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sábado, 22 de fevereiro de 2014

Água, saneamento e energia: contas pendentes

20/02/2014 - Thalif Deen, da IPS (Inter Press Service)
- extraído do site Envolverde

Nações Unidas, 20/2/2014 – Quando vencer o prazo para os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), em 2015, haverá uma omissão grave: milhões de pessoas continuarão sem água potável, saneamento e eletricidade em suas casas.

Conscientes dessa falta, os 193 membros da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) realizaram uma reunião de alto nível de dois dias, encerrada ontem, para abordar esses três temas com relação à próxima agenda mundial de desenvolvimento que substituirá os ODM.

Especialistas em água têm sérias dúvidas de que esses objetivos sejam alcançados até o próximo ano, a menos que haja uma drástica aceleração de esforços, particularmente na Ásia meridional e na África subsaariana.

Um informe da ONU afirmava em 2012 que a meta de reduzir pela metade a proporção de pessoas que vivem sem água potável fora alcançada e beneficiava mais de dois bilhões de seres humanos.

Porém, atualmente há 327 milhões de subsaarianos a mais do que em 1990 sem acesso a este serviço, disse à IPS o diretor de programas internacionais da organização WaterAid, com sede em Londres, Girish Menon [foto].

Nesse passo, essa região africana só poderá alcançar a referida meta em 2030, ressaltou.

Ao falar, no dia 18, perante os delegados, o presidente da Assembleia Geral, John Ashe [foto abaixo], descreveu a magnitude do problema com dados concretos: 783 milhões de pessoas vivem sem água potável, 2,5 bilhões não têm saneamento adequado e 1,4 bilhão carecem de eletricidade.

Para agravar essa situação, em muitos países do planeta existe um severo estresse hídrico e escassez de água”, afirmou. Ashe disse que cerca de 80% da população mundial vive em áreas com graves ameaças à segurança hídrica.

Um documento de referência preparado por seu escritório alerta que “conseguir o acesso universal à água potável, ao saneamento básico e aos serviços modernos de energia é um dos grandes desafios multifacetários do desenvolvimento que o mundo enfrenta hoje”.

Menon estima que essas carências devem ser contempladas nos novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a agenda que substituirá os ODM no próximo ano. “Se os ODS tiverem êxito em erradicar a pobreza sobre uma base sustentável, devem aprender com os fracassos dos ODM e reverter a negligência em matéria de saneamento e higiene”, afirmou.

Clarissa Brocklehurst [foto], ex-chefe de assuntos de água, saneamento e higiene do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), disse à IPS que, “embora os ODM sejam maravilhosos para impulsionar ações, ainda há vários desafios quando se aproxima o prazo de 2015”.

A meta referente à água foi alcançada, mas ainda não há um monitoramento geral da qualidade do serviço, e as estimativas sobre o número de pessoas que têm água potável se baseia em cálculos de aproximação, como o tipo de tecnologia usada pelas famílias, pontuou Brocklehurst. “Não houve progresso suficiente em saneamento, e estamos atrasados para alcançar a meta dos ODM”, acrescentou.

A especialista lamentou que o saneamento não faça parte dos ODM e, portanto, não tenha a atenção que merece. “Talvez o mais preocupante seja que os progressos feitos tanto em água como em saneamento estejam muito desiguais”, acrescentou.

Os moradores de zonas urbanas têm mais probabilidades de contar com água e saneamento do que os que residem em áreas rurais, bem como os ricos têm maior chance de contar com esses serviços do que os pobres.

Também há evidência de que, em alguns países, os grupos étnicos marginalizados têm mais probabilidade de depender de fontes de água não melhoradas e de serem obrigados a defecar ao ar livre, acrescentou Brocklehurst.

No jargão hídrico, uma fonte melhorada é aquela cuja instalação protege apropriadamente a água da contaminação externa, especialmente da matéria fecal.

“No ritmo atual, não conseguiremos a meta mundial de saneamento de 8%, isso representa 500 milhões de pessoas”, ressaltou Menon à IPS. Apenas 30% dos africanos subsaarianos contam com adequado saneamento, proporção que aumentou apenas 4% desde 1990. Este lento progresso está atrasando muitas outras metas, alertou.

Água, saneamento e higiene são fundamentais para erradicar a pobreza, melhorar a saúde, a nutrição, a educação e a igualdade de gênero, e tudo isso permite o crescimento econômico, observou Menon. “Devido ao alcance do desafio, propomos que seja fixada uma meta mundial concentrada em garantir água sustentada e saneamento para todos”, ressaltou.

Porém, Brocklehurst advertiu que os progressos constatados em vários ODM mostram um padrão semelhante. As novas metas pós-2015 deveriam ser desenhadas de forma a estimular os governos a considerarem com máxima prioridade os pobres, vulneráveis e marginalizados.

A água, o saneamento e a higiene devem ser parte das futuras metas. E essas metas devem ser capazes de criar o impulso para um acesso universal, enfatizou.

Segundo Menon, a ajuda internacional para água e saneamento caiu cerca de US$ 1 bilhão entre 2009 e 2011, em parte devido à crise financeira mundial. 

Embora essa assistência tenha se recuperado em 2012, ainda está na metade do valor necessário para financiar completamente os ODM. A informação dos países em desenvolvimento em água e saneamento não é clara, mas parece que nenhum governo subsaariano cumpriu sequer seu próprio objetivo de destinar 0,5% de seu produto interno bruto a esses setores, apontou Menon.

O ativista afirmou que o secretário-geral adjunto da ONU, Jan Eliasson [foto], assumiu a liderança nesses temas, e destacou seu “chamado à ação sobre saneamento” e seus discursos em diversos fóruns internacionais.

Por outro lado, acrescentou, a Organização Mundial da Saúde e o Unicef lideraram consultas internacionais para elaborar novas metas para depois de 2015.

A WaterAid apoia ativamente esses esforços e acredita que o acesso universal até 2030 é uma meta ambiciosa mas alcançável”, concluiu.

Número por número

• 748 milhões de pessoas não têm água limpa. Isto é quase um em cada dez habitantes do planeta.

• 2,5 bilhões de pessoas não têm banheiro adequado. Isto é um em cada três habitantes do planeta.

• Cerca de 700 mil crianças morrem por ano de diarreia causada por água contaminada e falta de saneamento. Isto é quase duas mil crianças por dia.

* Fonte: WaterAid - Envolverde/IPS

Fonte:
http://envolverde.com.br/ips/inter-press-service-reportagens/agua-saneamento-e-energia-contas-pendentes/

Leituras afins:
A luta pelo direito à água na Rio+20 - Zilda Ferreira
Agora, água para todos - Thalif Deen

Nota:
A inserção de imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Financeirizar a natureza, de que forma?

22/01/2014 - As commodities ambientais e a financeirização da natureza
- Entrevista especial com Amyra el-Khalili - por Andriolli Costa
- Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

A financeirização da natureza é a ação de tornar financeiro aquilo que é eminentemente econômico. Isso porque a melhora da qualidade de vida também é uma questão econômica”, propõe a economista.

De acordo com o Ministério da Agricultura, durante o ano de 2013 o agronegócio brasileiro atingiu a cifra recorde de 99,9 bilhões de dólares em exportações.

Soja, milho, cana ou carne ganham os mercados externos na forma de commodities: padronizadas, certificadas e atendendo a determinados critérios e valores regulados internacionalmente.

Para a economista Amyra el-Khalili [foto], no entanto, as monoculturas extensivas não deveriam ser a única alternativa de produção brasileira.

A movimentação econômica envolvendo as commodities tradicionais exclui do processo os pequenos e médios produtores, extrativistas, ribeirinhos e as populações tradicionais.

Sem grandes incentivos governamentais, sem investimento para atingir os elevados padrões de qualidade nacionais e internacionais ou capacidade produtiva para atingir os mercados, estes permanecem sempre à margem do sistema.

Foi com base no raciocínio da inclusão que a economista de origem palestina criou o conceito de commodity ambiental.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ela aborda a polêmica dos créditos de carbono (uma “comoditização da poluição”), questiona o fornecimento de créditos por Redução de Emissões por Desmatamento (Redd) para o agronegócio e descreve o conceito inicial criado por ela.

Uma commodity tradicional é a matéria-prima extraída do ecossistema, que é manufaturada, padronizada por um critério internacional de exportação adotado entre transnacionais e governos”.

Por outro lado, a commodity ambiental “também terá critérios de padronização, mas adotando valores socioambientais e um modelo econômico totalmente diferente”.

Khalili, que durante mais de 20 anos atuou como operadora de ouro no mercado financeiro, relata que o termo commodity é usado como uma provocação.

O conceito está em permanente construção, mas atualmente representa o produto manufaturado pela comunidade de forma artesanal, integrada com o ecossistema e que não promove impacto ambiental.

A commodity convencional privilegia a monocultura, a transgenia e a biologia sintética, com seus lucros concentrados nos grandes proprietários. A ambiental é pautada pela diversificação de produção, pela produção agroecológica e integrada, e privilegia o associativismo e o cooperativismo.

Amyra el-Khalili é economista graduada pela Faculdade de Economia, Finanças e Administração de São Paulo.

Atuou nos Mercados Futuros e de Capitais como operadora da bolsa, com uma carteira de clientes que ia do Banco Central do Brasil à Bombril S/A e ao Grupo Vicunha. Abandonou o mercado financeiro para investir seu tempo e energia no ativismo.

É idealizadora do projeto da Bolsa Brasileira de Commodities Ambientais, fundadora do Movimento Mulheres pela P@Z e editora da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras).

Khalili ministra cursos de extensão e MBA em diversas universidades, por meio de parcerias entre a rede, entidades locais e centros de pesquisa.

É autora do e-book gratuito Commodities Ambientais em missão de paz - novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe (São Paulo: Nova Consciência, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Existe diferença entre comoditização da natureza e financeirização da natureza? Quais?
Amyra el-Khalili – Existe, mas uma acaba interferindo na outra. A comoditização da natureza é transformar o bem comum em mercadoria.

Ou seja, a água, que na linguagem jurídica é chamada de bem difuso, deixa de ser bem de uso público para ser privatizada, para se tornar mercadoria.

A financeirização é diferente, é a ação de tornar financeiro aquilo que é eminentemente econômico. Isso porque a melhora da qualidade de vida também é uma questão econômica.

Uma região onde as pessoas conseguem conviver com a natureza e tem acesso à água limpa, por exemplo, oferece um custo financeiro melhor, onde você vive melhor e gasta menos. Isso também tem fundamento econômico.

IHU On-Line - No caso da financeirização da natureza, o que se encaixaria nessa descrição?
Amyra el-Khalili - A nossa obrigação de pagar por serviços que a natureza nos faz de graça e que nunca foram contabilizados na economia, como sequestrar o carbono da natureza, por exemplo.

As árvores sequestram o carbono naturalmente, mas para ter qualidade de ar daqui para frente é preciso pagar para respirar. Nessa lógica, aquele que respira precisa pagar pelo preço daquele que poluiu, enquanto este deixa de ser criminalizado e recebe flexibilidade para não ser multado.

IHU On-Line - Você foi a criadora do conceito de commodities ambientais, que é bem diferente da comoditização da natureza. Qual era a sua proposta inicial para o termo?
Amyra el-Khalili – Uma commodity tradicional é a matéria-prima extraída do ecossistema, que é manufaturada, padronizada por um critério internacional de exportação adotado entre transnacionais e governos.

Os pequenos e médios produtores, os extrativistas e ribeirinhos, entre outros, não participam dessas decisões.

O ouro, minério, não é uma commodity enquanto está na terra, é um bem comum. Ele torna-se uma quando é transformado em barras, registrado em bancos, devidamente certificado com padrão de qualidade avaliado e adequado a normas de comercialização internacional.

A commodity ambiental também terá critérios de padronização, mas adotando valores socioambientais e um modelo econômico totalmente diferente.

O conceito está em construção e debate permanente, mas hoje chegamos à seguinte conclusão: a commodity ambiental é o produto manufaturado pela comunidade de forma artesanal, integrada com o ecossistema e que não promove o impacto ambiental como ocorre na produção de commodities convencionais.

A convencional (soja, milho, café, etc.) é produzida com monocultura e a ambiental exige a diversificação da produção, respeitando os ciclos da natureza de acordo com as características de cada bioma.

A convencional caminha para transgenia, para biologia sintética e geoengenharia; a outra caminha para a agroecologia, permacultura, agricultura alternativa e de subsistência, estimulando e valorizando as formas tradicionais de produção que herdamos de nossos antepassados.

A convencional tende a concentrar o lucro nos grandes produtores, já a ambiental o divide em um modelo associativista e cooperativista para atender a maior parte da população que foi excluída do outro modelo de produção e financiamento.

O Brasil concentra sua política agropecuária em cinco produtos da pauta de exportação (soja, cana, boi, pinus e eucaliptos).

A comoditização convencional promove o desmatamento, que elimina a biodiversidade com a abertura das novas fronteiras agrícolas.

Nós somos produtores de grãos, mas não existe apenas essa forma de geração de emprego e renda no campo.

Quantas plantas nós temos no Brasil? Pense na capacidade da riqueza da nossa biodiversidade e o que nós poderíamos produzir com a diversificação.

Doces, frutas, sucos, polpas, bolos, plantas medicinais, chás, condimentos, temperos, licores, bebidas, farinhas, cascas reprocessadas e vários produtos oriundos de pesquisas gastronômicas.

Sem falar em artesanato, reaproveitamento de resíduos e reciclagem. O meio ambiente não é entrave para produzir, muito pelo contrário.

IHU On-Line - Como é possível transformar em commodity algo produzido de forma artesanal?
Amyra el-Khalili – O termo é justamente uma provocação. Na commodity ambiental utilizamos critérios de padronização reavaliando os critérios adotados nas commodities tradicionais. Por isso cunhei o termo para explicar a “descomoditização”.

No entanto, diferentemente das convencionais, os critérios de padronização podem ser discutidos, necessitam de intervenções de quem produz e podem ser modificados.

Nas commodities ambientais, o excluído deve estar no topo deste triângulo, pois os povos das florestas, as minorias, as comunidades que manejam os ecossistemas é que devem decidir sobre esses contratos, critérios e gestão destes recursos, uma vez que a maior parte dos territórios lhes pertence por herança tradicional.

Com objetivo de estimular a organização social, cito um exemplo de comercialização associativista e cooperativista bem-sucedida. É o caso dos produtores de flores de Holambra (SP) [foto]. 

Além de produzirem com controle e gestão adequados às suas necessidades, a força da produção coletiva e o padrão de qualidade fizeram com que o seu produto ganhasse espaço e reconhecimento nacional. Hoje você vê flores de Holambra até na novela da Globo.

Essa produção, porém, ainda está no padrão de commodities convencional, pois envolve o uso de agrotóxicos. Mesmo assim conseguiu adotar outro critério para decidir sobre a padronização, comercialização e precificação, libertando-se do sistema de monocultura.

A produção de flores é diversificada, o que faz com que o preço se mantenha acima do custo de produção, auferindo uma margem de lucro para seus produtores.

Inspirados no exemplo de comercialização da Cooperativa Agrícola de Holambra com o sistema de Leilão de Flores (Veiling), desenvolvemos um projeto de comercialização das commodities ambientais, além de novos critérios integrados e participativos de padronização com associativismo.

No entanto, o governo também precisa incentivar mais esse tipo de produção alternativa e comunitária.

A Anvisa, por exemplo, exige normas de vigilância sanitária e padrões de industrialização que tornam inacessível para as mulheres de Campos dos Goytacazes colocarem suas goiabadas nos supermercados brasileiros (para além de sua cidade). Quem consegue chegar aos supermercados para vender um doce? Só a Nestlé, só as grandes empresas.

E o questionamento que está sendo feito é justamente esse. Abrir espaço para que pessoas como as produtoras de doces saiam da margem do sistema econômico. Que elas também possam colocar o seu doce na prateleira e este concorra com um doce industrializado, com um preço que seja compatível com sua capacidade de produção. Não é industrializar o doce de goiaba, mas manter um padrão artesanal de tradição da goiabada cascão.

Se nós não tivermos critérios fitossanitários para trazer para dentro essa produção que é feita à margem do sistema, elas vão ser sempre espoliadas e não terão poder de decisão.

O que se pretende é que se crie um mercado alternativo e que esse mercado tenha as mesmas condições, e que possam, sobretudo, decidir sobre como, quando e o que produzir.

IHU On-Line – O termo commodities ambientais é por vezes utilizado de maneira distorcida, como que fazendo referência às commodities tradicionais, mas aplicada a assuntos ambientais, como os créditos de carbono. De que modo foi feita essa apropriação?
Amyra el-Khalili – Ele foi apropriado indevidamente pelos negociantes do mercado de carbono. Eles buscavam um termo diferente da expressão “créditos de carbono, uma palavra que já denuncia um erro operacional. Afinal, se você quer reduzir a emissão, por que creditar permissões para emitir?

Contadores, administradores de empresa e pessoas da área financeira não entendiam como se reduz emitindo um crédito que entra no balanço financeiro como ativo e não como passivo.

Como o nome créditos de carbono não estava caindo na graça de gente que entende do mercado, eles pegaram a expressão commodities ambientais para tentar justificar créditos de carbono. Porque na verdade estavam comoditizando a poluição e financeirizando-a.

É o que consideramos prática de assédio conceitual sub-reptício: quando se apropriam das ideias alheias, esvaziam-nas em seu conteúdo original e preenchem-nas com conteúdo espúrio.

É importante salientar que esse “modus operandi” está ocorrendo também com outras iniciativas e temas como a questão de gênero e étnicas. Bandeiras tão duramente conquistadas por anos de trabalho e que nos são tão caras.

IHU On-Line - Os defensores da Redução Certificada de Emissão promovida pelos Créditos de Carbono afirmam que apesar desse recurso oferecer aos países industrializados uma permissão para poluir, o governo estabelece um limite para estas transações. Você concorda com tal afirmação?
Amyra el-Khalili – Esse controle tanto não é feito de maneira adequada, que desde 2012 há uma polêmica no parlamento europeu de grupos que exigem que a Comunidade Europeia retenha 900 milhões de permissões de emissão autorizadas após o mercado ter sido inundado por estas permissões (cap and trade).

São permissões auferidas pelos órgãos governamentais que foram vendidas quando a cotação dos créditos de carbono estava em alta e agora caíram para quase zero. Então na teoria pode ser muito bonito, mas entre a teoria e a prática há uma distância oceânica.

Há também o seguinte: ainda que você tenha o controle regional, a partir do momento que um título desses vai ao mercado financeiro e pode ser trocado entre países e estados em um sistema globalizado, quem controla um sistema desses? 

Se internamente, com os nossos títulos, às vezes ocorrem fraudes e perda de controle tanto com a emissão quanto com as garantias, como se vai controlar algo que está migrando de um canto para outro? É praticamente impossível controlar volumes vultosos de um mercado intangível e de difícil mensuração.

IHU On-Line - A China e a Califórnia planejam utilizar os arrozais como fonte para créditos de carbono, o que levou a uma reação da comunidade ambiental com o movimento No-Redd Rice. Em que consiste o movimento e por que ele é contrário a este acordo?
Amyra el-Khalili – O REDD, a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, é a compra de um título em créditos de carbono sobre uma área de floresta que deve ser preservada.

Trata-se de mais um exemplo de financeirização da natureza, pois vincula a comunidade local a um contrato financeiro em que ela fica impedida de manejar a área por muitos anos, enquanto a outra parte do contrato continua produzindo e emitindo poluição do outro lado do mundo.

No caso do arroz com REDD, acontece o seguinte: com o entendimento de que uma floresta sequestra carbono, e que é possível emitir créditos de carbono sobre uma área preservada de floresta, o argumento é que a plantação também sequestra. 

O transgênico inclusive sequestra mais carbono do que a agricultura convencional, porque a transgenia promove o crescimento mais rápido da planta e acelera o ciclo do carbono. 

Então qualquer coisa que você plantar na monocultura intensiva, como a cana ou a soja, vai sequestrar carbono também.

E, por isso, o agronegócio deseja emitir créditos de carbono também para a agricultura. Podemos dizer que não sequestra? Não, realmente sequestra, mas e quanto aos impactos ambientais?

O movimento internacional contra REDD com Arroz está se posicionando porque isso pressionará toda a produção agropecuária mundial, colocando os médios e pequenos produtores, populações tradicionais, populações indígenas novamente reféns das transnacionais e dos impactos socioambientais que esse modelo econômico excludente está causando, além de afetar diretamente o direito à soberania alimentar dos povos, vinculando o modelo de produção à biotecnologia e com novos experimentos bio-geo-químicos.

IHU On-Line - O problema é que, se o crédito de carbono foi criado com o objetivo de diminuir os impactos ambientais, não se pode colocar sob uma monocultura que gera impactos da mesma forma, a possibilidade de solução do problema, correto?
Amyra el-Khalili – Exatamente.

Outra coisa importante é que, mesmo com o conceito commodity ambiental estando em construção coletiva e permanentemente em discussão, hoje nós temos a certeza do que não é uma commodity ambiental.

Elas não são transgênicas, nem podem ser produzidas com derivados da biotecnologia — como biologia sintética e geoengenharia.

Não são monocultura, não podem se concentrar em grandes produtores, não causam doenças pelo uso de minerais cancerígenos (amianto), não usam produtos químicos, nem envolvem a poluição ou fatores que possam criar problemas de saúde pública, pois estes elementos geram enormes impactos ambientais e socioeconômicos.

A produção agrícola, como é feita hoje, incentiva o produtor a mudar sua produção conforme o valor pago pelo mercado. Então se a demanda for de goiaba, só se planta goiaba.

Nas commodities ambientais, não. Não é o mercado, mas o ecossistema que tem o poder de determinar os limites da produção.

Com a diversificação da produção, quando não é temporada de goiaba é a de caqui, se não for caqui na próxima safra tem pequi e na seguinte melancia.

Se começarmos a interferir no ecossistema para manter a mesma monocultura durante os 365 dias do ano, vamos gerar um impacto gravíssimo.

IHU On-Line – O que é a água virtual e como esse conceito se encaixa na discussão de commodities?
Amyra el-KhaliliA água virtual é a quantidade de água necessária para a produção das commodities que enviamos para exportação.

No Oriente Médio, ou em outros países em crise de abastecimento, como não há água para a produção agrícola extensa a alternativa é importar alimento de outros países.

Quando se está importando alimento, também se importa a água que este país investiu e que o outro deixou de gastar.

O que se defende na nossa linha de raciocínio é que, quando exportamos commodities tradicionais (soja, milho, boi, etc.), se pague esta água também. No entanto, não é paga nem a água, nem a energia ou o solo gasto para a produção daquela monocultura extensiva.

A comoditização convencional, no modelo que temos no Brasil há 513 anos, é altamente consumidora de energia, de solo, de água e biodiversidade, e esse custo não está agregado ao preço da commodity.

O produtor não recebe este valor, pois vende a soja pelo preço formado na Bolsa de Chicago. Quem compra commodity quer pagar barato, sempre vai pressionar para que este preço seja baixo.

IHU On-Line – Ainda sobre a água, se é na escassez dos recursos que estes passam a ser valorizados como mercadoria, quais as perspectivas de uma crise mundial no abastecimento hídrico?
Amyra el-Khalili – Eu considero a questão hídrica a mais grave e mais emergencial no mundo. Sem água não há vida, ela é essencial para a sobrevivência do ser humano e de todos os seres vivos. A falta de água é morte imediata em qualquer circunstância.

No Brasil não estamos livres do problema da água. Muita dessa água está sendo contaminada com despejo de efluentes, agrotóxicos, químicos e com a eminência da exploração de gás de xisto, por exemplo, onde a técnica usada para fraturar a rocha pode contaminar as águas subterrâneas.

Os pesquisadores e a mídia dão ênfase muito grande para as mudanças climáticas, que é a consequência, sem aprofundar a discussão sobre as causas.

Dão destaque para o mercado de carbono como “a solução”, sem dar prioridade para a causa que é o binômio água e energia.

O modelo energético adotado no mundo colabora para esses desequilíbrios climáticos, se não for o maior responsável entre todos os fatores.

Nós somos totalmente dependentes de energia fóssil, e no Brasil temos um duplo uso da água: para produzir energia (hidrelétricas) e para produção agropecuária e industrial, além do consumo humano e de demais seres vivos.

E por que é necessário produzir tanta energia? Porque nosso padrão de consumo é altamente consumidor.

Seguimos barrando rios e fazendo hidrelétricas, e quando barramos rios, matamos todo o ecossistema que é dependente do ciclo hidrológico.

Caso o binômio água e energia seja resolvido, também será resolvido o problema da emissão de carbono. Quando se resolve a questão hídrica, recompomos as florestas, as matas ciliares, a biodiversidade.

O fluxo de oxigênio no ambiente e a própria natureza trabalhará para reduzir a emissão de carbono.

Se não atacarmos as causas ficaremos circulando em torno das consequências, sem encontrarmos uma solução real e eficiente para as presentes e futuras gerações.

Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/527511-as-commodities-ambientais-e-a-financeirizacao-da-natureza-entrevista-especial-com-amyra-el-khalili

Nota:
A inserção de imagens adicionais às de Clarinha Glock, da IPS, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A obesidade e a fome

16/01/2014 - “A obesidade e a fome são os dois lados de um sistema alimentar que não funciona
- Entrevista com Esther Vivas - Instituto Humanitas Unisinos (IHU)

Por ocasião da sua visita a Tenerife para a comemoração do Dia Internacional das Mulheres Rurais (15 de outubro), tivemos a oportunidade de conversar com Esther Vivas, [foto] ativista social e pesquisadora de políticas agrárias e alimentares.

A entrevista está publicada na revista Mundo Rural n. 13, do AgroCabildo, Cabildo de Tenerife, 14-01-2014. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Qual é o estado do atual modelo de produção, distribuição e consumo de alimentos?
Atualmente, enquanto milhões de pessoas no mundo não têm o que comer, outros comem muito e mal.

A obesidade e a fome são os dois lados da mesma moeda: a de um sistema alimentar que não funciona e que condena milhões de pessoas à má nutrição.

Vivemos, definitivamente, em um mundo de obesos e famélicos.

Os números deixam isso claro: 870 milhões de pessoas no mundo passam fome, enquanto 500 milhões têm problemas de obesidade, segundo indica o relatório O Estado Mundial da Agricultura e da Alimentação 2013, publicado recentemente pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), e que este ano analisa a mácula da má nutrição.

Uma problemática que não afeta apenas os países do Sul, mas que aqui está cada vez mais próxima.

A fome severa e a obesidade são apenas a ponta do iceberg.

Como acrescenta a FAO, dois milhões de pessoas no mundo sofrem deficiências de micronutrientes (ferro, vitamina A, iodo...), 26% das crianças têm, em consequência, atraso no crescimento e 1,4 bilhão vivem com sobrepeso.

O problema da alimentação não consiste apenas em se podemos comer ou não, mas no que ingerimos, de que qualidade, procedência, como foi elaborada.

Não se trata apenas de comer, mas de comer bem.

E quem sai ganhando com este modelo?
A indústria agroalimentar e a grande distribuição, os supermercados, são os principais beneficiários.

Alimentos quilométricos (que vêm da outra ponta do mundo), cultivados com altas doses de pesticidas e fitossanitários, em condições precárias de trabalho, prescindindo do campesinato, com pouco valor nutritivo... são alguns dos elementos que o caracterizam.

Em suma, um sistema que antepõe os interesses particulares do agrobusiness [agronegócio] às necessidades alimentares das pessoas.

Como afirma Raj Patel [foto] em seu livro Obesos e Famélicos (Los Libros de Lince, 2008):

“A fome e o sobrepeso globais são sintomas de um mesmo problema (...) 

Os obesos e os famélicos estão vinculados entre si pelas cadeias de produção que levam os alimentos do campo à nossa mesa”.

E acrescento: para comer bem, para que todos possam comer bem, é preciso romper com o monopólio destas multinacionais na produção, distribuição e consumo de alimentos. Para que acima do afã do lucro, prevaleça o direito à alimentação das pessoas.

E quem sai perdendo?
Estamos correndo o risco do desmantelamento de um setor, o agrário, estratégico para a nossa economia.

Algo que não é novo, mas que com as atuais medidas só se agravou.

Atualmente, menos de 5% da população ativa no Estado espanhol trabalha na agricultura, e uma parte muito significativa são pessoas maiores de idade.

Algo que, segundo os padrões atuais, é símbolo de progresso e modernidade.

Talvez, teríamos que começar a nos perguntar com que parâmetros se definem ambos os conceitos.

A agricultura camponesa é uma prática em extinção.

Atualmente, milhares de propriedades fecham suas portas. Sobreviver no campo e trabalhar a terra não é tarefa fácil.

E quem mais sai perdendo no atual modelo de produção, distribuição e consumo de alimentos são, precisamente, aqueles que produzem os alimentos.

A renda agrária situava-se, em 2007, segundo a COAG, em 65% da renda geral. Seu empobrecimento é claro. Avançamos para uma agricultura sem camponeses.

E, se estes desaparecem, nas mãos de quem fica a nossa alimentação?

Que relação existe com a atual situação de crise?
A crise econômica só piorou esta situação.

Cada vez mais pessoas são empurradas a comprar produtos baratos e menos nutritivos, segundo se desprende do relatório Geração XXL (2012), da companhia de pesquisa IPSOS.

Como estes indicam, na Grã-Bretanha, para dar um exemplo, a crise fez com que as vendas de carne de cordeiro, verduras e frutas frescas diminuíssem consideravelmente, ao passo que o consumo de produtos enlatados, como biscoitos e pizzas, aumentasse nos últimos cinco anos.

Uma tendência generalizável a outros países da União Europeia.

Milhões de pessoas sofrem hoje as consequências deste modelo de alimentação “fast food”, que acaba com a nossa saúde.

As doenças vinculadas ao que comemos só aumentaram nos últimos tempos: diabetes, alergias, colesterol, hiperatividade infantil, etc.

E isto tem consequências econômicas diretas.

Segundo a FAO, a estimativa do custo econômico do sobrepeso e da obesidade foi, em 2010, de aproximadamente 1,4 bilhão de dólares.

Existe alguma alternativa?
Quais são os elementos e a condições necessárias para elas?
Como indica a organização internacional GRAIN, a produção de alimentos multiplicou-se por três desde os anos 1960, ao passo que a população mundial tão somente duplicou desde então, mas os mecanismos de produção, distribuição e consumo, a serviço dos interesses privados, impedem aos mais pobres a obtenção necessária de alimentos.

O acesso, por parte do pequeno agricultor, à terra, à água, às sementes... não é um direito garantido. Os consumidores não sabem de onde vem aquilo que comem, não podem escolher consumir produtos livres de transgênicos.

A cadeia agroalimentar foi se alargando progressivamente afastando, cada vez mais, produção e consumo, favorecendo a apropriação das diferentes etapas da cadeia por empresas agroindustriais, com a consequente perda de autonomia de camponeses e consumidores.

Diante deste modelo dominante do agrobusiness, onde a busca do lucro econômico se antepõe às necessidades alimentares das pessoas e ao respeito ao meio ambiente, surge o paradigma alternativo da soberania alimentar.

Uma proposta que reivindica o direito de cada povo a definir suas políticas agrícolas e alimentares, a controlar seu mercado doméstico, a impedir a entrada de produtos excedentes através de mecanismos de dumping, a promover uma agricultura local, diversa, camponesa e sustentável, que respeite o território, entendendo o comércio internacional como um complemento à produção local.

A soberania alimentar implica em devolver o controle dos bens naturais, como a terra, a água e as sementes, às comunidades e lutar contra a privatização da vida.

Não são propostas utópicas? Que estratégias são requeridas?

Um dos argumentos que os detratores da soberania alimentar utilizam é que a agricultura ecológica é incapaz de alimentar o mundo.

Mas contrariamente a este discurso, vários estudos demonstram que esta afirmação é falsa.

Esta é a conclusão de uma exaustiva consulta internacional impulsionada pelo Banco Mundial [BM] em parceria com a FAO, o PNUD, a Unesco, representantes de governos, instituições privadas, científicas, sociais, etc., projetado como um modelo de consultoria híbrida, que envolveu mais de 400 cientistas e especialistas em alimentação e desenvolvimento rural durante quatro anos.

É interessante observar como, apesar de que o relatório tivesse estas instituições na retaguarda, concluía que a produção agroecológica provia de ingressos alimentares e monetários os mais pobres, ao mesmo tempo que gerava excedentes para o mercado, sendo melhor garantia de segurança alimentar que a produção transgênica.

O relatório da IAASTD, publicado no começo de 2009, apostava na produção local, camponesa e familiar e na redistribuição das terras nas mãos das comunidades rurais.

O relatório foi rechaçado pelo agrobusiness e arquivado pelo Banco Mundial, embora 61 governos o aprovassem discretamente, com exceção dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, entre outros.

Alcançar este objetivo requer uma estratégia de ruptura com as políticas agrícolas neoliberais impostas pela Organização Mundial do Comércio [OMC], pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional [FMI], que erodiram a soberania alimentar dos povos a partir de seus ditados de livre comércio, planos de ajuste estrutural, endividamento externo, etc.

Frente a estas políticas, é preciso gerar mecanismos de intervenção e de regulação que permitam estabilizar os preços, controlar as importações, estabelecer cotas, proibir o dumping e, em momentos de sobreprodução, criar reservas específicas para quando estes alimentos escassearem.

Em nível nacional, os países têm que ser soberanos na hora de decidir seu grau de autossuficiência produtiva e priorizar a produção de alimentos para o consumo doméstico, sem intervenções externas.

Mas, reivindicar a soberania alimentar não implica em um retorno romântico ao passado; antes, trata-se de recuperar o conhecimento e as práticas tradicionais e combiná-las com as novas tecnologias e os novos saberes.

Não deve consistir tampouco em um projeto localista, nem numa “mistificação do pequeno”, mas em repensar o sistema alimentar mundial para favorecer formas democráticas de produção e distribuição de alimentos.

A que responde o auge dos grupos de consumo? Como foi a evolução mais recente destes grupos na Espanha?
Os grupos e as cooperativas de consumo propõem um modelo de agricultura cujos objetivos se centram
- em encurtar a distância entre produção e consumo, em relações de confiança e solidariedade entre ambos os extremos da cadeia, entre o campo e a cidade;
- em apoiar uma agricultura camponesa e de proximidade que cuida da nossa terra e que defende um mundo rural vivo com o propósito de poder viver dignamente do campo;
- e em promover uma agricultura ecológica e de temporada, que respeite e tenha em conta os ciclos da terra.

Assim mesmo, nas cidades, estas experiências permitem fortalecer o tecido local, gerar conhecimento mútuo e promover iniciativas baseadas na autogestão e na autoorganização.

De fato, a maior parte dos grupos de consumo encontra-se nos núcleos urbanos, onde a distância e a dificuldade para contatar diretamente com os produtores são maiores, e, deste modo, pessoas de um bairro ou localidade se juntam para realizar “outro consumo”.

Existem, assim mesmo, vários modelos: aqueles em que o produtor serve semanalmente uma cesta, fechada, com frutas e verduras ou aqueles em que o consumidor pode escolher quais alimentos de estação quer consumir de uma lista de produtos oferecidos pelo camponês com quem trabalha.

Também, em nível legal, encontramos majoritariamente grupos inscritos, como associações, e, alguns poucos, de experiências mais consolidadas e com longa trajetória, com formato de sociedade cooperativa.

Os primeiros grupos surgiram, no Estado espanhol, no final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, majoritariamente na Andaluzia e na Catalunha,  embora também encontremos alguns em Euskal Herria e no País Valencià, entre outros.

Uma segunda onda se deu nos anos 2000, quando estas experimentaram um crescimento muito importante ali onde já existiam e apareceram pela primeira vez onde não tinham presença.

Atualmente, estas iniciativas se consolidaram e multiplicaram de maneira muito significativa, em um processo difícil de quantificar devido ao seu caráter particular.

O auge destas experiências responde, do meu ponto de vista, a duas questões centrais.

Por um lado, a uma crescente preocupação social sobre o que se come, diante da proliferação de escândalos alimentares, nos últimos anos, como a doença da vaca louca, os frangos com dioxinas, a gripe suína, a e-coli, etc.

Comer, e comer bem, importa de novo. E, por outro lado, a necessidade de muitos ativistas sociais de buscar alternativas no cotidiano, para além de se mobilizarem contra a globalização neoliberal e seus artífices.

Justamente depois da emergência do movimento antiglobalização e antiguerra, no começo dos anos 2000, uma parte significativa das pessoas que participaram ativamente destes espaços impulsionaram ou entraram para fazer parte de grupos de consumo agroecológico, redes de intercâmbio, meios de comunicação alternativos, etc.

Que papel tem as mulheres neste processo?
Avançar na construção de alternativas ao atual modelo agrícola e alimentar implica em incorporar uma perspectiva de gênero.

Trata-se de reconhecer o papel que as mulheres têm no cultivo e comercialização daquilo que comemos.

Entre 60% e 80% da produção de alimentos nos países do Sul, segundo dados da FAO, recai sobre as mulheres.

Estas são as principais produtoras de cultivos básicos como o arroz, o trigo e o milho, que alimentam as populações mais empobrecidas do Sul global.

Mas, apesar de seu papel chave na agricultura e na alimentação, elas são, junto com as crianças, as mais afetadas pela fome.

As mulheres, em muitos países da África, Ásia e América Latina enfrentam enormes dificuldades para ter acesso a terra, obter créditos, etc.

Mas estes problemas não se dão apenas no Sul.

Na Europa, muitas camponesas sofrem de uma total insegurança jurídica, já que a maioria delas trabalha em explorações familiares onde os direitos administrativos são propriedade exclusiva do titular da exploração e as mulheres, apesar de trabalhar nela, não têm direito a auxílios, à plantação, a uma cota láctica, etc.

A soberania alimentar tem que romper não apenas com um modelo agrícola capitalista, mas também com um sistema patriarcal, profundamente arraigado em nossa sociedade, que oprime e submete as mulheres.

Uma soberania alimentar que não inclua uma perspectiva feminista estará condenada ao fracasso.

Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/527306-a-obesidade-e-a-fome-sao-os-dois-lados-de-um-sistema-alimentar-que-nao-funciona-entrevista-com-esther-vivas

Leituras afins:

- XV Simpósio Internacional IHU - “Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio” - de 05 a 08 de maio de 2014
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- Fome: 10 fatos para saber em 2014 - Ana Duarte Carmo

Nota:

A inserção de algumas imagens adicionais, capturadas do Google Images, são de nossa responsabilidade, elas inexistem no texto original.