Por uma Ética para a Sustentabilidade
Introdução
O modelo civilizatório dominante degrada o meio ambiente, sub-valoriza a diversidade cultural e desconhece o Outro (o indígena, o pobre, a mulher, o negro, o Sul), ao mesmo tempo em que privilegia um modo de produção e um estilo de vida insustentáveis que se tornaram hegemônicos no processo da globalização (VERDADEIRO, QUE NÃO ESTEJA RESTRITO A ECONOMIA, QUE É MESMO ASSIM IMPOSSÍVEL NO CAPITALISMO).
É o resultado de uma visão mecanicista do mundo que, ignorando os limites biofísicos da natureza e os estilos de vida das diferentes culturas, está acelerando o aquecimento global do planeta. Esta é uma ação humana e não da natureza. A crise ambiental é uma crise moral de instituições políticas, de aparatos jurídicos de dominação, de relações sociais injustas e de uma racionalidade instrumental em conflito com a trama da vida.
3. O discurso do "desenvolvimento sustentável" parte de uma idéia equivocada. As políticas do desenvolvimento sustentável buscam harmonizar o processo econômico com a conservação da natureza favorecendo um equilíbrio entre a satisfação de necessidades atuais e das gerações futuras. Contudo pretende realizar seus objetivos revitalizando o velho mito desenvolvimentista, promovendo a falácia de um crescimento econômico sustentável sobre a natureza limitada do planeta. Mas a crítica a esta noção do desenvolvimento sustentável não invalida a verdade e o sentido do conceito de sustentabilidade para orientar a construção de uma nova racionalidade social e produtiva.
4. O conceito de sustentabilidade se funda no reconhecimento dos limites e potenciais da natureza, assim como a complexidade ambiental, inspirando uma nova compreensão do mundo para enfrentar os desafios da humanidade no terceiro milênio.
O conceito de sustentabilidade promove uma nova aliança natureza-cultura fundando uma nova economia, reorientando os potenciais da ciência e da tecnologia, e 1 A idéia de elaborar um Manifesto para a Sustentabilidade surgiu no Simpósio sobre Ética e Desenvolvimento Sustentável, celebrado em Bogotá, Colômbia, em 2-4 de Maio de 2002, do qual participaram: Carlos Galano (Argentina); Marianella Curi (Bolívia); Oscar Motomura, Carlos Walter Porto Gonçalves, Marina Silva (Brasil); Augusto Ángel, Felipe Ángel, José Maria Borrero, Julio Carrizosa, Hernán Cortés, Margarita Flórez, Alfonso Llano, Alicia Lozano, Juan Maer, Klaus Schütze e Luis Carlos Valenzuela (Colômbia); Eduardo Mora e Lorena San Román (Costa Rica); Ismael Clark (Cuba); Antonio Elizalde e Sara Arraín (Chile); Maria Fernanda Espinosa e Sebastián Haji Manchineri (Equador); Luis Alberto Franco (Guatemala); Luis Manuel Guerra, Beatriz Paredes e Gabriel Quadri (México); Guillermo Castro (Panamá); Eloisa Tréllez (Peru); Juan Carlos Ramírez (CEPAL); Lorena San Román e Mirian Vilela (Conselho da Terra); Fernando Calderón (PNUD); Ricardo Sánchez e Enrique Leff (PNUMA).
Uma primeira versão do mesmo foi apresentada na Sétima Reunião do Comitê Intersecional do Fórum de Ministros de Meio Ambiente da América Latina e do Caribe, celebrada em São Paulo , Brasil, em 15-17 de maio de 2002. A presente versão é uma re-elaboração deste texto baseada em consultas realizadas com os participantes do Simpósio, assim como em comentários de um grupo de pessoas, entre as quais agradecemos as sugestões de Lúcia Helena de Oliveira Cunha
(Brasil); Diana Luque, Mario Núñez, Armando Páez e José Romero (México).
construindo uma nova cultura política baseada em uma ética da sustentabilidade –em valores, crenças, sentimentos e saberes– que renovam os sentidos existenciais, os modos de vida e as formas de habitar o planeta Terra.
5. As políticas ambientais e de desenvolvimento sustentável foram baseadas em um conjunto de princípios e em uma consciência ecológica que serviram de critérios para orientar as ações dos governos, das instituições internacionais e da cidadania. A partir do primeiro Dia da Terra em 1970 e da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (Estocolmo, 1972) e ainda a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92) e no processo da Rio+10; desde a Primavera Silenciosa, A Bomba Populacional e Os Limites do Crescimento passando pelo Nosso Futuro Comum, Princípios do Rio e A Carta da Terra, um conjunto de preceitos tem acompanhado as estratégias do eco-desenvolvimento e as políticas do desenvolvimento sustentável. Os princípios do desenvolvimento sustentável partem da percepção do mundo como "uma Terra única" com um "futuro comum" para a humanidade; orientam uma nova geopolítica fundamentada no "pensar globalmente e agir localmente"; estabelecem o "princípio da precaução" para conservar a vida perante a falta de certezas do conhecimento científico e o excesso de imperativos tecnológicos e econômicos; promovem a responsabilidade coletiva, a igualdade social, a justiça ambiental e a qualidade de vida das gerações presentes e futuras. Apesar disso estes preceitos de "desenvolvimento sustentável" não se traduziram em uma
ética como um corpo de normas de conduta que reoriente os processos econômicos e políticos até uma nova racionalidade social e até formas sustentáveis de produção e de vida.
6. Durante a década que vai da Rio 92 até a Cúpula de Johannesburgo (2002), a
economia evoluiu para economia ecológica, a ecologia se converteu em ecologia
política, e a diversidade cultural levou a uma política da diferença. A ética está se
tornando ética política. Da dicotomia entre a razão pura e a razão prática, da
desconexão entre os interesses e os valores, a sociedade se re-posiciona como
economia moral e uma racionalidade ética que inspira a solidariedade entre os seres humanos e com a natureza. A ética para a sustentabilidade promove a gestão participativa de bens e serviços ambientais da humanidade para o bem comum; a coexistência de direitos coletivos e individuais; a satisfação de necessidades básicas, realizações pessoais e aspirações culturais dos diferentes grupos sociais. A ética ambiental orienta os processos e comportamentos sociais visando um futuro justo e sustentável para toda a humanidade.
complexas interações entre a sociedade e a natureza. O saber ambiental re-conecta os vínculos indissolúveis de um mundo interconectado de processos ecológicos, culturais, tecnológicos, econômicos e sociais. O saber ambiental substitui a percepção de um mundo baseado em um pensamento único e unidimensional, que se encontra na raiz da crise ambiental, por um pensamento da complexidade. Esta ética promove a construção de uma racionalidade ambiental fundamentada em uma nova economia – moral, ecológica e cultural– como condição para estabelecer um novo modo de produção que torne viáveis os estilos de vida ecologicamente sustentáveis e socialmente justos.
Ética de uma produção para a vida
seres humanos, entre globalização dos mercados e marginalização social. A justiça social é condição sine qua non da sustentabilidade. Sem eqüidade na distribuição dos bens e serviços ambientais, não será possível construir sociedades ecologicamente sustentáveis e socialmente justas.
civilização baseada no aproveitamento de fontes de energia renováveis,
economicamente eficientes e ambientalmente amigáveis, como a energia solar. A
mudança do paradigma mecanicista para o ecológico está se dando na ciência, nos valores e nas atitudes individuais e coletivas, assim como no padrão de organizações sociais e em novas estratégias produtivas, como a agro-ecologia e o manejo florestal.
Tanto os conhecimentos científicos atuais, como os movimentos sociais emergentes que clamam por novas formas sustentáveis de produção estão abrindo possibilidades para a construção de uma nova racionalidade produtiva fundamentada na produtividade eco-tecnológica de cada região e ecossistema, a partir dos potenciais da natureza e dos valores da cultura. Esta nova racionalidade produtiva abre as perspectivas a um processo econômico que rompe com o modelo unificador, hegemônico e homogenizante do mercado como lei suprema da economia. (É SEPARADO O TIPO DE CONHECIMENTO PRODUZIDO PELA CIÊNCIA E PELOS MOVIMENTOS SOCIAIS. ISSO IMPLICA EM UMA COMPREENSÃO DE QUE OS MOVIMENTOS SOCIAIS NÃO PRODUZEM CIÊNCIA, APENAS CONHECIMENTOS, NEGA ASSIM A REALIDADE EXISTENTE DE UMA INTEGRAÇÃO SISTEMATIZAÇÃO NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS NO INTERIOR DESSAS ORGANIZAÇÕES)
Ética do conhecimento e diálogo de saberes
irreversível, processos naturais que a evolução levou milhões de anos, desencadeando riscos ecológicos fora de todo controle científico.
15. O avanço científico vem acompanhado de uma ideologia do progresso econômico e do domínio da natureza, privilegiando modelos mecanicistas e quantitativos da realidade que ignoram as dimensões qualitativas, subjetivas e sistêmicas que alimentam outras formas de conhecimento. O fracionamento do pensamento científico impossibilitou a compreensão e a solução de problemas sócio-ambientais complexos.
Ainda que as ciências e a economia tenham sido efetivas para intervir em sistemas naturais e ampliar as fronteiras da informação, paradoxalmente não se traduziram em uma melhoria na qualidade de vida da maioria da população mundial; muitos de seus efeitos mais perversos estão profundamente enraizados em pressupostos, axiomas, categorias e procedimentos da economia e das ciências.
Reconhecendo o valor e o potencial da ciência para alcançar estágios de maior bemestar para a humanidade, a ética da sustentabilidade conduz a um processo de reapropriação social do conhecimento e a orientação dos esforços científicos para a solução dos problemas mais cruciais da humanidade e os princípios da
sustentabilidade: uma economia ecológica, fontes renováveis de energia, saúde e
qualidade de vida para todos, erradicação da pobreza e segurança alimentar. O círculo das ciências deve se abrir para um campo epistêmico que inclua e favoreça o florescimento de diferentes formas culturais de conhecimento. O saber ambiental é a abertura da ciência interdisciplinar e sistêmica para um diálogo de saberes.
Ética da cidadania global, o espaço público e os movimentos sociais
econômicos e políticos que são decididos fora de suas esferas de autonomia e
responsabilidade. O movimento ambiental resultou em uma emergência por uma
cidadania global que expressa os direitos de todos os povos e de todas as pessoas para participar de maneira individual e coletiva na tomada de decisões que afetam sua existência, emancipando-se do poder do Estado e do mercado como organizadores de seus modos de vida.
24. O sistema parlamentar das democracias modernas se encontra em crise porque a esfera pública, entendida como o espaço de inter-relação dialógica das aspirações, vontades e interesses, foi substituída pela negociação e o cálculo de interesse dos partidos que, convertidos em grupos de pressão, negociam suas respectivas oportunidades de ocupar o poder. Para resolver os paradoxos do efeito maioria é necessário uma política de tolerância e participação das dissidências e as diferenças.
Assim mesmo deve fortalecer os valores democráticos para praticar uma democracia direta.
processos de tomada de decisões sobre os assuntos de interesse comum. Frente ao projeto de democracia liberal que legitima o domínio da racionalidade do mercado, a democracia ambiental reconhece os direitos das comunidades autogestoras fundamentadas no respeito à soberania e à dignidade da pessoa humana, à responsabilidade ambiental e ao exercício de processos para a tomada de decisões a partir do ideal de uma organização baseada em vínculos pessoais, em relações de trabalho criativo, em grupos de afinidade, em comunidades e vizinhança.
26. O ambientalismo é um movimento social que, nascido nesta época de crise
civilizatória marcada pela degradação ambiental, pelo individualismo, pela
fragmentação do mundo e pela exclusão social, nos conclama a pensar sobre o futuro da vida, a questionar o modelo de desenvolvimento atual e mesmo o conceito de desenvolvimento, para enfrentar os limites da relação da humanidade com o planeta. A ética da sustentabilidade nos confronta com o vínculo da sociedade com a natureza, com a condição humana e com o sentido da vida.
Ética da governabilidade global e a democracia participativa( o termo em si deve estar errado, pois participação não é comando d
estabelecidas pelas diferenças de gênero, etnia, classe social e opção sexual, para estabelecer uma diversidade e pluralidade de direitos da cidadania e da comunidade.
Isso implica reconhecer a impossibilidade de consolidar uma sociedade democrática dentro das grandes iniqüidades econômicas e sociais no mundo e em um cenário político no qual os atores sociais entram no jogo democrático em condições de desigualdade e em que as maiorias têm nulas ou possibilidades muito limitadas de participação.
fundamentar-se em um marco de acordos básicos para a construção de sociedades sustentáveis que incluam novas relações sociais, modos de produção e padrões de consumo. Estes acordos devem incorporar a diversidade de estilos culturais de produção e de vida; reconhecer os dissensos, assumir os conflitos, identificar os ausentes do diálogo e incluir os excluídos do jogo democrático. Estes princípios éticos conduzem à construção de uma racionalidade alternativa que crie sociedades sustentáveis para os milhões de pobres e excluídos deste mundo globalizado, reduzindo a brecha entre crescimento e distribuição, entre participação e marginalização, entre o desejável e o possível.
31. Uma ética para a sustentabilidade deve inspirar novos marcos jurídicoinstitucionais que reflitam, respondam e se adaptem ao caráter tanto global e regional, como nacional e local das dinâmicas ecológicas, assim como a revitalização das culturas e seus conhecimentos associados. Esta nova institucionalidade deve contar com o mandato e os meios para fazer frente às iniqüidades na distribuição econômica e ecológica, à concentração de poder das corporações transnacionais, à corrupção e ineficiência dos diferentes órgãos de governo e gestão; e avançar para formas de governabilidade mais democráticas e participativas da sociedade em seu conjunto.
Ética de os direitos, a justiça e a democracia
32. O direito não é a justiça. A racionalidade jurídica privilegia os processos legais por meio de normas substantivas, impossibilitando assim o estabelecimento de um vínculo social fundamentado em princípios éticos, assim como a aplicação de princípios essenciais para garantir o exercício dos direitos humanos fundamentais, ambientais e coletivos. Apoiados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, todos nós temos direito às mesmas oportunidades, a ter direitos comuns e diferenciados. O projeto para avançar para a nova aliança solidária com uma civilização da diversidade e uma cultura
de baixa entropia pressupõe o primado de uma ética implicada em uma nova visão do mundo que nos prepare para uma transmutação dos valores que fundamentem um novo contrato social. Nas circunstâncias atuais de bancarrota moral, ecológica e política, esta mudança de valores é um imperativo de sobrevivência.
33. O conceito moral de modernidade tende a favorecer as ações regidas pela
racionalidade instrumental e o interesse econômico, ao mesmo tempo em que dilui a sensibilidade que permite diferenciar um comportamento utilitarista de outro baseado em valores substantivos e intrínsecos. A complexidade crescente do mundo moderno erradicou uma visão universal do bem ou um princípio transcendental do justo que sirva de cimento para o vínculo social solidário. A ética da sustentabilidade deve ser uma ética aplicada que assegure a coexistência entre visões rivais em um mundo constituído por uma diversidade de culturas e matrizes de racionalidade, centradas em diferentes idéias do bem.
34. Se o que caracteriza as sociedades contemporâneas é o poder científico sobre a natureza e o poder político sobre os seres humanos, a ética para a sustentabilidade deve formular os princípios para prevenir que qualquer bem social sirva como meio de dominação. Existindo diferentes bens sociais, sua distribuição configura distintas esferas de justiça, cada uma das quais deve ser autônoma e dotada de regras próprias.
Desta complexidade dos bens sociais nasce a noção de eqüidade complexa resultante da intersecção entre o projeto de combater a dominação e o programa de diferenciação de esferas da justiça.
35. Se a dominação é uma das formas essenciais do mal, aboli-la é o bem supremo.
Isso significa desatar os nós do pensamento e as estratégias de poder no saber que nos submetem aos distintos dispositivos de prejulgamento ativados em ideologias e instituições sociais. A luta contra a dominação é um projeto moral cujo núcleo consiste em cultivar uma ética das virtudes que nos permita renunciar a valores morais, os sistemas de organização política e os artefatos tecnológicos que serviram como meios de dominação. É ao mesmo tempo um projeto cultural para avançar para a reinvenção ética e estética da mente, dos modelos econômico-sociais e das relações naturezacultura que configuram o estilo de vida dominante nesta civilização. Trata-se de uma ética das virtudes pessoais e cívicas que garanta o respeito de uma base mínima de deveres positivos e negativos, que assegure as normas básicas de convivência para a
sustentabilidade.
Ética de os bens comuns e do Bem Comum
37. Os atuais processos de intervenção tecnológica, de revalorização econômica e de reapropriação social da natureza estão criando a necessidade de estabelecer os princípios de uma bioética junto com uma ética dos bens e serviços ambientais. Os bens comuns não são bens livres, ainda que tenham sido significados e transformados por valores comuns de diferentes culturas. Os bens públicos não são bens de livre acesso, pois devem ser aproveitados para o bem comum. Atualmente, os "bens comuns" estão sujeitos às formas de propriedade e normas de uso que confluem de maneira conflitante com os interesses do Estado, das empresas transnacionais e dos povos em redefinição do próprio e do alheio; do público e do privado; do patrimônio dos povos, do Estado e da humanidade. Os bens ambientais são uma intrincada rede de bens comuns e bens públicos com os que se confrontam os princípios da liberdade de mercado, a soberania dos Estados e a autonomia dos povos.
Ética da diversidade cultural e de uma política da diferença
40. O discurso do "desenvolvimento sustentável" preconiza um futuro comum para a humanidade, mas não inclui adequadamente as visões diferenciadas dos diferentes grupos sociais envolvidos, e em particular, das populações indígenas que ao longo da história conviveram material e espiritualmente em harmonia com a natureza. A sustentabilidade deve estar baseada em um princípio de integridade dos valores humanos e das identidades culturais, com as condições de produtividade e regeneração da natureza, princípios que emanam da relação material e simbólica que têm as populações com seus territórios, com os recursos naturais e o ambiente. As cosmovisões dos povos ancestrais estão assentadas em sua fonte inspiradora de práticas culturais de uso sustentável da natureza.
contesta todas as formas de dominação, discriminação e exclusão de suas identidades culturais. Uma ética da diversidade cultural implica uma pedagogia da alteridade para aprender a escutar outras racionalizações e outros sentimentos. Essa alteridade inclui a espiritualidade das populações indígenas, seus conhecimentos ancestrais e suas práticas tradicionais, como uma contribuição fundamental da diversidade cultural à sustentabilidade humana global.
42. Para os povos indígenas e afro-descendentes, assim como para muitas sociedades campesinas e organizações populares, a ética da sustentabilidade se traduz em uma ética do respeito a seus estilos de vida e a seus espaços territoriais, a seus hábitos e a seu hábitat, tanto no âmbito rural como no urbano. A ética se traduz em práticas sociais para a proteção da natureza, a garantia da vida e a sustentabilidade humana.
Os conhecimentos ancestrais, por seu caráter coletivo, se definem através de suas próprias cosmovisões e racionalidades culturais e contribuem para o bem comum do povo a que pertencem. Por isso, seus saberes, sua natureza e sua cultura não devem ser submetidos ao uso e à propriedade privada.
43. Nas cosmovisões dos povos indígenas e afro-descendentes, assim como de muitas comunidades campesinas, a natureza e a sociedade estão integradas dentro de um sistema biocultural, cuja organização social, práticas produtivas, religião, espiritualidade e palavra integram um ethos que define seus estilos próprios de vida. A ética remete a um conceito de bem-estar que inclui a "grande família" e não unicamente pessoas. Este viver bem da comunidade se refere a lograr seu bem-estar baseado em seus valores culturais e identidades próprias. As dinâmicas demográficas, de mobilidade e ocupação territorial, assim como as práticas de uso e manejo da biodiversidade, se definem dentro de uma concepção da trilogia território-culturabiodiversidade como um todo íntegro e indivisível. O território se define como o espaço para ser e a biodiversidade como um patrimônio cultural que permite ao ser permanecer; portanto a existência cultural é condição para a conservação e uso sustentável da biodiversidade. Estas concepções do mundo estão gerando novas alternativas de vida para muitas comunidades rurais e urbanas.
44. O direito inalienável dos povos a seu ser cultural deve levar a uma nova ética dos direitos dos povos frente ao Estado. A ética para a sustentabilidade abre assim os meios para recuperar identidades, para voltar a perguntar-nos quem somos e quem queremos ser. É uma ética para enxergar e retornar às nossas raízes, uma ética para reconhecer-nos e regenerar laços de comunicação e solidariedade a partir de nossas diferenças e para não seguir atropelando o outro. Uma ética para reestabelecer a confiança entre os seres humanos e entre os povos subjugados, tornando realidade os preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Ética da paz e o diálogo para a resolução de conflitos
45. O pior mal da humanidade é a guerra que aniquila a vida e destrói a natureza, assim como a violência física e simbólica que desconhece a dignidade humana e o direito do outro. A ética para a sustentabilidade é a ética de uma cultura de paz e de não-violência; de uma sociedade que resolve seus conflitos através do diálogo. Esta cultura de diálogo e paz só pode se dar dentro de uma sociedade de pessoas livres em que se constroem acordos e consensos em processos nos quais também há lugar para os dissensos.
47. Se toda ordem social –incluindo a democrática– supõe formas de exclusão, em cada cenário de negociação deve se incluir todos os grupos afetados e interessados.
Esta transparência é fundamental nos processos de resolução de conflitos ambientais pela via do diálogo e da negociação, sobretudo se consideramos que as comunidades e indivíduos mais afetados pela crise ambiental em todas suas manifestações são justamente os mais pobres, os subalternos e os excluídos do esquema da democracia liberal.
48. Para que a ética se converta em um critério operativo que permita dirimir conflitos entre atores em diferentes escalas e poderes desiguais, será necessário um acordo de princípios de igualdade que seja assumido e praticado por todos os atores da sustentabilidade. Isso implica reconhecer a especificidade dos diferentes atores e setores sociais com seus impactos ecológicos, responsabilidades, interesses e demandas, e suas diferentes esferas de intervenção: local, nacional, internacional.
Para tal é necessário superar as dicotomias entre países ricos e pobres, assim como as oposições convencionais entre Norte / Sul, Estado / sociedade civil, esfera pública / esfera privada, de maneira que se identifiquem os valores, interesses e responsabilidades dos atores concretos dentro das controvérsias postas em jogo por grupos sociais, corporações, empresas e Estados específicos. Este exercício é fundamental para que as políticas, as decisões e os compromissos adotados correspondam às responsabilidades diferenciadas e às condições específicas dos atores envolvidos.
Ética do ser e o tempo da sustentabilidade
geração. A vida individual é transitória, mas a aventura do sistema vivo e das
identidades coletivas transcende o tempo. O valor fundamental de todo ser vivo é a perpetuação da vida. O maior valor da cultura é sua abertura para a diversidade cultural. A construção da sustentabilidade está suspensa no tempo, em uma ética transgeracional. O futuro sustentável só será possível em um mundo no qual a natureza e a cultura continuem co-evoluindo.
Epílogo
54. Este Manifesto não é um texto definitivo e acabado. A ONU, os governos, as
organizações cidadãs, os centros educativos e os meios de comunicação de todo o mundo deverão contribuir para difundir este Manifesto para propiciar um amplo diálogo e debate que conduzam a estabelecer e praticar uma ética para a sustentabilidade.