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domingo, 19 de janeiro de 2014

Às esquerdas da Europa e do mundo

25/12/2013 - por Álvaro Garcia Linera - Carta Maior
- Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

Falando no IV Congresso do Partido da Esquerda Europeia, vice-presidente da Bolívia [Álvaro Garcia Linera, foto] apresentou cinco propostas para a esquerda europeia e mundial.

O IV Congresso do Partido da Esquerda Europeia (PIE) reuniu 30 formações de esquerda europeias em Madri, entre os dias 13 e 15 de dezembro, em busca de um discurso para unificar estratégias frente às políticas de austeridade e de submissão de Bruxelas às exigências dos mercados.

Este foi o discurso do vice-presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Álvaro Garcia Linera [foto], convidado para o encontro.

"Permitam-me celebrar este encontro da Esquerda europeia e, em nome de nosso presidente Evo, em nome do meu país, de nosso povo, agradecer o convite que nos fizeram para compartilhar um conjunto de ideias, reflexões neste tão importante congresso da Esquerda Europeia.

Permitam-me ser direto, franco, mas também propositivo.

O que vemos desde fora da Europa?

Vemos uma Europa que enfraquece, uma Europa abatida, uma Europa ensimesmada e satisfeita de si mesmo, até certo ponto apática e cansada. 

Sei que são palavras muito feias e muito duras, mas é assim que vemos. 

Ficou para trás a Europa das luzes, das revoltas, das revoluções.

Ficou para trás, muito atrás, a Europa dos grandes universalismos que moveram e enriqueceram o mundo, que empurraram povos de muitas partes do mundo a adquirir uma esperança e mobilizar-se em torno dessa esperança.

Ficaram para trás os grandes desafios intelectuais.

Essa interpretação que faziam e que fazem os pós-modernos de que acabaram os grandes relatos, à luz dos últimos acontecimentos, parece que só encobre os grandes negócios das corporações e do sistema financeiro.

Não é o povo europeu que perdeu a virtude ou a esperança, porque a Europa a que me refiro, cansada, a Europa esgotada, a Europa ensimesmada, não é a Europa dos povos, mas sim esta Europa silenciada, encerrada, asfixiada.

A única Europa que vemos no mundo hoje é a Europa dos grandes consórcios empresariais, a Europa neoliberal, a Europa dos grandes negócios financeiros, a Europa dos mercados e não a Europa do trabalho.

Carentes de grandes dilemas, horizontes e esperança, só se ouve – parafraseando Montesquieu – o lamentável ruído das pequenas ambições e dos grandes apetites.

Democracias sem esperança e sem fé, são democracias derrotadas, são democracias fossilizadas. Em um sentido estrito, não são democracias.

Não há democracia válida que seja simplesmente um apego aborrecido a instituições fósseis com às quais sem cumprem rituais a cada três, quatro ou cinco anos para eleger os que virão decidir (mal) sobre nossos destinos.

Todos sabemos e na esquerda mais ou menos compartilhamos um pensamento comum de como chegamos à semelhante situação.

Os estudiosos, os acadêmicos, os debates políticos oferecem um conjunto de linhas interpretativas sobre a situação que estamos e como chegamos a ela.

Um primeiro critério compartilhado de como chegamos a isso é que entendemos que o capitalismo adquiriu – não resta dúvida – uma medida geopolítica planetária absoluta. Ele cobre o mundo inteiro.

O mundo inteiro tornou-se uma grande oficina mundial.

Um rádio, uma televisão, um telefone, já não tem uma origem de criação. O mundo inteiro se converteu nessa origem.

Um chip é feito no México, o desenho vem da Alemanha, a matéria prima é latino-americana, os trabalhadores são asiáticos, a embalagem é norte-americana e a venda é planetária.

Esta é uma característica do moderno capitalismo, não resta dúvida, e é a partir dessa realidade que devemos agir.

Uma segunda característica dos últimos vinte anos, é uma espécie de retorno a uma acumulação primitiva perpétua.

Os textos de Karl Marx, que retratam a origem do capitalismo nos séculos XVI e XVII, se repetem hoje como textos do século XXI.

Temos uma permanente acumulação originária que reproduz mecanismos de escravidão, mecanismos de subordinação, de precariedade, de fragmentação, retratados excepcionalmente por Marx.

O capitalismo moderno reatualiza a acumulação originária. Ela a expande, a irradia a outros territórios para extrair mais recursos e mais dinheiro.

Mas há algo que vem junto com esta acumulação primitiva perpétua – que vai definir as características das classes sociais contemporâneas, tanto em nossos países como no mundo, porque reorganiza a divisão do trabalho local, territorialmente, e a divisão do trabalho planetário.

Junto com isso temos uma espécie de neo-acumulação por expropriação.

Temos um capitalismo depredador que acumula, em muitos casos produzindo nas áreas estratégicas: conhecimento, telecomunicações, biotecnologia, indústria automobilística, mas em muitos de nossos países, acumula por expropriação.

Ou seja, acumula ocupando os espaços comuns: biodiversidade, água, conhecimentos ancestrais, bosques, recursos naturais.

Esta é uma acumulação por expropriação – não por geração de riqueza -, por expropriação de riquezas comuns que se tornam riqueza privada. Essa é a lógica neoliberal.

Se criticamos tanto o neoliberalismo, é por sua lógica depredadora e parasitária. Mais que um gerador de riquezas ou um desenvolvedor de forças produtivas, o neoliberalismo é um expropriador de forças produtivas capitalistas e não capitalistas, coletivas, locais, de sociedades inteiras.

Mas a terceira característica da economia moderna não é somente a acumulação primitiva perpétua, acumulação por expropriação, mas também por subordinação – Marx diria subsunção real do conhecimento e da ciência à acumulação capitalista.

O que alguns sociólogos chamam de sociedade do conhecimento.

Não resta dúvida, essas são as áreas mais potentes e de maior desdobramento das capacidades produtivas da sociedade moderna.

A quarta característica e cada vez mais conflitiva e arriscada, é o processo de subsunção real do sistema integral da vida do planeta, ou seja, dos processos metabólicos entre os seres humanos e a natureza.

Estas quatro características do capitalismo moderno redefinem a geopolítica do capital em escala planetária, redefinem a composição de classes da sociedade e das classes sociais no planeta.

Não estamos falando só da externalização – para as extremidades do corpo capitalista, da classe operária tradicional, que vimos surgir no século XIX e início do século XX, e que agora se transfere para as zonas periféricas, Brasil, México, China, Índia, Filipinas -, mas também do surgimento, nas sociedades mais desenvolvidas, de um novo tipo de proletariado, um novo tipo de classe trabalhadora.

Professores, pesquisadores, cientistas, analistas, que não se veem a si mesmos como classe trabalhadora, mas sim como pequenos empresários, mas que no fundo constituem uma nova composição social da classe trabalhadora, do princípio do século XXI.

Mas, ao mesmo tempo, temos também uma criação no mundo daquilo que poderíamos chamar de proletariado difuso.

Sociedades e nações não capitalistas, que são subsumidas formalmente à acumulação capitalista. América Latina, África, Ásia, falamos de sociedades e de nações não estritamente capitalistas, mas que no conjunto aparecem subsumidas e articuladas como formas de proletarização difusas.

Não somente por sua qualidade econômica, mas também pelas próprias características de unificação fragmentada, ou de difícil fragmentação por sua dispersão territorial.

Temos então, não somente uma nova modalidade da expansão da acumulação capitalista, mas também uma reacomodação das classes, do proletariado e das classes não proletárias no mundo.

O mundo hoje é mais conflitivo.


O mundo hoje está mais proletarizado, só que as formas de proletarização são distintas daquelas que conhecemos no século XIX, princípios do século XX.

E as formas de proletarização destes proletários difusos, destes proletários profissionais liberais não tomam necessariamente a forma de um sindicato.

A forma sindicato perdeu sua centralidade em alguns países e surgem outras formas de unificação do popular, do laboral, do obreiro.

O que fazer? – a velha pergunta de Lenin.

O que fazemos?

Compartilhamos diagnósticos sobre o que está errado, sobre o que está mudando no mundo e frente a essas mudanças não podemos responder – ou melhor – as respostas que tínhamos antes são insuficientes, caso contrário a direita não estaria governando aqui na Europa.

Está faltando algo em nossas respostas e em nossas propostas.

Permitam-me, de maneira modesta, fazer cinco sugestões nesta construção coletiva a que se propõe a esquerda europeia.

A esquerda europeia não pode se contentar com o diagnóstico e a denúncia.

O diagnóstico e a denúncia servem para gerar indignação moral e é importante a expansão da indignação moral, mas não gera vontade de poder.

A denúncia não é uma vontade de poder.

Pode ser a antessala de uma vontade de poder, mas não é a própria.

A esquerda europeia e a esquerda mundial, diante desse turbilhão destrutivo, depredador da natureza e do ser humano, impulsionado pelo capitalismo contemporâneo, tem que aparecer com propostas ou com iniciativas.

Nós precisamos construir um novo sentido comum. No fundo, a luta política é uma luta pelo sentido comum. Pelo conjunto de juízos e preconceitos. Pela forma como, de modo simples, as pessoas – o jovem estudante, o profissional, a vendedora, o trabalhador, o operário – ordenam o mundo.

Esse é o sentido comum. É a concepção de mundo básica com a qual ordenamos a vida cotidiana. A maneira pela qual valoramos o justo e o injusto, o desejável e o possível, o impossível e o provável.

A esquerda mundial tem que lutar por um novo sentido comum, progressista, revolucionário, universalista. Mas, obrigatoriamente, um novo sentido comum.

Em segundo lugar, necessitamos recuperar – como apresentou o primeiro expositor de maneira brilhante – o conceito de democracia.

A esquerda sempre reivindicou a bandeira da democracia. É nossa bandeira.

É a bandeira da justiça, da igualdade, da participação.

Mas para isso temos que nos livrar da concepção da democracia como um fato meramente institucional.

A democracia são instituições? Sim, são instituições. Mas é muito mais do que isso. A democracia é votar a cada quatro ou cinco anos? Sim, mas é muito mais do que isso. É eleger o Parlamento? Sim, mas é muito mais do que isso. É respeitar as regras da alternância? Sim, mas não é só isso.

Essa é a maneira liberal, fossilizada, de entender a democracia na qual às vezes ficamos presos. A democracia são valores?

São valores, princípios organizativos do entendimento do mundo: a tolerância, a pluralidade, a liberdade de opinião, a liberdade de associação. Está bem, são princípios, são valores, mas não são somente princípios e valores. São instituições, mas não são somente instituições.

A democracia é prática, é ação coletiva.

A democracia, no fundo, é a crescente participação na administração dos bens comuns que uma sociedade possui.

Há democracia se os cidadãos participam dessa administração. Se temos como um patrimônio comum a água, então democracia é participar na gestão da água.

Se temos como patrimônio comum o idioma, a língua, democracia é a gestão comum do idioma.

Se temos como patrimônio comum as matas, a terra, o conhecimento, democracia é a gestão comum destes bens.

Crescente participação comum na gestão das matas, na gestão da água, na gestão do ar, na gestão dos recursos naturais.

Teremos democracia, no sentido vivo, não fossilizado do termo, se a população (e a esquerda trabalhar para isso) participar de uma gestão comum dos recursos comuns, das instituições, do direito e das riquezas.

Os velhos socialistas dos anos 70 falavam que a democracia deveria tocar as portas das fábricas. É uma boa ideia, mas não é suficiente.

Deve tocar a porta das fábricas, a porta dos bancos, das empresas, das instituições, a porta dos recursos, a porta de tudo o que seja comum para as pessoas.

Nosso delegado da Grécia me perguntava sobre o tema da água.

Como começamos na Bolívia? Por temas básicos, de sobrevivência, água!

E, em torno da água, que é uma riqueza comum, que estava sendo expropriada, o povo travou uma “guerra” e recuperou a água para a população.

Depois recuperamos não somente a água, fizemos outra guerra social e recuperamos o gás e o petróleo, as minas e as telecomunicações, e falta muito ainda por recuperar.

Mas a água foi o ponto de partida para a crescente participação dos cidadãos na gestão dos bens comuns que tem uma sociedade, uma região.

Em terceiro lugar, a esquerda tem que recuperar também a reivindicação do universal, dos ideais universais. Dos comuns.

A política como bem comum, a participação como uma participação na gestão dos bens comuns.

A recuperação dos bens comuns como direito: direito ao trabalho, direito à aposentadoria, direito à educação gratuita, direito à saúde, a um ar limpo, direito à proteção da mãe terra, direito à proteção da natureza. São direitos.

Mas são universais, são bens comuns universais frente aos quais a esquerda, a esquerda revolucionária, tem que propor medidas concretas, objetivas e de mobilização.

Eu estava lendo no jornal como na Europa estão se utilizando recursos públicos para salvar bens privados. Isso é uma aberração.

Usaram o dinheiro dos poupadores europeus para socorrer os bancos.

Usaram bens comuns para socorrer o privado.

O mundo está ao contrário! Tem que ser o inverso disso: usar os bens privados para salvar e ajudar os bens comuns. Não os bens comuns para salvar os bens privados.

Os bancos têm que ter um processo de democratização e de socialização de sua gestão. Caso contrário, eles vão acabar tirando não somente seu trabalho, sua casa, sua vida, sua esperança e tudo mais, e isso é algo que não se pode permitir.

Também precisamos reivindicar, em nossa proposta como esquerda, uma nova relação metabólica entre o ser humano e a natureza.

Na Bolívia, por nossa herança indígena, chamamos isso de uma nova relação entre ser humano e natureza. Como o presidente Evo diz, a natureza pode existir sem o ser humano, mas o ser humano não pode existir sem a natureza. 

Mas não é o caso de cair na lógica da economia verde, que é uma forma hipócrita de ecologismo.

Há empresas que aparecem ante vocês europeus como protetoras da natureza, como se fossem limpas, mas essas mesmas empresas provocam uma série de desperdícios e danos na Amazônica, na América e na África. 

Aqui são depredadores, aqui são defensores e ali se tornam depredadores.

Converteram a natureza em outro negócio.

A a preservação radical da ecologia não é um novo negócio, nem uma nova lógica empresarial. É preciso restituir uma nova relação, que é sempre tensa. Porque a riqueza que vai satisfazer necessidades humanas requer transformar a natureza e ao fazermos isso modificamos sua existência, modificamos a biosfera.

Ao modificarmos a biosfera, muitas vezes destruímos a natureza e também o ser humano. O capitalismo não se importa com isso, porque para ele tudo não passa de um negócio. Mas para nós sim, para a esquerda, para a humanidade, para a história da humanidade.

Precisamos reivindicar uma nova lógica de relação, não diria harmônica, mas sim metabólica, mutuamente benéfica, entre entorno vital natural e ser humano. Trabalho, necessidades.

Por último, não resta dúvida que precisamos reivindicar a dimensão heroica da política.

Hegel via a política em sua dimensão heroica. E seguindo a Hegel suponho, Gramsci [foto] dizia que as sociedades modernas, a filosofia e um novo horizonte de vida, tem que se converter em fé na sociedade.

Isso significa que precisamos reconstruir a esperança, que a esquerda tem ser a estrutura organizativa, flexível, crescentemente unificada, que seja capaz de reabilitar a esperança nas pessoas.

Um novo sentido comum, uma nova fé – não no sentido religioso do termo -, mas sim uma nova crença generalizada pela qual as pessoas dediquem heroicamente seu tempo, seu esforço, seu espaço e sua dedicação.

Eu destaco o que comentava minha companheira quando nos dizia que hoje temos 30 organizações políticas reunidas aqui. Excelente.

Isso quer dizer que é possível reunir-se, que é possível sair dos espaços fechados.

A esquerda tão débil hoje na Europa não pode se dar ao luxo de ficar distante de seus companheiros.

Pode haver diferença em 10 ou 20 pontos, mas coincidimos em 100. Esses 100 tem que ser os pontos de acordo, de proximidade, de trabalho. E deixemos os outros 20 para depois.

Somos demasiados fracos para nos darmos ao luxo de seguir em brigas doutrinárias e de pequenos feudos, nos distanciando dos demais.

É preciso assumir novamente uma lógica gramsciana para unificar, articular e promover ações comuns.

É preciso tomar o poder do Estado, lutar pelo Estado, mas nunca devemos esquecer que o Estado, mais do que uma máquina, é uma relação. Mais do que matéria, é uma ideia. O Estado é fundamentalmente ideia.

E um pedaço é matéria.

É matéria como relações sociais, como força, como pressões, como orçamentos, acordos, regulamentos, leis. Mas é fundamentalmente ideia como crença de uma ordem comum, de um sentido de comunidade.

No fundo, a luta pelo Estado é uma luta por uma nova maneira de nos unificarmos, por um novo universal. 

Por uma espécie de universalismo que unifique voluntariamente as pessoas.

Mas isso requer uma vitória prévia no terreno das crenças, uma vitória sobre os nossos adversários na palavra, no sentido comum, ter derrotado previamente as concepções dominantes de direita no discurso, na percepção do mundo, nas percepções morais que temos das coisas.

E isso requer um trabalho muito árduo.

A política não é somente uma questão de correlação de forças, capacidade de mobilização. Em um momento, ela será isso.

Mas ela é, fundamentalmente, convencimento, articulação, sentido comum, crença, ideia compartilhada, juízo e conceito compartilhado a respeito da ordem do mundo.

E aqui a esquerda não pode se contentar somente com a unidade de suas organizações. Ela tem que se expandir para o âmbito dos sindicatos, que são o suporte da classe trabalhadora e sua forma orgânica de unificação.

É preciso ficar muito atento também, companheiros e companheiras, a outras formas inéditas de organização da sociedade, à reconfiguração das classes sociais na Europa e no mundo, às formas diferentes de unificação, formas mais flexíveis, menos orgânicas, talvez mais territoriais, menos por centros de trabalho.

Tudo é necessário.

A unificação por centros de trabalho, a unificação territorial, a unificação temática, a unificação ideológica.

É um conjunto de formas flexíveis, frente às quais a esquerda tem que ter a capacidade de articular, propor e de seguir adiante.

Permitam-me em nome do presidente, e em meu nome, felicita-los, celebrar esse encontro, desejar-lhes e exigir-lhes – de maneira respeitosa e carinhosa – que lutem, lutem e lutem!

Não nos deixem sós, outros povos que estão lutando de maneira isolada em alguns lugares, na Síria, na Espanha, na Venezuela, no Equador, na Bolívia. Não nos deixem sós.

Geopoliticus Child Watching the Birth of the New Man
Salvador Dali

Precisamos de vocês, precisamos mais ainda de uma Europa que não veja somente à distância o que ocorre em outras partes do mundo, mas sim novamente uma Europa que volte a iluminar o destino do continente e o destino do mundo."


Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/alvaro-Garcia-Linera-as-esquerdas-da-Europa-e-do-mundo/6/29876

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A desigualdade que se acentua nos EUA

01/01/2014 - A desigualdade nos EUA
- Paul Krugman no The New York Times - Carta Capital

Aumento da disparidade de renda fez mais que a recessão para deprimir os ganhos da classe média

Demorou um tempo incrivelmente longo, mas a desigualdade finalmente está surgindo como uma questão unificadora significativa para os progressistas nos Estados Unidos – incluindo o presidente.

E também há, inevitavelmente, uma reação, ou na verdade algumas reações.

Uma delas vem de grupos como a organização Terceira Via.

Josh Marshall [foto], editor de Talking Points Memo [TPM], caracterizou essa posição em um artigo recente:

Ela capta muito do que se trata a ‘Terceira Via’: uma espécie de retrocesso fossilizado a um período do fim do século XX em que havia um mercado para grupos que tentavam puxar os democratas ‘de volta para o centro e para longe do extremismo ideológico’, em uma era em que os democratas são o partido, razoavelmente, não ideológico e têm um histórico bastante decente de ganhar eleições nas quais a maioria das pessoas vota”.

Mas também há uma reação intelectual, com pessoas como o colunista Ezra Klein [foto], do Washington Post afirmando que a desigualdade, embora seja uma questão importante, não pode ser descrita como “o desafio definidor de nosso tempo”.

Isso, por sua vez, enfurece outros comentaristas.

Bem, eu não estou furioso, mas argumentaria que Klein entendeu errado.

A tese de que a desigualdade é um desafio importante e realmente definidor – e algo que deveria estar no centro das preocupações progressistas – repousa em diversos pilares.

Vistas juntas, as razões para se concentrar na desigualdade são extremamente convincentes, mesmo que você seja cético sobre determinados argumentos.

Deixe-me defender quatro pontos.

Primeiro, em puros termos quantitativos, o aumento da desigualdade é o que o vice-presidente Joe Biden chamaria de Grande Alguma Coisa.

Os dados referentes à distribuição de renda mostram que a parcela dos 90% na camada inferior de renda, excluindo ganhos de capital, caiu de 54,7%, em 2000, para 50,4%, em 2012.

Isso significa que a renda dos 90% na camada inferior é cerca de 8% menor do que teria sido se a desigualdade tivesse se mantido estável.

Enquanto isso, as estimativas da lacuna de produção – à medida que nossa economia está operando abaixo da capacidade – geralmente são inferiores a 6%.

Assim, em puros termos numéricos, o aumento da desigualdade fez mais que a recessão para deprimir as rendas da classe média.

Alguém poderia argumentar que os danos causados pelo desemprego são maiores que a simples perda de renda, e eu concordaria. Mas é difícil olhar para esse tipo de cálculo e relegar a desigualdade a uma questão secundária.

Em segundo lugar, existe uma tese razoável para se atribuir pelo menos parcialmente a culpa pela crise econômica ao aumento da desigualdade.

A melhor história envolve algo como isso: havia uma poupança elevada do 1% da população, com a demanda sustentada apenas pelo rápido aumento da dívida mais abaixo na escala – e, como esse empréstimo era conduzido parcialmente pela desigualdade, levou a uma cascata de gastos e assim por diante.

É um caso dramático? Não – mas é sério, e reforça o resto do argumento.

Em terceiro, existe o aspecto da economia política, em que se pode argumentar que os fracassos políticos, tanto antes como, talvez de modo ainda mais crucial, depois da crise, foram distorcidos pelo aumento da desigualdade e o correspondente aumento do poder político do 1%.

Antes da crise, havia um consenso da elite a favor da desregulamentação e da financialização que nunca foi justificado por evidências, mas se alinhava estreitamente aos interesses de uma pequena e muito rica minoria.

Depois da crise, houve o súbito afastamento da geração de empregos para a obsessão pelo déficit; pesquisas sugerem que isso não era absolutamente o que o eleitor médio queria, mas que refletia as prioridades dos ricos.

E a insistência na importância de cortar benefícios é avassaladoramente uma coisa do 1%.

Finalmente, e muito ligada a isso, está a questão do que os grupos de pensadores progressistas deveriam pesquisar.

Klein sugeriu recentemente que “como combater o desemprego” deveria ser um tópico mais central que “como reduzir a desigualdade”.

Mas há aquela coisa: sabemos como combater o desemprego – não perfeitamente, mas a boa e velha macroeconomia básica funcionou muito bem desde 2008.

Não há mistério na economia de nossa lenta recuperação – é isso que o acontece quando endurecemos a política fiscal, apesar da desalavancagem privada, e a política monetária é restrita pelo limite inferior a zero.

A questão é por que nosso sistema político ignorou tudo o que a macroeconomia aprendeu, e a resposta para essa pergunta, como já sugeri, tem muito a ver com a desigualdade.

Fonte:
http://www.cartacapital.com.br/revista/780/a-desigualdade-nos-eua-1482.html

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Europa, terreno de luta

02/01/2014 - Quebrar o feitiço neoliberal: Europa, terreno de luta
- Euronomade - Sandro Mezzadra e Toni Negri [*]
- Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu - Redecastorphoto

Países da Zona do Euro (moeda única da Europa)
(para aumentar, clique na imagem)

Quem, como nós, não tem interesses eleitorais, está na melhor posição para reconhecer a grande importância que terão em 2014 as eleições ao Parlamento Europeu.

É fácil prever que na maior parte dos países implicados haverá alta abstenção e significativa afirmação das forças “eurocéticas”, unindo à retórica da “soberania nacional”, a hostilidade contra o euro e contra os “tecnocratas de Bruxelas”. Para nós, não é nada bom.

Estamos convencidos há tempos de que por baixo do perfil normativo, como por baixo da ação governamental capitalista, há uma Europa cuja integração já ultrapassou o portal do irreversível.

O realinhamento geral dos poderes na crise – em torno da centralidade do Banco Central Europeu e o que se define como “federalismo executivo” – modificou sem dúvida a direção do processo de integração, mas não pôs em discussão a continuidade daquele processo.

A própria moeda única mostra-se hoje consolidada na perspectiva da união bancária: é necessário responder à violência com que essa união bancária manifesta o mando capitalista; mas a volta às moedas nacionais significa não entender qual é o terreno no qual se disputa hoje a luta de classes.

Angela Merkel, chanceler alemã
É verdade que a Europa é hoje uma “Europa alemã”, cuja geografia econômica e política vai-se reorganizando em torno de relações concretas de força e de dependência, que se refletem até no nível monetário.

Mas só o feitiço neoliberal explica que se confundam a irreversibilidade do processo de integração, de um lado; e de outro a impossibilidade de modificar os conteúdos e as direções; de fazer agitarem-se dentro do espaço europeu a força e a riqueza de uma nova hipótese constituinte.

Quebrar esse feitiço neoliberal significa redescobrir hoje o espaço europeu como espaço de luta, de experimentação e de invenção política.

Como terreno sobre o qual a nova composição social dos trabalhadores, das trabalhadoras e dos pobres abrirá talvez uma perspectiva de organização política.

Lutando sobre o terreno europeu, uma organização assim terá a possibilidade de golpear diretamente a nova acumulação capitalista.

E só no terreno europeu é possível propor tanto a questão do salário como da renda; redefinir os direitos como nova dimensão do Welfare; tanto as transformações constitucionais internas nos países individuais, como a questão constituinte europeia. Hoje, não há realismo político se não nesse terreno.

Parece-nos que as forças de direita compreenderam há tempo que a irreversibilidade da integração assinala hoje o perímetro do que resulta política e praticamente pensável na Europa.

Em torno da hipótese de aprofundamento substancial do neoliberalismo, já se organizou um bloco hegemônico que inclui variantes significativamente heterogêneas (das aberturas não só táticas na direção de uma hipótese socialdemocrata de Angela Merkel, à violenta constrição repressiva e conservadora de Mariano Rajoy [foto]).

As mesmas forças de direita que se apresentam como “antieuropeias”, pelo menos nos seus componentes mais informados, jogam sua opção sobre o terreno europeu, com vistas a ampliar os espaços de autonomia nacional que estão bem presentes na Constituição Europeia, e recuperando, num plano meramente demagógico, o ressentimento e a fúria disseminados em amplos setores da população, depois de anos de crise.

A referência à nação mostra-se como o que é: transfiguração de um sentido de impotência em agressividade xenófoba; defesa de interesses particulares imaginados como arquitrave de uma “comunidade de destino”.

Por outro lado, a esquerda socialista, embora não fazendo parte do bloco hegemônico neoliberal, não consegue diferençar-se eficazmente daquele bloco no momento de elaborar propostas programáticas de signo claramente inovador.

A candidatura de Alexis Tsipras [foto], líder do partido Syriza, à presidência da Comissão Europeia, tem importância indubitável nessa ordem de coisas; já determinou em muitos países uma positiva abertura do debate de esquerda.

Em outros países, contudo, ainda parecem prevalecer os interesses de pequenos grupos ou “partidos”, incapazes de desenvolver discurso político plenamente europeu.

Com as coisas nesse pé, por que as eleições europeias de maio próximo nos parecem importantes?

Em primeiro lugar, porque tanto o relativo reforço dos poderes do Parlamento, como a designação pelos partidos de um candidato à Presidência da Comissão, fazem da campanha eleitoral, necessariamente, um momento de debate europeu, no qual as diversas forças ficarão obrigadas a definir e anunciar, pelo menos, algum esboço de programa político europeu.

Parece-nos pois que aqui se apresenta a ocasião para uma intervenção política dos que se batem para quebrar tanto o feitiço neoliberal como seu corolário, segundo o qual a única oposição possível à atual forma da União Europeia seria o “populismo” antieuropeu.

Não se exclua, de início, que essa intervenção possa encontrar interlocutores entre as forças que se movem no terreno eleitoral.

Mas estamos pensando, antes de tudo, numa intervenção de movimento, que consiga deitar raízes no interior das lutas que se desenvolveram nos últimos meses, embora de diferentes maneiras, em muitos países europeus – com intensidade significativa inclusive na Alemanha.

É decisivamente importante voltar a habilitar um discurso programático – e isso não é possível exclusivamente dentro e contra o espaço europeu.

Não vemos como se poderia questionar sociologicamente, de modo adequado, a “composição técnica de classe” de um ponto de vista messiânico acima da “composição política” adequada.

Do mesmo modo, não haverá movimentos de classe vitoriosos que não tenham interiorizado a dimensão europeia. Não seria a primeira vez, mesmo na história recente das lutas, que esses movimentos ver-se-iam forçados pelo marco político a se modificarem, voltando a experiências locais, até se verem asfixiadas em clausuras sectárias.

Trata-se de reconstruir imediatamente um horizonte geral de transformação, de elaborar coletivamente uma nova gramática política e um conjunto de elementos de programa que possam agregar força e poder no interior das lutas.

Aqui e agora – repetimos – a Europa nos parece ser o único espaço no qual isso é possível.

Um ponto nos parece particularmente importante.

A violência da crise fará sentir seus efeitos ainda por muito tempo. Não há “recuperação” à vista, se por recuperação se entender diminuição significativa do desemprego, diminuição do precarismo [1] e relativo reequilíbrio dos ganhos.

Mesmo assim, parece que se possa descartar o aprofundamento da crise.

O acordo sobre o salário mínimo, sobre o qual se fundamenta a nova coalizão na Alemanha, parece indicar, mais, um ponto de mediação no terreno do salário social que pode funcionar – em geometria e geografia variáveis – como critério de referência geral para a definição de um cenário de relativa estabilidade capitalista na Europa.

É um cenário, não a realidade atual, é um cenário de relativa estabilidade capitalista.

Para a força de trabalho e para as formas da cooperação social, esse cenário assume como dados de partida a extensão e a intensificação do precarismo, a mobilidade forçada dentro do espaço europeu e fora dele, o desclassamento de quotas relevantes do trabalho cognitivo e a formação de novas hierarquias dentro do trabalho cognitivo, determinados pela crise.

Mas em geral, o cenário de relativa estabilidade de que falamos constata a plena hegemonia de um capital cujas operações fundamentais têm natureza extrativa, quer dizer: combinam a persistência de uma exploração de tipo tradicional, com intervenções de “subtração” direta da riqueza social (mediante dispositivos financeiros, mas também porque assumem “bens comuns”, como, dentre outros, saúde e educação, como terreno privilegiado de valoração).

Não por acaso, os movimentos compreenderam que nesse terreno travam-se as lutas que podem golpear o novo regime de acumulação.

Nesse cenário trata-se, obviamente, de saber perceber a especificidade das lutas que se desenvolvem, de analisar sua heterogeneidade; e de medir sua eficácia em contextos políticos, sociais e territoriais que podem ser muito diferentes.

Mas trata-se também de propor os problemas de tal modo que as lutas possam convergir, multiplicando sua própria potência “local”, mas dentro do marco europeu.

Enquanto isso, delinear os novos elementos do programa pode ser feito mediante a escrita coletiva de uma série de princípios dos quais não se pode abrir mão, no terreno do Welfare e do trabalho; da fiscalidade e da mobilidade; das formas de vida e do precarismo, em todos os terrenos sobre os quais se expressaram os movimentos na Europa.

O que estamos pensando não seria uma carta de direitos redigida de baixo para cima que se apresentaria a alguma instância institucional: é mais, um exercício de definição programática que, como começa a mostrar a “Carta de Lampeduza” essas semanas, no que tenha a ver com migração e asilo, possa converter-se em instrumento de organização no nível europeu.

Sem esquecer que, nesse trabalho, podem aparecer impulsos decisivos, mesmo, imediatos, para construírem-se coalizões de forças locais e europeias, sindicais e cooperativas, em movimento.

Nota dos tradutores
[1] Há uma tendência no Brasil, a preferir-se “precariedade” a “precarismo”.
Optamos por “precarismo” para evitar uma arapuca semântica: todos os substantivos construídos com o sufixo “-idade” (como “precariedade”) são, necessariamente, sempre, substantivos abstratos (de fato, em praticamente todas as línguas em que o sufixo ocorre).
Não nos parece razoável acrescentar, a todas as dificuldades do precariato, mais essa dificuldade – terrível! – apresentar precariato mediante exclusivamente por um traço abstrato.
Por piores que sejam os “-ismos”, entendemos que nenhum deles seria o que é sem a luta muito concreta dos que lutaram por eles, ou neles e, claro, também contra eles.
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[*] Autores: Sandro Mezzadra e Toni Negri

Sandro Mezzadra é professor na Universidade de Bolonha. Os seus estudos concentram-se na história das ideias políticas e na teoria política. Nos últimos anos, tem-se debruçado sobre a relação entre globalização, migração e cidadania. Esteve igualmente envolvido na luta pelo direitos dos migrantes, nomeadamente no âmbito do primeiro dia de acção contra a reunião do G-8 em Génova (Itália) em 2001, dedicado às questões da migração, bem como nos fóruns sociais italianos. Entre as suas publicações, destacamos Diritto di fuga. Migrazioni, cittadinanza, globalizzazione, Verona, Ombre corte, 2001.

Antonio Negri, também conhecido como Toni Negri é um filósofo político italiano, tradutor dos escritos de Filosofia do Direito de Hegel, especialista em Descartes, Kant, Espinosa, Leopardi, Marx e Dilthey, tornou-se conhecido no meio universitário sobretudo por seu trabalho sobre Espinosa, mas sua atividade acadêmica sempre foi intimamente ligada à atividade política. Negri ganhou notoriedade internacional nos primeiros anos do século XXI, após o lançamento do livro Império - que se tornou um manifesto do movimento anti-globalização - e de sua sequência, Multidão, ambos escritos em co-autoria com seu ex-aluno Michael Hardt.

Fonte:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2014/01/quebrar-o-feitico-neoliberal-europa.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed:+redecastorphoto+(redecastorphoto)

sábado, 28 de dezembro de 2013

Ditadura judicial e o IPTU paulistano

22/12/2013 - Pressão contra Haddad envolve soberania popular e democracia
- Paulo Moreira Leite (*) em seu blog no Portal Terra

Muitas vezes, os  golpes contra a democracia são movimentos óbvios e visíveis, ilustrados por tanques de guerra, baionetas e generais.

Vivemos tempos em que a consciência democrática dos povos rejeita ataques frontais a seus direitos e é capaz de sair às ruas para defender conquistas históricas e permanentes.

São tempos de judicialização, quando forças conservadoras, sem voto, batem a porta dos tribunais para ameaçar a soberania popular, ignoram a vontade do cidadão e procuram resolver, às suas costas, o que é melhor para um país, um Estado, uma cidade.

A Constituição diz, no artigo 1, que todos os poderes emanam do povo, e são exercidos através de representantes eleitos – ou diretamente, na forma da lei.

Penso nisso diante da mais recente cena do Superior Tribunal Federal.

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, eleito de forma límpida e clara em 2012, foi obrigado a apresentar recurso para Joaquim Barbosa anular uma liminar da Justiça de São Paulo que proíbe a cobrança do aumento no IPTU, principal fonte de recursos da prefeitura da maior cidade do país.

Vamos combinar: já é absurdo que um prefeito que recebeu 55% dos votos no segundo turno seja obrigado a fazer uma caravana até Brasília para fazer valer seu direito de definir como pretende governar São Paulo.

É ainda mais absurdo, no entanto, que a palavra final fique com a Justiça.

Não há nenhum aspecto, neste debate, que envolva matéria constitucional.

Do ponto de vista eleitoral, Haddad pode estar até ajudando a colocar uma pedra na reeleição de Dilma Rousseff, como acreditam tantos petistas de olho em 2014, mas este é um debate entre o prefeito e seu partido.

A questão aqui envolve princípios e nunca é demais lembrar a visão que explica que os bons princípios são aqueles que podem ser defendidos inclusive quando contrariam nossos interesses.

O IPTU é um imposto tradicional das cidades brasileiras, com alíquotas que sobem e descem de acordo com as prioridades de cada prefeito.

Minha opinião é que o STF tem obrigação de devolver o assunto a quem foi eleito para isso – o prefeito e a Câmara de Vereadores, que já tomou posição a favor do aumento, também.

Essa situação elimina o mais maroto dos argumentos favoráveis a judicialização, aquele que admite que é um caminho errado, mas diz que a Justiça só entra em cena por causa da omissão dos demais poderes.

Qualquer passo em falso, nessa matéria, representará um ataque à vontade popular.

O recurso alternativo, de cozinhar o assunto numa sopa de oportunidades durante meses sem fim, será, na prática, uma forma de atender a pressão contra o aumento do IPTU, privando a cidade de recursos que o prefeito julga serem necessários – foi ele o escolhido por 3,3 milhões de eleitores para resolver isso.

Ao dar a liminar contra o aumento, o Tribunal de Justiça de São Paulo alegou, como causa principal, a “falta de debate público” sobre o tema.

Desculpe mas pensei que isso tinha ocorrido na eleição.

Quer dizer que tivemos o horário político, os debates eleitorais em todos os canais de TV e é possível alegar que “faltou debate?”

Depois de protestos de junho, onde a questão do transporte coletivo teve um destaque óbvio, será razoável bloquear receitas para investimentos que, por caminhos diversos, irão enfrentar este problema?

Nem nos tempos de George Bush, pai, aquele presidente dos EUA que mandou a população fixar o olho em seu lábios enquanto ele dizia vagarosamente não-haverá-mais-impostos durante a campanha, para mudar de ideia depois da posse na Casa Branca ouviu-se um argumento desses.

Tão subjetivo, digamos assim.

O debate sobre impostos maiores e menores faz parte do cotidiano político das democracias e, salvo nas ditaduras, sempre foi resolvido pelo eleitor.

Fernando Henrique Cardoso fez a carga tributária subir de 24% do PIB para 35%. Foi assim que seu governo conseguiu manter o célebre equilíbrio fiscal. O  Supremo não deu um pio, nem poderia nem deveria.

Dilma Rousseff desonerou vários setores da economia.

Nos Estados  municípios, governadores e prefeitos criam e eliminam incentivos fiscais.

É possível debater a oportunidade de cada uma dessas medidas.

Mas seria absurdo questionar o direito de autoridades eleitas de resolver uma questão fundamental do funcionamento do Estado.

O Estado do bem-estar europeu não foi construído com recursos espirituais, mas com impostos retirados dos mais ricos – inclusive sobre grandes fortunas – para beneficiar os mais pobres.

Imagine se eles fossem bater as portas dos tribunais para revogar as decisões?

Como mostra o grande pensador Tony Judt [foto], a Europa estaria nos braços negros do fascismo até hoje.

A contra revolução conservadora patrocinada por Ronald Reagan, nos EUA, tinha como base o corte de impostos da classe média alta e dos ricos.

Ninguém foi à  Corte Suprema por causa disso.

Podemos até não gostar, mas era o voto que naquele momento dava autoridade a Reagan.

O mesmo aconteceu na Inglaterra, nos anos de Margareth Thatcher.

A população chegou a fazer uma revolta popular quando ela criou uma taxa que tungava fundo no orçamento da população dos bairros mais pobres – a palavra final coube ao eleitor.

A questão do IPTU paulistano foi levada ao Supremo por esses caminhos que sempre são percorridos por quem não tem respaldo na vontade popular.

Não foi por acaso de Haddad mencionou a eliminação da CPMF, ocorrida no segundo mandato do governo Lula.

Naquele momento, a mesma FIESP já presidida pelo mesmo Paulo Skaf [foto] participou da operação que acabou com a CPMF através do Congresso.

A ação nada teve de democrática.

Os deputados tinham medo de não conseguir reeleger-se no pleito seguinte depois de apoiar uma medida tão perniciosa para a população mais pobre e queriam dinheiro para mudar de lado.

Foi um escândalo, conforme apurou a Polícia Federal na Operação Castelo de Areia.

Com base na investigação do caixa 2 de uma das maiores empreiteiras do país, descobriu-se o pagamento de propinas imensas a uma larga fatia do Congresso.

Feito o serviço com os parlamentares, chegou a hora de pedir ajuda a Justiça para se impedir a punição dos responsáveis.

Havia montanhas de diálogos gravados, comprometedores e vergonhosos.

Mas as principais peças de acusação foram anuladas, pois haviam sido obtidas sem autorização judicial.

Resultado: o STF anulou as provas e ficou tudo por isso mesmo.

Está certo? Está, por mais que seja chato admitir isso.

A democracia tem seus rituais, e um deles informa que os direitos dos cidadãos, mesmo aqueles acusados de crimes gravíssimos, devem ser respeitados.

E é em nome dos mesmos rituais que (putz!) ajudaram a salvar até aqueles tubarões que derrubaram a CPMF, mas em função de uma causa muito melhor, que se deve devolver as prerrogativas democráticas a quem tem o direito de falar pelo povo.

A alternativa é a ditadura judicial.

Este é um sistema que até pode conviver com algumas franquias democráticas mas, toda vez em que os ricos e poderosos se consideram atingidos em seus direitos, oferece acesso especial e personalizado para revogar medidas que não são de seu interesse.

(*) Paulo Moreira Leite, Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".

Fonte:
http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/colunista/48_PAULO+MOREIRA+LEITE

Nota:
A inserção das imagens, quase todas capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, pois inexistem no texto original.

Leia também:
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- As almas penadas da ditadura - Leandro Fortes