segunda-feira, 24 de setembro de 2012

“A Nascente” [Romney, Ryan e o Instituto Milênio]


25/08/2012 - original em Gush Shalom [Bloco da Paz], Israel - “The Fountainhead”
- por Uri Avnery
- traduzido pelo pessoal da Vila Vudu - redecastorphoto

Paul Ryan
O nome do homem que será indicado candidato a vice-presidente dos EUA na chapa do Partido Republicano absolutamente não me interessava, até que surgiu, associado a ele, o nome de Ayn Rand.

Ayn Rand
O que se diz é que Ayn Rand é uma das fontes inspiracionais que anima o específico pensamento filosófico de Paul Ryan, candidato a vice-presidente dos EUA.

Mitt Romney
E, dado que o mesmo Paul Ryan está sendo apresentado não como político mequetrefe padrão, como Mitt Romney, mas como profundo pensador de política e economia, a tal fonte inspiracional merece algum exame.

Como no caso de muita gente em Israel, Ayn Rand entrou na minha vida como autora de The Fountainhead [1] [A Nascente], romance lançado quatro anos antes do nascimento do Estado de Israel e que rapidamente se tornou bestseller [2]. O filme baseado no romance, com Gary Cooper no papel principal (no Brasil e em Portugal, Vontade Indômita, 1949 [3]) tornou-se ainda mais popular.

É a história de um arquiteto de gênio (semelhante, nos traços gerais, a Frank Lloyd Wright) que segue o próprio estilo individual e desdenha as preferências das massas. Quando seu projeto arquitetônico para uma casa é modificado pelos construtores, o arquiteto destrói os prédios e, em seguida, defende os próprios atos nos tribunais, num apaixonado discurso a favor do individualismo.

(Honestamente: Muitas vezes tive ímpetos de fazer o mesmo que ele a alguns prédios em Telavive, sobretudo aos hotéis de luxo erguidos entre minha janela e o mar.)

Comecei a ler o segundo bestseller da mesma autora, Atlas Shrugged [1957 (2008), A revolta de Atlas, SP: ed. Ed. Sextante e Instituto Milênio [4]], no qual expõe detalhadamente a própria filosofia. Nesse caso, tenho de confessar que, para minha eterna vergonha, não consegui avançar e jamais concluí a leitura.

Um dia, em 1974, meu amigo Dan Ben-Amotz telefonou-me para pedir que eu recebesse um jovem que ele acabava de conhecer, Dr. Moshe Kroy. “Um gênio!”, disse ele.

Ben-Amotz já era, só ele, personagem notável. Tinha mais ou menos a minha idade e, em 1974, era conhecido humorista e ícone da geração que fez a guerra de 1948 e criou a nova cultura hebraica. Ben-Amotz, como muitos de nós, era self-made man; mais propriamente dito, era autoinventado e fez-se conhecido como exemplo consumado do sabra [israelense nativo] perfeito. Um dia, muitos anos depois, transpirou que teria nascido na Polônia e chegara menino à Palestina, onde adotara o nome de amplas sonoridades hebraicas pelo qual se tornou conhecido, em substituição ao nome que trazia da Polônia, Moshe Tehilimzeigger (em ídiche, “recitador de salmos”).

Ben-Amotz trouxe Kroy à minha casa. Tinha 24 anos e era impressionantemente erudito, já professor na Universidade de Telavive, com óculos grossos e conversa muito altamente filosófica. Fiquei impressionadíssimo.

Logo ficou bem claro que era Crente Fiel dos ensinamentos de Ayn Rand, apresentados pela autora como “objetivismo”. O objetivismo ensinava (e pelo visto, como fazem o tal candidato Republicano à vice-presidência dos EUA e a rede Fox, ainda ensina) que o principal e básico dever de todos os seres humanos é o egoísmo. Qualquer tipo de envolvimento ou compromisso social é pecado contra a natureza. Só quando luta pelos próprios interesses pessoais, limpando-se de qualquer traço de altruísmo, o ser humano realiza o destino para o qual veio ao mundo. A sociedade só progride quando constituída de e baseada em indivíduos assim furiosamente egoístas, cada um lutando para promover só os próprios interesses pessoais.

É filosofia que pode ser irresistivelmente atraente para certo tipo de gente. Garante a esse tipo de gente a justificativa filosófica de que precisam para ser furiosamente egoístas, vivendo sem dar a mínima a quem que seja, além deles mesmos.

Kroy, e também é claro, Ben-Amotz, eram religiosamente devotados àquele novo credo, militantes do egoísmo. (Há aí evidente oximoro, porque a própria Ayn Rand era absolutamente não crente, condenando todas as religiões, inclusive a religião dos judeus de sua família.) Em certo momento, apanhei Ben-Amotz com a boca na botija, fazendo algo que, sim, bem poderia implicar benefício a outras pessoas. Ele deu-se muito trabalho para explicar que, naquele ato, de fato, no longo prazo, visava exclusivamente a obter vantagens só para ele mesmo.

Kroy, como já então era bem visível, era pessoa bastante perturbada. Matou-se, aos 41 anos. Nunca consegui definir se Ayn Rand perturbou-o além do suportável, ou se foi atraído para ela porque já era suficientemente perturbado antes de conhecer o objetivismo. 

AYN RAND foi pseudônimo de Alisa Zinovyevna Rosenbaum, nascida em São Petersburgo, que depois foi Petrogrado, que depois foi Leningrado. Tinha 12 anos quando eclodiu naquela cidade a Revolução Bolchevique. A farmácia de seus pais foi tomada pelo regime, e a família burguesa fugiu para a Crimeia, então defendida pelas forças dos Russos Brancos. Adiante retornaram à cidade natal, onde Alisa estudou filosofia e até publicou um livro em russo. Em 1926, ela chegou, sozinha, aos EUA.

Adotou o nome “Ayn” (que rima com “swine” [suíno(a)], como ela mesma explicava). Provavelmente recolheu a palavra do hebraico, em que significa “olho”. O sobrenome Rand pode ser contração do sobrenome original judeu-alemão da família.

Sua história inicial, em certa medida, explica o ódio imorredouro que o Comunismo sempre lhe inspirou, como todas as modalidades de coletivismo, inclusive a social-democracia, além do ódio a todas as formas de religião ou estatismo. Para ela, o Estado é o inimigo do indivíduo idealmente totalmente livre. Esse ideário levou-a naturalmente a abraçar um capitalismo de laissez-faire absolutamente desatinado (que Shimon Peres chamou de “capitalismo swinish [lit. “suíno”] e a rejeitar toda e qualquer forma de estado de bem-estar e rede de proteção social.

Tudo isso aparecia bem estruturado na filosofia dela, que foi adotada por crentes adoradores em todo o mundo. Certa vez, ela se autoapresentou como “o(a) mais criativo(a) pensador(a) vivo.” Noutra ocasião, disse que em todos os anais da filosofia há só três grandes pensadores, todos na letra A: Aristóteles, Santo Tomás de Aquino e Ayn Rand.

Com toda a probabilidade, foi também racista do tipo furioso: durante a Guerra do Yom Kippur, em 1973, disse que “homens civilizados enfrentavam selvagens” e comparou os israelenses aos brancos, nos EUA, enfrentando bárbaros peles vermelhas.
Não surpreende que, no post-mortem, Ayn Rand tenha-se tornado leitura preferencial dos fanáticos do Tea Party, que hoje dominam o Partido Republicano. Não surpreende tampouco que o candidato à vice-presidência Paul Ryan refira-se a ela, orgulhosamente, como um de seus mais importantes mentores intelectuais. (Ayn Rand morreu em 1982, com 77 anos. Ao funeral compareceram vários crentes devotos, entre os quais Alan Greenspan, um dos coveiros da economia dos EUA. [E é cultuada até hoje, no Brasil, pelo Instituto Liberal e pelo Instituto Milênio, que co-editam seus livros, os quais podem ser lidos gratuitamente na página Internet do IM (NTs)].

Há algo nos ensinamentos dessa pregadora fundamentalista judeu-russa branca do egoísmo total, que os torna sedutores aos olhos dos que cultivam os mitos norte-americanos primitivos e o individualismo absoluto; dos que cultivam a autoconfiança enlouquecida dos “mocinhos” sempre armados na luta contra o Oeste Selvagem; dos que padecem de desconfiança mórbida contra o Estado arrecadador (mitos que chegam ao Rei Eduardo III). Mas, Santo Deus! O mundo já ultrapassou o século 18!

Nunca estudei filosofia, mas ao longo da vida, aqui e ali, li alguma coisa. E as teorias de Ayn Rand sempre me pareceram, digamos, infanto-juvenis.

Há uma lembrança que sempre me acompanha. O falecido Ministro israelense Pinchas, contando como, ainda adolescente, escalou uma escada do kibbutz, encontrou numa das prateleiras mais altas um livro de Nietzsche e lá ficou, a metros do chão, horas a fio, sem conseguir parar de ler. Se bem me lembro, foi Assim falou Zarathustra, livro perigoso para jovens. Pois esse livro também teve poderoso impacto sobre Ayn Rand na adolescência.

Nietzsche deblatera contra a “moral da piedade judaica”, que infectava as adoráveis “bestas louras”. Compaixão pelos fracos é pecado, porque mina as capacidades dos fortes em vias de tornarem-se super-homens. Ayn Rand, no caso, sentiu rugir dentro dela as potências da super-mulher. (...)

Na minha juventude, também fui capturado por Nietzsche. Mas a “moral da piedade judaica” venceu. Por isso eu, como muitos israelenses, absolutamente não conseguimos entender muitas das atitudes sociais dos norte-americanos, algumas das quais se veem bem ilustradas na atual campanha eleitoral.

Para mim, é autoevidente que o Estado tem o dever de amparar os doentes, os velhos, as crianças, os incapazes e os mais pobres. Um velho dito ensina que “cada judeu é responsável por todos os judeus”. Pouco tempo depois de criado o Estado de Israel, já havia constituído aqui um sólido sistema de assistência pública à saúde e serviços sociais. A necessidade da segurança social, instituída na Alemanha por Otto von Bismarck, político de direita, no tempo de Nietzsche, é autoevidente para os israelenses, ainda hoje.

Benyamin Netanyahu é direitista à moda dos Republicanos dos EUA, empenhado apoiador de Mitt Romney. Provocou dano incalculável à rede de amparo social em Israel, primeiro como Ministro das Finanças, depois como Primeiro-Ministro. Pois nem “Bibi” atreveu-se a apresentar-se como discípulo de Ayn Rand.

Mas “Bibi” partilha pelo menos um traço com Paul Ryan, crente fundamentalista da igreja de Ayn Rand: Netanyahu e Ryan são, ambos, promovidos e financiados por Sheldon Adelson.

Acho que não pode haver personificação mais pura da visão de Ayn Rand, que esse bilionário à moda Casino (o filme). Ayn o teria adorado! Sheldon Adelson é o egoísta perfeito. Super enriqueceu explorando os vícios dos seres humanos mais fracos. Suas práticas negociais são mais que suspeitas. Sim, mas... Mesmo assim, é preciso perguntar se Adelson gastaria centenas de milhões em gente como Romney, Ryan e Netanyahu em nome, exclusivamente, de promover os seus próprios interesses comerciais. Pouco provável. O mais provável é que haja nele um traço de altruísmo, uma crença sincera, um desejo sincero de, através dessa gente, promover alguma ideia social que lhe seja sinceramente cara, por pouco decente que nos pareça ser ou que seja.

Ayn Rand era ateia e odiava tudo que não fosse doentiamente racional. Mas o Tea Party é movimento religioso (não interessa a religião). Ayn Rand era apaixonada defensora do aborto... mas Ryan é antiabortista fundamentalista fanático. Farejo problemas.

De fato, não acredito nem na imagem de intelectual nem na imagem de político “ético” que Ryan anda divulgando. 

Há algo de falso, no homem. Acho que nem Ayn Rand confiaria nele.

Se, pelo menos, aparecesse um Gary Cooper, para a vice-presidência...



Notas dos tradutores
[1] Sobre Ayn Rand, há longo verbete em português, na página (e onde mais seria?!) do Instituto Liberal, primo irmão do facinoroso Instituto Milênio. Ver em: http://www.institutoliberal.org.br/galeria_autor.asp?cdc=921
[2] Não por coincidência, é claro, o livro “A nascente” é acessível, em .pdf, em tradução recente para o português [2008, SP: Ed. Landscape, trad. Andrea Neves Holcberg e David Holcberg], na página do portal O Globo. Ver em: http://g1.globo.com/platb/files/1045/theme/A%20Nascente_AynRand.pdf
[3] Ver sobre o filme “The Fountainhead” (dir. King Vidor, 1949) em: http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Fountainhead
[4] A edição em português de “A revolta de Atlas” também foi feita em parceria entre a Ed. Sextante, de SP, e o Instituto Milênio. Pode ser baixado em .pdf do site: http://br.librosintinta.in/a-revolta-de-atlas-

Fonte:
pdf.htmlhttp://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/08/a-nascente-romney-ryan-e-o-instituto.html