Série Água (parte 3)
Por Maria Lúcia Martins
Público e privado
Vandana Shiva nos relata que antes da chegada dos britânicos ao sul da Índia, comunidades geriam sistemas de água coletivamente por meio de um sistema chamado kudimaramath (auto-reparo). Antes do advento da legislação corporativa por parte da East Índia Company, no século 18, um camponês pagava a um fundo público trezentas mil unidades de grão que ganhasse e duzentas e cinquenta dessas unidades ficavam no povoado para a manutenção das provisões comuns e dos trabalhos públicos. Em 1830, os pagamentos dos camponeses elevaram-se a 650 unidades, das quais quinhentas e quarenta iam direto para a East India Company. Como resultado, houve aumento do pagamento e da perda de receita de manutenção os camponeses e as provisões comuns foram destruídas.
Cerca de trezentos mil reservatórios de água construídos durante séculos na Índia pré-britânica foram destruídos, afetando a produtividade agrícola e a renda dos agricultores.
A East India Company foi expulsa pelo primeiro movimento de pela independência em 1857. Em 1858, os britânicos aprovaram a Lei do Trabalho Compulsório de Madras, popularmente conhecida como a Lei Kudimaramath, determinando que os camponeses fornecessem mão-de-obra para a manutenção dos sistemas de água e irrigação. Pelo fato de o kudimaramath ser baseado na autogestão e não na coerção, a lei fracassou em mobilizar a participação da comunidade na reconstrução de provisões comuns.
Comunidades autogeridas não foram apenas uma realidade histórica, elas são um fato contemporâneo. Interferência estatal e privatização não as destruíram inteiramente. Em levantamento de nivel nacional, que cobriu distritos nas regiões tropicais secas em sete estados, N.S. Jodha chegou à conclusão de que as necessidades de combustível e forragem mais básicas dos pobres de toda a Índia continuam a ser supridas a partir de recursos vindos de propriedades públicas.
Podemos ver as semelhanças da experiência da Índia com o Brasil, onde o aumento de tarifas continua ao longo do processo de privatização de nossa água, e os preços crescentes excluem os pobres. Também tivemos e ainda temos no país, em pontos do interior, a autogestão dos recursos hídricos por comunidades. Mas, gradativamente, a autogestão foi substituída pelas companhias públicas e, hoje, por empresas privadas em boa parte vinculadas a grandes corporações transnacionais.
Situação no Brasil
A participação das empresas privadas vem crescendo cada vez mais dentro setor de saneamento básico brasileiro, que envolve tratamento de água e esgoto, e atualmente depende, essencialmente, das companhias públicas, municipais e estaduais. Algumas empresas que atuam no país são vinculadas à grandes corporações, mas esta vinculação nem sempre está explicita nos sites destas empresas.
Os dados da PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, feita pelo IBGE revelam que o percentual de domicílios ligados à rede de esgoto permanece subindo: de 51,1% (2007) para 52,5% (2008). No entanto, a proporção de domicílios ligados à rede de esgoto cai na região Norte. Em 2008, o Brasil tinha 30,2 milhões domicílios ligados à rede de esgoto, uma participação 1,4 ponto percentual maior que em 2007. O Norte, mesmo tendo a menor parcela (9,5%) de domicílios com esse serviço, teve redução de 0,5 ponto percentual, não mantendo o crescimento ocorrido entre 2006 e 2007. Nessa região cresceu 5,5 pontos percentuais a proporção de domicílios com fossa séptica (mais 308 mil). O Norte ainda possuía 1,6 milhão de domicílios sem rede coletora ou fossa séptica. O percentual de domicílios atendidos por rede geral de abastecimento de água (83,9%) também manteve-se em crescimento: mais 0,7 ponto percentual ou 1,9 milhão de unidades em relação a 2007. No Nordeste, o acréscimo foi de 2,3 pontos percentuais, ou mais 770 mil domicílios. Após alta de 0,6 ponto percentual em relação a 2007, 87,9% (50,6 milhões) dos domicílios passaram a contar com coleta de lixo. Houve altas em todas as regiões.
Os serviços de saneamento básico estão concentrados em regiões mais populosas e de maior atividade econômica. No país, os 10% de trabalhadores mais bem remunerados detêm 42,7% dos rendimentos, percentual que segue indicando a forte desigualdade da distribuição dos rendimentos, apesar de ligeiramente inferior ao de 2007 (43,3%). Em suma, poucos podem pagar pela água, e os preços praticados após a privatização, em várias partes do mundo, se elevam. No Brasil não tem sido diferente.
Em 2006, um projeto pioneiro surgiu na área de conservação da água, fundamental para uma mudança no tratamento da questão ambiental no meio rural. O piloto do projeto chamado de Produtores de Água foi desenvolvido nas bacias do rio Piracicaba, Capivari e Jundiaí, em áreas integrantes do Sistema Cantareira, prioritárias para a produção de água. Implementado por subbacias o Produtor de Água prevê apoio técnico e financeiro à execução de ações de conservação de água e solo, como a construção de terraços e bacias de infiltração, a readequação de estradas vicinais, a recuperação e proteção de nascentes, o reflorestamento de áreas de proteção permanente e reserva legal, o saneamento ambiental, etc. Prevê também o pagamento de incentivos (compensação financeira e outros) aos produtores rurais que, comprovadamente, contribuírem para a proteção e a recuperação de mananciais, gerando benefícios para a bacia e sua população. A concessão dos incentivos ocorre somente após a implantação parcial ou total das ações e práticas conservacionistas, previamente contratadas. E os valores a serem pagos aos produtores são calculados em fuçnão dos resultados: abatimento da erosão e da sedimentação, redução da poluição difusa e aumento da infiltração de água no solo. O produtor rural participa ativamente do processo, assumindo os papéis de fiscal, executor e mantenedor das ações. O Estado do Rio de Janeiro já adotou o projeto de Produtores de Água.
Guerras por água
E seu livro Guerras por água, privatização, poluição e lucro, Vandana Shiva deixa claro que nem as leis internacionais sobre águas, nem as leis nacionais respondem adequadamente aos desafios políticos e ecológicos colocados pelos conflitos por água. Nenhum documento legal na legislação atual menciona a mais fundamental lei relacionada à água – a lei natural do ciclo da água.
Shiva descreve as Quatro teorias dos direitos à água: A teoria da soberania territorial; A teoria do fluxo da água; A teoria da divisão equitativa; e A teoria do interesse da comunidade, que guiaram as práticas de distribuição desse recurso em todo o mundo.
A teoria da soberania territorial de 1896, também conhecida como doutrina Harmon, sustenta que os estados ribeirinhos têm direitos exclusivos ou soberanos sobre as águas que fluem em seu território. Os países podem utilizar essas águas como bem entenderem, a despeito de infringirem direitos de outros estados ribeirinhos. Essa doutrina foi importante na disputa entre EUA e México sobre o rio Grande. A doutrina Harmon nunca conquistou aceitação completa porque viola o conceito de justiça. Mesmo países que se beneficiaram da regra concederam direitos aos usuários ribeirinhos inferiores.
A teoria do fluxo natural da água, também conhecida como teoria da integridade territorial, afirma que já que um rio é parte do território do estado, todo proprietário ribeirinho inferior tem direito ao fluxo natural desse rio, sem ser tolhidos pelos proprietários ribeirinhos superiores. O proprietário ribeirinho superior
deve permitir que a água flua no seu curso natural para o proprietário ribeirinho inferior no seu canal comum com utilização razoável da parte do proprietário ribeirinho superior. Este princípio deriva das leis britânicas de propriedade privada e aplicava-se à água num estado unitário.
As teorias de uso equitativo e interesse comunitário têm grande semelhança. O uso equitativo sustenta que os rios internacionais deveriam ser utilizados por estados diferentes em base justa. Nos anos recentes, a teoria da utilização equitativa ganhou aceitação internacional. As Regras de Helsinque sobre o Uso das Águas dos Rios Internacionais, adotadas em 1966, reconheceram que os estados têm direito a uma parte razoável e equitativa no uso benefício das águas de uma bacia de drenagem internacional. Estas regras derrubaram aquelas do oeste norte-americano e estabeleceram que uma utilização existente possa ter que dar lugar a uma nova utilização para uma distribuição equitativa.
Apesar de popular, a teoria da distribuição equitativa esbarra no conceito de "distribuição equitativa". O critério equitativo, utilizado para resolver conflitos interestatais, não se presta a uma articulação precisa; dividir um rio não é tarefa das mais fáceis. O princípio subjacente do rateio equitativo é a equidade, não a igualdade. utilidade equitativa é definida como o máximo de benefício provido a todos os estados ribeirinhos, levando em consideração suas diferentes necessidades econômicas
A necessidade atual é combinar ecologia com equidade e sustentabilidade com justiça.
A existência de princípios internacionais, como as Regras de Hesinque e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito Referente ao Uso dos Cursos d Água internacionais para Fins outros que a Navegação, não garante, necessariamente, a justiça. Cada bacia é tão distinta que uma abordagem monolítica do uso da água seria inviável.
A questão dos direitos de alocação da água não se dá apenas como uma questão de equilíbrio entre a soberania territorial e os direitos ribeirinhos; projetos de água também têm um forte impacto ecológico, e os custos são distribuídos de maneira desigual entre estados e entre grupos sociais. Apesar do fluxo natural não ser um critério absoluto, a conservação deve ser um critério para determinar o uso sustentável. A perspectiva ecológica também ajuda a corrigir a visão de que a água conservada é água desperdiçada. As ligações ecológicas entre a água da superfície e os lençóis freáticos e entre a água doce e a vida nos oceanos não foram observadas nem no gerenciamento das fontes, nem nos arcabouços legais.
"As guerras por água são guerras paradigmáticas – conflitos sobre como percebemos e experimentamos a água – e guerras tradicionais, travadas com revólveres e granadas. Estes choques entre culturas da água estão ocorrendo em todas as sociedades. A cultura da mercantilização está em guerra com diversas culturas de compartilhamento, de receber e dar água gratuitamente", define Vandana Shiva. Guerras paradigmáticas, explica, porque ocorrem em todas as sociedades de leste a oeste, de norte a sul. Neste sentido, guerras por água são guerras globais, com culturas e ecossistemas diferentes, compartilhando a ética universal da água como uma necessidade ecológica, em oposição a uma cultura corporativa de privatização, ganância e o cerco das águas públicas. Num dos lados dessas disputas estão milhões de espécies e bilhões de pessoas que buscam água suficiente para sua manutenção. Do outro lado, está um punhado de corporações globais, dominadas pela Suez Lyonnaise des Eaux, Vivendi Environment (Veloia) e Betchel, a OMC, o FMI e os governos do G7. Muitos conflitos políticos por recursos naturais, no entanto, são escondidos ou sufocados. Aqueles que controlam o poder preferem mascarar as guerras por água como conflitos étnicos e religiosos. Tais deturpações de guerras por água desviam a energia política necessária para soluções justas e sustentáveis sobre a partilha da água. Algo similar aconteceu com os conflitos por terra e água entre palestinos e israelenses.
Vandana Shiva argumenta que "a ecologia do terror nos mostra o caminho para a paz. A paz está em alimentarmos a democracia econômica e ecológica e em nutrirmos a diversidade. Democracia não é apenas um ritual eleitoral, mas o poder para as pessoas moldarem seu destino, determinarem como seus recursos naturais são possuídos e utilizados, como sua sede é saciada, como sua comida é produzida e distribuída e que sistemas de saúde e educação elas têm.
Criar a paz, ela assinala, exige que resolvamos as guerras por água, guerras por comida, guerras por biodiversidade e guerras pela atmosfera. Como Gandhi
disse uma vez: "A Terra tem o suficiente para a necessidade de todos, mas não para a ganância de alguns poucos".
* Série Água continua amanhã (25/3) com o seguinte tema: Princípios da democracia da água.