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sábado, 19 de maio de 2012

Água não se nega a ninguém - Parte 5/5 - Final

A Guerra da Água
Carlos Walter Gonçalves*

Parte 1/5: A Necessidade de Ouvir Outras Vozes
Parte 2/5: Algumas Razões da Desordem Ecológica Vista a Partir das Águas
Parte 3/5: Águas para Quem? Do Interesse Privado e do Público
Parte 4/5: A Liberalização e a Privatização: entre a Teoria e a Prática

Estamos, na verdade, imersos numa guerra mundial envolvendo a água, mas não uma guerra no estilo clássico, com exércitos se enfrentando ou com bombardeios.

Não, a guerra pelo controle e gestão da água vem sendo disputada na Organização Mundial do Comércio, discutidas no Fórum Econômico de Davos, nas reuniões do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional onde se decide um novo "código das águas" que quer torná-la uma mercadoria e, para isso, é preciso primeiro privar os homens e mulheres comuns do acesso a ela.

Sem privatização não há mercantilização no sentido capitalista.

Mas as decisões feitas nesses fóruns da globalização do dinheiro não podem prescindir da materialidade concreta da água para mover a agricultura, a indústria, as cidades, a vida.

Assim, há que concretamente se apropriar da água nos lugares onde ela está e onde soem estar as populações com outros usos da água para a vida. Assim, como as guerras não se ganham com bombardeios, embora gere pânico e horror, há que se fazer presente no território de onde a água não pode ser abstraída porque ela atravessa toda a sociedade e seus lugares. Daí, em todo lugar onde se tenta se apropriar da água há resistência.


Jerson Kelman
A guerra global pelo controle da água tem especificidades ligadas à sua própria natureza. A água não é uma commoditty como se vem tratando tudo a partir momento em que se torna hegemônica essa mentalidade mercantil, liberal e privatista. Observemos o que diz Jerson Kelman, [ex] diretor da ANA [Agência Nacional de Águas]: “A água bruta não é uma commodity, como o petróleo, uma vez que não existe um mercado disposto a consumir grandes quantidades de água a um preço que compense os custos de transporte. Nem tampouco se prevê o surgimento desse mercado porque a maior parte do consumo de água doce do mundo se consome na irrigação."

"Para que se tenha uma idéia de quanta água é necessária para produzir alimentos, posso dar o seguinte exemplo: para produzir um quilo de milho são necessários mil litros de água. Um quilo de frango, cerca de dois mil litros. Vamos imaginar uma pessoa com pouca criatividade culinária que coma diariamente 200 g de frango e 800 g de milho. É só fazer as contas para concluir que essa pessoa come cerca de 1200 litros de água por dia, uma quantidade de água 500 vezes maior do que a que bebe. Naturalmente, esse cidadão não poderia pagar pela água que come o mesmo que paga pela água que bebe."

"(...) Uma coisa é o comércio internacional de água mineral, que pode atingir altíssimos preços unitários, mas que ocorre em escala relativamente modesta, apenas para atender às necessidades de beber. Outra coisa seria o comércio a granel de água bruta, como insumo agrícola. Devido à grande quantidade consumida per capita, não seria sustentável que os preços unitários fossem muito elevados. E como custa muito caro transportar água, o que faz mais sentido é exportar alimentos, e não água. Esta é, aliás, a grande vocação do Brasil” (EA, ano 12, no. 01, janeiros/abril de 2003: pág. 12). 

Lester Brown
Assim como Lester Brown já havia assinalado, as diferentes lucratividades possíveis com a mesma quantidade de água, maior na indústria que na agricultura, por exemplo, vemos aqui a que pode levar esse mesmo raciocínio – água para exportação se sobrepondo à água para consumo humano direto e, tudo indica, serão os conflitos sociais que advirão entre a lógica privatista e liberal e a de uso comum que decidirão as novas regulações da água.

Assim, vê-se como está sendo decidida a guerra global da água. Os governos, como salientou acima Maude Barlow, diminuem as tarifas para serem competitivos e o preço da água necessária para produzir commodities é subestimado, até porque seria impossível exportar, caso o preço fosse unificado. O que se revela, com isso, é todo o limite de regras universais com que o discurso liberal-econômico procura se revestir e, ainda, como a natureza continua transferindo uma riqueza, no caso a água, sem a qual a produção não seria possível, haja vista o preço que seria necessário pagar, caso tivesse que incorporar a água plenamente utilizada ao valor final da commodity.

Maude Barlow
A análise da água requer, o tempo todo, que se a considere na sua geograficidade, isto é, na inscrição concreta da sociedade na sua geografia, com as suas diferentes escalas local, regional, nacional e mundial imbricadas num processo complexo de articulação ecológico e político. Só assim se explica a transferência dos países ricos em capital para os países ricos em água de várias atividades altamente consumidoras, como assinalamos para as indústrias de papel e celulose e de alumínio.

A desordem ecológica global está, na verdade, associada ao processo que deslocou completamente a relação entre lugar de extração, de transformação e produção da matéria e o lugar de consumo com a revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) industrial. Com a maior eficácia energética foi possível explorar minerais em proporções ínfimas quanto à sua concentração nas diferentes jazidas existentes na geografia do planeta, assim como na sua natureza nanométrica. Os rejeitos ou foram deixados nos locais onde as pessoas valem menos – nunca é demais lembrar o racismo subjacente ao sistema-mundo moderno-colonial – e os produtos foram e são levados limpos para os lugares e pessoas que podiam e podem gozar os proveitos, diz-se a qualidade de vida, desde que não se incluam os custos dos seus rejeitos nem se lembre aos bem-nascidos dessa mosca pousando em sua sopa, parodiando Raul Seixas, que é a injustiça ambiental em que se ancora seu modo de vida. 

Boaventura de Sousa Santos
Dada a importância do tema da água é fundamental que ouçamos a observação de Boaventura de Sousa Santos que, rompendo com a colonialidade do saber e do poder, nos convida a que não desperdicemos as múltiplas experiências que a humanidade nos legou e que o primeiro-mundismo não nos deixa enxergar.

Diferentes instituições foram criadas por diferentes povos ao longo da história (e suas geografias) estabelecendo regras as mais variadas de uso da água. Os povos árabes e arabizados detém a esse respeito uma grande tradição de convivência com a água em áreas desérticas e semi-áridas. Os espanhóis são herdeiros de muitas dessas regras para lidar com la sequía e suas lições podem ser aprendidas em Yerma de Garcia Lorca.

Aziz Ab’Saber

Os sertanejos do nordeste brasileiro desenvolveram toda uma sabedoria que vai da previsão do tempo, que mereceu, inclusive, a atenção da NASA pelo seu elevado índice de precisão, ao aproveitamento máximo do mínimo de água com que têm que se haver diante da irregularidade das precipitações, com suas culturas de vazante, conforme destaca o geógrafo Aziz Ab’Saber.

Os chineses, hindus, os maias e os aztecas, que chegaram a ser chamadas pelos historiadores de civilizações do regadio, têm tradições que merecem ser estudadas, agora que a água parece convocar a todos a buscar novas formas de gestão e controle. Portanto, caso não se queira desperdiçar, mais uma vez, por preconceito, a diversidade de experiências que a humanidade desenvolveu, como é característico do etnocentrismo ocidental, não nos faltará inspiração para buscarmos soluções, sublinhe-se, no plural.

Tudo indica que o planeta como um todo começa a dizer, tanto ecológica como politicamente, que o local já não é isolável, tal como o foi durante o período áureo do colonialismo e do imperialismo clássicos.

O desafio ambiental nos conclama à solidariedade e a pensar para além do individualismo fóbico.

E como não há instituições que não sejam instituídas, é bom prestarmos atenção aos sujeitos instituintes que estão pondo esse-mundo-que-aí-está em xeque e que apontam, com sua lutas, que um outro mundo não só é possível, como necessário.

(*) Geógrafo, doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.

[Nota da Equipe Educom: Parece que o Brasil está fazendo um movimento inverso à luta dos povos latino-americanos... De modo geral, os tecnocratas da ANA (Agência Nacional de Águas) e do CPRM (Companhia de Pesquisas e Recursos Minerais) têm ajudado o mercado da água a acelerar o processo de privatização, à medida que pesquisadores do país descobrem que nosso potencial de água é maior do que imaginávamos. Entregam pesquisas já feitas por brasileiros a estrangeiros, patrocinadas a peso de ouro com recursos do povo brasieliro, negados aos pesquisadores das instuições e das universidades brasileiras.]