sábado, 30 de junho de 2012

O GOLPE EM ASSUNÇÃO E A TRÍPLICE FRONTEIRA

27/06/2012 - por Mauro Santayana em seu blog

A moderação dos Estados Unidos, que dizem estranhar a rapidez do processo de impeachment do Presidente Lugo, não deve alimentar o otimismo continental.

Em plena campanha eleitoral, a equipe de Obama (mesmo a Sra. Clinton) caminha com cautela, e não lhe convém tomar atitudes drásticas nestas semanas.

Esta razão os leva a deixar o assunto, neste momento, nas mãos da OEA.

Na verdade, se as autoridades de Washington não ordenaram a operação relâmpago contra Lugo, não há dúvida de que o parlamento paraguaio vem sendo, e há muito, movido pelo controle remoto do Norte.

E é quase certo que, ao agir como agiram, os inimigos de Lugo contavam com o aval norte-americano.

E ainda contam.

Conforme o Wikileaks revelou, a embaixada norte-americana informava a Washington, em março de 2009, que a direita preparava um “golpe democrático” contra Lugo, mediante o parlamento. Infelizmente não sabemos o que a embaixada dos Estados Unidos em Assunção comunicou ao seu governo depois e durante toda a maturação do golpe: Assange e Manning estão fora de ação.

Não é segredo que os falcões ianques sonham com o controle da Tríplice Fronteira. Nãohá, no sul do Hemisfério, ponto mais estratégico do que o que une o Brasil ao Paraguai e à Argentina.

É o ponto central da região mais populosa e mais industrializada da América do Sul, a pouco mais de duas horas de vôo de Buenos Aires, de São Paulo e de Brasília. Isso sem falar nas cataratas do Iguaçu, no Aqüífero Guarani e na Usina de Itaipu.

Por isso mesmo, qualquer coisa que ocorra em Assunção e em Buenos Aires nos interessa, e de muito perto.

Não procede a afirmação de Julio Sanguinetti, o ex-presidente uruguaio, de que estamos intervindo em assuntos internos do Paraguai. É provável que o ex-presidente - que teve um desempenho neoliberal durante seu mandato – esteja, além de ao Brasil e à Argentina, dirigindo suas críticas também a José Mujica, lutador contra a ditadura militar, que o manteve durante 14 anos prisioneiro, e que vem exercendo um governo exemplar de esquerda no Uruguai.

Não houve intervenção nos assuntos internos do Paraguai, mas a reação normal de dois organismos internacionais que se regem por tratados de defesa do estado de direito no continente, o Mercosul e a Unasul – isso sem se falar na OEA, cujo presidente condenou, ad referendum da assembléia, o golpe parlamentar de Assunção. É da norma das relações internacionais a manifestação de desagrado contra decisões de outros países, mediante medidas diplomáticas. Essas medidas podem evoluir, conforme a situação, até a ruptura de relações, sem que haja intervenção nos assuntos internos, nem violação aos princípios da autodeterminação dos povos.

A prudência – mesmo quando os atos internos não ameacem os países vizinhos – manda não reconhecer, de afogadilho, um governo que surge ex-abrupto, em manobra parlamentar de poucas horas. E se trata de sadia providência expressar, de imediato, o desconforto pelo processo de deposição, sem que tenha havido investigação minuciosa dos fatos alegados, e amplo direito de defesa do presidente.

Registre-se o açodamento nada cristão do núncio apostólico em hipotecar solidariedade ao sucessor de Lugo, a ponto de celebrar missa de regozijo no dia de sua posse.

O Vaticano, ao ser o primeiro a reconhecer o novo governo, não agiu como Estado, mas, sim, como sede de uma seita religiosa como outra qualquer.

O bispo é um pecador, é verdade, mas menos pecador do que muitos outros prelados da Igreja. Ele, ao gerar filhos, agiu como um homem comum. Outros foram muito mais adiante nos pecados da carne – sem falar em outros deslizes, da mesma gravidade - e têm sido “compreendidos” e protegidos pela alta hierarquia da Igreja.

O maior pecado de Lugo é o de defender os pobres, de retornar aos postulados da Teologia da Libertação.

Lugo parece decidido a recuperar o seu mandato – que duraria, constitucionalmente, até agosto do próximo ano. Não parece que isso seja fácil, embora não seja improvável. Na realidade, Lugo não conta com a maior parcela da classe média uruguaia, e possivelmente enfrente a hostilidade das forças militares. Os chamados poderes de fato – a começar pela Igreja Católica, que tem um estatuto de privilégios no Paraguai – não assimilaram o bispo e as suas idéias. Em política, no entanto, não convém subestimar os imprevistos.

Os fazendeiros brasileiros que se aproveitaram dos preços relativamente baixos das terras paraguaias e lá se fixaram, não podem colocar os seus interesses econômicos acima dos interesses permanentes da nação. É natural que aspirem a boas relações entre os dois países e que, até mesmo, peçam a Dilma que reconheça o governo. Mas o governo brasileiro não parece disposto a curvar-se diante dessa demanda corporativa dos “brasiguaios”.

No Paraguai se repete uma endemia política continental, sob o regime presidencialista. O povo vota em quem se dispõe a lutar contra as desigualdades e em assegurar a todos a educação, a saúde e a segurança, mediante a força do Estado. Os parlamentos são eleitos por feudos eleitorais dominados por oligarcas, que pretendem, isso sim, manter seus privilégios de fortuna, de classe, de relações familiares. Nós sofremos isso com a rebelião parlamentar, empresarial e militar (com apoio estrangeiro) contra Getúlio, em 1954, que o levou ao suicídio; contra Juscelino, mesmo antes de sua posse, e, em duas ocasiões, durante seu mandato. Todas foram debeladas. A conspiração se repetiu com Jânio, e com Jango – deposto pela aliança golpista civil e militar, patrocinada por Washington, em 1964.

A decisão dos paises do Mercosul de suspender o Paraguai de sua filiação ao Mercosul, e a da Unasul de só reconhecer o governo paraguaio que nasça das novas eleições marcadas para abril, não ferem a soberania do Paraguai, mas expressam um direito de evitar que as duas alianças continentais sejam cúmplices de um golpe contra o estado democrático de direito no país vizinho.

Fonte:
http://www.maurosantayana.com/2012/06/o-golpe-em-assuncao-e-triplice.html

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Economia verde divide a Ásia

28/6/2012 - por Marwaan Macan-Markar, da IPS (Inter Press Service)
extraído do site Envolverde

Bangcoc, Tailândia, 28/6/2012 – A cúpula Rio+20 fez ressaltar o descontentamento de ativistas e de alguns governos da Ásia com os conceitos de “economia verde” e “crescimento verde”, considerados uma fachada para manter um modelo que depreda os recursos naturais.

A Comissão Econômica e Social para a Ásia e o Pacífico (Cespap), agência regional da Organização das Nações Unidas (ONU) integrada por 58 países, é favorável a empregar esses enfoques, mas gigantes como China, Índia, Irã e Rússia são contra.

A economia verde promove transformações nas formas de produção e de consumo para atender as problemáticas ambientais, mediante a inovação tecnológica e atribuindo valor econômico aos bens naturais. Ativistas afirmam que este enfoque só reforça o atual modelo de desenvolvimento, baseado na produção e no consumo excessivos. Esta divergência ficou evidente nos dias finais da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), realizada este mês no Rio de Janeiro.

O embaixador chinês na Tailândia, Guan Mu, publicou no dia 21 uma longa coluna no jornal The Nation, de Bangcoc, destacando a importância do desenvolvimento sustentável, mas evitando sempre usar conceitos como “economia verde” ou “crescimento verde”. “A China não só encontrou o caminho para um desenvolvimento sustentável adequado às suas condições nacionais, como fez importantes contribuições ao desenvolvimento sustentável em todo o mundo”, afirmou. “A China está disposta a fortalecer a cooperação e a unir esforços com outras partes para fazer mais contribuições ao desenvolvimento sustentável global sob o princípio de responsabilidades comuns mas diferenciadas”, destacou.

No dia anterior, em Manila, ativistas liderados pela Kalikasan, uma rede de grupos ambientalistas com sede nas Filipinas, protestaram diante da embaixada dos Estados Unidos contra a economia verde porque “enriquece as corporações”. “Nós, o povo, a quem não permitem falar na Rio+20 e que vemos nossos direitos pisoteados, não nos calaremos”, afirmou durante o protesto a secretária-geral da Asia Pacific Research Network, Lyn Pano. “Fortaleceremos nossas fileiras e lutaremos de forma constante” para rechaçar a economia verde, enfatizou.

Enquanto isso, o discurso da Cespap na Rio+20 sugeria que os países da Ásia e do Pacífico estavam a favor de adotar a economia verde em seus planos. “Estamos satisfeitos pelo fato de as políticas da economia verde serem reconhecidas como uma ferramenta importante para o desenvolvimento sustentável e para a erradicação da pobreza”, afirmou a secretária-executiva da agência, Noeleen Heyzer, durante uma reunião de alto nível.

A pressa das agências da ONU, incluindo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), para adotar as políticas de economia verde ignora temores asiáticos de que “sejam usados para prejudicar o marco aceito de desenvolvimento sustentável”, alertou Shalmali Guttal (foto ao lado), pesquisadora principal do centro de estudos Focus on the Global South, com sede em Bangcoc. “Preocupa que esta seja uma tentativa dos países industrializados, os maiores poluidores do mundo, para imporem o protecionismo verde no mercado internacional”, declarou Guttal à IPS.

As nações em desenvolvimento da Ásia têm uma razão para estarem nervosas, porque este é outro esforço dos países industrializados de evitar os compromissos que assumiram de ajudar as nações do Sul a cumprirem suas metas de desenvolvimento”, ressaltou.

Os órgãos da ONU deveriam ouvir o povo, a que, supõe-se, estão ajudando”, acrescentou.

Os desacordos entre a Cespap e alguns governos da região sobre economia verde já havia ficado evidentes na sexta Conferência Ministerial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Ásia e do Pacífico (MCED-6), realizada no Cazaquistão em outubro de 2010. O comunicado de imprensa final desse encontro teve que ser reformulado. China, Índia, Irã e Rússia objetaram a expressão “economia verde” que tinha um grande destaque no texto e inclusive no título. O comunicado a mencionava como a estratégia apoiada pelos ministros asiáticos. A Cespap foi obrigada a divulgar novo comunicado de imprensa identificando o crescimento verde como “um enfoque (a mais) de desenvolvimento sustentável”.

Para um diplomata asiático em Bangcoc que pediu para não ser identificado, “este é um tema que se tornou polêmico. A partir de então, fiscalizamos a forma com a Cespap emprega os termos crescimento verde e economia verde sem seus documentos”, contou.

No âmbito interno, a maioria dos países contribui para o desenvolvimento de alternativas baixas em carbono e investimentos em tecnologia verde. Contudo, resistimos a sermos pressionados para apoiar a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável”, afirmou o diplomata.

A Cespap estava, de fato, na vanguarda do debate sobre crescimento verde, reconhecendo-o como uma alternativa de desenvolvimento sustentável. O conceito foi promovido na MCED-5, realizada na Coreia do Sul, em 2005. Três anos depois, após a crise financeira de 2008, muitos outros também apoiaram o conceito de economia verde, desde o Pnuma até o Grupo dos 20 países industrializados e emergentes.

Os países asiáticos enfrentam a restrição de recursos, o preço do combustível sobe e isto é um impedimento ao seu desenvolvimento”, afirmou Rae Kwon Chung (foto ao lado), diretor de meio ambiente e desenvolvimento da Cespap. “A pobreza não pode ser erradicada sem se resolver essa falta de recursos. As recentes crises energética e alimentar devem desatar uma grande mudança. Os países em desenvolvimento requerem um sistema energético distinto. A economia verde é uma das estratégias para pôr em prática o desenvolvimentos sustentável”, explicou à IPS.

A necessidade dessa mudança é evidente quando se observa que para produzir um dólar a região consome três vezes mais recursos naturais do que o resto do mundo, segundo informe da Cespap divulgado pouco antes da Rio+20. Muitas economias da Ásia e do Pacífico são importadoras de recursos e matérias-primas e sensíveis às altas de preços. Em 2011, as altas dos alimentos e do petróleo afundaram na pobreza 42 milhões de pessoas, enquanto no ano anterior 19 milhões haviam tido a mesma sorte.

Grandes nações, como China e Índia, e outras menores, como Camboja e Vietnã, são elogiadas no informe por adotarem programas para “reverdecer suas economias”.

No entanto, as maiores economias regionais erguem uma bandeira vermelha quando o crescimento verde é colocado em outro contexto, como uma nova receita internacional e vinculante para o desenvolvimento sustentável do Sul global.

Isto continuará sendo um tema de divisão e as sessões da Cespap vão refletir isso. Alguns governos já disseram basta”, afirmou a fonte diplomática.

Envolverde/IPS
Fonte:
http://envolverde.com.br/ips/inter-press-service-reportagens/economia-verde-divide-asia/?utm_source=CRM&utm_medium=cpc&utm_campaign=28

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Murar o medo

22/06/2012 - por Mia Couto
extraído do site Vermelho (*)


Mia Couto: a quem serve o medo?

Esta conferência foi pronunciada pelo romancista moçambicano em novembro de 2011, nas Conferências do Estoril, da Fundação Cascais, que ocorrem anualmente na cidade portuguesa de Cascais para debater os desafios da globalização, sendo dirigida a um público formado por políticos, empresários, acadêmicos, intelectuais, estudantes, jornalistas e formadores de opinião.
Por Mia Couto

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas.

Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.

Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território. O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender.

Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo.

No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa narrativa de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.

Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A Guerra-Fria esfriou mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente.

E porque se tratam de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de investimento divino, precisamos de intervenção de poderes que estão para além da força humana. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas.

A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade.

Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar pelo e conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como por exemplo estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento?

Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar?

Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia, são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?

Porque motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes.

Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra.

Essa arma chama-se fome.

Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte de nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo.

Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética e nem de legalidade. É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha.

A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo, muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós do sul e do norte, do ocidente e do oriente.

Citarei Eduardo Galeano acerca disto, que é o medo global: “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho.

Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho.

Quando não têm medo da fome, têm medo da comida.

Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras."

E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe!


(*) Agradecimento especial a Selenia Granja que, de Salvador, garimpou esse texto e o deixou à mostra no Facebook de onde foi pinçado.

Original do site Vermelho em:
http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=186637&id_secao=11#.T-xpdOa5c-E.facebook
Video:

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Além da Rio+20: juntos por um futuro sustentável

22/06/2012 - por José Graziano da Silva (*)
original publicado no site TERRAMÉRICA - Envolverde

Rio de Janeiro, Brasil, 22 junho de 2012 (Terramérica) - As declarações finais da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano de 1972 e a Eco 92 puseram o ser humano no centro do desenvolvimento sustentável.

No entanto, até hoje, mais de 900 milhões de pessoas ainda passam fome.

Populações pobres pelo mundo afora, especialmente nas áreas rurais, são as mais atingidas pelas crises alimentar, climática, financeira, econômica, social e energética que o mundo enfrenta hoje.

Não podemos falar em desenvolvimento sustentável enquanto aproximadamente uma em cada sete pessoas – crianças, mulheres e homens – ficam para trás, vítimas de desnutrição. Seria uma contradição. A fome e a pobreza extremas também excluem a possibilidade de um verdadeiro desenvolvimento sustentável porque os miseráveis precisam usar os recursos naturais disponíveis para conseguir comida. Para eles, suprir suas necessidades básicas é o princípio primordial de cada dia – planejar para o futuro é um luxo que eles não têm.

Paradoxalmente, mais de 70% das pessoas que passam fome no mundo dependem diretamente da agricultura, caça e pesca para sobreviver. Portanto, suas escolhas diárias ajudam a determinar como os recursos naturais do mundo são administrados. Não podemos esperar que o agricultor pobre não corte uma árvore se esta é sua única fonte de energia; não podemos pedir para o pescador artesanal deixar de pescar durante o período do defeso se esta é a única maneira de alimentar sua família.

A fome coloca em movimento um ciclo vicioso que reduz a produtividade, aprofunda a pobreza, desacelera o desenvolvimento econômico, promove a degradação dos recursos e a violência. A fome e a disputa por recursos naturais são fatores de conflitos que, mesmo quando são internos, têm impactos que frequentemente ultrapassam as fronteiras dos países. Então, há também uma ligação direta entre a segurança alimentar e segurança nacional e regional.

A busca por segurança alimentar pode ser o fio condutor que ligará os diferentes desafios que o mundo enfrenta e ajudará a construir um futuro mais sustentável. Na Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, temos uma oportunidade de ouro para explorar a convergência entre as agendas da segurança alimentar e a sustentabilidade para assegurar que isso aconteça. Ambas requerem mudanças para modelos de produção e consumo mais sustentáveis.

Para alimentar uma população mundial que superará a marca de nove bilhões de pessoas em 2050, a FAO prevê a necessidade de aumentar a produção agrícola em pelo menos 60%. Para isso, precisamos produzir mais alimentos ao mesmo tempo em que conservamos o meio ambiente. Contudo, mesmo com práticas mais sustentáveis, a pressão sobre nossos recursos naturais será extrema. Então, também temos que mudar a maneira que nos alimentamos, adotando dietas mais saudáveis e reduzindo o desperdício e perda de alimentos: todo ano, entre a colheita e o consumo, jogamos fora 1,3 bilhão de toneladas de alimentos.

Entretanto, mesmo se aumentarmos a produção agrícola em 60% até 2050, o mundo ainda terá 300 milhões de pessoas com fome daqui a quatro décadas porque, como as centenas de milhões de subnutridos hoje, eles continuarão sem os meios para ter acesso à comida que necessitam. Para eles, a segurança alimentar não é um problema de produção insuficiente, é uma questão de acesso inadequado. Para tirar esses milhões de pessoas da insegurança alimentar, precisamos investir na criação de melhores empregos, pagar melhores salários, dar-lhes maior acesso a ativos produtivos – especialmente terra e água – e distribuir renda de forma mais justa e equitativa.

Precisamos trazê-los para dentro da sociedade, complementando o apoio aos pequenos agricultores com oportunidades de geração de renda, com o fortalecimento das redes de proteção social, mutirões de trabalho e programas de transferência de renda, que contribuam para o fortalecimento de circuitos locais de produção e consumo para dinamizar as economias locais. A transição para um futuro sustentável também exige mudanças fundamentais no sistema de governança de alimentos e agricultura e uma partilha equitativa dos custos de transição e benefícios.

No passado, os mais pobres pagaram uma parcela maior dos custos de transição e receberam uma cota menor de benefícios. Este é um desequilíbrio inaceitável, que precisa mudar. Erradicar a fome e melhorar a nutrição humana, criando sistemas sustentáveis de produção e consumo de alimentos, e construir uma governança mais inclusiva e eficaz dos sistemas agrícolas e alimentares são cruciais para alcançar um mundo sustentável.

Na Rio+20, estamos numa encruzilhada. De um lado está o caminho para a degradação ambiental e o sofrimento humano; do outro está o futuro que todos queremos. A Rio+20 oferece uma oportunidade histórica que não podemos dar ao luxo de perder. Nós sabemos como acabar com a fome e gerenciar os recursos do planeta de uma forma mais sustentável. Mas precisamos de uma vontade política mais forte para fazê-lo.

Devemos olhar para Rio +20 como o início de um caminho e não como o ponto de chegada.

E essa é uma caminhada que não podemos fazer sozinhos.

Como a luta contra a fome, o desenvolvimento sustentável é uma meta com a qual cada um de nós deve contribuir – cidadãos, empresas, governos, movimentos sociais, ONGs e organismos regionais e internacionais.

Juntos, trabalhando a partir do nível local para o nível global, podemos construir o futuro que queremos.

E esse futuro precisa começar hoje.

 (*) Diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). (foto ao lado)

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.


Fonte: Terramérica