28/10/2013 - Ieda Estergilda de Abreu
- Revista Fórum, edição 125
A pesquisadora Luciane Lucas dos Santos [foto] fala sobre como o atual modelo de desenvolvimento e a sociedade de consumo se relacionam com as formas de violência presentes em nosso cotidiano
Como o atual modelo de desenvolvimento, adotado não apenas no Brasil, mas também em outros em países, afeta a dignidade humana?
Carioca com doutorado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela hoje é pesquisadora pós-doc no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em Portugal, e em junho esteve em São Paulo, onde conduziu o 105º Fórum do Comitê de Cultura de Paz, parceria Unesco-associação Palas Athena.

Fórum – Como se manifesta a violência hoje, na sua avaliação?
Luciane Lucas dos Santos – Muitos imaginam a violência como sendo apenas algo que tem a ver com o mal que um vai causar ao outro, com o contexto da guerra, da limpeza étnica, da violência das cidades. Há muitas formas de violência.
Caminhões com ameixas apodrecendo ao sol, que não chegam ao território palestino, é, por exemplo, uma forma de violência.
Pode-se pensar também na humilhação social e na invisibilidade de algumas minorias – caso dos moradores de rua – como uma forma agressiva e silenciosa de violência.
![]() |
Morador de rua em São Paulo: uma forma de violência não identificada pela sociedade em geral (Valter Campanato / ABr) |
Estive com alguns numa feira de trocas embaixo do Viaduto do Glicério [região central de São Paulo] e aprendi muito.
Muitos estão diretamente envolvidos na organização da feira de trocas do Glicério.
Trabalham montando e desmontando as barracas, na limpeza dos banheiros, no apoio às tarefas da cozinha. Recebem mirucas (moeda social) por este trabalho e, com elas, obtêm aquilo de que necessitam – alimento, roupas, produtos de higiene pessoal.

Tem gente que veio de outros estados, da construção civil, perderam o emprego, não tiveram como voltar e ficaram por aqui. Muitos não voltam para casa, para sua terra, por vergonha.
A razão para se estar na rua também pode ser diversa: o abandono e a desagregação familiar, assim como o desemprego, estão entre os motivos. A droga e o álcool chegam, às vezes, depois. A invisibilidade social a que eles são muitas vezes relegados é, sem dúvida, uma forma de violência.

Luciane – As ideias de progresso e desenvolvimento não raro transformam-se em desrespeito às diversidades e às diferentes temporalidades que marcam as múltiplas formas de organização da vida.
O Brasil faz parte de um grupo de países que têm apostado no neoextrativismo – ou seja, trata-se de uma aposta nos hidrocarbonetos, na mineração, no alargamento dos latifúndios.
As correlações, no entanto, nos escapam.
O hidrocarboneto pode estar no batom; quanto mais você compra, mais petróleo é necessário; quanto mais renova o celular, mais é necessário o coltan.


Fórum – Qual o papel do consumo nesse contexto?
Luciane – A maneira como eu me visto, onde eu como, que lugares eu frequento, tudo isto diz algo sobre mim. Os hábitos de consumo estão diretamente relacionados à questão da identidade.

Isto quer dizer que, embora os indivíduos re-signifiquem, a todo momento, os conteúdos que recebem eles estão sempre presos a uma teia de significados validada socialmente.
Outra questão a considerar é que, no mundo contemporâneo, os nossos afetos têm sido mediados pelo mundo dos bens. Há riscos nisto.
Uma mãe atarefada que leva o filho, no fim do dia, para comer numa destas grandes lojas de fast food está tentando propiciar à criança uma experiência de bem-estar instantânea.
Ela pode pensar: “meu filho, não temos muito tempo para estarmos juntos…. quero que esta experiência seja alegre pra você… se você gosta tanto de ficar aqui, então vambora”.

Este modelo de consumo que hoje alimentamos contribui para que se naturalize uma hierarquia entre diferenças. Hierarquia entre gêneros, etnias e classes sociais. Mas, também, entre saberes, entre temporalidades, entre modos de estar no mundo e organizar a reprodução material da vida.
Fórum – O que o carro significa nesse contexto?
Luciane – Tem tudo a ver, estamos falando da violência estrutural, cotidiana e que tem muito da nossa aceitação. E aí entram as relações de trabalho.

Um trabalhador, no canavial, corta 12 toneladas diárias de cana. Ele anda quase nove quilômetros para cortar essas toneladas, segundo uma pesquisa da Embrapa. Faz cerca de 800 trajetos diários, dá 133 mil golpes de podão por dia. É uma violência silenciosa de que não temos notícia.
Ainda assim, queremos que aumente o valor do etanol no mercado internacional porque significa que o Brasil vai crescer. De que modelo de desenvolvimento estamos falando, afinal?
Fórum – E sobre os impactos sociais e culturais por trás do nosso consumo?
Luciane – Vamos ao caso dos megaeventos, tendo em vista o “consumo” da cidade.
Veja o que se passa no Rio de Janeiro. Bairros inteiros estão sendo afetados para facilitar o tráfego entre o Galeão e a Barra.

Você sai da Vila Olímpia, por exemplo, e vai até Paraisópolis fazer um city tour. Os pobres viram, simplesmente, objeto de consumo.
De repente, torna-se in subir o bondinho do Alemão ou ir aos restaurantes bacanas que agora estão dentro das favelas.

A favela tem sido espetacularizada.
Não estou dizendo que tudo o que esteja acontecendo em função da Copa seja ruim, que as pessoas não estejam se reorganizando e criando oportunidades, mas quando transformamos a favela noutra coisa, estabelecemos com ela uma relação de violência.
Fórum – A questão indígena é outro tema de sua pesquisa. Como encaixaria no contexto da violência?
Luciane – Vou dar alguns exemplos do que tem acontecido com os povos indígenas para mostrar a situação de insegurança jurídica e fundiária.
Inúmeros documentos – entre projetos de lei, decretos etc – tratam de questões candentes sob uma perspetiva claramente anti-indígena.
.jpg)
Isto significa, todos sabemos, uma barreira política aos processos de demarcação.
A Portaria 303, por sua vez, em consonância com o Código Florestal, separa os povos originários dos recursos que estão em suas terras. Ou seja, restringe o usufruto dos bens e recursos por parte destas populações, ainda que tais bens e recursos se encontrem em terras indígenas.

Outro exemplo é o projeto de lei 1610/96, bem como seu texto substitutivo, que complementam o cenário de retrocesso.
Versam, ambos, sobre a exploração de recursos minerais em terras indígenas – sempre, é claro, com a alegação do interesse nacional. Segundo este Projeto de Lei, alcunhado de PL da Mineração, a consulta pública passa a ser um ato mais simbólico do que deliberativo e não interfere na continuidade do processo de exploração mineral.
Fórum – O que fazer?
Luciane – Primeiro, precisamos entender que dentro da diferença existem diferenças, para podermos perceber a dignidade de forma mais ampla.

Os problemas das mulheres não são sempre os mesmos; tampouco elas têm uma essência platônica a compartilhar.
Cair nesta cilada epistemológica é desconsiderar que os problemas vividos por estas mulheres podem ser ampliados diante de outras questões vividas na própria carne, como, por exemplo, o racismo, a intolerância religiosa, o preconceito com a opção sexual e as diferenciações de classe que abatem ainda mais o corpo da mulher pobre.
Já ouvi de uma mulher da periferia de São Paulo dizendo: “Quero saber como é que vocês podem me apoiar no final de semana, que é quando o bicho pega.”

Assim, não dá para, em nome dos direitos humanos, acharmos que a luta é a mesma para todo mundo; não necessariamente ela será.
Fórum – A senhora diz também que precisamos repensar a paz.
Luciane – Sim, fala-se muito na cultura de paz, mas acho importante pensarmos de que paz estamos falando e como ela é possível.
Evocar a paz implica, primeiro, não esquecer a diferença dentro das diferenças e perceber que não é possível evocar a paz, a dignidade, passando por cima de desigualdades e dívidas históricas.

A cultura de paz só poderá efetivamente acontecer mediante efetivos processos de tradução intercultural e, portanto, de respeito às diferenças.
A tradução intercultural, nos termos propostos por Boaventura de Sousa Santos, configura-se como um antídoto poderoso contra o esgarçamento do tecido social, constituindo também uma forma preciosa de articulação política das minorias silenciadas.
Queremos a paz, sim, mas uma paz justa, que não seja construída em cima do silenciamento e da diluição da diferença.
Fonte:
http://revistaforum.com.br/blog/2013/10/violencias-invisiveis/