Série Água (parte 2)
Por Maria Lúcia Martins
Economia caubói
Vandana Shiva classifica como "economia caubói" o que aconteceu nos campos de mineração do oeste norte-americano. A noção caubói da propriedade privada e a lei da apropriação - Qui prior est in tempore, potior est in jure (Aquele que é o primeiro no tempo, é o primeiro no direito) - surgiu ali, estabeleceu direitos à propriedade absolutos, incluindo o direito a vender e comercializar água. E ela segue: "O sentimento caubói de que ‘poder é direito’ permitiu que os economicamente poderosos investissem em meios de apropriação de água de capital intensivo, a despeito das necessidades dos outros e dos limites dos sistemas de água. Essa fronteira lógica conferiu ao primeiro apropriador um direito exclusivo à água. A versão contemporânea da economia caubói, compara Shiva, é a investida para privatizar as fontes públicas de água. "Apresentando-se como um mercado anônimo, os ricos e poderosos usam o Estado para se apropriarem de água da natureza e das pessoas por meio da doutrina da apropriação prévia. Grupos de interesse privado ignoram sistematicamente a opção de controle comunitário sobre a água".
O tratado sobre a propriedade de John Locke legitimou efetivamente o roubo das terras comunitárias feudais do século 17. "Sempre que ele [o homem] tira um objeto do estado em que a natureza colocou e mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, torna-o assim sua propriedade". A liberdade individual era dependente da liberdade de possuir, através do trabalho, a terra, as florestas, os rios. O tratado sobre a propriedade de Locke continua a instruir teorias e práticas que corroem provisões comuns e destroem a Terra. Shiva assinala que, em termos contemporâneos, a privatização da água está baseada no artigo Tragedy of the Commons, de Garret Hardin, publicado pela primeira vez em 1968. "Hardin supõe que as terras comunitárias eram socialmente incontroladas, sistemas de acesso restrito sem qualquer conceito de posse. E Hardin vê a ausência de propriedade privada como uma receita para a ilegalidade", diz ela.
Direito à água potável e conservação
Além do Estado e do mercado, encontra-se o poder de participação da comunidade. É neste poder que se apóiam os inúmeros movimentos pelo direito à água.
Vandana Shiva afirma que "um arcabouço legal coerente para uma política justa e sustentável de uso da água poderá surgir apenas quando houver um diálogo entre o movimento contra as represas, o movimento contra os riscos ecológicos da irrigação intensiva e o movimento pelos direitos à água. A chave para ligar esses movimentos é a perspectiva ecológica, que conecta a água a suas várias funções nas bacias dos rios. Um paradigma ecológico permite uma auditoria dos projetos de água, expõe os custos escondidos de tais projetos e propõe uma alternativa para a alocação de recursos".
"O comércio de licenças de poluição viola a democracia ecológica e o direito das pessoas à água limpa por vários motivos", afirma Shiva. "Ele muda o papel dos governos de protetores dos direitos das pessoas à água para advogados dos direitos dos poluidores. Governos adotam papéis regulatórios que são anti-humanos e pró-indústrias poluidoras. Empresas tentaram reintroduzir o direto a poluir através de esforços por baixo do pano, como direitos de comercialização de produção ou licenças de comercialização de emissões de poluentes (TDPs). TDPs excluem não-poluidores e cidadãos comuns de um papel democrático ativo no controle da poluição, já que o comércio da poluição está restrito às indústrias poluidoras.
Shiva analisa que conforme as novas tecnologias substituem os sistemas de autoadministração, as estruturas de controle democráticas do povo se deterioram
e seu papel na conservação diminui. Para manter suas atividades, poluidores criaram mercados "da poluição", pagam para poluir, quando poderiam mitigar a poluição de suas atividades e mesmo evitá-la.
Sistemas de água tradicionais baseados em gestão local eram um seguro contra a escassez de água em regiões propensas à seca e instituições locais de gestão de água incluíam associações de agricultores, funcionários de irrigação local, técnicos da irrigação local, as associações de água dos povoados e o sistema de trabalho comunitário, mantido por contribuições de cada família.
Manipulação da água
Segundo Shiva, diz-se que um país enfrenta uma crise de água grave quando a água disponível é menor que mil metros cúbicos por habitante por ano. Abaixo desse ponto, a saúde e o desenvolvimento econômico de uma nação são dificultados consideravelmente. Quando a disponibilidade anual de água por habitante cai abaixo de quinhentos metros cúbicos/ano, compromete-se cruelmente a sobrevivência da população. Desde 1970, o suprimento da água global per capita diminuiu em 33% . O declínio não resulta apenas do aumento populacional, mas é agravado também pelo uso excessivo de água. Durante o último século, a taxa de retirada de água excedeu a do crescimento populacional pelo fator de 2,5.
Infelizmente, ela comenta, a globalização está revertendo os resultados das vitórias democráticas e ecológicas dos anos 1980. Falando da Índia, ela revela que a mineração está se alastrando em áreas mais vulneráveis, incluindo o Rajasthan. A tecnologia tribal não destruiu os rios e montanhas como a indústria de mineração destrói e as atividades de mineração da Balco não estão baseadas nas necessidades do povo indiano - são totalmente dirigidas pela demanda dos países industrializados cujas plantas fabris de alumínio estão fechando por razões ambientais.
Sobre a Revolução Verde, a ativista aponta os custos os custos sociais ecológicos que foram amplamente ignorados. Por sua ênfase em sementes de alta produtividade, explica Vandana, esse modelo agrícola removeu variedades locais de colheitas resistentes à seca e as substituíram por plantações que necessitam de água em abundância. A Revolução Verde, com seu uso intensivo de água, levou à extração de água em áreas onde este recurso é escasso. Antes da Revolução Verde, a água do solo era acessada por meio de tecnologias de irrigação protetoras e nativas. No entanto, essas tecnologias, que dependiam da energia humana ou animal renovável foram classificados como "ineficientes" e substituídos por motores movidos a óleo e bombas elétricas que extraíam água numa velocidade maior do que os ciclos da natureza podiam reabastecer os lençóis freáticos.
Projetos de desenvolvimento na árida África subsaariana foram fundamentais para a fome dos as 1970 e 1980. Acreditava-se que a escavação de poços fosse o melhor mecanismo para as regiões pastoris em desenvolvimento. A prática pastoril de mudar o gado para locais diferentes foi destruída com a introdução dos poços movidos a energia elétrica. O novos poços forneciam mais água do que os pastores precisavam e encorajava seu estabelecimento em uma localidade, aumentando a pressão pastoril sobre a terra. Com efeito, pastores que se estabeleceram nessas localidades pioraram o problema da desertificação; esta mudança no comportamento dos criadores ignorou tradições centenárias que asseguravam a sobrevivência sob condições de baixa disponibilidade de água.
Projetos de água gigantes, na maioria dos casos, beneficiam os poderosos e despojam os fracos.Até mesmo quando tais projetos são financiados com recursos públicos, seus beneficiários são principalmente construtoras, indústrias e grandes agricultores. Enquanto a privatização é em geral colocada sob a perspectiva do desaparecimento do Estado, o que vemos de fato é a intervenção crescente do Estado na política de Águas, subvertendo o controle comunitário das reservas desse recurso. Políticas impostas pelo Banco Mundial e por regras de liberalização do comércio desenvolvidas pela OMC-Organização Mundial do Comércio estão criando uma vasta cultura de estados corporações por todo o mundo.
* Série Água continua amanhã (24/3) com os seguintes temas: Público e privado; Situação no Brasil; e Guerras por água.