Entre os dias 3 e 5 de março, 45 especialistas discutiram a legitimidade da reserva de vagas para negros em universidade públicas no plenário do Supremo Tribunal Federal. A audiência pública foi convocada pelo ministro Ricardo Lewandowski, relator de um processo movido pelo partido Democratas (ex-PFL) contra a Universidade de Brasília (UnB), que reserva 20% das vagas disponíveis no seu vestibular a estudantes negros.
Para o jurista Fábio Konder Comparato, professor aposentado da Universidade de São Paulo e um dos defensores da proposta, a adoção de cotas raciais nas universidades públicas “não apenas é constitucional, como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalida de por omissão”. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista concedida à CartaCapital.
CartaCapital: As cotas raciais são constitucionais?
Fábio Konder Comparato: Em primeiro lugar, é preciso saber que a reserva de vagas para negros nas universidades públicas não apenas é constitucional como a ausência desse tipo de política representa uma inconstitucionalida de por omissão. O artigo 3º, inciso III, da Constituição de 1988, é muito claro a esse respeito. “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Essa determinação constitucional não é um simples programa de intenções. É uma norma obrigatória. Enquanto os poderes públicos não cumprem esse objetivo nem tomam medidas para atingi-lo, eles estão descumprindo a Constituição. No caso específico da população negra, a desigualdade é brutal. Atualmente, pretos e pardos representam mais de 70% dos 10% mais pobres da nossa população. Eles são os pobres dos pobres. No mercado de trabalho, com a mesma
qualificação e escolaridade, os negros recebem em média a metade do salário pago aos brancos. Enquanto 58% da população branca está no Ensino Médio, há apenas 37% de negros neste mesmo nível educacional.
CC: Daí a necessidade de políticas de inclusão. Mas não necessariamente de reserva de vagas ou cotas raciais, afirmam os críticos da medida. O senhor concorda?
FKC: Essas distorções se reproduzem no Ensino Superior. Além disso, a Constituição tem outros dispositivos análogos à proposta de reserva de vagas para negros nas universidades. No artigo 7º, inciso XX, estabelece-se a necessidade de “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos”. Da mesma forma como os opositores das cotas chamam esse tipo de política de racista, poderíamos dizer que a Constituição, nesse ponto, foi sexista. Mas não é esse o entendimento, trata-se de uma medida de proteção a uma minoria. E eu insisto num ponto: a ausência de medidas de inclusão como as cotas nas universidades é que representa um descumprimento da norma constitucional. E, devo acrescentar, se ficarmos apenas nessa política de cotas nas universidades, estaremos apenas cumprindo o mínimo daquilo que deveríamos fazer para levantar a população negra no Brasil.
CC: Por mais que se constate a vulnerabilidade da população negra no Brasil, muitos criticam a adoção de critérios raciais no ingresso à universidade. Boa parte deles defende a adoção de critérios estritamente sociais para as cotas, como a renda familiar. Há validade neste tipo de argumento?
FKC: Bom, esse é um retrato do Brasil. Nos EUA, o racismo é declarado, não é escondido. E os americanos tomam medidas para reduzir as desigualdades entre as diferentes etnias. No Brasil, o racismo é enrustido e dissimulado. E toda vez que procuramos lutar contra essa desigualdade escandalosa, os conservadores racistas se põem de pé e bradam contra a existência de “políticas racistas”. Exteriormente temos uma brilhante Constituição, equivalente a dos países mais avançados do mundo. Mas isso daqui é só para inglês ver. Internamente, cada um sabe o seu lugar. E nada de pular de galho, senão o cidadão se arrebenta no chão. Isso representa uma hipocrisia difícil de ser tolerada.
CC: Essa hipocrisia também se verifica no discurso meritocrático? Isto é, de que apenas pelo mérito os melhores alunos deveriam ingressar no Ensino Superior.
FKC: Mas os negros vão entrar na universidade de que jeito? Por decreto? Eles também não passam por um processo de seleção, pelo vestibular? Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, quando foi criado um curso de pós-graduação em Direitos Humanos, nós criamos vagas preferenciais para estudantes negros e para deficientes físicos. No caso dos negros, o desempenho deles foi exatamente igual ao dos brancos. E eles não entraram de graça, tiveram de passar por um rigoroso processo de admissão.
CC: Para o senhor, todos esses argumentos são falaciosos?
FKC: Sim. Tanto que o partido que encampou essa ação de inconstitucionalida de das cotas é um retrato do Brasil. Eles, com o perdão da palavra, se auto-intitulam “Democratas”. É... no nome são. Mas aqui é assim, tudo é só no nome. Nada é pra valer.
CC: Mas porque este tipo de argumento sensibiliza até mesmo pessoas com histórico de militância no movimento negro, e que identificam nas cotas raciais um precedente perigoso? FKC: Eu entendo isso. Depois de quase quatro séculos de escravidão, existe na mentalidade dos pretos e pardos um complexo de inferioridade muito grande. E muitos rejeitam medidas que consideram puramente assistenciais. Mas estes representam, evidentemente, uma minoria. A grande maioria da população negra é indiferente. Eles engoliram o racismo que sofreram por séculos e não protestam. E há uma minoria esclarecida que defende a dignidade da população negra e exige o cumprimento da Constituição. Assim como há também uma minoria que não quer mexer no assunto porque, segundo eles, isso seria um reconhecimento de que os negros são inferiores. De modo geral, eles se consideram iguais em tudo em relação aos brancos. Acontece que eles não são iguais economicamente ou
socialmente. Os negros estão em situação de grande penúria e os dados que passei não são invenção, tratam-se de dados oficiais. É preciso reconhecer essa injustiça flagrante para lutar contra ela.
CC: Há uma série de ações contestando as cotas raciais na Justiça. O senhor tem conhecimento se também existem ações contra o poder público por descumprimento da Constituição, no que diz respeito à redução das desigualdades étnicas?
FKC: Na Justiça do Trabalho, fiquei sabendo de algumas poucas ações contra bancos, por haver – dissimuladamente, como sempre no Brasil – uma política de não contratação de negros. E foi só recentemente que começaram a aparecer apresentadores negros na tevê brasileira. Os últimos dados do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) mostram que, em 2006, 55,2% da nossa população masculina se reconheceu como negra. E 49,7% das mulheres brasileiras também se reconheciam como negras. Levando em conta o percentual considerável daqueles que não reconhecem a sua origem africana, os negros constituem a maioria incontestável da população no Brasil. Deveríamos ficar de braços cruzados em relação à marginalização desse povo?
CC: O senhor acredita que a política de reserva de vagas para negros tende a sair das universidades e ser aplicada também no mercado de trabalho, para corrigir essas distorções?
FKC: Acho que sim. Não sei bem se os EUA podem servir de modelo, mas eles estão bem mais adiantados do que nós nesse quesito. Não só pelas políticas de inclusão nas universidades, mas também pelas ações afirmativas para garantir o emprego da população negra em instituições privadas e no serviço público. Também não podemos nos esquecer que a eleição de um presidente negro, nos EUA, é um fato extraordinário. E eles já tinham, desde o começo dos anos 60, um juiz negro na Suprema Corte. Só agora, com o governo Lula, o Brasil viu a nomeação de um juiz negro para o Supremo: o ministro Joaquim Barbosa. Nós sempre estamos atrasados em relação os EUA. Parece que só copiamos deles o que não presta, como as perversas técnicas capitalistas americanas, sobretudo no mercado financeiro.