sexta-feira, 5 de março de 2010

O que os olhos não veem


Por Washington Araújo. Jornalista e escritor, mestre em Comunicação pela UnB.

Não há nada melhor que viver a vida neste meu Brasil brasileiro onde o
coqueiro dá coco. Ao menos na teoria, viver a vida é bom. Ora, ninguém
pode afirmar que o bom é viver a morte, e se existe vida há que se
viver. Nada mais óbvio. Marca do novelista global Manoel Carlos, a
obra em andamento conta também com histórias reais de superação e tudo
contado na eternidade dos 60 segundos logo após o último bloco do
capítulo diário de Viver a vida, a novela.

Em breve a novela seguirá para seu fim e até o momento quase nada tem
sido escrito por especialistas da mídia sobre as aberrações que o
folhetim apresenta. Mau-caratismo, traição, adultério, ciúme, inveja,
alcoolismo e uso de drogas se apresentam no horário nobre toda santa
noite como aperitivo antes do desbunde geral em que se transformou o
que já não era bom, o famigerado Big Brother Brasil.

As “vinhetas de superação” trazendo ao horário nobre gente sofrida,
abandonada, envolvida nas drogas ou no crime, pessoas portadoras de
necessidades especiais e vítimas de todo tipo de violência,
testemunham como foi bom ter dado a volta por cima. Porque nesse
horário somente essas pessoas sabem como é viver a vida, enfrentar os
desafios, superar as debilidades. Na novela tudo é caricato, tosco e
apelativo. Personagens quando choram parecem estar gargalhando por
dentro, e quando falam de amor optam pelo desamor, focam as desilusões
e nossas pequenas tragédias humanas.

A realidade no folhetim é absolutamente virtual. Basta ver a favela de
Viver a vida. Tem até jantar à luz de velas. Balas perdidas? Existe
isso? Onde? Quem? O hospital do Dr. Moretti é imenso pátio de
diversões onde os médicos estão sempre na lanchonete, colocando em dia
seus problemas amorosos e nunca incomodados por pacientes alquebrados,
gente entre a vida e a morte como é tão comum e mesmo rotineiro em
hospitais. A pousada de Búzios tem clima de Copacabana Palace. Tudo na
pousada é muito limpo, decoração de primeira, natureza exuberante,
ninguém parece trabalhar mas tudo está sempre nos trinques e hospedes
que é bom, se existem, não dão as caras. Faltou a Manoel Carlos a
vivência de um feriadão em pousada de Salvador, Porto Seguro, Natal ou
Florianópolis.

Trabalho infantil

Viver a vida é um vale de lágrimas do início ao fim. As pessoas choram
sem parcimônia. E com gosto. Há aquela que chora porque não consegue
parar de beber. Há aquela outra que chora porque está tetraplégica.
Outra chora porque não consegue consumar o adultério. Há quem chore
porque é abandonada pelo noivo há poucas horas do casamento. Outra
chora porque o marido não aceita conviver em harmonia com os enteados,
filhos do primeiro casamento. Tem quem chore porque a irmã
tetraplégica recebe mais atenção da mãe e das irmãs. Há quem chore
porque os filhos gêmeos estão apaixonados pela mesma pessoa. Tem quem
chore por acreditar que uma pessoa tetraplégica não pode fazer ninguém
feliz. É o folhetim dos vilões-fashion, gente descolada, rica e que
prefere viver a vida na base de quanto mais fútil for a vida, melhor.

Até aqui nada de muito novo. O que não entendo é as autoridades
responsáveis pela proteção da infância e da adolescência deixarem uma
graciosa menina de apenas oito anos de idade interpretar uma vilã. É o
que acontece com a Rafaela interpretada pela espertíssima Klara
Castanho. Vemos todas as noites sua infância sendo roubada. Assistimos
impassíveis ao seqüestro de uma inocência que deveria ser preservada,
inicialmente por seus pais, depois por esse veículo de comunicação que
é uma concessão pública chamada televisão e depois pelo pessoal do
judiciário, das tais varas da Criança e do Adolescente.

Rafaela se pinta com as cores da vida adulta, se veste insinuante como
é comum aos jovens, é a cara do consumo-mirim sempre instigando sua
mãe a comprar isso e aquilo mesmo que não tenha rendimento para tal. O
pior nem é isso. O pior é o retrato de criança manipuladora e sensual,
chantagista e dona de opinião sobre assuntos bem complexos para mente
em formação como é o caso de aborto, mãe esperando segundo filho, vida
de mãe solteira e testemunha de tórrida cena de adultério.

Será que ninguém observa nada disso? Será que ninguém vai trazer à
mesa a discussão sobre trabalho infantil em programas para público
adulto como é uma novela das oito? Será que toda e qualquer
manifestação artística é passível de ser exercida por crianças e
adolescentes? Pelo andar da carruagem não me causará espanto se em
capítulo futuro a pequena Rafaela se transformar em psicopata-mirim.
Mercado e audiência

É que ninguém está nem aí para colocar em prática dispositivos como o
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13/7/1990),
calhamaço que conta com impressionantes 267 artigos. Destes faço
questão de enunciar apenas seu Artigo 3º:

“A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que
trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios,
todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e de dignidade.”

A caracterização dada à personagem Rafaela faculta à atriz-mirim Klara
Castanho seu desenvolvimento “mental, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e de dignidade”? A meu ver, se dá exatamente o
contrário. Rafaela é tratada como coisa a ser transportada na vida
cheia de peripécias de sua mãe Dora; interpõe-se com protagonismo
principal na relação de sua mãe com quem poderia ser seu bisavô, o
romântico Maradona, dono da pousada; os diálogos de Dora com Rafaela
se sustentam em mentiras escancaradas e em meias verdades; os olhares
de “brinquedo assassino” de Rafaela ao iniciar sua precoce carreira de
chantagista mirim com a principal protagonista do folhetim, Helena,
não deixam dúvidas que coisa muito mais escabrosa vem pela frente.

Enquanto a trama se desenrola, Rafaela passa a freqüentar com maior
insistência o imaginário de milhões de crianças da mesma idade vindo a
se tornar um modelo infantil a ser seguido com toda sua carga de
manipulação e astúcia poucas vezes vista em personagens adultas. E não
encontramos contraponto. Isso acontece porque levantar qualquer
bandeira que vise proteger a integridade moral e a dignidade de uma
criança explorada por um folhetim global é quase cometer crime de
lesa-pátria. E não faltarão pessoas a torcerem o nariz para esse meu
texto sob o pretexto de que seria incitação à censura. Nada mais
ridículo que isso.

O ponto é que enquanto o Deus-Audiência estiver em seu trono nada
poderá mudar. Nem que preceitos constitucionais sejam violados e que
sejam arquivadas no baú das coisas imprestáveis imagens de crianças
inocentes, bondosas, cheias de compaixão, educadas, inteligentes,
respeitadoras dos mais velhos… e tantos outros predicados do tempo em
que andar a pé era novidade.

Fonte – Observatório da Imprensa