum - Niobium International Study Center (TIC), alertam que as jazidas de coltan na RDC e de toda a região da África central estão longe de serem a fonte principal de tântalo. A Austrália foi o principal produtor desse mineral durante vários anos e mais recentemente cresceu a produção sul-americana e asiática, além de outras fontes, como a reciclagem. O TIC estima que as maiores reservas conhecidas de tântalo estão no Brasil e na Austrália, e ultimamente há informações sobre sua existência na Venezuela e na Colômbia.

A RDC tem outras riquezas naturais igualmente contrabandeadas, como ouro, cassiterita (mineral de estanho), cobalto, cobre, madeiras preciosas e diamantes. Contudo, está em último lugar no Índice de Desenvolvimento Humano 2011. Neste cenário, as denúncias da sociedade civil organizada apelam cada vez mais aos consumidores de produtos que contêm estes materiais. Na Espanha, a Rede de Entidades para a República Democrática do Congo – uma coalizão de organizações não governamentais e centros de pesquisa – lançou em fevereiro a campanha Não Com o Meu Celular, para exigir dos fabricantes o compromisso de não usarem coltan de origem ilegal.

O surgimento de novas fontes de tântalo e a reciclagem deveriam ajudar a reduzir a pressão da demanda sobre o coltan congolense. A organização Entreculturas e a Cruz Vermelha Espanhola promovem desde 2004 a campanha nacional Doe seu Celular, para incentivar a entrega de aparelhos velhos para serem reutilizados ou para reciclagem de seus componentes. Os fundos obtidos são investidos em projetos de educação, meio ambiente e desenvolvimento para setores pobres da população. Até julho foram coletados 732.025 aparelhos e arrecadados mais de um milhão de euros, contou ao Terramérica a coordenadora da campanha na Entreculturas, Ester Sanguino.

Entretanto, fundações e empresas dedicadas à reciclagem, ouvidas pelo Terramérica, concordam que seria impossível abastecer com esta fonte uma porção significativa da crescente demanda mundial por tântalo. A pressão do mercado faz com que as pessoas troquem o celular por outro mais moderno de tempos em tempos, por isso a reciclagem, mesmo feita em grande escala, não daria conta, disse ao Terramérica uma fonte da BCD Electro, empresa de reutilização e reciclagem informática e eletrônica. E a telefonia móvel é apenas um segmento das aplicações atuais do tântalo.

Apple e Intel anunciaram, em 2011, que deixariam de comprar tântalo procedente da antiga colônia belga.

Nokia e Samsung fizeram declarações similares. A Samsung assegura em sua página corporativa que tomou medidas para garantir que seus terminais “não contenham materiais derivados do coltan congolense extraído ilegalmente”. Na verdade, os códigos de conduta empresariais vieram preencher o vazio de normas taxativas.

O esforço maior é o das Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais, pois compreende todas as nações industrializadas sócias da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Porém, o longo e opaco circuito do coltan congolense torna difícil demonstrar que tais códigos são cumpridos. Os minerais explorados ilegalmente são contrabandeados através de países vizinhos, como Ruanda e Uganda, para Europa, China e outros destinos.

Os grupos rebeldes proliferam pela riqueza das terras em coltan, diamantes ou ouro”, disse ao Terramérica o coordenador da organização humanitária Farmamundi na RDC, Raimundo Rivas.

Os governos vizinhos são “cúmplices” e “até o momento tudo é apoiado e encoberto pelas empresas beneficiárias, em seu último destino, dessas riquezas”, ressaltou.

Há muitos interesses econômicos em torno do negócio do coltan”, alertou Jean-Bertin.

Enquanto isso, na RDC “as matanças são reais. O sangue está por toda parte, e, no entanto, é como se o país não existisse”.

Por isso gera expectativas a decisão da Comissão de Valores dos Estados Unidos (SEC), que, no dia 22 de agosto, regulamentou um capítulo da Lei de Proteção do Consumidor e Reforma de Wall Street, referente aos “minerais de conflitos”. A Lei 1.502 estabelece que todas as empresas nacionais ou internacionais já obrigadas a entregar informação anual à SEC e que manufaturem ou contratem a manufatura de produtos que contenham um dos quatro minerais de conflito (estanho, tântalo, tungstênio, ouro) deverão adotar medidas para determinar sua origem mediante a análise da cadeia de fornecimento.

Contudo, o primeiro informe deverá ser apresentado em 31 de maio de 2014, prazo considerado excessivo por defensores dos direitos humanos, que denunciam os crimes que continuam sendo cometidos na RDC, apesar da presença desde 2010 de uma missão de paz da ONU.

Com o olhar dominado pela raiva e sua filha de seis meses nos braços, o congolense Jean-Bertin insiste que os grupos armados “dão armas a muitas crianças e as obrigam a entrar para um ou outro bando".

Para Rivas, “a única solução é um governo forte na RDC, que possa responder aos ataques, e um apoio internacional real que penalize aquelas empresas suspeitas de importar minerais de zonas em conflito”.


Postado por SOA BRASIL
Fonte:
http://amigosdatvbrasil.blogspot.com.br/2012/09/pense-talvez-duas-criancas-tenham.html
(*) Alusão ao livro de Mike Davis, Holocaustos Coloniais